Título:
O trabalho com arte,o fazer psicológico e o compromisso social
Social commitment in working with art in Psychology
El trabajo con arte, el trabajo psicológico y el compromiso social
Titulo resumido: Arte, fazer psicológico e compromisso social
Autores:
Christina Cupertino - Universidade Paulista
Cláudio de Rezende Barbosa - Universidade Paulista
Gustavo Faleck - Universidade Paulista
Resumo:
Contamos nesse trabalho o caminho percorrido por uma equipe de psicólogos dentro
de um projeto social para crianças e adolescentes na periferia de São Paulo, na direção de
encontrar espaço para um atendimento psicológico facilitador de encontros que desse conta
das demandas de todos os envolvidos. Relatamos como as especificidades do lugar de
atendimento, voltado para o ensino da arte, principalmente a música, somadas às
características da modalidade de atendimento – as oficinas de criatividade, permitiram
negociações e o livre trânsito dos participantes, em deslocamentos facilitadores da
aceitação da diversidade. Após uma série de tentativas frustradas de oferecer, de forma
estruturada, atividades de música corporal que considerávamos pertinentes ao
desenvolvimento de um grupo de adolescentes, discutimos como a ruptura das expectativas
e a abertura a trocas significativas permitiram o estabelecimento, finalmente, em um lugar
inesperado, do espaço para um fazer psicológico, fluido e transitório, voltado ao
movimento da vida. Essa apresentação se oferece como alternativa para pensarmos não só
sobre como atender a população fora dos modelos cristalizados da psicologia tradicional,
mas como criar ações educativas que permitam aos psicólogos em formação a apropriação
de recursos para uma atuação comprometida com as necessidades da população.
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Palavras-chave: oficinas de criatividade; ação social; formação de psicólogos;
atenção à diversidade
Abstract:
We tell here the path covered by a team of psychologists inside a social project for
children and adolescents in the boundaries of São Paulo, in the direction to find a space for
a psychological work different from the crystallized traditional models, and able to take
into consideration the needs of all people involved. We report how the particularities of the
institution, directed toward the education of youngsters through art, mainly music, added to
the characteristics of the psychological work offered - Creativity Workshops, allowed to
negotiations and to the free transit of the participants, in displacements facilitating the
acceptance of diversity. After a series of frustrating attempts to offer, in a structuralized
way, activities of corporal percussion that we considered pertinent to the development of a
group of adolescents, we discuss how the rupture of the expectations and the opening to
significant exchanges allowed the establishment, finally, in an unexpected place, of the
space where it became possible a psychological care, fluid and transitory, focused in the
movement of life. This presentation aims to offer an alternative to discuss not only non
traditional ways of taking psychological care of the population, but also as to create
educative actions that allow to psychologists to develop the resources for a performance
compromised to the necessities of both professionals and clients.
Key words: creativity workshops; social action; Psychology courses; attention to
diversity.
Resumen:
Decimos aquí la trayectoria cubierta por un equipo de psicólogos dentro de un
proyecto social para los niños y los adolescentes en la periferia de São Paulo, en la
dirección a encontrar un espacio para un trabajo psicológico diferente de los modelos
tradicionales cristalizados, y capaz de tomar en consideración las demandas de todos los
implicados. Relatamos cómo las particularidades de la institución, dirigidas hacia la
educación de jóvenes a través del arte, principalmente la música, agregada a las
características del trabajo psicológico ofrecido - Talleres de Creatividad, permitieran las
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negociaciones y el tránsito libre de los participantes, en desplazamientos facilitadores de la
aceptación de la diversidad. Después de una serie de frustraciones por procurar ofrecer, de
manera estructurada, actividades de percusión corporal que considerábamos pertinentes al
desarrollo de un grupo de adolescentes, discutimos cómo la ruptura de las expectativas y la
abertura a los intercambios significativos permitió el establecimiento, finalmente, en un
lugar inesperado, del espacio en donde llegó a ser posible un cuidado psicológico, fluido y
transitorio, enfocado en el movimiento de la vida. Esta presentación pretende ofrecer un
alternativa para discutir no solamente maneras no tradicionales de propiciar cuidado
psicológico a la población, pero también la posibilidad de criar acciones educativas que
permitan a los psicólogos en formación desarrollar los recursos para un trabajo
comprometido con las necesidades tanto de los profesionales cuanto de los usuarios de los
servicios.
Palabras llave: talleres de creatividad; acción social; formación de psicólogos;
atención a la diversidad.
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Introdução
Albertina Martinez (2003) afirma que quem faz Psicologia com maior ou menor
compromisso social é o psicólogo, ou seja, são os indivíduos praticantes e produtores de
conhecimento que constroem o campo e as condições para um exercício profissional
(incluindo prática, pesquisa e ensino) voltado à manutenção do status quo, à recondução
dos desgarrados ao bom caminho pela adequação ou, ao contrário, à transformação
individual e/ou social. Definindo a subjetividade não como “uma entidade intrapsíquica, e
sim como um sistema que simultânea e dialeticamente se expressa na dimensão tanto social
quanto individual” (p. 148). Diz ela ainda que
Nessa perspectiva, o psicólogo, seja no processo de produção de
conhecimentos científicos seja na utilização deles na resolução de
problemas profissionais, constitui-se como um sujeito que, em espaços
sociais, concretos historicamente constituídos, exerce uma ação na qual se
expressam as características de sua subjetividade individual, também
historicamente constituída, e as características da subjetividade social
correspondente a esses espaços. Conseqüentemente uma ação social
compromissada do psicólogo não pode ser compreendida nem incentivada
sem ter em conta as dimensões subjetivas (individual e social) que
possibilitam e se expressam nessa ação. (MARTINEZ, 2003:148).
Critica, a seguir, as condições oferecidas pelos cursos de Psicologia quanto à
possibilidade de desenvolver ações educativas intencionais voltadas a desenvolver essas
subjetividades compromissadas socialmente, uma vez que predominantemente reduzem-se
à reprodução de um saber cristalizado em situações desvinculadas das condições de vida
dos envolvidos.
Contamos nesse trabalho o caminho trilhado em busca de um espaço (em todos os
sentidos) para a promoção do tipo de encontro que caracteriza um atendimento psicológico
voltado à potencialização da vida, dentro de um projeto social que atendia crianças e jovens
em uma comunidade na zona Oeste da cidade de São Paulo. Caminho esse que continua
outros já percorridos por companheiros de profissão e de causa, em pátios de instituições de
aplicação de medidas socioeducativas e quartéis policiais (Morato, 2006), por praças e
instituições de outras comunidades de outras periferias (Szymanski, 2006), no interior de
hospitais psiquiátricos (Lavrador, 2006), em serviços de saúde (Andrade, 2006; Schmidt,
2006). E um caminho já percorrido por nós na mesma instituição, a cada vez com um
recurso diferente de aproximação.
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Apesar de baseados numa mesma perspectiva do que é o exercício da Psicologia,
cada um desses caminhos é único, sendo essa sua característica primordial, uma vez que
tentamos fugir, justamente, de modelos preestabelecidos quanto a como conduzir uma
atividade como essa e promover encontros transformadores. Em cada um deles, “o caminho
se faz ao caminhar”, na confluência de uma multiplicidade de pontos de vista, vindos de
todos os envolvidos: psicólogos (profissionais e em formação, em diversos níveis), usuários
dos serviços, membros das diversas equipes, funcionários das instituições envolvidas, na
construção dialógica de um fazer que atenda às demandas e necessidades de todos e de um
saber constituído na variação dos olhares e posições.
Trata-se de um fazer que, ao invés de obrigatoriamente arrastar o cliente para o
espaço/tempo/discurso do psicólogo, acontece onde a vida do interlocutor (pessoa, grupo e
instituição) acontece. Costumamos pensar nele como um laço que se estabelece, como uma
película envolvente que se produz em determinados momentos de atividades que poderiam,
muitas vezes, ser perfeitamente conduzidas por qualquer pessoa (como brincar com
crianças em uma sala de espera de hospital, ou fazer vasos com idosos em um asilo), e que
define os limites de uma atuação caracterizada por uma escuta particular, gerada no âmbito
do conhecimento psicológico, mas articulada em configurações mutantes, fluidas,
passageiras, na direção da promoção de “bons encontros”1, e que assim como se iniciam, se
desfazem, devolvendo os participantes, transformados, ao movimento de suas vidas.
Todas essas iniciativas mencionadas vêm constituindo-se como modalidades de
atendimento psicológico diversas das tradicionais, uma vez que “entendemos que no campo
da atenção psicossocial tem-se como desafio inventar novos modos de cuidar em liberdade
que se voltem para a variação dos modos de vida, para além do diagnóstico e do sintoma.”
(Lavrador, 2006:44). Elas se concretizam na forma do plantão psicológico ou
psicoeducativo, do trabalho com depoimentos e relatos de histórias de vida, de “encontros e
conversas informais, que não se [restringem] ao ‘trabalho do psicólogo’ ou à ‘psicologia na
Unidade [de Saúde]’, mas [contemplam] todos os temas livremente emergentes (e
surpreendentes!) no acaso dos encontros” (Andrade, 2006:32). Aproximam-se de um
posicionamento individual e/ou social que se distancia de uma perspectiva de “tratamento”
na direção de uma visão clínica que
supõe sujeitos vivos, desejantes e pensantes, falando igualmente, tanto
para nada dizer quanto para se fazer reconhecer, ou para encontrar um
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sentido para suas emoções, para suas lembranças ou para sua história, que
eles constroem a cada instante. Sujeitos, pois, sempre em movimento, à
procura de uma identidade problemática, não se deixando reduzir a um
caso particular de uma categoria geral preestabelecida, nem a tornar-se
inertes, como um objeto estático, definido de uma vez por todas”.(LÉVY,
2001:20)
Nesse trabalho que relatamos, pretendíamos que o atendimento acontecesse sob a
forma de uma Oficina de Criatividade, mais especificamente uma oficina de Música
Orgânica (que utiliza a sonoridade do corpo), como pretexto de encontro, conversa e
reflexão junto a adolescentes participantes das aulas de banda pop-rock oferecidas pelo
projeto social. Essa decisão já se caracterizava como uma primeira encruzilhada no nosso
trajeto, uma vez que não estaríamos usando os recursos habitualmente associados às
oficinas de criatividade (colagens, pinturas, histórias), substituindo-os por “conversas
sonoras”. Por meio delas, acreditávamos na possibilidade de expressão e troca dos afetos,
sobre o que falaríamos ao final de cada encontro.
Implantada desde 1988 como disciplina de estágio em uma universidade particular
paulista, a Oficina de Criatividade de início funcionava exclusivamente como atividade
voltada à sensibilização e auto-conhecimento para alunos de 5º ano de Psicologia. Após
significativas mudanças ao longo dos anos, hoje é uma área de estágio na qual os
formandos ainda tomam parte de encontros para essa sensibilização, e ao mesmo tempo
oferecem atendimento e suporte psicológico, implantando eles mesmos oficinas em uma
variedade de grupos e instituições, como projetos sociais voltados a crianças e adolescentes,
grupos de mães, idosos, asilados ou não, educadores, voluntários, e assim por diante. Como
bem descreve Andrade (no prelo):
Não se trata de ensinar aos alunos técnicas novas a serem aplicadas no
trabalho com a população ou ensinar como fazer oficina de criatividade;
mais uma proposta alternativa no ofício profissional. Antes, a proposta é
de uma “anti-receita”, uma vez que visa a experiência singular do
fazer/sentir que, sendo única, implica em um movimento de criação
permanente; criação de si e, como conseqüência imediata, do entorno ou
de outros modos de existir/viver uma vida. Experimentação no campo
intensivo, das intensidades que deslocam o instituído (extensão/forma) na
produção de outras configurações.
O trabalho com Oficinas situa-se na interface entre Arte, Psicologia e Educação, na
medida em que faz uso de recursos expressivos comuns ao fazer artístico e, apesar da
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referência à criatividade, não trata do seu estudo, e sim da possibilidade de transformação
das pessoas, dos ambientes e das relações (Cupertino, 2001, 2006). O apoio nesse tipo de
recurso deriva de pensarmos, como Kramer (2003:213), que
antes de se expressar, o sentimento humano não possui forma, apenas
desperta potências de “vir a ser”. Quando o indivíduo encontra objetos
oferecidos por um meio afetivo propiciador, pode passar por novas
experiências, ganhando novas articulações para aquilo que, se
potencialmente já fazia parte dele, não havia ainda se expressado...
Nos encontros, sempre grupais, o campo estruturado é desencadeante de
experiências variadas, com um caráter mais estético2 que racional, pois acreditamos, como
Machado (2006:61), que “A arte guarda uma “magia” em sua possibilidade de expressar
uma potência de sensações indeterminadas, incertas, improváveis. Ela faz estremecer o
certo, o determinado e o provável e uma outra estética pode ser experimentada, inventada”.
Dessa forma, é possível desenvolver algumas atitudes, como viver os vários ângulos de
uma experiência através da variedade e singularidade de cada produção “artística”, além da
flexibilidade e da abertura pessoal para experimentar diferentes situações. Tais atitudes são
melhor compreendidas por expressões como descentramento, estranhamento, consideradas
como atributos das pessoas criativas. Por meio do trabalho com esses recursos, portanto,
pretendemos a abertura pessoal para a pluralidade, a consideração de que “o que é pode ser
diferente”, que é o mais próximo de uma definição não redutiva da criatividade. Instituímos
a instabilidade, a suspensão, que visam desconstruir o estabelecido e permitir a exploração
de caminhos mais contextualizados, não obrigatoriamente atrelados aos modelos existentes
de cuidado psicológico.
O contexto
Nossa proposta foi levada a um projeto social localizado no bairro do Jaguaré,
fundado em 2001 com intuito de oferecer oportunidades de desenvolvimento humano à
população da região, através da arte e da cultura. Com 14 funcionários, atendia a uma
população de 1600 crianças e contava com patrocínio de uma indústria multinacional. Em
virtude da formação e especialidade de sua fundadora, concentrava suas atividades
predominantemente na área da música, oferecendo em sua sede aulas de violão, violino,
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violoncelo, banda pop-rock, informática, oficina de canto, orquestra, contação de história e
pintura. Nas escolas públicas da região oferecia aulas de dança, teatro, percussão e coro
infantil.
Muito bem instrumentado, o projeto tinha como sede uma casa no bairro
mencionado, muito próximo a um local onde reside uma população financeiramente pobre.
Lá eles tinham instrumentos musicais de boa qualidade, amplas e organizadas salas e uma
lista impressionante de professores renomados. Além disto, tinham parceria com as escolas
públicas da região, onde contavam com toda a estrutura física para trabalho com turmas
maiores e para estabelecerem condições logísticas para buscar o envolvimento da
comunidade nas atividades. Oferecendo o trabalho artístico como alternativa para as
tentações pouco construtivas presentes nas comunidades pobres (drogas, delinqüência),
eles, dessa forma, ofereciam espaços de convivência e de aprendizado que de fato
alteravam a realidade da comunidade na qual estavam inseridos, educando cidadãos e
oferecendo oportunidades de crescimento pessoal e desenvolvimento de habilidades, de
forma a estimular expressões que chamamos aqui, propositadamente, de “elevadas”.
Chegamos pela primeira vez à instituição em 2004, quando fomos procurados pela
coordenadora, que dizia identificar transformações importantes em algumas crianças e
adolescentes, que não conseguia atribuir exclusivamente ao aprendizado da música, e para
cuja compreensão pedia nossa ajuda como psicólogos. Conduzimos quatro estudos de caso,
com crianças sugeridas por ela, com o objetivo de compreender o significado que a
participação no programa tinha para as crianças, focalizando principalmente de que forma o
incentivo à criatividade pode transformar a vida humana, bem como a identificação do que
estava sendo colocado em movimento, nos indivíduos e nas relações, pela proposta do
projeto. Mais que pendores artísticos, nos deparamos com a carência que os membros da
comunidade apresentavam quanto a poderem sentir-se como seres diferenciados e
reconhecidos, com possibilidade de amadurecer. Sobre a percepção do impacto do projeto
de música para as crianças, depoimentos nos falaram do enriquecimento do conhecimento,
da oportunidade de acesso à cultura, e da ajuda na organização do comportamento nas
atividades cotidianas. Disseram também que a inserção nas aulas de música ajudava as
crianças a ter uma possibilidade de futuro e de sonho, elementos fundamentais para um
viver criativo. Nas palavras de uma das diretoras de escola: “A gente percebe que elas se
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sentem uma pessoa (sic), que estão existindo na sociedade, diferenciadas, que os olhos
estão voltados para elas e que ela é um ser humano, que está sendo observada, solicitada,
está mostrando que ela existe.” (Piza e Cupertino, 2004:20)
Várias oficinas seguiram-se a esse estudo dentro do mesmo projeto. Uma delas,
chamada “Criadores de possíveis”, tinha a intenção de orientar adolescentes para o campo
profissional e vocacional, sem estar voltada para o enquadre de profissões existentes e
capacidades individuais, mas para uma reflexão dos problemas sócio-culturais e
econômicos e como eles determinam as possibilidades na escolha de uma profissão. O
recurso escolhido para essa oficina foi a cartografia e a elaboração de mapas das diversas
situações vividas e observadas. Uma outra, a “Cine mudança – cenas de uma
transformação”, envolveu os adolescentes na exibição de filmes seguida de atividades,
sempre com o foco nos problemas e experiências de vida levantados em conjunto por
psicólogos e participantes. E, concomitantemente à intervenção aqui discutida, foi oferecida
uma outra oficina de criatividade, para um grupo formado exclusivamente por meninas, que
se caracterizou quase que como um atendimento grupal em arte-terapia. Esse trabalho teve
como resultados principais o estreitamento de laços entre as meninas, o estabelecimento por
elas de redes de suporte para problemas que enfrentavam, como gravidez precoce,
precariedade do sistema educacional e violência, por exemplo.
Dessa vez, nossos contatos na instituição foram realizados, ao longo do ano de
2006, através de quatro colaboradores: a coordenadora, que é regente por formação, e que
fundou o projeto e o gerenciava em todos os aspectos, imprimindo ao seu funcionamento
um caráter especial simultâneo de abertura e acolhimento, do qual falaremos a seguir; o
administrador do espaço, um adolescente que era, ao mesmo tempo, um dos alunos mais
velhos dos cursos oferecidos pelo projeto, participando das aulas de banda e ministrando
aulas de informática na casa; o professor de banda, cuja função era listar as músicas
selecionadas pelos alunos, ensinar os acordes básicos e passar as práticas. Persistente no
objetivo de fazer com que todos os alunos tocassem uma música (pelo menos), o professor
chegava sempre meia hora antes do horário da aula e se adiantava nos ensinamentos e/ou
postergava o final para satisfazer a vontade dos alunos; era dedicado e atencioso e muito
considerado pelos adolescentes, pelo conhecimento que passava a eles, e não pela
autoridade que exercia. E finalmente, a funcionária que cuidava da cozinha, fazia o lanche e
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o suco para os adolescentes e café para as visitas (no caso, nós). Ela tinha um filho que
participa das aulas de banda e dizia ter “adotado” outros que circulavam por ali, numa
maneira de demonstrar seu afeto por eles. Sempre maternal e apoiadora, simpatizou
conosco e com a nossa proposta e freqüentou todas as nossas “aulas”.
Os alunos das aulas de banda eram adolescentes na faixa de dez a dezenove anos,
moradores da região, pertencentes às classes D e E. Eram alunos do Ensino Fundamental e
Médio das escolas públicas da comunidade, e alguns deles trabalhavam em empregos
informais no comércio local, como entregadores de pães, prestadores de serviços (officeboys, por exemplo), e “trabalhadores de casa”, lavando louça, cuidando dos irmãos mais
novos, arrumando a casa e preparando comida. As aulas tinham, em média, dezoito
participantes. A maioria deles ensaiava todas as semanas as mesmas músicas com os
mesmos instrumentos; outros participavam só observando: ficavam ali convivendo uns com
os outros sem compromisso com os ensaios. Vez ou outra pegavam o violão e timidamente
tentavam uns acordes. Existiam ainda os alunos “de uma aula só” que apareciam em uma
aula, tocavam uma música ou outra, dizendo que gostaram e que iam voltar, mas nunca
mais apareciam. Dentro desde grupo heterogêneo, existiam iniciantes (que não sabiam nem
pegar no instrumento direito) e veteranos (que já tocaram em casas noturnas e ganharam
dinheiro com música).
Um misto de aprendizagem e admiração-exibição acontecia nas aulas que, pelo seu
formato, possibilitavam este tipo de dinâmica entre os alunos: eles se revezavam nos
instrumentos e quem não estava tocando observava. Portanto ficava na sala quem esperava
sua vez e observadores que não iriam tocar. Assim, além de aprenderem a tocar os
instrumentos eles experimentavam a relação entre artista e platéia. Esta experiência era rica
tanto para a formação do senso crítico musical (quando estavam no lugar de observadores),
quanto para experimentar as sensações vivenciadas pelos músico no palco (quando exibiam
suas interpretações musicais aos colegas).
Os alunos sempre tiveram livre circulação pelos espaços da casa. Não eram
obrigados a ficar na sala de aula, o que criava um grande fluxo de adolescentes entre as
salas, os fundos da casa, a cozinha e os espaços entre estas duas; muitos saíam antes do
término e outros permaneciam após a saída do professor. Esse era um aspecto que
diferenciava esse projeto social de outros nos quais atuamos, por apresentar condições
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específicas úteis para a discussão a que nos propomos aqui, e que merece uma apresentação
mais detalhada.
O projeto circulava por vários espaços da região e, dentro dele, as pessoas
circulavam também pelos diferentes espaços de cada local de intervenção, de forma livre,
sendo recebidas e acolhidas carinhosamente mesmo quando não estavam participando das
atividades regulares (as aulas). Diferentemente de outros projetos nos quais atuamos, aqui
não existia uma rotina de formação que se assemelhasse à da educação formal, onde o
tempo é todo dividido em atividades “produtivas”. A proposta destinava-se ao convívio e
ao aprendizado da arte (música, predominantemente, e as outras já mencionadas), mas
também ao estreitamento das relações e dos laços de pertencimento, o que promovia um
ambiente mais livre, que foi especialmente propício à nossa trajetória lá dentro.
É importante aqui assinalar a importância, para nossa atividade, da cozinha da casa.
Ludmila Brandão (2002:85) diz sobre a cozinha: “Há uma idéia a ser formulada aqui, nesta
cozinha, sobre a natureza deste espaço. O que se sabe é que a cozinha é o lugar da
produção.” Na instituição onde trabalhamos, ela era lugar de produção de muitas coisas e
relações. Nela era atendido o interfone com monitor de vídeo pelo qual se identificavam os
visitantes da casa, que ao entrar subiam uma escada e passavam necessariamente pela
cozinha. Além de cozinha, o ambiente tinha o papel de recepção, um ambiente de
passagem, ou seja não era de ninguém e era de todo mundo ao mesmo tempo. Acabava
sendo o ponto de encontro de todos os freqüentadores da casa, o espaço onde tudo o que
não era aula acontecia. Enquanto as aulas eram dadas, eram preparados lá o lanche e o
suco, com os ingredientes das cinco cestas básicas que a casa ganhava por mês. Lá, então,
era feito e oferecido o alimento, quase sempre um bolo ou torta, que além de sustentar,
congregava as pessoas em torno dele e adoçava as relações e conversas. Era feito e servido
o café para quem vinha visitar. A cozinha, nos intervalos das aulas, virava o ponto de
encontro dos alunos que já tinham ensaiado sua música ou iriam ensaiar, e ali, além de
tomarem lanche, eles falavam de sua vida sexual, se paqueravam, ficavam abraçadinhos,
exibiam seus pertences, faziam música, davam risada, reclamavam, tiravam sarro uns dos
outros e se estranhavam. Lá se brincava, se namorava, se conversava. Eram combinados os
programas e eventos. A cozinha era o ambiente onde estes alunos se expressavam nas suas
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conquistas e carências, tendo a funcionária por ela responsável como guardiã deste
ambiente.
E foi lá que, depois de uma tortuosa trajetória, conseguimos finalmente nos
acomodar.
O caminho trilhado
Foram realizadas treze visitas à instituição, com duração variada, conforme o lugar
que ocupávamos a cada momento. A freqüência de participantes também variou pelo
mesmo critério.
Nossa proposta inicial foi oferecer aulas de Música Orgânica (trabalho com sons do
corpo: palmas, estalos, barulhos com a boca, etc.), tendo como objetivos: despertar a
espontaneidade através da utilização de sons que muitas vezes não são associados à música
comercial; sensibilizá-los para a musicalidade presente no cotidiano; possibilitar uma maior
amplitude da linguagem musical. Procuramos oferecer nas oficinas um repensar que
colocaria o sujeito em contato consigo mesmo e com a coletividade, a partir de um fazer
que se somasse às experiências de engajamento e reflexão que este grupo já vivia, com
vistas a aprofundá-las. Nossa tentativa era a de ampliação da expressão afetiva através da
exploração de sons do corpo, que é, segundo Ricardo Oliveira, idealizador da Música
Orgânica, o mais humano dos instrumentos musicais.
A voz, enquanto respiração tornada audível, é o resultado vibratório do
organismo como um todo, das tensões que apresenta, de sua postura e do
conjunto de emoções e sentimentos presentes num dado momento. Todo o
trabalho da Música Orgânica, que estuda musicalmente o conjunto
polirrítimico das pulsações corporais mentais e psicológicas, caminha no
sentido de desenvolver a função do ouvir. Digo função e não sentido,
porque ouvir, nesta abordagem, é muito mais do que captar emissões
sonoras através dos ouvidos, pois denota a atitude de permeabilidade do
sujeito e de sua receptividade frente à Sinfonia do Universo, cuja
expressão é a das leis que regem a própria vida. Na possibilidade de ouvir
mais e melhor, se encontra o caminho para a auto-percepção, com o
conseqüente desenvolvimento da capacidade de afinação do próprio
organismo, bem como da manutenção da harmonia com seus semelhantes
e com a natureza. Ouvir equivale a enxergar na escuridão e, visto que o
interior humano é fundamentalmente uma grande área de sombra, torna-se
o desenvolvimento do ouvir ferramenta altamente útil e versátil na
compreensão da natureza do ser. Ouve-se com o corpo todo e a
possibilidade de se estar permeável ao universo sonoro à sua volta, leva
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naturalmente o organismo à afinação e harmonia com seu ambiente.
(TONON, 1988: 85).
Nos contatos iniciais, combinamos que a oficina de Música Orgânica seria oferecida
aos participantes das aulas de banda, em horário a ser acertado com eles. Este trabalho
poderia estruturar-se de maneira livre, com a apresentação de algumas técnicas de produção
sonora usando o próprio corpo das pessoas envolvidas. A partir disto, buscaríamos, então,
orquestrar estas expressões sonoras, atentos para as maneiras como se produziam os
“diálogos”. Propusemos também que se discutisse, depois da atividade, o seu desenrolar: as
dificuldades, facilidades, reflexões e a maneira com se deram os diálogos. Pensamos que
esta seria uma forma de envolver outras sensibilidades ao trabalho musical que os jovens já
desenvolviam, aproveitando também o trabalho com teatro russo baseado em Grotówsky
para ampliar a reflexão sobre o uso do corpo e da disponibilidade do ator para as emoções
que o trabalho performático, para o qual se preparavam, demanda. Assim, somaríamos
esforços à proposta do projeto, auxiliando-os no trabalho de desenvolvimento de cidadania
pela reflexão artística.
De fato isto ocorreu por um tempo nas atividades, mas de certa forma nos vimos
oferecendo as oficinas de uma maneira ainda menos estruturada da que havíamos
imaginado inicialmente. Nas primeiras cinco visitas, nosso “modelo” de aula acompanhava
as demais atividades da instituição: nossa “aula” acontecia após a aula de banda, e nela
fazíamos uma roda e começávamos os jogos de improvisações. Nesses encontros, no
entanto, uma série de impasses foram ficando evidentes.
No começo do trabalho, tínhamos um horário fixo, subseqüente à aula de banda.
Durante os primeiros encontros, observamos que um grande número dos alunos ausentavase de nossas atividades. Procuramos então um outro horário, mais cedo, para nossas
atividades. A instituição, sempre disponível em promover os encontros, nos ofereceu uma
sala num horário diferente, e quando tentamos colocar a nova proposta em prática, todos os
alunos faltaram. Esperamos por duas vezes, enquanto eles justificavam suas ausências com
aulas, obrigações domésticas e afazeres. Na verdade, eles não participavam das atividades,
mas nos recebiam muito bem no que tangia ao convívio social, como recebiam qualquer
freqüentador da casa, qualquer que fosse o motivo da visita.
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Quando propusemos as rodas das atividades de Música Orgânica obtivemos a
presença assídua de alguns, porém muitos evadiam-se ou participaram apenas uma vez, até
desaparecerem completamente. Os adolescentes não sabiam o que nós queríamos com
aquele trabalho. Muito orientados aos aspectos práticos do aprendizado musical, os alunos
nos perguntavam a que vinham nossas atividades e, quando respondíamos, não pareciam
compreender. Ao final da roda, em todas as vezes que perguntávamos como havia sido para
eles o trabalho ou pedíamos que nos dissessem alguma coisa sobre as atividades, os alunos
ficavam em silêncio ou proferiam respostas monossilábicas.
Identificamos então que se tratava de pessoas muito comprometidas com o
aprendizado de música, que faziam valer as aulas de banda com muito afinco. Pareceu-nos
que viam ali oportunidades que não são facilmente encontradas no mundo e, de modo geral,
as abraçavam com força. Imaginamos, neste momento, que nos seria muito mais proveitoso
então procurar entender o que eles queriam nos dizer com estas faltas.
Chegamos lá cheios de pretensões, esperançosos de que as aulas que tínhamos
montado poderiam ir ao encontro de seus desejos e fariam muito sentido no seu
desenvolvimento musical e pessoal, além de ser uma grande diversão. Com o desenrolar da
nossa convivência, e vendo os efeitos que nossas aulas iam produzindo nos adolescentes,
sentimo-nos deslocados e “delirantes”, porque o que tínhamos imaginado não aconteceu,
muito pelo contrário: deparamo-nos com a timidez excessiva, o desinteresse e muitas
ausências. Nossa hipótese inicial para esse esvaziamento era essa timidez, diante de uma
proposta que passamos a considerar como invasiva de nossa parte.
Voltando aos estudos de caso feitos logo ao entrarmos na instituição, podemos
aprofundar um pouco a questão da identificada necessidade de visibilidade e respeito
constatada por nossos colegas na ocasião, e a relação desses jovens com a atividade musical
específica que desenvolviam, associada ao reconhecimento público expresso.
No prefácio de seu livro “Respect in a world of inequality” (2003), Richard Sennet
nos diz que as populações mais pobres, às vezes dependentes de programas sociais3,
freqüentemente reclamam de não serem tratadas com respeito, e afirma perceber que na
sociedade moderna esse respeito está mesmo em falta. Mais que isso, essas populações
percebem que o olhar dos demais só se volta para elas no reconhecimento de seus
problemas e carências, impossibilitando dessa forma uma relação mais igualitária e,
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conseqüentemente, respeitosa. Freqüentemente associado ao dinheiro, à força e ao poder,
sabemos que, por outro lado, o respeito e o reconhecimento não podem ser obtidos e
merecidos da mesma forma. Mas para nossos alunos, nesse momento isso parecia
irrelevante, uma vez que, como dissemos, eles agarravam essa oportunidade de superar sua
realidade social com muita dedicação.
Se nas outras aulas de música do projeto o sentimento de visibilidade e
reconhecimento já se instauravam, como tínhamos visto nos trabalhos anteriores, na aula de
banda a promessa de visibilidade era muito maior, uma vez que os adolescentes
identificavam nela a possibilidade de sucesso e fama. Nesse curso, os alunos aprendiam e
ensaiavam pop-rock brasileiro e americano, um repertório de músicas que fazem sucesso no
rádio e na televisão. Ao pensar na música era muito comum que os adolescentes
projetassem algo distante de sua realidade cotidiana, que só é possível no formato em que
essa música é veiculada nos meios de comunicação e em shows: a música comercial.
Além disso, havia uma outra questão. Através dos jogos de improvisação (com um
ritmo básico os alunos eram convidados a improvisar espontaneamente), estávamos
colocando um pedido aos alunos: de trazer sua pessoalidade para a sala de aula. Esta
situação gerou um conflito entre o lugar que eles estavam acostumados a ocupar em sala de
aula (e em várias circunstâncias de suas vidas) – um lugar de ouvintes passivos – e um
lugar que desejávamos que eles ocupassem – de participantes ativos e criativos. Pedíamos
para que se afirmassem assumindo posições, por vezes liderando e puxando a batida do
grupo. Para que fossem “eles mesmos”, espontâneos, algo contraditório ao que usualmente
é pedido e esperado de jovens normalmente qualificados como despreparados, marginais,
habitantes da periferia em todos os sentidos.
A encruzilhada
Neste momento tínhamos duas alternativas: ou passávamos a classificá-los mais
uma vez como despreparados, não merecedores do trabalho que tínhamos elaborado com
tanto cuidado, ou assumíamos uma outra posição, ocupando um outro lugar, moldando
nossas interferências a partir do universo deles, para poder chegar mais perto. Sentíamos
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que, para dar continuidade ao trabalho, precisávamos diminuir o que entendíamos como o
grau de exposição em que os estávamos colocando.
Em uma das discussões com o grupo de supervisão, tivemos um importante insight
sobre nossa frustração e sensação ambivalente de estarmos sendo subestimados ou mesmo
de estarmos fazendo algo “errado”. Percebemos que, através das ausências e do que
aparecia para nós como falta de consideração frente ao nosso trabalho, eles haviam
invertido as posições, colocando, a nós, como marginais dentro da instituição. Eles não
queriam conversar conosco do jeito que tínhamos escolhido, por meio dos sons corporais,
apesar de todos os combinados que tínhamos definido, de comum acordo, com a instituição
e com eles mesmos. Não queriam nosso pretenso saber, nosso jeito de fazer música, que
estava à margem dos que pretendiam para si mesmos. Estavam-no dispensando, junto
conosco.
A partir desse momento, resolvemos buscar um outro lugar de convivência, física e
de saberes, mais informal, de onde pudéssemos transmitir o nosso conhecimento e também
aprender com eles – em resumo, trocar. Poderíamos abdicar da proposta formal, organizada
no tempo e no espaço, no nosso enquadramento seguro, e resistíamos em aceitar que
qualquer possibilidade de conversa estivesse encerrada.
Desde o insight de que eles nos colocavam na posição de excluídos (na qual
eventualmente poderiam sentir que nós os havíamos colocado primeiro, com nossa
insistência em “transmitir” um conhecimento numa linguagem alienígena) resolvemos
inverter a mão da relação, procurando um lugar onde a conversa acontecesse mais
facilmente. Porque, na verdade, o queríamos era conversar. Isso posto, oferecemos então
outro formato de atividade, muito mais amplo e desestruturado. Faríamos visitas ao projeto
e nos restringiríamos a fazer as atividades de Música Orgânica somente quando
requisitados, ou quando o momento fosse propício. Estaríamos disponíveis ao convívio,
uma vez que nos pareceu ser isto que nos pediam, já que nosso contato social era bom fora
das aulas. Foi aí que as coisas começaram a acontecer.
No sétimo dia de intervenção, decidimos acabar com a formalidade: deixamos de
dar aulas e começamos a freqüentar a casa para conversar, saber deles, “tomar cafezinho”.
Dessa forma, numa aproximação menos autoritária, colocamo-nos constantemente
presentes no ambiente da cozinha, fazendo música, conversando com os passantes e com
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quem ali permanecia, aproveitando a espontaneidade e harmonia lá já existentes. Não
estaríamos perdendo, desse modo, os horizontes últimos de nossa proposta, uma vez que
“Quando um homem diz ‘bom dia’ e outro responde, há automaticamente uma harmonia
vocal entre os dois” (Grotówsky, 1971:173).
E ali, a partir dessa decisão, além de Música Orgânica, passaram a ser exibidas e
relatadas conquistas musicais, futebolísticas e amorosas. Quando nos colocamos a fazer
desta outra maneira, observamos que muitos alunos vinham nos mostrar novas técnicas de
produção de som com o corpo, que havíamos ensinado ou não, que haviam aprendido e
treinado em casa. Às vezes isso produzia uma nova roda.
Mais que isso, novamente numa inversão do movimento por nós inicialmente
desejado, o fazer psicológico assumia lugar de figura, e não mais de fundo: começaram a
surgir pedidos de conversas mais particulares, de aconselhamento.
Se na nossa primeira proposta os afetos seriam expressos pelas atividades sonoras e
corporais, e historicizados pelas discussões posteriores a elas, vivíamos agora a situação em
que a Música Orgânica adquiria o papel de pretexto para estarmos lá, para começarmos os
contatos, que derivavam, como a tal película envolvente mencionada no começo desse
artigo, em atendimento psicológico!
O(s) espaço(s): configurações de atendimento
Lentamente, pudemos observar que fomos bem-vindos neste novo lugar. Já não
sabíamos se nos havíamos posto ali ou se os alunos nos disponibilizaram este novo jeito de
trabalhar. As conversas foram surgindo lá, na cozinha, por entre o que naturalmente lá já se
fazia. Como exemplo, relatamos algumas situações: uma intervenção rítmica com um dos
meninos, uma conversa com uma adolescente freqüentadora do projeto, B., grávida de 3
meses. E uma outra, que foi uma conquista especial para nós, pois foi feita com uma pessoa
de fora, que não era freqüentadora do projeto, e que veio para falar conosco.
04/10/06, Relatório do 8º atendimento
Chegamos um pouco antes do horário combinado. Fomos recebidos com surpresa
pela cozinheira, que disse pensar que não voltaríamos. Sem muito falar sobre isto, dissemos
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que viríamos mais algumas vezes. Ficamos na cozinha conversando com as pessoas, por
vezes experimentando – quando surgiam – sonoridades do corpo. Um dos alunos mais
velhos das aulas de música tocava violão e era acompanhado por “batuques” esporádicos
dos outros alunos. Ele mudava frequentemente de música e algumas outras pessoas ainda o
acompanhavam cantando. Sentimos que podíamos acompanhá-los em improvisações na
informalidade da cozinha. Lentamente, as pessoas foram respondendo, apropriando-se de
novas maneiras de produzir música com o corpo que demonstravam para nós
informalmente. Neste dia, brincou-se bastante com a sonoridade produzida ao bater-se um
dedo da mão contra o espaço entre dois dedos da outra mão fechada. Muitos dos alunos se
envolveram nisto, verbalizando que trazíamos muitas “coisas legais” como quem diz: “não
queremos fazer as aulas mas gostamos de vocês aqui e do conhecimento que trazem”.
Este lugar também propiciou diálogos e discussões muito pertinentes à vida na
adolescência e juventude, em que pudemos agir como facilitadores.
Uma conversa iniciou-se depois que o fluxo maior de alunos foi para escola. A
cozinheira beijou a barriga de uma menina, B., sugerindo-nos que ela estivesse grávida.
Pareceu para nós que todos ali sabiam disto e, sem explicitar ou reafirmar o tema, nós
tratamos de dialogar conforme surgiam comentários de todos. Por vezes explicitamos
informações pertinentes e por outras procuramos estimular a conversa. Falamos sobre
diversos temas: tatuagens (ela tem diversas tatuagens no corpo), casamento, namoro,
crianças, gravidez, maternidade. Conversamos sobre como a gravidez é um momento de
mobilização das pessoas próximas, como a mãe de B., segundo o depoimento dela, e sobre
a possibilidade dela aproveitar este momento para o seu crescimento, buscando serenidade
para proporcionar acolhimento à criança que vai nascer. B. pareceu tranqüilizar-se: seu
semblante mudou, de uma fisionomia de tensão passou a um olhar terno, uma respiração
aliviada.
01/11/06, Relatório do 12º atendimento
Desde quando começamos a freqüentar o projeto uma ou outra pessoa vinha nos
falar da irmã de B., e neste dia fomos apresentados a ela. E., falante e extrovertida, nos
cumprimentou com beijinhos e um simpático sorriso. Ficamos ali na cozinha tomando café
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enquanto ela nos observava, se aproximava, se afastava, como quem quer alguma coisa mas
não quer pedir.
Fomos visitar outros ambientes e conversar com outros adolescentes, ficamos um
pouco na sala de aula de banda vendo a performance de alguns deles e com o término da
aula fizemos músicas com alguns dos alunos. Um deles, que tocava bem, não queria que
um outro tocasse junto com eles. Com a insistência deste, o anterior foi embora e ficamos a
sós com o menino que havia sido rejeitado. Sugerimos que ele tocasse bateria, e assim que
teve chance de tocar (o que antes era reprimido pelo outro aluno), percebemos porque o
outro resistia tanto em deixar que ele tocasse: ele tinha muitas dificuldades. Pedimos que
fizesse uma batida simples, dando duas batidas na caixa e duas no surdo (tá-tá tum-tum) e
mantivesse essa célula. Ele teve dificuldades logo na primeira célula, e falamos a ele da
necessidade de exercitar a busca da constância. Essa experiência permitiu que
conversássemos com ele sobre como a consciência dos movimentos e seu treino poderiam
ser usados na música, mas também estender-se para outras atividades, o que o incentivou a
explorar mais conosco outras perspectivas, como a atividade esportiva, sobre a qual ele
relatou com orgulho o fato de ter sido selecionado para treinar em clube da região.
Descemos pretendendo ir embora, mas ao passar pela cozinha a irmã de B. puxou
assunto falando de suas viagens com a igreja, de seus valores pessoais, dos preconceitos
que sofre por conta das tatuagens e contou a história da sua família: o pai que bebia e fugiu
de casa quando eram novas; os irmãos de sua mãe, o fato de um deles ter se suicidado, o
outro que morreu doente; o avô que também morreu. Falou a mãe que entrou em depressão
e não conseguia sair da cama há um ano, por causa da morte do avô, e como ela e irmão
tiveram que de certa forma assumir os afazeres de casa muito cedo, e ainda cuidar da mãe
doente, que chegou a ser internada.
À medida em que ela ia falando, dialogávamos sobre o lugar que ela ocupava e
como devia ser difícil para ela lidar com tudo isso, pois apesar de falar de conteúdos
afetivamente pesados, E. não se emocionava e falava de um lugar muito conformado.
Pontuamos que enquanto ela tomasse conta de tudo, como estava fazendo, as coisas
continuariam como estavam, e a partir daí pudemos falar da necessidade dela ir mudando
aos poucos.
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Nesta conversa cheia de conteúdos, porém em um curto espaço de tempo, ela ainda
citou que quando a assistente social vem a sua casa para ver o estado de saúde de sua mãe,
E., não suportando a passividade da mãe (que não fala nada), conta à assistente tudo o que
se passou desde sua última visita. Começamos a pensar juntos o que poderia ser feito para
que ela se sentisse confortável em “não falar no lugar de sua mãe”, e sobre o fato de que
diante de tais assuntos ela assumia a atitude de argumentar ininterruptamente, não
permitindo o contato com seus sentimentos de medo, tristeza, desamparo e descontrole.
Interrompemos sua fala perguntando se ela havia escutado o que tinha acabado de ser dito.
Com a confirmação dela, dissemos que estaríamos lá na outra semana e assim nos
despedimos.
Pensando o atendimento
Os exemplos acima ilustram três formas distintas de intervenção, em momentos e
cenários diferentes. Intervenções mais ou menos demoradas, mas todas de certa maneira
fortuitas, fugidias, sem pretensão à continuidade.
Por meio de pistas (corporais, verbais, atitudinais) conseguimos identificar o que,
em nosso olhar situado e momentâneo, aparecia como transformação, derivada de um tênue
momento de encontro. São transformações duradouras? (De todo modo, transformações são
duradouras?) São efeitos de nossas ações? Ou acontecem na feliz confluência de uma série
de coisas em um dado momento, que deságuam em um daqueles “bons encontros”?
Segundo Andrade (2006, op.cit.), a formação de psicólogos apóia-se numa
concepção de relação com o cliente que nega a alteridade, considerando o diverso como
desviante, algo que deve ser tratado e que está no indivíduo. A saída dos psicólogos
formados sobre essa base para o atendimento à população mais geral, fora dos consultórios,
é fonte de conflito e angústia diante de perguntas como essas, que declaram a intrínseca (e
desejável) incompletude, a falta de garantia de nossos procedimentos e intervenções sobre o
movimento da vida de outros, e a necessária e urgente revisão de nossas cristalizações.
Segundo Sá (2006: 13): “As perguntas e as respostas concernentes às questões da vida
nunca estão formuladas a priori, pois, ainda que se repitam, somente fazem sentido a partir
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do contexto existencial concreto em que surgem, como se fossem feitas sempre pela
primeira vez.”
Não temos respostas para as perguntas. Descrevemos os impasses, escolhas e
decisões de nosso trajeto, e a elas podemos tentar acrescentar alguns fatores menos centrais
que favoreceram a feliz confluência, além de nossas propostas, idas e vindas, reflexões e
insights já mencionados.
Foi de grande importância o papel e a atitude da cozinheira da instituição. Essa
profissional de uma outra área, sensível e atenta, nos acomodou assim como acolhia os
demais jovens que passavam por seus domínios, compondo conosco uma situação que
favoreceu a realização de nosso trabalho e o nosso desenvolvimento profissional e pessoal.
Mais do que permitir a nossas intervenções na cozinha, ela incentivou, participou e
divulgou nosso trabalho, fez a ponte entre as necessidades dos adolescentes e nosso
conhecimento e por isso nós acabamos migrando para a cozinha “dela”, onde acontecia
sempre de ter passantes, conversas, um ou outro aluno tocando violão e outros
acompanhando na voz ou batuque na mesa, em um clima informal. Foi neste ambiente que
encontramos espaço para desenvolver o trabalho inicialmente concebido para ser realizado
na sala de aula: ali encontramos a possibilidade de expressão espontânea dos adolescentes
que queríamos que acontecesse em aula, e encontramos nossa própria possibilidade de
expressão, podendo, finalmente, misturar-nos a eles. Ao invés de pedirmos que se
apresentassem espontaneamente na sala de aula, coisa que vai em contradição com o que é
vivido no ambiente “sala de aula” de forma geral, fizemos nossas intervenções onde
costumeiramente os alunos se apresentam de forma espontânea, a cozinha, levando nosso
trabalho para o mais cotidiano dos espaços deles. Dessa maneira, trouxemos elementos para
a ampliação da linguagem musical dentro das possibilidades de absorção dos alunos, ficou
possível para eles adquirir o conhecimento que tínhamos vindo oferecer.
Além disso, apesar de não ser essa a situação para estender essa discussão (o
atendimento psicológico em co-terapia, co-facilitação), é impossível não fazer referência a
um fator sem o qual essa trajetória não teria acontecido como aconteceu: a relação entre os
psicólogos envolvidos, principalmente a dupla que estava na linha de frente do
atendimento.
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Esse relato está todo na primeira pessoa do plural porque é resultado da contribuição
de várias pessoas, em níveis diferentes, dentro de um grupo de supervisão. Assim, muitas
decisões foram tomadas em conjunto, a partir das experiências vividas não só na instituição
aqui apresentada, mas em várias outras, que permitiam comparação e contextualização.
Mais diretamente responsáveis por esse atendimento específico fomos nós, os três
autores desse artigo – Cláudio e Gustavo como estagiários, Christina como supervisora.
Sobre a atuação dos dois primeiros, é fundamental reforçar como a complementaridade
entre eles foi significativa para o processo vivido. Nos pólos opostos de um mesmo
espectro no que podemos chamar de personalidade e estilo, ambos têm em comum a cultura
vasta (geral e psicológica), a sensibilidade e o desprendimento, a abertura para a alteridade.
Esse modo de ser produziu uma colaboração sintonizada, fluida e produtiva entre, de um
lado, um artista intuitivo, com um gestual exuberante, falante e de idéias férteis, mas pouco
sistematizadas. De outro lado, uma pessoa de poucas palavras, muita bagagem teórica,
olhar fugidio e gestual contido. Características tão diferentes foram combinadas, ao longo
de nossa convivência, não como focos de oposição, confronto e competição, mas sim de
complementação, diálogo e troca. A cumplicidade estabelecida permitiu que assumissem
riscos e se apoiassem mutuamente nos momentos de angústia, que comemorassem as
conquistas, que refletissem e tomassem decisões importantes para o desenvolvimento de
um fazer psicológico criativo e comprometido.
Do ponto de vista da supervisão, a abordagem fenomenológica de inclinação
heideggeriana e o suporte do grupo todo puderam contribuir para a imersão na experiência
vivida e sustentação da angústia diante do fazer profissional que se iniciava, para além das
prescrições e do simples ensino da técnica, na linha do que afirma Sá (2006:12):
Embora o termo “supervisão” evoque, a partir de sua etimologia, a idéia
de uma “visão superior”, não devemos entender aquilo que legitima a
posição do supervisor, nas práticas psicológicas, apenas como transmissão
e fiscalização dos conhecimentos técnicos pertinentes às intervenções
supervisionadas. O supervisor não pode saber mais acerca do caso
supervisionado do que o próprio supervisando diretamente envolvido na
relação clínica. Se ele tem algo a mais, nesta situação específica, que o
legitima como supervisor, deve ser sua abertura para o estranhamento, sua
disponibilidade para suportar a disposição da angústia perante o não saber
sobre o outro.
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Em resumo, pudemos oferecer e estabelecer nesse grupo móvel e aberto de
adolescentes uma escuta diferenciada para aquilo que alguns traziam. Puderam ouvir um ao
outro e a nós, e experimentar a aceitação das diferenças, bem como valer-se das
similaridades. Ouvimos, junto com todos os participantes do projeto, temas que envolviam
descoberta da sexualidade, dominação no grupo e submissão, escolaridade, dinheiro,
consumismo, futuro... Oferecemos uma escuta muito diferenciada da do lugar do convívio
social, embora houvéssemos sido convidados a participar destas conversas neste lugar.
Pudemos orientar, acolher e permitir a expressão de todos os participantes. Desta forma,
pudemos propiciar tomadas de consciência e a ressignificação destas expressões. Nossa
intervenção aconteceu de uma maneira respeitosa e harmônica, e acreditamos ter cooperado
com a instituição, e vice-versa.
A arte é, em essência, o antônimo da competição feroz que podemos
observar na sociedade de nossos dias; a arte é, em si, cooperação,
compreensão mútua e interdependência. Ao cantarmos juntos, a harmonia
do conjunto fornece um feedback constante da cooperação do grupo a
cada um de seus membros. Se batemos palmas e caminhamos juntos, no
exercício dessa polaridade humana fundamental de direita e esquerda – no
mesmo andamento e no mesmo ritmo – os batimentos cardíacos e a
respiração de todos tendem a se afinar, abrindo caminho para o
estabelecimento de um ser coletivo. Duas pessoas que cantem a mesma
canção, ainda que distantes – desde que se ouçam – entram em
comunicação profunda. (TONON, 1988: 84)
Quatro anos de convivência e cooperação, seis oficinas realizadas. Todas
diferentes uma da outra, cada qual organizada segundo a confluência das demandas (de
oficineiros, participantes e instituição), no estabelecimento do diálogo, das trocas afetivas,
dos bons encontros. Consolidação do espaço para a reflexão e discussão das condições para
ações comprometidas, tanto da parte dos psicólogos quanto dos usuários do serviço. Esse
era um lugar onde não só a prática podia se estabelecer como tal, em seu caráter mutante,
mas que se oferecia como fonte de investigação e conhecimento, como uma “relaçãomodelo” que se configurava como um raro e especial território sólido – exatamente por ser
fugidio – sobre o qual articular saber e fazer. Essas mesmas circunstâncias, no entanto,
foram a razão para a desativação do projeto. Esse modo de trabalhar não responde
satisfatoriamente, de modo geral, às exigências dos patrocinadores. O programa, no
24
formato em que era posto em prática, foi cancelado da agenda de financiamento da
mantenedora, e fechou. Fato cuja discussão demanda mais um artigo.
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Universidade de São Paulo, 1988.
Notas:
1
Expressão
muito feliz cunhada e disseminada pela colega e amiga Ângela Nobre Andrade,
referência para muitas discussões nesse artigo.
2
“Estético” como experiência acolhida em sua gratuidade, sem necessidade de explicações
ou argumentos (Vattimo, 1991).
3
“Welfare”, no original.
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