NIETZSCHE E A
DOMESTICAÇÃO DO
ANIMAL HOMEM
DIANY MARY FALCÃO ALVES - Mestranda em filosofia pela Universidade
Estadual do Ceará (UECE).
E-mail: [email protected] / [email protected]
Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar as ideias de Nietzsche no tocante ao estudo sobre a domesticação do Homem. Para tanto utilizamos o livro “Genealogia da Moral” que
retrata a denúncia de Nietzsche ao processo de civilização, processo este caracterizado pela crueldade; aquisição da capacidade do homem em fazer promessas, a interiorização do sentimento
de culpa, a formação da má consciência, a aplicação e aceitação do castigo; e por fim, os grandes
construtores desta forma de adestramento do animal homem, criados pelo cristianismo. Destacaremos aqui, algumas considerações acerca do pensamento de Peter Sloterdijk, quanto à crítica de
Nietzsche ao Humanismo, dando destaque a denúncia de Nietzsche ao projeto de criação dos seres
humanos.
Palavras-chave: Homem. Domesticação. Cristianismo. Humanismo.
Nº 4 - 11/2013
Nietzsche e a domesticação do animal homem, pp. 15 - 26.
Introdução
N
o pensamento de Nietzsche encontramos uma crítica radical ao processo de
formação do homem, a partir de uma denúncia da domesticação do homem.
Entender de forma sistemática as análises de Nietzsche quanto ao desenvolvimento
deste tema não é tarefa fácil. A complexidade dos escritos deste filósofo nos remete
a diversas temáticas2, entretanto, podemos extrair da obra “Genealogia da Moral”
a tese nietzschiana de que o processo civilizatório é o da cruel domesticação do “homem animal de
rapina”. Neste processo, a barbárie seria superada e a civilização se constituiria.
Segundo Nietzsche a formação do homem foi marcada pela construção de valores, de uma
cultura que ao longo de sua estruturação direcionou-se para um adestramento do animal homem, ou
seja, para Nietzsche o sentido de toda cultura é amestrar o animal de rapina ”homem”, reduzi-lo a um
animal manso e civilizado, doméstico (Nietzsche, 1998, p.33).
Essa definição atravessa todo o pensamento de Nietzsche, e através de uma genealogia da
moral, ele reconstitui as condições e circunstâncias nas quais se desenvolveram e concretizaram-se os
parâmetros desta cultura. Desse desenvolvimento, Nietzsche apresenta a aquisição da capacidade do
homem em fazer promessas, a interiorização do sentimento de culpa, a formação da má consciência, a
aplicação e aceitação do castigo, e por fim a presença do grande construtor desta forma de adestramento
do animal homem: o “sacerdote ascético”.
Nietzsche e a Domesticação do Animal Homem
O marco inicial da domesticação do homem, explica Nietzsche, está na aquisição da
capacidade de fazer promessas. Este é um pressuposto fundamental para o homem viver em sociedade.
A faculdade de prometer deve está interiorizada na natureza humana, por outro lado, afirma Nietzsche,
há no homem uma força contrária a esta faculdade, uma força inibidora ativa. Segundo Nietzsche
Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se
impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem? ... O fato de que
este problema esteja em grande parte resolvido deve parecer ainda mais notável para quem
sabe apreciar plenamente a força que atua de modo contrário, a do esquecimento 3
O fato é que essa força inibidora ativa, esse esquecimento, inviabiliza no homem a
capacidade de prometer, visto que o faz esquecer suas promessas. Foi então preciso desenvolver no
homem uma faculdade oposta ao esquecimento, a faculdade de se lembrar, ou seja, a “memória da
vontade”. Entretanto, a imposição desta faculdade não foi estabelecida de forma pacífica, calma,
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espontânea. Esta veio através de um processo cruel, doloroso, denominado “mnemotécnica” 4. Acusa
Nietzsche.
Talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que sua
mnemotécnica. “Grava-se algo ao fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de
causar dor fica na memória “ – eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura)
psicologia da terra. (...) Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem
sentiu a necessidade de criar em si uma memória 5
Esta técnica utiliza a dor para construir uma memória, isto faz com que as promessas,
lembranças, sejam gravadas na consciência do homem. Deste processo de criar um animal capaz de
fazer promessas surgiu o conceito de “responsabilidade”, que
tomou o homem até certo ponto necessário, uniforme, iguais entre iguais, constante, consequentemente,
confiável 6. Isto é apenas o início do longo processo de domesticação do “homem animal de rapina”,
onde o castigo é um procedimento fundamental.
Estabelecido o conceito de responsabilidade, a capacidade de prometer, o homem passou
a ter consciência, e condições para viver em sociedade, na medida em que passou a ter condições de
lembrar e cumprir os contratos sociais; passando a ser útil, necessário e confiável.
Segundo Nietzsche o nascimento do castigo não se resume ao fato de responsabilizar um
delinquente por seu ato. Seu nascimento está ligado a uma forma de reparação pelo dano sofrido. Seu
desenvolvimento vem da “relação contratual entre credor e devedor, que é tão velha quanto a existência
de ‘pessoas jurídicas’, e que por sua vez remete às formas básicas de compra, venda, comércio, troca e
tráfico” (Nietzsche, 1998, p. 53).
Nestas relações, o devedor deve infundir confiança, serenidade e a santidade em sua
promessa de restituições. Para tanto se utiliza daquilo de que tem posse, como seu corpo, sua mulher,
sua liberdade ou até mesmo sua vida. Sendo assim, o credor na reparação do dano sofrido, pode infligir
ao corpo do devedor toda a sorte de humilhações e torturas. Neste sentido, o corpo do devedor serve
de garantia e, sobretudo, serve de base que dá solidez à palavra, garantia de promessa. Este processo,
afirma Nietzsche, remete a um tipo de compensação, ou seja,
A satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre o impotente, a volúpia
de “faire le mal pour le plaisir de le faire”, o prazer de ultrajar (...) Através da “punição”
ao devedor, o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele mesmo
a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como “inferior” – ou então, no
caso em que o poder de execução de pena já passou à “autoridade”, poder ao menos vê-lo
desprezado e maltratado. A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à
crueldade 7
O castigo não se limita apenas como uma compensação de um dano, Nietzsche explica que
da relação contratual primitiva entre credor e devedor, o castigo passou para relações mais amplas,
para as relações entre comunidades e seus membros, isto é, deixou de ser da ordem privada para tornarse público, político, jurídico, transformando-se em pena 7. Este processo de reparação não define o
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castigo, 8 segundo Nietzsche, este comporta diversos sentidos, pois “evidentemente o castigo está
carregado de toda espécie de utilidades” (Nietzsche, 1998, p.69). Porém, há uma utilidade importante
do castigo, é o fato dele ter “o valor de despertar no culpado o sentimento de culpa, nele se vê o verdadeiro
instrumentum dessa reação psíquica chamada má consciência, remorso” (Nietzsche, 1998, p.70).
Nietzsche relata uma provisória hipótese sobre a origem dessa má consciência: “Vejo a
má consciência como a profunda doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais radical
das mudanças – a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da
sociedade e da paz” (Nietzsche, 1998, p.72). Isto se deve ao fato do homem ter que inibir seus instintos
selvagens em prol da formação de um Estado, ou melhor, de uma civilização, pois na medida em
que o homem foi impedido de exteriorizar seus instintos, estes se voltaram para dentro de si, é o que
Nietzsche denominou de “interiorização do homem”, o que depois para ele passou a ser denominado
de “alma” 8
Vejamos que o castigo vai além do sentido de punição e reparação. Ele é o princípio que
desperta no culpado um sentimento de culpa, uma reação psíquica denominada “má consciência”. De
modo geral, declara Nietzsche.
O que em geral se consegue com o castigo, em homens e animais, é o acréscimo do medo, a
intensificação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo doma o homem, mas não o
torna “melhor” – com maior razão se afirmaria o contrário. (“O prejuízo torna prudente”, diz
o povo: tornando prudente, torna também ruim. Mas infelizmente torna muitas vezes tolo)9
Definida como doença para Nietzsche, a “‘má consciência’ separou o homem do seu passado
animal, exterminando os seus velhos instintos, nos quais até então se baseava sua força, seu prazer e o
temor que o inspirava” (Nietzsche, 1998, p.73).
A contenção desses instintos primitivos na medida em que não puderam mais ser
exteriorizados pelo homem, foram por ele interiorizados, impedindo-o de agir livremente sobre o outro.
O homem passou a agir sobre si mesmo, e por consequência, tornou-se um animal doente e fraco. Esse
processo deu lugar a um homem com valores morais novos, um homem que não é caracterizado por
seu individualismo, mas por ser parte integrante de uma sociedade, ou melhor, um membro do Estado.
Limitar a domesticação do homem ao contexto até agora descrito, tornaria o trabalho
aqui realizado incompleto, pois o pensamento de Nietzsche sobre essa temática vai além das análises
genealógicas do castigo. Ele parte para uma esfera mais complexa, segue em direção aos grandes
construtores do adestramento do animal homem.
Segundo Nietzsche, com “o advento do Deus cristão, o deus máximo, até agora alcançado,
trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa” (Nietzsche, 1998, p.79). O desenvolvimento
do sentimento de culpa se deve ao entrelaçamento da má consciência com a noção de Deus.
A interiorização da ideia de que o homem se situa como um devedor perante Deus, seu
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credor, tornou-se para ele instrumento de suplício, na medida em que “apreende em Deus as últimas
antíteses que chega a encontrar para seus autênticos insuprimíveis instintos animais, ele reinterpreta
esses instintos com culpa em relação a Deus” (Nietzsche, 1998, p. 81).
Para Nietzsche o acontecimento fundamental dentro desta relação entre homem e Deus,
ou seja, entre devedor e credor, está no mais surpreendente golpe de gênio do cristianismo; parte do
acontecimento em que o próprio Deus se sacrifica pela culpa dos homens, o próprio credor que paga a
si mesmo por amor a seu devedor 10.
Deste modo, temos toda uma trajetória de fatos que culminou na domesticação do homem
e fez deste um animal manso, domável, a partir do momento em que este não pode mais exteriorizar
seus instintos.
O homem contraiu uma doença chamada “má consciência”, tornou-se um ser decadente,
fraco e que encontrou no cristianismo um caminho de livrar-se do “castigo eterno”
Já terão adivinhado o que realmente se passou com tudo isso, e sob tudo isso: essa vontade
de se torturar, essa crueldade reprimida do bicho-homem interiorizado, acuado dentro de si
mesmo, aprisionado no “Estado” para fins de domesticação, que inventou a má consciência
para se fazer mal, depois que a saída mais natural para esse querer-fazer-mal fora bloqueada –
esse homem da má consciência se apoderou da suposição religiosa para levar seu automartírio
a mais horrenda culminância 11
Agora, o homem tornou-se manso, útil, domesticado. Contudo tornou-se também doente
devido sua má consciência, e buscou a cura de sua alma enferma. É preciso encontrar a razão, o sentido
desse seu sofrer para que possa se curar. Para tanto, o cristianismo colocou em ação um servidor para
ajudá-lo na sua busca, o “sacerdote ascético”, que não hesitou em tomar a seu serviço toda a matilha
de cães selvagens que existe no homem, tendo a função de despertar o homem da sua longa tristeza, de
sua miséria, sempre tendo como base uma interpretação e justificação religiosa 12.
A grande estratégia do sacerdote ascético foi transformar no homem o seu sentimento
de culpa em pecado. O homem, portanto, é um pecador e, ele sofre com essa condição. Desta forma,
torna-se ainda mais doente. Mas é através do cristianismo, em destaque, com o sacerdote ascético, que
ele vai procurar sua cura. Tal condição doentia induz o homem a constituir-se em rebanho, na ânsia
de superar a depressão que o aflige. Formado o rebanho ele precisa de um pastor que o guie, pois este
rebanho está doente, e ninguém melhor do que o sacerdote
Pois disso entende ele mais que tudo, esse feiticeiro e domador de animais de rapina, em volta
do qual tudo o que é sã torna-se necessariamente doente, e tudo doente necessariamente
manso. De fato ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse estranho pastor – ele o
defende de si mesmo, da baixeza, perfídia, malevolência que no próprio rebanho arde sob as
cinzas, e do que mais for próprio de doentes e combalidos; ele combate, de modo sagaz, duro
e secreto, a anarquia e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no qual
aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é continuamente acumulado 13
Esta é a visão de Nietzsche quanto ao sacerdote ascético, esse pastor que cuida do rebanho
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de homens 14, seu trabalho é o de manter o ressentimento na direção do culpado, na medida em que ele
chega como curador ele também insere no homem o veneno, fazendo com que este sempre tenha em
mente a pergunta: “Eu sofro: disso alguém deve ser culpado”.
Porém existe um pastor que conforta, descarrega afeto para alívio do sofredor, ou seja,
entorpece a dor através do afeto revelando: “Isso mesmo minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas
você mesma é esse alguém.” (Nietzsche, 1998, p.117)
Contudo, esse trabalho dedicado do sacerdote ascético não melhorou em nada o homem,
não o curou de sua doença, não o deixou forte. Nietzsche é bem claro quanto a isso:
Que um excesso do sentimento tal como costuma prescrever a seus doentes o sacerdote
ascético (sob os nomes mais sagrados, naturalmente, e convencido da santidade do seu
intento), tenha realmente beneficiado algum enfermo (...) Seria preciso ao menos entenderse quanto ao sentido da palavra “benefício”. Querendo-se com ela exprimir a idéia de que tal
sistema de tratamento melhorou o homem, não discordo: apenas acrescento que, para mim,
“ “melhorado” significa – o mesmo que “domesticado”, enfraquecido”, “desencorajado”,
“refinado”, embrandecido”, “emasculado” (ou seja, quase o mesmo que lesado...) 15
Para Nietzsche o cristianismo foi o grande consolador dos doentes. Para tanto, usou
diversos artifícios, para dar sentido ao sofrimento. Ofereceu-se como salvador do castigo eterno, criou
normas de condutas, apresentou o sacerdote como um pastor para conduzir o rebanho de homens,
introduziu o conceito de um mundo imaginário.
Além do mais, criou um Deus e fez com que o homem preferisse “querer o nada a nada
querer” (Nietzsche, 1998, p. 149), pois o homem “não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do
absurdo, do sem-sentido, ele podia querer algo – não importando no momento para que direção, com que
fim, com que meio ele queria: a vontade mesma estava salva.” (Nietzsche, 1998, p. 149).
De fato, as análises de Nietzsche nos permitem extrair, traços relevantes da domesticação. Aos
poucos, a civilização foi adestrando o homem, tirou-lhe individualidade, sua liberdade, sua força, para
criar um animal domesticado, constante, confiável e útil à sociedade.
Os “Melhoradores” da Humanidade 16, se incubiram de amansar o animal homem, não
se restringiram apenas ao seu aspecto físico, ou seja, ao corpo, mas estendera ao aspecto psíquico,
inserindo-lhe conceitos e normas a serem seguidas em troca de uma promessa de salvação e acolhimento
em um mundo divino.
A crítica de Nietzsche ao Humanismo segundo Peter Sloterdijk
Em um colóquio dedicado a Heidegger e Lévinas, em julho de 1999, foi apresentada
pelo filósofo Peter Sloterdijk, uma conferência intitulada “Regras para o parque humano”, em que
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acarretou uma acirrada polêmica na opinião pública alemã, na medida em que tratou de temas como
diagnóstico pré-natal, tecnologia genética e a relação entre a educação formal e o ideal humanista
de domesticação do homem através da leitura. Na citada conferência argumentou-se que o modelo
de organização das sociedades modernas tradicionais se assenta num “modelo literário-epistolar
de construção de amizades através da leitura”, de forma a condicionar a produção de suas sínteses
políticas e culturais. Contudo, destacaremos aqui, algumas considerações que o autor faz acerca do
pensamento de Nietzsche e a questão da domesticação do homem.
Sloterdijk ver em Nietzsche um grande crítico do ser humano como força domesticadora e
criadora. Tal afirmativa está bem exposta na citação que o autor, faz de Nietzsche, no titulo “Da virtude
apequenadora”, do Zaratustra, onde o personagem observa as pequenas casas dos homens e lamenta:
E Zaratustra parou e pensou. Finalmente, disse, entristecido: ‘Tudo ficou menor!’
Em todos os lugares, vejo porões mais baixos: quem é do meu porte provavelmente ainda
consegue passar, mas – terá de se curvar!
...Ando por entre esse povo mantendo os olhos abertos: eles se tornaram menores e ficam cada
vez menores: - nisso, contudo, consiste sua concepção de felicidade e virtude.
...Alguns deles querem; quanto à maioria, porém, outros querem por eles... 17
Para Sloterdijk, Nietzsche traz nesse texto “um discurso teórico sobre o ser humano como
força domesticadora e criadora” (Sloterdijk, 2000, p.39). Demonstra o alcance satisfatório do homem
como criador que conseguiu fazer do homem selvagem o último homem. Entretanto, este não se faz
somente com os métodos humanistas de domesticação, adestramento e educação, segundo Sloterdijk
A tese do ser humano como criador de seres humanos faz explodir o horizonte humanista,
já que o humanismo não pode nem deve jamais considerar questões que ultrapassem essa
domesticação e educação: o humanista assume o homem como dado de antemão e aplicalhe então seus métodos de domesticação, treinamento e formação – convencido que está das
conexões necessárias entre ler, estar sentado e acalmar 18
Na visão de Nietzsche existe um horizonte mais sombrio para além do horizonte da
domesticação escolar dos homens 19, há “um espaço no qual lutas inevitáveis começarão a travar-se
sobre o direcionamento da criação dos seres humanos” (Sloterdijk, 2002, p.40)
Da percepção de Zaratustra tem-se um resultado de uma política de criação: a criação de
homens, integrados por uma combinação ética e genética, de forma a criar-se a si mesmos para serem
menores, do qual se submetem à domesticação e uma seleção que o direcionam para a formação de
uma sociabilidade à maneira de animais domésticos.
Nesse contexto, apresenta-se a crítica ao humanismo de Zaratustra, e Nietzsche vê nesse
processo uma aplicabilidade de seleção, onde criadores moldam os seres humanos para serem pacíficos
e inócuos, de forma que não representem ameaça uns para os outros. Com o intuito de arejar o mistério
da domesticação do gênero humano, Nietzsche nomeia os representantes do monopólio de criação,
refere-se aos padres e professores dos quais se apresentam como amigos dos homens. Para Sloterdijk:
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Esse é o conflito fundamental que Nietzsche postula para todo futuro: a luta entre os que criam
o ser humano para ser pequeno e os que o criam para ser grande – poder-se-ia também dizer
entre os humanistas e os super-humanistas, amigos do homem e amigos do “super-homem” 20
Ao tratar do “super-homem”, Nietzsche procura desmontar a forma de produção de
seres humanos empreendidos até o momento, para tanto retoma como medida os remotos processo
milenários, que em seu desenvolvimento tiveram entrelaçados os conceitos de criação, domesticação
e educação, ou seja, “um empreendimento, é verdade, que soube manter-se em grande parte invisível e
que, sob a máscara da escola, visava ao projeto de domesticação.” (Sloterdijk, 2000, p. 41)
Para Sloterdijk, é provável que Nietzsche tenha adentrado um pouco demais, quando
divulga de forma sugestiva que a transformação do homem em animal doméstico, tenha sido um
trabalho premeditado de uma associação pastoril de criadores, ou seja, um projeto do clero onde se
pode perceber “tudo o que no homem poderia resultar em voluntariedade e autonomia e contra o qual
imediatamente faz uso de métodos de apartação e mutilação.” (Sloterdijk, 2000, p. 42). Entretanto,
Sloterdijk, caracteriza tal ideia com um pensamento híbrido, pois
de um lado porque concebe o processo de criação potencial como de muito curto prazo – como
se bastassem algumas gerações de domínio dos padres para transformar lobos em cães e
homens primitivos em professores de Basiléia; ele é ainda mais hibrido, porém, porque supõe
um planejador quando se deveria antes contar com uma criação sem criadores, um impulso
biocultural sem sujeito 21
Sloterdijk admite momentos de exagero e de anticlericalismo suspeito na ideia de
Nietzsche. Mas ele reconhece na ideia “um cerne suficientemente sólido para estimular uma reflexão
posterior sobre a humanidade para além da inocuidade humanista” (Sloterdijk, 2000, p.43). Trata da
denúncia de Nietzsche ao projeto de criação dos seres humanos, onde por um lado, existem os que
criam o homem para ser pequeno, por outro, os criam para ser grande, assim como a divisão dos
homens entre aqueles que domesticam e os que aceitam ser domesticados.
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Considerações Finais
Na “Genealogia da Moral” de Nietzsche extrairmos a tese de que o processo civilizatório
é o da cruel domesticação do “homem animal de rapina”, como também, encontramos uma
denúncia sobre a domesticação apequenadora do homem pelo homem, representado na rapsódia de
“Zaratustra”, através das análises de Peter Sloderdijk.
Segundo Nietzsche, o castigo não se restringe a um procedimento de punição ou de
reparação, mas se fixa como um procedimento fundamental para a construção de uma memória ativa
no homem, e fez com que ele se tornasse um animal capaz de fazer promessas e cumpri-las. Tornou-se
um princípio que desperta no culpado um sentimento de culpa, uma reação psíquica denominada “má
consciência”.
Esta “má consciência” é denominada por Nietzsche como a doença que separou o homem
do seu passado animal, pois o induziu a exterminar os seus verdadeiros instintos. A interiorização de
conceitos como, pecado; culpa; salvação; má consciência, dentre outros, conduziu o homem a uma
luta constante contra o castigo eterno.
Todo esse contexto levou o homem a torna-se um ser franco, decadente e, consequentemente,
passivo de dominação. A condição doentia do homem domesticado, do homem que foi impedido
de extravasar seus instintos, é tentar afirmar a vida em outro plano que não à realidade. Nessa
condição doentia, o homem passou a constituir-se em rebanho, com o intuito de combater, por meio
da coletividade, a depressão que o afligia, tendo como saída a sua entrega aos cuidados do sacerdote
ascético.
Nietzsche ressalta, que com o advento do cristianismo, essa dominação foi intensificada.
Por meio do sacerdote ascético, representante fundamental do cristianismo, o homem passou a ser um
animal adestrado e manso. É no ideal ascético que ele vai encontrar um sentido para seu sofrimento, e
o papel do ascetismo é manter a direção da culpa no próprio homem.
Por fim, o pensamento de Peter Sloterdijk trouxe para nossa apresentação, outro elemento
importante para o tema: Humanismo como escola da domesticação. Com suas análises acerca do
pensamento de Nietzsche, Sloterdijk retrata que a domesticação do homem é um grande impensado,
do qual o humanismo desde a antiguidade até o presente desviou os olhos.
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NOTAS
Dentre os temas abordados no pensamento de Nietzsche podemos citar o niilismo, a transmutação dos valores, vontade de
poder, Deus, cristianismo, educação, humanismo, modernidade, etc. O trabalho aqui desenvolvido remete-se a questão da
domesticação do homem, embora o estudo desta temática em Nietzsche esteja entrelaçada em diversas obras como “Assim
Falou Zaratustra”; “Crepúsculo dos Ídolos”; “Humano, demasiado Humano”. Nesse trabalho limito-me às análises contidas
na obra “Genealogia da Moral”, face a abrangente forma de apresentação de Nietzsche quanto ao assunto estudado.
3
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: Uma polêmica. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São
Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 47.
4
Aqui podemos citar Foucault em suas análises sobre a constituição do pensamento ocidental, na obra “Vigiar e Punir”,
o filósofo apresenta o corpo como peça central de um jogo de dominações e submissões das relações existentes entre
poder e saber, sendo este corpo um local de registro de marcas e sinais. Para tanto, tem como ponto de partida a extinção
dos suplícios, a decorrente suavização das penas e o aperfeiçoamento das disciplinas no contexto histórico da França na
segunda metade do século XVIII. Foucault destaca três critérios principais que norteiam a aplicação da pena de suplício,
entre eles, estar a finalidade do suplicio em deixar registrado as marcas no corpo do supliciado. Em um trecho descreve
Foucault: em relação à vitima, o suplício deve ser marcante, a ponto de imprimir marcas que não se apaguem (Foucault, 1987,
p.31). Ou seja, o suplício deve de tal forma ficar impresso tanto na memória “intelectual” como “corporal” do criminoso.
Tais sinais têm o intuito de manter acessa, na memória do supliciado, a lembrança da punição, como também deixar na
memória do público a lembrança da punição daqueles que desacataram as ordens do soberano.
5
Op.cit. p.50.
6
Op.cit. p. 48.
7
Op.cit. p. 54.
8
Op.cit. p. 59.
9
Nietzsche descreve um extenso elenco de sentidos do castigo: “Castigo como neutralização, como impedimento de novos
danos. Castigo como pagamento de um dano ao prejudicado, sob qualquer forma (também na de compensação afetiva).
Castigo como isolamento de uma perturbação do equilíbrio, para impedir o alastramento da perturbação (...) Castigo
como compromisso com o estado natural da vingança, quando este é ainda mantido e reivindicado como privilégio por
linhagens poderosas. Castigo como declaração e ato de guerra contra um inimigo da paz, da ordem, da autoridade, que,
sendo perigoso para a comunidade, como violador dos seus pressupostos, como rebelde, traidor e violentador da paz, é
combatido com os meios que a guerra fornece Op.cit. p. 69.
10
Op.cit. p. 78-80.
11
Op cit. p. 80.
12
Op.cit. p. 129.
13
Op.cit. p. 116.
14
Esta formação de rebanho será tratada por Peter Sloterdijk no livro “Regras para o parque humano”, e será citado no
tópico seguinte deste trabalho, onde apresentaremos algumas indagações de Sloterdijk.
15
Op.cit. p. 131.
16
Vejamos o que diz Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos sobre os “Melhoradores” da Humanidade: “Em todos os tempos
se quis “melhorar” o homem: a isto, sobretudo se chamou moral. Mas sobre a mesma palavra se escondem as mais
diferentes tendências. Tanto o amansamento da besta homem, quanto o aprimoramento de um determinado gênero de
homens é denominado “melhoria”: somente estes termos zoológicos exprimem realidades – realidades, sem dúvida, das
quais o típico “melhorador”, o padre, não sabe nada – nem que saber... Denominador o amansamento de um animal sua
“melhoria” é, a nossos ouvidos, quase uma piada. Quem sabe o que acontece nas ménageries duvida de que ali a besta seja
“melhorada”. Ela é enfraquecida, tornada menos danosa, torna-se, pelo sentimentos depressivo do medo, pelas feridas,
pela fome, uma besta doentia. – Não é diferente com o homem amansado, que o padre “melhorou”. Na Antiga Idade
Média, onde de fato a Igreja era antes de tudo uma Ménagerie, se dava caça por toda parte aos mais belos exemplares
da “besta loira” – “melhoraram”, por exemplo, os nobres germanos. Mas qual foi, posteriormente, o aspecto de um tal
germano “melhorado”, sedutoramente conduzido ao claustro? Uma caricatura de homem, como um aborto: ele se tornou
em “pecador”, ele estava na jaula, haviam-no trancado entre puros conceitos apavorantes... Ali jazia ele, doente, enfezado,
malévolo contra si mesmo: cheio de ódio contra os impulsos à vida, cheio de suspeita contra tudo o que era ainda forte e feliz.
Em suma “cristão”... Para falar fisiologicamente: no combate com a besta o tornar-doente pode ser o único remédio para
enfraquecê-lo. Isso a Igreja entendeu: corrompeu o homem, enfraqueceu-o – mas teve a pretensão de tê-lo “melhorado”...”
Cf. NIETZSCHE. Obras incompletas. Coleção: Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978. p.336)
17
Cf. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano: uma resposta a Carta de Heidegger sobre o Humanismo.
Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo, Estação Liberdade, 2000, p. 38.
18
Op. cit. p. 39.
2
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24
Nietzsche e a domesticação do animal homem, pp. 15 - 26.
Para um melhor entendimento sobre a educação na visão humanística ver o que relata Jorge Larrosa, no livro Nietzche & a
Educação, tradução Alfredo Veiga-Neto, Belo Horizonte, Autêntica, 2002. Neste livro o autor faz um estudo do pensamento
de Nietzsche na medida em que este desmonta os pressupostos hermenêuticos da velha educação humanística, bem como
a ideia de formação, de Bildung, estabelecida por Nietzsche.
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Op. cit. p. 41.
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Op. cit. p. 42.
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Nietzsche e a domesticação do animal homem, pp. 15 - 26.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, 288p.
LARROSA, Jorge. Nietzsche & a Educação. Tradução Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autentica,
2002.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: Uma polêmica. Tradução, notas e posfácio Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
___________. Obras incompletas. Coleção: Os Pensadores. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho.
São Paulo: Abril Cultural, 1978. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano – uma resposta à carta de Heidegger sobre o
humanismo. Estação Liberdade: São Paulo, 2000.
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & Educação. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2003.
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