Pró-Reitoria de Graduação
Curso de Direito
Trabalho de Conclusão de Curso
O ATIVISMO JUDICIAL COMO GARANTIDOR DA
EFETIVIDADE E DO FORTALECIMENTO DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Autor: Jediael Alves Ferreira
Orientador: Msc. Mauro Sérgio dos Santos
Brasília - DF
2010
JEDIAEL ALVES FERREIRA
O ATIVISMO JUDICIAL COMO GARANTIDOR DA EFETIVIDADE E DO
FORTALECIMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Monografia apresentada ao curso de graduação
em Direito da Universidade Católica de
Brasília, como requisito parcial para obtenção
do Título de Bacharel em Direito.
Orientador: Msc. Mauro Sérgio dos Santos.
Brasília
2010
Monografia de autoria de Jediael Alves Ferreira, intitulada “O ativismo judicial como
garantidor da efetividade e do fortalecimento do Estado Democrático de Direito”, apresentada
como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Universidade
Católica de Brasília, em _______/_______/______________, defendida e aprovada pela
banca examinadora abaixo assinada:
______________________________________________________________
Professor Mauro Sérgio
Orientador
Direito - UCB
______________________________________________________________
Direito - UCB
______________________________________________________________
Direito - UCB
Brasília
2010
A Jesus Cristo, Autor da vida, Príncipe da Paz.
Ao meu amado esposo Júnior.
À minha terna família.
AGRADECIMENTO
Agradeço ao meu professor orientador Msc. Mauro Sérgio dos Santos pela dedicação
ao ensino, pela amizade e pelo exemplo e aos demais professores, pela importante
contribuição em minha formação acadêmica.
RESUMO
FERREIRA, Jediael Alves. O ativismo judicial como garantidor da efetividade e do
fortalecimento do Estado Democrático de Direito. 2010. 104 folhas. Trabalho de conclusão
de curso (graduação) - Faculdade de Direito, Universidade Católica de Brasília, Taguatinga,
2010.
Diante da omissão dos Poderes Executivo e Legislativo no cumprimento de suas atribuições
institucionais, o Judiciário vem sendo chamado a atuar em diversas questões sociais e
políticas. É possível vislumbrar até mesmo um viés ideológico nas decisões do Supremo
Tribunal Federal, sendo cada vez mais comum entre nós a expressão judicialização da
política. A tendência mundial é aumentar o rol de atribuições das funções estatais, no âmbito
de constituições principiológicas, que por reforçarem a força normativa dos princípios, de
textura aberta e, às vezes, indeterminada, conferem ampla margem de interpretação aos
magistrados, imbuídos da importante tarefa de efetivar os direitos fundamentais, há muito
reclamados pela democracia brasileira. Há quem acredite que o ativismo judicial representa
ameaça ao princípio da separação dos poderes. Por outro lado, os defensores do ativismo
propugnam que, em razão do princípio da inafastabilidade de jurisdição, o Judiciário,
provocado, não pode ficar apático, caso contrário, a omissão inconstitucional será da
instituição a qual a sociedade confiou a guarda da Constituição e das leis. Importa que o Poder
Judiciário se mantenha no âmbito estrito de suas atribuições constitucionais, alcançando o
ponto ideal de conformação entre a liberdade interpretativa intrínseca à jurisdição
constitucional e o ordenamento jurídico.
Palavras-chave: Ativismo Judicial. Estado Democrático de Direito. Direito Constitucional.
Judicialização da Política. Omissão dos Poderes Públicos. Princípios Constitucionais.
Interpretação. Princípio da Separação dos Poderes. Princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Direitos Fundamentais.
RESUMEN
FERREIRA, Jediael Alves. El activismo judicial como garantizador de la efectividad y del
fortalecimiento del Estado Democrático de Derecho. 2010. 104 páginas. Trabajo de
conclusión de curso (graduación) – Faculdade de Direito, Universidade Católica de Brasília,
Taguatinga, 2010.
Frente las omisiones de los Poderes ejecutivo y legislativo en la observancia de sus
atribuciones institucionales, el Judiciario es convocado a actuar en diversas cuestiones
sociales y políticas. Es posible vislumbrar un camino ideológico en las decisiones del
Supremo Tribunal Federal, donde cada dia es más frecuente entre nosotros la expresión
judicialización de la política. La tendencia mundial es la de aumentar el rol de atribuciones de
las funciones estatales en los ámbitos de las constituiciones principiológicas, que aumentan la
fureza normativa de los principios de textura abierta y, a veces, indeterminada, confieren gran
margen de interpretación a los magistrados, atribuidos de la importante tarea de efectivar los
derechos fundamentales, que desde hace mucho es reclamado por la democracia brasileña.
Hay los que creen que el activismo judicial representa amenaza al principio de la separación
de los poderes. De otra manera, los que defienden el activismo propugnan que, en razón del
principio de la inafastabilidad de la jurisdición, el Judiciario, provocado, no puede quedarse
inerte, al contrario, la omisión inconstitucional será de la instituición que la sociedad confió la
guardia la Constituición y las leyes. Importa que el Poder Judiciario se mantenga en el ámbito
estrito de sus atribuciones constitucionales, alcanzando el punto ideal de conformación entre
la libertad interpretativa intrínseca a la jurisdición y el ordenamiento jurídico.
Palabras clave: Activismo Judicial, Estado Democrático de Derecho. Derecho Constitucional.
Judicializacion de la Política. Omisión de los Poderes Públicos. Principios Constitucionales.
Interpretación. Principio de la Separación de los Poderes. Principio de la Inafastabilidad de
La jurisdición. Derechos Fundamentales.
LISTA DE ABREVEATURAS E SIGLAS
ABREVIATURAS
Art. por artigo
f. por folha
nº. por número
p. por página.
pp. por páginas
SIGLAS
ADC – Ação Declaratória de Constitucionalidade
ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADIO – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
CPP – Código de Processo Penal
CR– Constituição da República
HC – Habeas Corpus
MI – Mandado de Injunção
RCL – Reclamação
RE – Recurso Especial
Rext – Recurso Extraordinário
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TRE – Tribunal Regional Eleitoral
TSE – Tribunal Superior Eleitoral
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
1
1.1
1.2
1.3
HISTÓRICO DO ATIVISMO JUDICIAL E DIREITO COMPARADO ............. 13
CONCEITO DE ATIVISMO JUDICIAL ..................................................................... 18
ATIVISMO JUDICIAL EM SISTEMAS DE COMMON LAW E CIVIL LAW ........ 21
FATORES DE IMPULSÃO DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL ..................... 24
1.3.1
Modelo de Estado Constitucional Brasileiro ......................................................... 25
1.3.2
Expansão do controle abstrato de normas ............................................................ 26
1.3.3
Atividade normativa atípica ................................................................................... 27
1.3.4
Neoconstitucionalismo ............................................................................................. 30
1.3.5
Omissão dos Poderes Legislativo e Executivo ....................................................... 32
1.4
CRÍTICAS DOUTRINÁRIAS A RESPEITO DO ATIVISMO JUDICIAL ................ 32
2
ATIVISMO JUDICIAL À LUZ DO DIREITO CONSTITUCIONAL
BRASILEIRO ......................................................................................................................... 42
2.1
ATIVISMO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: O PRINCÍPIO DA
SEPARAÇÃO DOS PODERES............................................................................................... 42
2.2
APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO E ATIVISMO ................................................... 46
2.3
ATIVISMO, INTERPRETAÇÃO E PRINCÍPIOS CONSTICUCIONAIS ................. 49
2.4
A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA ........................................................................ 52
2.5
LIMITES DO ATIVISMO JUDICIAL ......................................................................... 57
2.6
OS DIVERSOS GRAUS DE CONTROLE JUDICIÁRIO EM MATÉRIA
CONSTITTUCIONAL ............................................................................................................. 61
2.6.1
Inexistência de controle: função de governo ......................................................... 62
2.6.2
Controle mínimo: exercício de jurisdição pelo poder legislativo......................... 62
2.6.3
Controle médio fraco: atos interna corporis, atos de chefia de estado e controle
de constitucionalidade fundado em princípios..................................................................... 63
2.6.4
Controle médio forte: controle de constitucionalidade fundado em regras e de
atos administrativos em que haja discricionariedade. ........................................................ 63
2.6.5
3
3.1
3.2
Controle máximo: atos administrativos plenamente vinculados. ........................ 64
O ATIVISMO JURISDICIONAL E A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA ....... 65
JURISPRUDÊNCIA COMO FONTE DE DIREITO NO BRASIL ............................. 65
HISTÓRICO DO ATIVISMO JUDICIAL NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 67
3.2.1
Doutrina brasileira do habeas corpus..................................................................... 68
3.2.2
Reclamação constitucional ...................................................................................... 69
3.2.3
Mandado de injunção .............................................................................................. 73
3.2.4
Vinculatividade das decisões do Supremo Tribunal Federal............................... 76
3.3
ATIVISMO NA RECENTE JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL ................................................................................................................................ 78
3.3.1
Perda de mandato por desfiliação partidária e questões políticas ...................... 79
3.3.2
Proibição do nepotismo ........................................................................................... 81
3.3.3
Concreção de direitos fundamentais e sociais veiculados por normas de eficácia
limitada .................................................................................................................................. 84
3.4
ASPECTOS ESPECÍFICOS DO CONTROLE ABSTRATO DE NORMAS .............. 86
3.4.1
Modulação dos efeitos temporais das decisões de controle .................................. 87
3.4.2
Sentenças interpretativas e manipulativas em sentido estrito ............................. 94
CONCLUSÃO......................................................................................................................... 97
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 102
10
INTRODUÇÃO
Em razão da omissão dos Poderes Legislativo e Executivo no cumprimento de suas
funções institucionais, o Poder Judiciário vem atuando, cada vez mais, em questões que, em
princípio, seriam da competência do legislador e do administrador. O Supremo Tribunal
Federal foi instado a decidir a respeito de reforma política, fidelidade partidária,
desmembramento de municípios, nepotismo, greve de servidores públicos, educação e saúde,
para citar alguns exemplos. Não é apenas a Suprema Corte que tem se revelado pró-ativa; os
demais tribunais e juízes estão mais ativistas. Por isso, o surgimento da expressão ativismo
judicial.
Essa recente mudança de orientação do Poder Judiciário e a reconfiguração do
Supremo Tribunal Federal têm polarizado as discussões a respeito do tema: de um lado, os
defensores do ativismo, propugnando que o Judiciário capitaneie as transformações desejadas
pela sociedade, concretizando os dispositivos constitucionais, e de outro, os que receiam que
o ativismo judicial possa abalar o princípio constitucional da separação dos poderes,
prejudicando, por conseguinte, o Estado Democrático de Direito, devendo a Ciência Jurídica
alhear-se aos problemas sociais e políticos.
As modernas constituições, por seu turno, clamam por uma democracia substancial e,
conseguintemente, por uma sociedade livre e igualitária. Para tanto, o Estado deve ser atuante,
sendo necessariamente integrado por poderes ativos. A história brasileira narra que o
Judiciário sempre foi o mais passivo dos poderes, mero espectador das cenas sociais, por
razões ligadas à própria concepção clássica de suas características.
A missão de guardião da Constituição e das leis, o papel de exercer o controle de
constitucionalidade das leis e atos administrativos emanados dos órgãos públicos e a
preocupação com a concretização dos direitos fundamentais alteraram profundamente esse
quadro, tornando o Judiciário protagonista das transformações desejadas pela Constituição.
Nesse contexto, delinear a atuação do Judiciário de forma a promover adequação ao
ordenamento jurídico é primacial à concretização dos dispositivos constitucionais e ao
fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Para isso, importa explicitar os limites da
atuação da função judicial, no plano da democracia que exige a sociedade brasileira, de forma
que consiga fazer frente às exigências da contemporaneidade.
11
Essa noção não pode escapar a um bacharel em direito, nem à comunidade jurídica e
aos operadores oficiais do Direito, razão por que se mostra imprescindível a pesquisa do
assunto, sem falar na atualidade do tema e na sua importância para o debate sobre os rumos da
democracia representativa.
O fenômeno do ativismo judicial tornou-se objeto desse trabalho a partir da leitura de
um artigo jurídico, que levou à reflexão, sempre intrigante, do papel da função judicial com
vistas a fortalecer o Estado de Direito, eis que um projeto político para o País só ousa
prosperar no seio de uma democracia fortalecida e consolidada.
Esta pesquisa, essencialmente bibliográfica e jurisprudencial, procurou reunir o
arcabouço necessário para a compreensão do assunto, com apoio nas informações disponíveis,
a partir das quais se buscou justapor as idéias, confrontá-las e apontar uma possível solução
para a problematização posta.
O ativismo judicial tem alcançado tanto os países da família romano-germânica quanto
os da anglo-saxônica. Não obstante, esta pesquisa circunscreve-se à realidade brasileira, sem
perder de vista o estudo do direito comparado e o histórico do ativismo judicial no Brasil e no
mundo, visando à intelecção do contexto no qual se originou e vem se desenvolvendo o
referido fenômeno. Esse assunto será examinado no primeiro capítulo, no qual, ainda, se
discorrerá sobre o conceito de ativismo, seus fatores de impulsão no Brasil e as críticas
doutrinárias a ele dirigidas.
O segundo capítulo ocupa-se da abordagem do ativismo judicial à luz do Direito
constitucional brasileiro. Tendo em vista que o fim último do trabalho é investigar a atuação
ideal do Judiciário com o objetivo de fortalecer o Estado de Direito brasileiro, é preciso
analisar o ativismo judicial enquanto expressão da aplicação da Constituição.
Uma das maiores preocupações dos tribunais ativistas é concretizar os dispositivos
constitucionais, o que não pode ser feito mediante arbitrária atribuição de significados às
normas, configurando-se fundamental a explicitação de limites normativos. Nesse sentido,
necessária se faz a utilização de métodos hermenêuticos, a saber, o literal, o lógicosistemático, o histórico-evolutivo, e o teleológico, máxime quando se trata da interpretação de
princípios, que comumente apresentam textura aberta, indeterminada e dúctil. Os princípios
conferem maior liberdade ao julgador, dando ensejo até mesmo a decisões que contemplam
aspecto ideológico, daí o estudo, também no segundo capítulo, do fenômeno conhecido como
judicialização da política.
Devido ao importante papel conformador exercido pelo Supremo Tribunal Federal, na
medida em que uniformiza a jurisprudência, seu dinamismo jurisprudencial é objeto de
12
análise do terceiro capítulo, momento em que também se procederá ao estudo da
jurisprudência como fonte do Direito e de aspectos específicos do controle abstrato de
normas.
A metodologia a ser utilizada é a estruturalista, uma vez que o tema será abordado nos
contornos do ordenamento jurídico e da jurisprudência, tendo por pilar estruturante a
Constituição da República. A perspectiva a ser desenvolvida apresenta o ativismo judicial
regido por uma ordem interna.
Ao se avaliar o contexto histórico no qual está inserido o ativismo judicial, fazendo-se
comparação entre o ativismo operado pelo sistema de civil law e o dinamismo jurisprudencial
levado a efeito pela família common law, bem como ao realizar-se o estudo do direito
comparado e dos fatores de impulsão do ativismo judiciário no Brasil, será feito uso do
método comparativo, já que o fenômeno do ativismo judicial será explicado cotejando-se a
experiência estrangeira.
Busca-se, na explicitação do ativismo judicial como expressão da aplicação da
Constituição e na abordagem do ativismo na jurisprudência da Suprema Corte brasileira,
analisar o fenômeno inserido em um sistema, qual, o sistema jurídico brasileiro, com auxílio
do método sistêmico, tendo-se a Constituição da República como principal parâmetro.
Pretende-se, com o presente trabalho, perscrutar se o ativismo judicial é necessário à
concretização dos dispositivos constitucionais e, por conseguinte, ao fortalecimento do Estado
Democrático de Direito ou, ao contrário, se é prejudicial ao Estado de Direito, por ameaçar o
princípio da separação dos poderes. Com isso, quer-se delinear a área de atuação do Poder
Judiciário, a fim de que se mantenha no âmbito estrito de suas atribuições constitucionais e
legais.
13
1
HISTÓRICO DO ATIVISMO JUDICIAL E DIREITO COMPARADO
Não há dúvidas de que atualmente inexistem fronteiras mundiais. Os países interagem
de forma a promoveram afetação mútua, em diversos aspectos: sociais, econômicos, políticos,
ambientais e, inclusive, jurídicos, para citar alguns exemplos. Não é diferente com o
fenômeno do ativismo judicial, cuja abordagem não prescinde do estudo do Direito
comparado.
Não obstante a influência jurídica que um Estado soberano exerce sobre o outro, o
modo de exercício da função jurisdicional é percebido de maneira dessemelhante em cada
família de Direito, isto é, o fenômeno irá variar conforme esteja inserto no sistema romanogermânico ou no anglo-saxônico. Essa noção é pressuposto para a adequada compreensão do
contexto histórico em que se originou e se desenvolveu o ativismo.
Para que se entenda com proficuidade o fenômeno do ativismo importa reportar-se à
Europa do século XVIII, no auge das monarquias absolutistas, momento em que floresceram
teorias avessas ao absolutismo, promovidas pela burguesia, com o fim de justificar a
revolução e criar uma nova ordem política.
O crescimento da burguesia e de suas práticas comerciais, bem como o
antropocentrismo, trazendo como vetor o racionalismo, criaram um ambiente fértil para a
propagação das ideias iluministas, base teórica das revoluções burguesas que se seguiram, a
partir do final do século XVIII.
Na lição de Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo1, um grande expoente do
Iluminismo foi o barão de Montesquieu (1689-1755), autor de O espírito das leis, obra que
propunha o princípio da separação dos poderes e a supremacia da lei. Essa elaboração teórica
colocava o monarca sob o império da lei, limitando seu poder absolutista. Montesquieu
pregava, ainda, a necessidade de um conjunto de leis capazes de noticiar os valores gerais da
sociedade, a saber, a Constituição de um Estado soberano.
Finalmente, a burguesia, proclamando os ideais de liberdade, igualdade (formal) e
fraternidade, conseguiu sepultar as monarquias absolutistas, tomando o poder político. Dentre
as revoluções burguesas ocorridas na Europa, destaca-se a francesa, de 1789. Dez anos depois
se iniciou, na França, a era napoleônica que perdurou até 1815.
1
VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História para o ensino médio: história geral e do Brasil. São
Paulo: Scipione, 2002. p. 258-259.
14
Após 1804, consagrou-se, na França, a superioridade das fontes estatais sobre as
demais fontes do Direito, tendo o código civil napoleônico adotado o modelo dogmático do
positivismo. Os ideais da revolução francesa não coadunavam com o sistema jurídico em que
o legislador estava adstrito ao Direito natural. O período histórico exigia, além do rompimento
com os antigos parâmetros legais e jurídicos, a emancipação do Parlamento (representativo da
soberania popular), em contraposição às monarquias absolutistas.
Nesse sentido, as leis deveriam ser formuladas de forma a atender o bem estar geral, já
que emanadas pelos representantes do povo. A grande importância da lei, nesse momento
histórico, avultou a relevância do Parlamento, que passou a monopolizar a função legislativa.
A própria teoria da separação dos poderes consolidou a supremacia política do Legislativo,
sujeitando a atuação dos outros poderes à lei, obra do Parlamento.
Ao Judiciário foi confiada a missão de aplicar a lei aos casos concretos, com
neutralidade e mecanicamente. Ao juiz, limitado a realizar a vontade do legislador, não
competia contribuir para a criação do Direito. Surge, desde então, o ideal de que o Direito
deve dissociar-se das questões políticas. Embora o positivismo em sentido estrito do século
XIX reconhecesse que o Direito nasce de um processo político, no momento de sua aplicação,
o magistrado deveria agir de forma técnica, sem cogitar os conflitos de interesses existentes
anteriormente à tomada de decisão pelo Legislativo. O que legitimava essa neutralidade era o
argumento de que a lei representava a expressão da vontade geral e, portanto, o legislador já
havia cotejado as implicações axiológicas e sociais.
Paulatinamente, as revoluções burguesas deflagraram-se nos demais países europeus.
No caso da Inglaterra, a revolução ocorreu séculos antes, em 1215, tendo como um de seus
principais corolários a Magna Carta.
O constitucionalismo foi fruto do florescimento das revoluções burguesas, na Europa,
e das libertações das colônias européias, na América, Ásia e África. O mencionado
movimento político e jurídico visava estabelecer, em todos os Estados, regimes
constitucionais, em que o poder público tem seus limites traçados em constituições escritas,
formuladas pela Inglaterra, em 1215, depois da revolução burguesa; pelos Estados Unidos da
América, em 1787, após a independência das 13 colônias; e pela França, em 1791, após a
revolução francesa.
Todas as revoluções burguesas tiveram como resultado a construção do Estado de
Direito Liberal, fundado no primado da lei e da Constituição e assegurador da liberdade, da
igualdade e da segurança jurídica. O Estado Liberal ocupava-se da manutenção da ordem, sem
imiscuir-se na liberdade individual, descurando do interesse geral.
15
Com o advento da revolução industrial e a consequente exploração da mão de obra da
classe trabalhadora, surgiram as teorias sociais e a preocupação em promover o estado do bem
estar social, em que se propugnava por políticas públicas afirmativas, bem como pela atuação
do Poder Público, no sentido de amparar a sociedade, não devendo limitar-se a não invadir o
espaço da liberdade individual. Assim, a concepção individualista esmaece-se para ceder
espaço aos direitos da coletividade.
Esse modelo de estado intervencionista revelou-se num solo fértil para a germinação
do ativismo. Com efeito, o Estado Social Democrático é essencialmente atuante,
impulsionador. Sua atitude, pautada pela lei, não é passiva perante o desenvolvimento
econômico e social, que deveria ser livre, na visão liberal. Alargam-se as funções
institucionais do Executivo e do Legislativo com o fim de atender à demanda social.
Nesse quadro, o Judiciário é chamado a proceder ao controle jurídico da atividade dos
demais poderes. Por outro lado, a sociedade espera do Judiciário o alcance das finalidades
desenhadas pela Constituição, inclusive no que tange à imediata fruição de direitos
fundamentais e sociais. O Judiciário acaba por responder ao clamor social que vocifera em
favor da transformação do Direito e do Estado, adequando-os aos novéis contornos da
sociedade do bem estar social.
Existem programas previstos pelo ordenamento jurídico que precisam ser efetivados, o
que demanda a contribuição do Judiciário, constitucionalmente obrigado a exigir o
cumprimento do dever do Estado no âmbito social, dever esse previsto legislativamente, hábil,
por esse motivo, de ser controlado pelo Judiciário.
O controle de constitucionalidade significou um avanço para o Estado de Direito na
medida em que minimizou a ocorrência de eventuais arbitrariedades do legislador. Pois bem,
o controle constitucional das leis e atos administrativos foi o instrumento decisivo para a
origem do protagonismo judicial.
Diversamente do ocorrido nos demais países ocidentais, exatamente por se filiar à
tradição anglo-saxônica, os Estados Unidos instituíram o controle de constitucionalidade a
partir do caso Marbury contra Madison, decidido pela Suprema Corte em 1803. Ou seja, o
controle de constitucionalidade difuso estadunidense foi previsto pelo próprio Judiciário, em
que pese a teoria da separação dos poderes já ser um princípio constitucional, à época.
O caso refere-se ao pedido formulado por Marbury à Suprema Corte em desfavor de
James Madison, o secretário de justiça do presidente recém-empossado, Thomas Jefferson,
para que fosse entregue o diploma de Marbury, que havia sido nomeado juiz de paz por John
16
Adams, derrotado por Thomas Jefferson nas eleições presidenciais de 1800 dos Estados
Unidos.
O processo foi relatado, em 1803, pelo juiz John Marshall, presidente da Suprema
Corte. Procedendo ao controle de constitucionalidade da lei federal que concedia competência
à Corte para emitir o mandado, decidiu-se pela inconstitucionalidade da lei, restando,
portanto, prejudicada a competência do Tribunal para conceder o pleito, este com apoio em lei
infraconstitucional que contrariava a Carta Maior.
Essa foi a primeira decisão de um tribunal a proclamar a superioridade hierárquica da
Constituição sobre as demais leis e a reconhecer a competência dos juízes e tribunais de não
aplicar normas infraconstitucionais contrárias à Lei Maior, mesmo diante da inexistência de
previsão constitucional nesse sentido.
Em razão da forte influência do Direito norte-americano no constitucionalismo
republicano brasileiro, a Constituição de 1891 introduziu no país o controle judicial difuso de
constitucionalidade, aperfeiçoado pela Constituição de 1934, com a previsão do efeito erga
omnes à decisão que declarava a inconstitucionalidade. O Estado Novo getulista extinguiu o
instituto jurídico do controle difuso, restaurado pela Constituição de 1946, que lançou as
bases do controle concentrado, advindo, finalmente, com a emenda Constitucional nº 16/65,
em plena ditadura militar. A Constituição de 1967 manteve a combinação dos sistemas
concreto e abstrato em seu texto. A Constituição de 1988 firmou um complexo sistema de
controle jurisdicional de constitucionalidade, com a continuidade da conjugação dos sistemas
difuso e concentrado2. Além disso, a Carta Cidadã previu maior número de funções
institucionais a serem operadas pelo Judiciário.
A tendência mundial é alargar o espectro de atribuições do Poder Judiciário. As
constituições não se limitam mais a prever apenas o controle de constitucionalidade. É certo
que os Estados contemporâneos vivem uma nova realidade normativa, na qual as
constituições não se restringem a ditar limites e atribuições dos poderes e a elencar o rol de
direitos e garantias fundamentais do cidadão. As constituições contemporâneas ocupam-se de
novas tarefas, mais amplas que a das constituições tradicionais. A moderna roupagem das
constituições exige de seus intérpretes – incluem-se nessa categoria os magistrados – uma
forma renovada de pensar o Direito em movimento, diante dos desafios que se colocam para a
interpretação constitucional.
2
PESSOA, Robertônio Santos. Controle de Constitucionalidade: jurídico-político ou políticojurídico? Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2882>. Acesso em:
22/08/2010.
17
As constituições contemporâneas são principiológicas. Devido à expansão dos
princípios na estrutura normativa das constituições é que o controle de constitucionalidade e a
guarda da Constituição deixaram de limitar-se apenas ao controle de constitucionalidade dos
atos do Executivo e do Legislativo e dos entes federados e passaram a preocupar-se com a
tarefa de promover os valores positivados nos princípios constitucionais. Ao tentar concretizar
a Constituição, o Judiciário acaba por adentrar, muitas vezes, em questões políticas.
No Brasil, Rui Barbosa, após o surgimento da República, dirigiu um movimento
doutrinário, que, apoiado na teoria da separação dos poderes, ergueu um estorvo à ingerência
do Judiciário nas questões políticas e mesmo no mérito dos atos da Administração, pelo que o
juiz poderia examinar unicamente a legalidade estrita dos atos.3
Essa compreensão doutrinária durou até a chegada da Carta de 1946, com a
determinação de que a lei não poderia excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer
lesão de direito individual, o que propiciou o fortalecimento do Judiciário, passando a admitirse o controle judicial dos atos políticos que lesassem direitos individuais, descurando-se,
nesse momento, dos direitos coletivos. Aos poucos, o Judiciário foi ganhando projeção e, por
fim, chegou-se à Constituição da República (CR) de 1988, que, acompanhando o movimento
de novas visões das constituições contemporâneas, levou o Judiciário a robustecer a força
normativa dos princípios, quando os concretiza nas demandas que lhe são submetidas4.
A partir de então, o Judiciário brasileiro passou a ter desempenho ativo nas questões
políticas, na medida em que, chamado a efetivar os princípios constitucionais, cada vez mais
se imerge em circunstâncias nas quais tem que se manifestar sobre assuntos administrativos.
O Judiciário passou a ser reconhecido doutrinariamente como um poder político,
emergindo a noção de que não somente os poderes diretamente eleitos pelo povo são
compatíveis com a democracia, insurgindo daí a politização do Judiciário ou judicialização da
política5.
Esse novo modo de pensar o poder foi expressamente adotado pela Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, o que se depreende dos artigos 1º, 2º e 95, I, onde se
lê que o Poder Público no Brasil está fundado não só na transitoriedade do desempenho das
3
MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009.
4
MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009.
5
MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009.
18
atribuições públicas e na eletividade, como também no exercício vitalício e por ingresso não
eletivo no Poder Público, da forma que se dá no Judiciário6.
A própria Carta de 1988 confiou atividades mais ousadas ao Judiciário, que vem sendo
chamado a intervir em diversos espaços da vida social, diante das novas exigências impostas
pela sociedade democrática contemporânea, que inadmite o passivismo de outrora. Com
efeito, a história brasileira narra que o Judiciário sempre foi o mais inativo dos poderes, mero
espectador das cenas sociais, por razões ligadas à própria concepção clássica de suas
características.
A missão de guardião da Constituição e das leis, o papel de efetivar o controle de
constitucionalidade das leis, bem como o controle de constitucionalidade das leis e dos atos da
Administração e a preocupação com a efetividade do Estado Democrático de Direito e com a
garantia dos direitos fundamentais alterou profundamente esse quadro, tornando o Judiciário
protagonista das transformações desejadas pela Constituição.
Em que pese a versão atualizada do Poder Judiciário ter incitado a preocupação de
muitos, em face da eventual ameaça de ruptura do princípio da separação dos três poderes,
cláusula pétrea da Constituição da República Federativa do Brasil, acredita-se que um
Judiciário atuante se faz necessário para que não se tornem inócuos os institutos jurídicos
preconizados pela Constituição da República, garantindo, assim, a efetividade do Estado de
Direito.
Esse histórico até aqui esboçado evidencia a relevância institucional da discussão
sobre o ativismo judicial cujo estudo detido avoluma a importância de abordar seu conceito, e
pelos motivos já assinalados, o Direito comparado, para o qual imprescindível o exame do
ativismo nos sistemas de common law e civil law.
Além disso, visando à complementação da digressão histórica acima encetada – sem a
intenção de esgotá-la –, imperiosa se faz a exposição dos fatores de impulsão do ativismo
judicial no Brasil e das críticas doutrinárias a ele direcionadas.
1.1
6
CONCEITO DE ATIVISMO JUDICIAL
MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009.
19
Não há consenso doutrinário quanto à conceituação do termo ativismo judicial, que
assume diversas significações. Inicialmente, assinale-se que o ativismo judicial é o inverso do
interpretativismo ou passivismo judicial.
A conceituação funcional de ativismo não deve configurar-se alheia aos grandes
sistemas jurídicos contemporâneos. Nessa esteira, é salutar levar-se em conta as diferenças
entre os arquétipos que se impõe ao juiz do common law e do civil law, no que se refere ao
exercício da jurisdição.
Para os adeptos do literalismo e do originalismo, as decisões desvinculadas do
interpretativismo são ativistas, atribuindo-se a elas valor negativo, contraposto à democracia,
ao Estado de Direito, à segurança jurídica, etc.7
Os críticos do interpretativismo, isto é, do passivismo judicial, conceituam o ativismo
como o protagonismo judicial, com a inevitável interpretação jurisprudencial, de forma a
democratizar o sistema político ao concretizar a supremacia da Constituição e o controle de
constitucionalidade. Para os não interpretativistas, o passivismo é que deve ser repelido, com
a finalidade de garantir a sobrevivência da Constituição e de seus institutos, dentre os quais os
direitos individuais e coletivos, por meio de uma interpretação evolutiva, de forma a
amalgamar-se às transformações sociais.8 Nesse contexto, o ativismo liga-se intimamente ao
compromisso do Judiciário com a efetivação dos direitos individuais e coletivos.
O ativismo judicial pode ser percebido, também, em sede de fiscalização de atos
legislativos ou administrativos, bem como no controle de atos administrativos de natureza
concreta, de atos jurisdicionais exercidos por outro Poder ou dos atos de chefia do Estado.
O professor Elival da Silva Ramos denomina de ativismo judicial o desvio ou o
excesso no exercício da função jurisdicional, com prejuízo para a função legislativa, a serem
repelidos em termos dogmáticos9. Assevera que
[...] por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para
além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe,
institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições
subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva
(conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no
tocante às práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do
Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes. Não se pode deixar de registrar
mais uma vez, contudo, que o fenômeno golpeia mais fortemente o Poder
Legislativo, o qual tanto pode ter o produto da legiferação irregularmente invalidado
7
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 132.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 133.
9
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 129.
8
20
por decisão ativista (em sede de controle de Constitucionalidade), quanto o seu
espaço de conformação normativa invadido por decisões excessivamente criativas.10
O termo ativismo judicial será utilizado neste trabalho em alusão a uma atuação mais
ousada, vigorosa e criativa por parte do Judiciário, que concretiza as normas jurídicas,
contraposta ao passivismo (ou interpretativismo), sendo que essa atuação ora é exercida nos
estritos limites permitidos pelo ordenamento jurídico, ora os ultrapassa.
Não obstante, o ativismo judicial a ser defendido aqui é o que observa inteiramente o
ordenamento jurídico, devendo o juiz estar atento à natureza predominantemente executória
de sua função, em respeito à cercadura jurídica que estrema os seus movimentos. O ativismo
que se configura como uma atuação arbitrária e fora dos limites legais será rechaçado.
Este trabalho cuida em demonstrar o ativismo judicial como garantidor da efetividade
do Estado de Direito e somente a atuação jurisdicional ativa no seio do juridicamente
permitido é que se mostra capaz de cumprir o propósito de efetivar os institutos
constitucionais. Afinal, é inconcebível aceitar que na busca pela concretização do sonho de
uma sociedade livre, justa e igualitária e de um Estado de Direito forte, o Judiciário aja além
dos limites traçados por essa mesma Constituição que tenta defender, ameaçando a estrutura
do Estado de Direito que quer promover.
O ativismo judicial que extrapola as balizas normativas é aquele consistente na prática
que desafia à atividade exercida por outro poder, capaz de ferir o princípio da separação dos
poderes, bem como, na conduta do juiz que funciona na qualidade de legislador positivo, ou
ainda, no afastamento dos critérios metodológicos de interpretação, quando da aplicação das
leis.
Outra forma de suplantar o sistema jurídico é quando o aplicador julga com o fim de
alcançar resultado pré-concebido, com prevalência das suas visões particulares, agindo
inspirado por sua própria consciência, ou, ainda, quando tenta promover, por meio de suas
decisões, políticas públicas, sem conhecer limites na sua atividade. Nos países da tradição
anglo-saxônica, o ativismo judicial de excessos pode ser sentido quando o magistrado não
aplica os precedentes.
Resumidamente, o ativismo judicial pode ser definido como o exercício pró-ativo da
função jurisdicional, quando da aplicação e interpretação das leis, seja quando dá azo a um
trabalho criativo e/ou impulsionador, seja quando atua em questões políticas. Para ser
legítimo deve respeitar os limites cominados pelo ordenamento jurídico, com a premência da
10
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 129.
21
lei, posto que esta funciona como baliza no trabalho de construção da norma de decisão, em
que a vontade do intérprete tem um peso reduzido. A propósito, o debate sobre os limites que
sujeitam os aplicadores do Direito em sua atividade judicante só faz sentido em ordenamentos
constitucionais estruturados sobre a fórmula de separação dos poderes.
Conceituada a expressão ativismo judicial, passa-se à sua explanação nos sistemas
romano-germânico e anglo-saxônico, tendo em vista que, repita-se, a maneira como se
desenvolveu o ativismo judicial nos países que adotam o sistema da common law foi diversa
da dos países filiados à civil law, devido às diferenças estruturais existentes entre esses
principais sistemas jurídicos vigentes atualmente.
1.2
ATIVISMO JUDICIAL EM SISTEMAS DE COMMON LAW E CIVIL LAW
Nos países da família anglo-saxônica, a jurisprudência é a principal fonte do Direito. É
o caso dos Estados Unidos e da Inglaterra, por exemplo. Nesses países, a decisão judicial
presta-se a duas funcionalidades. Uma delas liga-se ao caráter de definitividade (coisa
julgada) e a outra consiste no valor de precedente conferido às decisões judiciais. Somente às
decisões da Corte de apelação atribui-se o valor de precedente, visto que os juízos de 1º grau
não geram precedentes, que, por sua vez, obrigam o tribunal ou os juízes subordinados à
Corte de apelação. Os precedentes para a família common law equivalem à lei e à
Constituição para o sistema romano-germânico.11
No sistema anglo-saxônico, os órgãos julgadores verificam a adequação do precedente
ao caso concreto, após submetem-no a um processo de interpretação para delimitar os efeitos
da norma e, caso o precedente se mostre inaplicável à demanda em apreciação, o julgador
decide com respaldo nos princípios gerais, na equidade ou no raciocínio linear,
semelhantemente ao procedimento de integração de lacunas nos sistemas de civil law. Caso a
decisão inovadora provenha de uma Corte de apelação tornar-se-á um precedente.12
A integração de lacunas no common law assemelha-se à atividade legiferante. O
mesmo não se pode dizer da integração de lacunas no civil law que não cria leis, vez que as
11
12
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 105-106.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 106.
22
decisões judiciais são desprovidas de generalidade, eis que se aplicam apenas a um caso
individual colocado à sua apreciação.
O sistema romano-germânico, marcado pela codificação do Direito, a partir do século
XVIII, é o mais difundido no mundo. Destaca-se o imperativo da escrita, em contraposição à
oralidade reinante na família anglo-saxônica. Caracteriza-se também pela generalidade das
normas jurídicas, aplicadas pelos juízes aos casos concretos, diferindo do sistema common
law, que infere normas gerais a partir de decisões judiciais proferidas a respeito de casos
individuais. Assinaladas algumas diferenças entre os dois sistemas jurídicos, cabe analisar a
forma como se originou o ativismo judicial, em alguns países de cada família do Direito.
O ativismo desenvolveu-se significativamente nos Estados Unidos da América, devido
a seu peculiar constitucionalismo e à importante missão confiada à Suprema Corte. Uma das
marcas do ativismo nos Estados-Unidos é a revisão judicial, por meio da qual o Estado exerce
políticas públicas.
Na família anglo-saxônica, em relação à família romano-germânica, sempre houve
maior proximidade entre a função jurisdicional e a atividade legiferante no que tange à
produção de normas jurídicas. Os tribunais ingleses e estadunidenses desempenham o papel
de regular comportamentos futuros e de revogar os precedentes. Nesses países as leis só são
completamente integradas ao Direito quando aplicadas por decisões judiciais13.
Apesar da aproximação entre as atividades do magistrado e do legislador na família
anglo-saxônica, é inegável a diferença entre a função exercida por um e outro, já que o
objetivo do Judiciário é a composição de conflitos de interesses, predominando a vertente
aplicativa em detrimento da prescritiva. A prova disso é que, ainda que haja liberdade de
interpretação diante de textos repletos de conceitos amplos e indeterminados, o magistrado
terá sempre a obrigação de motivar as suas decisões, por meio da argumentação jurídica e
técnica.
Segundo Elival da Silva Ramos, no sistema de common law adota-se uma
conceituação ampla de ativismo judicial, que envolve a atividade interpretativa do aplicador
oficial do Direito ou a integração de lacunas, bem como as situações em que o magistrado
extrapola os limites impostos pelo legislador.14
É comum enaltecer-se o ativismo por promover a adaptação do Direito às
contemporâneas exigências sociais e axiológicas. O passivismo não é o melhor caminho a ser
seguido. A sociedade não deseja o engessamento do Judiciário. Tendo em vista que no
13
14
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 107-108.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 109-110.
23
common law o Poder Judiciário é extremamente ativo no processo de geração do Direito, são
consideráveis as dificuldades em identificar parâmetros no plano da dogmática jurídica que
permitam encontrar abusos ao ordenamento jurídico. A discussão, nos Estados Unidos, por
esse motivo, passa para a dimensão da filosofia política. Questiona-se a legitimidade da
atuação pró-ativa do Poder Judiciário, levando-se em conta os ideais democráticos do sistema
político estadunidense.15
É cediço que o ativismo judicial não é uma expressão exclusivamente norteamericana, tendo se mostrado recorrente nos países de civil law, não obstante a generalidade
das constituições analíticas. A crescente criatividade da função judiciária é sentida em ambos
os sistemas, tanto no common law quanto no civil law. Uma teoria que contribuiu para o
florescimento do ativismo em países da linha romano-germânica foi o neoconstitucionalismo,
marcado por textos constitucionais de expressivo conteúdo valorativo, abrindo espaço para
uma metodologia interpretativa apoiada em princípios constitucionais, legitimadores do
Estado do bem estar social.
O Estado do bem estar social erige o Direito como um instrumento de concreção do
trabalho político e do interesse geral. Diante dessa complexa conjuntura social, o Direito se vê
obrigado a buscar novos horizontes, desaguando em práticas ativistas. Assim sendo, o
fenômeno transcende o Direito norte-americano: acaba por alcançar a quase totalidade dos
países optantes pelo constitucionalismo ocidental.
Na verdade, a experiência histórica européia implica menor estranhamento em relação
ao ativismo judicial, tendo em vista que o Estado europeu se desenhou, ao longo da história,
de forma mais onipresente (resquício do feudalismo), se comparado aos Estados Unidos da
América, onde o liberalismo atingiu proporções colossais.
No caso específico da Alemanha, campo fecundo de teorizações a respeito de
metodologias de interpretação, a Hermenêutica constitucional favoreceu a edificação de uma
ordem de valores, fundados na garantia de direitos fundamentais, abrindo espaço para práticas
ativistas. A Corte constitucional alemã passou a fazer parte do rol das entidades encarregadas
pela direção do Estado, procurando, todavia, suavizar os impactos políticos de suas decisões,
com o fim de evitar interferências na atuação do legislador, em conformação ao princípio da
separação dos poderes. Nesse sentido, quando o legislador é deficiente em sua atuação, a
Corte limita-se a adverti-lo, para que corrija suas falhas por intermédio da atividade
15
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 110.
24
legiferante. Ao declarar a inconstitucionalidade de uma norma, a Corte apenas adverte o
legislador sobre a possível revogação, caso não haja retificação legislativa.16
Na Itália, a criação da Corte constitucional, o imperativo de superação de uma
legislação anterior que não se aderia à Constituição e a extensão da aplicação do princípio da
igualdade constituíram-se em fatores de impulsão do ativismo judicial. Nesse cenário,
consagraram-se as sentenças interpretativas e aditivas, além da modulação de efeitos das
decisões de controle. A teoria do Direito vivente proporcionou parâmetros para a prática do
ativismo judicial.17
O tribunal constitucional espanhol funciona como importante vetor de equilíbrio da
equação das forças políticas. Na Espanha, o desenvolvimento jurisprudencial de técnicas de
provimento de modo a concretizarem-se atividades transcendentes da mera confirmação de
validade ou nulidade dos atos controlados constitui-se em real manifestação ativista. Quando
há baixa densidade de normas, a atividade interpretativa goza de maior liberdade, o que abriu
espaço, no Direito espanhol, para o desenvolvimento de sentenças interpretativas e aditivas.
As zonas de tensão surgidas entre os três poderes funcionam como limite a excessos do
Judiciário. Não se admite que o aplicador oficial do Direito seja, no seu ofício, guiado por
convicções pessoais ou políticas.18
Notório é que o ativismo cuida-se de um fenômeno mundial, sendo que numerosos
fatores de impulsão podem ser apontados. Assinaladas algumas considerações sobre o Direito
comparado, é momento de conhecer as causas do desenvolvimento do ativismo judicial no
Brasil.
1.3
FATORES DE IMPULSÃO DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL
A recente jurisprudência dos tribunais brasileiros demonstra o recrudescimento do
ativismo judicial no Brasil. Importa conhecer as causas do fenômeno.
16
VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório
de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 27-29.
17
VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório
de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 29-30.
18
VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório
de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 31-32.
25
1.3.1 Modelo de Estado Constitucional Brasileiro
O modelo de Estado Constitucional brasileiro, consolidado desde 1934, é o Estado
Democrático Social Intervencionista. O sistema político democrático brasileiro não é o de
padrão liberal clássico e sim o do Welfare State, realidade que fica patente no conteúdo dos
objetivos fundamentais da República; no largo rol de direitos sociais; na variedade de
atividades econômicas de responsabilidade estatal e nos numerosos mecanismos de
intervenção no domínio econômico.19
É claro que a Constituição de 1988 não se pretende socialista, mas traz em seu bojo
uma preocupação com a concretização social, por intermédio da prática de direitos sociais e
do exercício de mecanismos em prol da cidadania, com vistas a realizar o Estado de Direito,
que comunga com o princípio da dignidade da pessoa humana.
O Estado Social Democrático é fundamentalmente atuante, a ponto de impulsionar o
desenvolvimento econômico e social, por intermédio da atividade legiferante – afinal,
continua sendo Estado de Direito, tendo o princípio da legalidade como vetor –, o que
fomentou o fortalecimento do Legislativo; o Executivo, por sua vez, passou a produzir atos de
natureza normativa. O resultado é o agigantamento do Legislativo e do Executivo. Diante
disso, o Judiciário posiciona-se como um terceiro gigante.
Aliás, esse é um dos motivos pelos quais não se pode afirmar que o ativismo judicial,
dentro de parâmetros normativos, esteja a ameaçar a estrutura de separação dos poderes.
Nota-se, na verdade, aumento das atribuições do Estado, em relação a todas as funções por ele
exercidas, inclusive a administrativa e a legislativa. Ocorre que esse largo rol de encargos foi
distribuído pela Constituição entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Se os dois
primeiros são omissos ou se atuam com desvio de finalidade ou excessos, incumbe a este
último fazê-los operar em consonância como ordenamento jurídico. Portanto, o Judiciário é
competente para proceder ao controle jurídico da atividade dos demais poderes.
Além disso, a sociedade espera do Judiciário a concretização dos institutos jurídicos
protegidos pela Constituição, máxime os direitos e garantias individuais e coletivos. Nesse
contexto, o mínimo existencial deve ser garantido e abarca as exigências de um salário
mínimo, nacionalmente unificado; a organização de um sistema de previdência social, de
19
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 268.
26
caráter contributivo e de filiação obrigatória; o acesso universal e igualitário ao sistema único
de saúde e o acesso, universal e gratuito, ao ensino fundamental obrigatório, rol de previsões
contidas em regras constitucionais20.
1.3.2 Expansão do controle abstrato de normas
O Estado Social Democrático, para cumprir seu propósito, precisa ser fortalecido, o
que não prescinde de poderes atuantes. As múltiplas funções do Estado convergem para a
produção legislativa, porquanto, mantida a subordinação à lei, as funções de governo e de
planejamento da ação estatal fomentam a criação de atos normativos. O incremento das
atividades do Estado ocasionou o aumento da quantidade de leis, em regra, transitórias,
particulares, técnicas e com menor padrão de qualidade. Nesse contexto, o controle judicial de
constitucionalidade tornou-se uma solução para o problema da proliferação legislativa.21
Pois bem, outro fator de impulsão do ativismo no Brasil é a expansão do controle
abstrato de normas, em que a decisão judicial é emitida com efeitos gerais, expressando a
proximidade do ofício judicial com o exercício da função legislativa. Ademais, as normas
utilizadas como balizas para se proceder ao controle de constitucionalidade são, no mais das
vezes, normas-princípio, cujo conteúdo elástico permite ao órgão julgador maior liberdade
interpretativa.
O controle abstrato de normas foi introduzido no Direito brasileiro pela emenda nº 16,
de 1965, à Constituição de 1946. De lá pra cá, esse mecanismo vem sendo ampliado, seja pelo
aditamento do rol de legitimados ativos, seja pela criação da arguição de descumprimento de
preceito fundamental (ADPF) ou, ainda, pela elaboração da ação direta declaratória de
constitucionalidade (ADC).22
20
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 271-272.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 274-275
22
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 276.
21
27
1.3.3 Atividade normativa atípica
Conforme assinalado, o Judiciário se vê imbuído da tarefa de promover o controle
jurídico das funções legislativa e administrativa, além de efetivar plenamente a Constituição
social-democrática de 1988, razão pela qual, por vezes, acaba assumindo atividade normativa
atípica, como é o caso do mandado de injunção (MI) e da edição, pelo Supremo Tribunal
Federal (STF) de súmula vinculante, propulsores do ativismo.
A súmula vinculante foi introduzida na Constituição da República pela reforma do
Judiciário, operada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, que trouxe a redação do art.103A, nos seguintes termos:
O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão
de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria
Constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial,
terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à
administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal,
bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
(Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide Lei nº 11.417, de 2006).
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas
determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos Judiciários ou
entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e
relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do
que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula
poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de
inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a
súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo
Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará
a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a
aplicação da súmula, conforme o caso.23
A Lei nº. 11.417, responsável pela integração eficacial do mencionado artigo, foi
editada em 2006. O STF aprovou trinta e uma súmulas vinculantes desde então. A expedição
de súmula vinculante condiciona-se a requisitos formais e materiais. O conteúdo da súmula
deve envolver necessariamente matéria constitucional, abrangendo a constitucionalidade de
lei ou ato normativo das entidades federadas, a interpretação de dispositivo legal em face da
Constituição, a vigência de lei ou ato normativo diante da Constituição ou a eficácia de
dispositivo da Lei Maior.
23
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 103-A. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
28
As súmulas vinculantes, além de estamparem a orientação dominante do Supremo
Tribunal Federal acerca de determinado assunto, direcionam os órgãos administrativos e
Judiciários, na aplicação e interpretação das normas.
A súmula vinculante, cuja expedição pelo Supremo Tribunal Federal não é obrigatória,
podendo a Corte alterá-la ou cancelá-la, é um ato de aplicação do Direito, mas não deixa de
ser um ato de criação. Todavia, a liberdade do julgador ao expedir súmula vinculante é
inferior à do legislador ordinário. A propósito, essa atividade criativa conhece limites, a saber,
restringe-se a fornecer aos órgãos administrativos e judiciais uma orientação das reiteradas
decisões da Corte sobre a matéria sumulada.
A interpretação da súmula vinculante tem que ser restrita, devendo o juiz limitar-se ao
alcance do texto normativo, verificando se o caso concreto nele se encaixa. Caso positivo,
aplicará a súmula. Em caso negativo, não a aplicará, devendo motivar sua decisão.
Destarte, a súmula vinculante traz à tona a equiparação valorativa entre o precedente
judicial e a norma legal. Não se trata de ato legislativo, por atuar a súmula em nível
hierárquico subalterno ao da função legislativa. De outra sorte, as súmulas são
hierarquicamente superiores aos regulamentos de execução, com os quais, mais
aderentemente, assemelham-se, já que os dois são atos veiculadores de normas gerais
abstratas de nível secundário, obrigam a alguns e não a todos.24
Essa nova figura foi instituída a fim de eliminar a insegurança jurídica resultante das
controvérsias entre órgãos judiciários ou entre estes e a Administração Pública, além de
reduzir a sobrecarga de trabalho, finalidades que restaram atendidas. Entretanto, juízes e
tribunais ainda podem decidir de maneira contrária às súmulas, acerca da constitucionalidade
de leis e atos normativos.
O artigo 103-A, § 3º, da Constituição da República de 1988, disciplina que contra o
ato administrativo ou a decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que a aplicar de
forma indevida caberá reclamação ao STF, que a julgando procedente, anulará o ato
administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, determinando que outra seja proferida
com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. A súmula se traduz numa forma de
atribuir eficácia geral às decisões proferidas pelo Supremo, na via incidental de fiscalização.
O Ministro Gilmar Mendes, do STF, apresentou à imprensa, em entrevista coletiva,
dada em 19/12/2008, relatório de atividades do Supremo Tribunal Federal, alusivo ao ano de
24
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 297.
29
2008, no qual constava que houve diminuição de cerca de 40% (quarenta por cento) no
volume de autos de processos distribuídos aos relatores. 25
Esses dados revelam a efetividade das súmulas, ao permitirem que com uma carga
menor de trabalho, a Corte constitucional possa melhor cumprir sua missão institucional. Em
contrapartida, na medida em que podem ser objeto de interpretação, as súmulas fomentam
dissídios de interpretação, que desaguarão no STF, face a previsão do artigo 103-A, § 3º, da
CR.
O professor Elival da Silva Ramos aponta dois efeitos deletérios das súmulas
vinculantes, a saber, o enrijecimento da interpretação em matéria constitucional e o
incremento do ativismo judicial, por vislumbrar aqui proximidade entre a atividade judicial e
a legiferante, o que, para o autor, acaba por ruir, lentamente, as bases do princípio da
separação dos poderes.26
Entretanto, não é aconselhável extremar-se qualquer posicionamento que seja. Ora, as
súmulas vinculantes trazem efeito sadio, que é a uniformização das decisões. A sociedade não
espera que o tratamento judicial seja desigual. Impera haver certa conformação e unidade
entre as decisões judiciais. Isso não implica engessamento da interpretação constitucional.
Prova disso é que a mesma lei é aplicada a todos indistintamente e isso não impede o trabalho
criativo dos tribunais, que, aliás, vem se acentuando cada vez mais. Não fosse assim, o termo
ativismo judicial não estaria tomando a cena das discussões jurídicas, este, por sua vez, se
praticado em harmonia com a Constituição da República, viabiliza o fortalecimento do Estado
de Direito. Portanto, a palavra de ordem é equilíbrio, o que se vislumbra no discurso do
próprio Elival da Silva Ramos:
Cabe à crítica doutrinária auxiliar o Poder Judiciário a encontrar o equilíbrio entre a
ousadia e criatividade, imprescindíveis à tarefa de concretização de uma
Constituição social-democrática, e a observância dos limites decorrentes da
adequada interpretação do próprio texto que se pretende ver transformado em
realidade.27
O mandado de injunção, assim como a súmula vinculante, pode ser indicado como
atividade normativa atípica do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que ambos, após
editados, atuam como texto normativo a serem aplicados e interpretados. Destarte, tanto na
25
MENDES, Gilmar Ferreira, 2008 apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos.
São Paulo: Saraiva, 2010. p. 298.
26
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 300.
27
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 274.
30
súmula vinculante quanto no mandado de injunção, o Judiciário produz norma, neste último
caso, destinada a suprir omissão.
Até recentemente o STF recusava-se a exercer competência normativa no âmbito do
mandado de injunção; equiparava o instituto à ação direta de inconstitucionalidade por
omissão (ADIO). É certo que, conquanto limitadamente, em algumas situações o STF havia
admitido a possibilidade de aplicar provisão normativa para o caso concreto, o que ocorreu
nos mandados de injunção nº. 283-4/400, 284-3/400, 543-5/DF, 562-9/RS e 232-1/400.28
Segundo esse posicionamento, caberia ao órgão julgador remover o obstáculo
consistente na ausência de regulamentação, formulando os preceitos a serem observados para
a efetivação da norma constitucional no caso concreto, sem estendê-la para casos
semelhantes. Para alguns doutrinadores da corrente concretista, essa remoção de obstáculo
deveria ser feita por meio da formulação de regulamentação supletiva, válida apenas para o
caso concreto e que fixasse os contornos necessários para o exercício do direito, liberdade ou
prerrogativa até então não fruído por seu titular, ao passo que para outros concretistas, o órgão
julgador deveria determinar que o obrigado satisfizesse o direito objetivo do impetrante.
No julgamento dos mandados de injunção nº. 670-9/ES, 708-0/DF e 712-8/PA29,
referentes à mora congressual na regulamentação do direito de greve do servidor público (art.
37, VII, da CR/1988), a Corte evoluiu e passou a assumir que lhe cabe proceder, subsidiária e
provisoriamente, à regulamentação do modo do exercício do direito com eficácia geral.
O Judiciário não seria responsável por definir uma norma de decisão, mas por enunciar
o texto normativo faltante para tornar viável o exercício de greve dos servidores públicos.
Essa virada jurisprudencial, amparada na textualidade do dispositivo legal, é nitidamente
ativista, com o fim de cumprir o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais.
1.3.4 Neoconstitucionalismo
O neoconstitucionalismo, caracterizado pelo debate sobre a força normativa da
Constituição, é uma importante teoria para o discurso de legitimação das práticas ativistas. É
28
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandados de injunção nº. 232-1/400, 283-4/400, 284-3/400, 543-5/DF
e 562-9/RS. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 30/10/ 2010.
29
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandados de Injunção nº. 670-9/ES, 708-0/DF e 712-8/PA.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 30/10/ 2010.
31
responsável pela consolidação do Estado Constitucional de Direito, propugnando a
valorização dos direitos fundamentais, o diálogo entre Direito e ética e a garantia da
estabilidade e do dinamismo do sistema político democrático, a partir de constituições
documentais e rígidas, que passaram a ser principiológicas, o que resulta na atuação pró-ativa
do aplicador oficial do Direito. Isso porque os princípios giram em torno de enunciados
abertos, indeterminados e polissêmicos, pelo que sua interpretação é um convite à criatividade
na aplicação das normas constitucionais.
O neoconstitucionalismo, com certo viés moralista, valoriza os princípios
constitucionais no âmbito da Teoria da Interpretação, de forma a entender que devem ser
aplicados em detrimento das regras. Os princípios passam a ser tratados como Direito,
reconhecendo-se sua hegemonia em relação às regras, visto que são vetores dos ideais de
justiça, de equidade e de sensibilidade perante o caso concreto, contrapondo-se às regras, que
são precisas e frias.
Na verdade, tendo em vista o aspecto sistêmico do Direito, quando o julgador decide
amparado em princípios e fundamentando sua decisão não há desrespeito às regras, pois deve
existir necessária harmonia e conformação entre princípios e regras.
Em resumo, as teorias neoconstitucionalistas são marcadas por sua interação com os
valores e princípios jurídicos, cuja operacionalização alcança-se por meio do método da
ponderação e da argumentação jurídica, imbricada de ética ou moral, fornecendo substrato
teórico denso para a impulsão do fenômeno do ativismo, notadamente na dimensão da
promoção dos direitos fundamentais.
A consolidação do Estado Constitucional de Direito ocorreu em momentos históricos
desencontrados em cada sociedade jurídica, comumente, coincidindo com a solidificação da
democracia. Sendo assim, não se pode afirmar que o novo constitucionalismo, marcado pela
proposta de ampliar a jurisdição constitucional, assim como desenvolver uma nova dogmática
de interpretação constitucional, é um movimento característico do final do século XX.30
O histórico brasileiro não permite designar propriamente um clássico e um novo
constitucionalismo, mas um processo de marchas e contramarchas para a inserção do Estado
Constitucional de Direito e a consolidação da democracia. No entanto, as elucubrações
neoconstitucionalistas não deixam de fornecer subsídio teórico para práticas ativistas no
Brasil.
30
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 280.
32
1.3.5 Omissão dos Poderes Legislativo e Executivo
Por vezes, o Legislativo e o Executivo, não obstante o aumento de atribuições previsto
na Constituição de 1988, são omissos quanto ao cumprimento de suas missões institucionais.
Essa realidade afigura-se como outro fator de propulsão do ativismo no Brasil. Não
raramente, o Congresso Nacional deixa de concretizar, via função legislativa, temas
constitucionais. Essa postura força o Judiciário a um posicionamento mais ativo. Um exemplo
emblemático disso é o direito de greve do servidor público, que, sem a devida
regulamentação, ordenada pela Constituição, foi objeto de remédio injuncional, várias vezes,
até que o Supremo Tribunal Federal acabou por regular diretamente a matéria.
Diante desse cenário, os doutrinadores divergem em relação ao ativismo. Ninguém
discorda da realidade da omissão do Executivo e do Legislativo e da ingerência do Judiciário
em questões políticas e sociais, que, num primeiro momento, seriam do âmbito de
competência do administrador e do legislador. Todavia não há consenso acerca de como
precisa se dar o enfrentamento do problema.
Para quem entende que o Judiciário deve ser atuante nas questões sociais, não podendo
assumir posição passiva diante da sociedade, e sim exercer o papel de guardião garantidor da
efetividade constitucional, o ativismo judicial é visto com bons olhos.
Entretanto, parte da comunidade jurídica teme que o alargamento do ativismo judicial
possa abalar o princípio da separação dos poderes, esposado pela Constituição da República,
comprometendo, por consequência, o próprio Estado Democrático de Direito. Nesse sentido,
há quem entenda que o Direito não deve intervir na política e na sociedade, defendendo que a
superação do problema da crise da efetividade dos institutos balizadores do Estado de Direito
deve ser alcançada unicamente por meio do princípio democrático – deliberativo.
Em face de posições tão antagônicas, é salutar explicitar as elaborações teóricas de
algumas escolas doutrinárias, de forma a vislumbrar-se fundamento dogmático apto a fazer
frente às novas exigências do Estado de Direito.
1.4
CRÍTICAS DOUTRINÁRIAS A RESPEITO DO ATIVISMO JUDICIAL
33
É pressuposto teórico da compreensão das críticas doutrinárias ao ativismo judicial a
abordagem das escolas da Ciência Jurídica. Esse estudo exige o olhar detido dirigido ao
positivismo jurídico, enquanto modelo de compreensão do Direito. Na visão de grande parte
da comunidade jurídica, o positivismo estaria superado pelo pós-positivismo, o qual inclui no
tradicional positivismo o estudo e a combinação de relações axiológicas, normativas e sociais,
aspectos da nova Hermenêutica, preocupada com a efetivação das constituições
principiológicas.
O positivismo em sentido estrito do século XIX, momento histórico de
supervalorização das ciências e dos métodos, pensou o Direito como um conjunto sistêmico
de normas, sem considerações axiológicas, filosóficas ou sociológicas a seu respeito, mas com
consciência de seu viés ideológico. Nessa esteira, o positivismo seria espécie de método
científico para a Ciência Jurídica.
Para o positivismo estrito, a validade do Direito ancora-se unicamente nos elementos
de sua estrutura formal, independentemente de seu conteúdo. Entretanto admite-se que as
normas jurídicas regulamentam condutas intimamente ligadas a juízos de valor. Dessa forma,
no momento da compreensão, da interpretação e da aplicação das normas há um
comportamento valorativo do sujeito, mas não uma conformação perfeita entre Direito e
moral.31
O positivismo jurídico em sentido estrito estuda o Direito a partir de três elementoschave. O primeiro é a coação. Contudo, a visão clássica de que a coação está intrinsecamente
ligada ao fenômeno jurídico, permitindo até mesmo identificá-lo, foi superada por uma
abordagem moderna, pela qual a coação é objeto do Direito, podendo este daquela prescindir.
O segundo elemento é a lei com primazia em relação às demais fontes do Direito. No entanto,
a base desse elemento está na preponderância do Direito estatal, que, na maioria dos
ordenamentos dos estados contemporâneos, contempla uma estrutura complexa de
hierarquização. Com a consolidação da tônica do controle de constitucionalidade, a
Constituição (não a lei) passou a gozar de hegemonia em relação às outras fontes de produção
do Direito. O terceiro elemento - chave da construção da teoria positivista é a imperatividade
do Direito, noção criticada no âmbito da própria dogmática do positivismo jurídico. Para
Hans Kelsen, grande expoente do positivismo jurídico, por exemplo, o Direito estaria mais
31
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 36.
34
ligado à coatividade do que à imperatividade. Ademais, o imperativo da norma não seria
dirigido aos jurisdicionados, mas aos magistrados.32
A noção de ordenamento jurídico é elemento identificador da Ciência Jurídica, visto
que o Direito compreende um plexo de normas integradas em um sistema lógico, tendo a
coerência e a completude por missão manter a unidade sistêmica. Sendo assim, o juiz não
pode inovar, criando o Direito, além de estar proibido de não apresentar a solução para o caso
concreto alegando a inexistência de previsão legal. A doutrina evoluiu e passou a reconhecer
que a coerência e a completude não são aspectos umbilicalmente ligados ao Direito. Certo é
que um ordenamento jurídico não se configura sempre coerente, já que podem existir duas
normas em seu bojo, ambas válidas, mas incompatíveis entre si.
O modo de pensar o Direito do positivismo em sentido estrito do século XIX
reprovava práticas ativistas, por parte dos juízes, que deveriam ser meros aplicadores do
Direito, sem ocupar-se de qualquer trabalho criativo.
Naquele momento histórico, o receio do agigantamento do Judiciário era justificável.
É de se esperar que em uma sociedade comprometida com a contenção do poder – em reação
aos descomedimentos do absolutismo monárquico – e com a eliminação dos privilégios
feudais a lei seja a solução ideal, pois, associada ao sistema da separação de poderes, suprimia
o arbítrio governamental e garantia a todos a igualdade de diretos.
Portanto, a sociedade européia, temendo o retorno do autoritarismo reinante no século
XVIII, supervalorizava o governo submetido à lei. Seria inadmissível regressar ao governo
dos homens, tendo o magistrado em substituição à figura do monarca. Com efeito, o
magistrado, ao ser atuante, poderia estar na defesa de seus próprios interesses. Ainda mais
quando se tratava de ativismo em que se permitia ao juiz julgar conforme convicções
pessoais, sem qualquer vinculação ao Direito objetivo.
O monarca submetido à lei – e não se situando acima dela – era uma conquista
recente, assim como a lei enquanto primado de fonte do Direito e expressão da vontade geral,
aplicável a todos indistintamente. Confiar poderes expressivos, e aí se inclui liberdade de
interpretação e de criação do Direito, ao magistrado implicava o risco de criar outro déspota,
compromissado com seus interesses pessoais e não com o bem estar da sociedade.
Por isso a comunidade européia ocupou-se em emancipar-se politicamente, por
intermédio das teorizações jurídicas do século XIX, que possibilitaram uma neutralização dos
interesses, exigida pela separação dos poderes e pela autonomia do Judiciário, na construção
32
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 38-40.
35
da Ciência jurídica. Nesse cenário, o positivismo jurídico não se dedicou à questão da
interpretação e da aplicação do Direito.
O doutrinador Elival defende que a validação do positivismo, enquanto modelo de
compreensão do Direito, pode ser mantida, desde que integradas as lacunas teóricas no plano
da Hermenêutica, já que viável uma convivência harmônica entre o positivismo estrito e a
teoria da interpretação. Explica que não é da essência do positivismo desnudar-se totalmente
da dimensão fática e axiológica do Direito. Afirma que nem mesmo Kelsen pregou um
positivismo nessas proporções. Assevera que se eliminada a associação entre positivismo e
subsunção mecânica e afastada a referência a uma ordem de valores externa ao sistema
jurídico não há porque não se afirmar a perfeita compatibilidade entre as construções mais
recentes da teoria da interpretação e o positivismo jurídico, para o qual a objetividade dos
textos normativos, no processo interpretativo, não pode ser ilidida pelo aplicador oficial do
Direito, ainda que apoiado em justificativas sociais, filosóficas ou valorativas.33
O estudo de todas as correntes que pretenderam superar o positivismo aponta a
existência de duas orientações diversas. Nota-se uma versão sociológica cujo objeto de estudo
é o fato social, e uma filosófica, identificando-se, por vezes, com o tradicional jusnaturalismo.
As vertentes sociológica e filosófica do Direito, cada uma ao seu modo, ao contrário do
positivismo, são favoráveis ao ativismo judicial.
O realismo jurídico é uma importante teoria da orientação sociológica, surgido a partir
da década de 20 do século XX. Já foi dito que a Constituição passou a ser o primado de fonte
do Direito. E nota-se que os Estados Unidos, após a segunda metade do século XX,
começaram a viver um período em que os juízes que diziam o que era a Constituição, tamanha
era a liberdade de interpretação. Sendo assim, a primazia de fonte de Direito passa a ser a
jurisprudência, em verdadeira inversão.34 É claro que parte dos doutrinadores insurgiu-se
contra isso, indicando que a Corte constitucional deveria atuar apenas em casos concretos,
tendo o dever de não se imiscuir na vida política, além de usar a revisão judicial apenas
quando extremamente necessário.
Registre-se que o realismo jurídico não prega a desvalia das fontes estatais de
produção do Direito, acredita, no entanto, que o Judiciário também cria o Direito. Mais que
isso, o Direito só nasce após a sua concretização pelo magistrado, o que ocorre quando da
prolação de uma decisão.35
33
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 58-61.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 47.
35
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 75.
34
36
A jurisprudência sociológica foi um movimento teórico que se desenvolveu
paralelamente ao realismo jurídico, podendo ser vista como uma corrente intermediária entre
o positivismo em sentido estrito e o realismo, na medida em que apregoava a necessidade de o
magistrado não ser um mero reprodutor de leis, não obstante reconhecer que a atividade
criadora do juiz devia conhecer limites.36
As escolas doutrinárias que tentaram conciliar Direito e moral (filosóficas) não
chegaram a propor um retorno à dogmática jusnaturalista. A validade ética não deveria se
conformar inteiramente com a validade formal como defendiam os jusnaturalistas, mas
tratava-se ora de um objetivo a ser perseguido, ora de uma tendência irrefreável.37
Os defensores da vertente filosófica do Direito, responsáveis pela elaboração do
neoconstitucionalismo, professam ampla liberdade de interpretação ao aplicador das normas,
máxime em textos legais repletos de conceitos indeterminados ou de princípios. Essa
liberdade de movimentação é premente no Direito, desde que o magistrado, no seu ofício de
julgar os casos concretos, escolha qualquer dos caminhos possíveis, necessariamente
apontados pela lei.
A filosofia do Direito contemporâneo, notadamente a partir de meados do século
passado, viabilizou a abertura da disciplina aos valores éticos e políticos, teorização dos
neoconstitucionalistas. Por outro lado, correntes filosóficas possibilitaram o contato do
Direito com o mundo empírico, valorizando a tônica normativa fincada na realidade social,
construção teórica do pragmatismo jurídico. Por oportuno, registre-se que as principais teorias
legitimadoras do ativismo são justamente o neoconstitucionalismo e o pragmatismo jurídico,
esboçados pela dimensão filosófica do Direito.
O neoconstitucionalismo, tendo como principais representantes Robert Alexy, Ronald
Dworkin e Carlos Santiago Nino, faz uma leitura moralizante da Constituição, onipresente e
expansionista, concebendo-a como uma ordem material de valores. A Constituição
caracteriza-se, segundo essa corrente, pela eficácia irradiante dos direitos fundamentais, pela
argumentação jurídica e pela metodologia da ponderação. Preconiza-se um ativismo judicial
axiológico marcado pela argumentação jurídica cravada em princípios constitucionais. Já o
pragmatismo, corrente de pensamento surgida nos Estados Unidos, na metade do século XIX,
tendo como seus idealizadores Charles Sander Peirce e William James e, no século XX, John
36
37
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 48.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 49.
37
Dewey, apega-se à normatividade dos fatos e às consequências políticas, econômicas e sociais
da decisão, explicando que a verdade é o que funciona, o que é útil, o que apresenta valor.38
Feitas essas considerações sobre as críticas das escolas do Direito ao ativismo,
registre-se que embora se perceba ainda no século XIX, nas entrelinhas das elucubrações
teóricas sobre o Direito, as primeiras discussões a respeito do ativismo, o debate sobre o tema
robusteceu-se a partir do século XX. A doutrina estrangeira influenciou a incubação teórica
brasileira a respeito do ativismo, sobre o qual foram elaborados dois posicionamentos, um
substancial, outro formal ou procedimental.
O substancialismo, seguido por Mauro Cappelletti e Ronald Dworkin, defende a
extensão da atuação dos tribunais, que passam a exercer atividades típicas do Executivo ou do
Legislativo, protagonizando a cena das questões sociais. Os procedimentalistas, liderados por
Jurgen Habermas, Antoine Garapon e John Hartely, reprovam a intervenção do Direito na
política e na sociedade .39
No plano internacional, o ativismo judicial foi objeto de críticas não apenas no campo
doutrinário. É possível mencionar, pelo menos, três presidentes dos Estados Unidos que se
sentiram incomodados com a interferência, pelos juízes da Suprema Corte, nas políticas
públicas.
Franklin Delano Roosevelt, nos anos trinta do século XX, reprovava a ingerência da
Suprema Corte, no sentido de nulificar leis de intervenção no domínio econômico,
entabuladas no plano de políticas públicas do Executivo, conhecido como new deal. Anos
antes, Abraham Lincoln e Teodore Roosevelt reclamavam da atuação dos juízes, protestando
que as políticas públicas não deveriam passar pelo crivo destes últimos, sob pena de o povo
deixar de autogovernar-se, autogoverno esse entregue ao Executivo pelo povo.
Na Alemanha, tendo como ponto de partida a jurisprudência de sua Corte
constitucional, surgiram posições jurídicas, que passaram a entender cabível a ampliação do
olhar do Judiciário, podendo, inclusive, alcançar o mérito do ato administrativo, ao proceder
ao
controle
dos
atos
da
Administração,
aquilatando-lhes
a
razoabilidade
e
a
proporcionalidade. Por óbvio, mantinha-se a restrição formal à verificação da legalidade do
ato.40
38
VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório
de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. pp. 99/100.
39
MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009. p.49.
40
MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009, p.49.
38
Rubén Hernández Valle sustenta que a teoria da Constituição deveria fornecer ao
intérprete as categorias jurídicas que o impeçam de exercer poderes de natureza política, ou
seja, que limitem sua liberdade política de valoração, minando, assim, o ativismo judicial.41
No Brasil, um dos grandes críticos do ativismo judicial é o professor e procurador do
Estado de São Paulo Elival da Silva Ramos, ocupante de uma cadeira no departamento de
Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, autor da obra
Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, que aborda o ativismo exercido pelo STF, sem
deixar de reconhecer que a prática é comum também nas instâncias inferiores.
Para ele, há um aspecto negativo no tocante às práticas ativistas, por implicarem
descaracterização da atividade peculiar do Poder Judiciário, em prejuízo aos demais Poderes.
Entende que o ativismo ameaça especialmente o Poder Legislativo, o qual tanto pode ter sua
atividade legiferante irregularmente infirmada por decisão ativista, quanto o seu campo de
produção normativa invadido por decisões demasiadamente inventivas.42
Ora, se o Legislativo está oprimido, de um lado, pela edição desenfreada de medidas
provisórias por parte do Executivo, e de outro, pela prática ativista dos tribunais, a solução
não é reivindicar espaços, estes já alargados pela Constituição de 1988, mas começar a
cumprir sua função institucional.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Elival da Silva Ramos, declara que o
ativismo judicial é ruim independente do resultado, não podendo ser visto como uma coisa
natural. Afirma que não se pode, na interpretação do texto constitucional, reescrever seu
conteúdo, vez que o texto é um limitador objetivo. Explica que o ativismo decorre,
principalmente, da inércia do Legislativo. A solução seria melhorar o Congresso Nacional,
resultado alcançável por meio de reforma política, a mãe de todas as reformas. Para isso,
defende a implementação do parlamentarismo no Brasil, nos moldes da França e Portugal,
com as necessárias adaptações.43
O autor considera que o Supremo Tribunal Federal ultrapassou os limites fixados pelo
texto constitucional, nas decisões sobre perda de mandato por desfiliação partidária,
nepotismo, demarcação de reserva indígena e direito de greve do servidor público. Quanto ao
aborto de fetos anencéfalos, pendente de julgamento na ADPF 54, acredita que o STF irá
autorizar o aborto, postura que critica, por defender que o lugar próprio para que o aborto seja
41
VALLE, Rubén Hernández, [s.d.] apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos.
São Paulo: Saraiva, 2010. p. 26.
42
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.129.
43
RAMOS, Elival da Silva. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Entrevista concedida ao
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/>. Acesso em: 04/09/2010.
39
autorizado é no Código Penal. Acredita que o correto seria informar ao Congresso Nacional
que a legislação está atrasada e que ele deve tomar providências. Ao ser interpelado sobre a
justiça das decisões do STF, Elival assevera que não está discutindo o mérito, mas a forma, já
que as decisões foram justas, todavia, deveriam ter sido materializadas no espaço próprio, o
Legislativo.44
Arrazoe-se que o excesso de formalismo inviabiliza a efetividade dos dispositivos
legais e constitucionais. É lesivo para a democracia e para o Estado de Direito valorizar a
forma, em detrimento do mérito. Não há nada de efetivo na proposta de esperar por uma
reforma política, que depende da vontade de parlamentares, em sua maioria, sabidamente,
descomprometidos com a concretização do Estado Democrático de Direito. Impera adotar um
discurso menos dissociado da realidade social. O fato de uma reforma fazer-se necessária não
deve atravancar mudanças concretas, a serem operadas pelo Judiciário. Afinal, não é no
Judiciário passivo de outrora que a sociedade democrática contemporânea lançou suas
esperanças de renovação. Essa nova postura do Judiciário nasceu, dentre outros fatores, do
clamor social.
Repita-se que não se protesta aqui por um ativismo suplantador do texto normativo,
mas pela atuação vigorosa do Judiciário, aderente ao Direito. É claro que não existe
conformação perfeita entre Direito e lei. No exercício do Direito em movimento, devem ser
observadas as regras, mas também os princípios, a equidade, o fato social, a moral, o ideal de
justiça – e justiça é mérito –, conforme preconizado pelo direito positivo brasileiro. É o que se
extrai do artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil45. Nesse sentido, em suas decisões
recentes e acertadas, o Supremo Tribunal Federal tem sido ativista, sem descurar de estar em
harmonia com o Estado Democrático de Direito.
Quando indagado se o ativismo judicial seria de todo ruim respondeu que pode ser
positivo quando a jurisprudência ou a legislação está defasada em relação aos fatos e surge
uma interpretação criativa, mas de uma norma já existente. No entanto, não chama isso de
ativismo e sim de interpretação criativa, presa aos parâmetros normativos. Elival entende que
ativismo é quando o tribunal ultrapassa o limite do texto normativo e passa a criar. A prática
ativista rompe o equilíbrio existente entre a norma e a interpretação, explica.46
44
RAMOS, Elival da Silva. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Entrevista concedida ao
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/>. Acesso em: 04/09/2010.
45
BRASIL. Decreto-Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.
Art. 4º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
46
RAMOS, Elival da Silva. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Entrevista concedida ao
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/>. Acesso em: 04/09/2010.
40
Entretanto, quando o tribunal faz interpretação criativa está sendo ativo. Ativista não
implica necessariamente ultrapassar o texto normativo. O tribunal pode ser ativista e, ainda
assim, respeitar o ordenamento jurídico. Esse é o aspecto positivo do ativismo defendido
nesse trabalho.
Ao ser inquirido sobre como tornar efetivos direitos constitucionais carentes de
regulamentação, Elival respondeu que deveria ser conferida ao Legislativo maior eficácia, por
meio de uma reforma política, já que quem faz as reformas é a estrutura política. Discursa
sobre a necessidade de enxugar o calendário eleitoral e adotar o voto distrital, o que
abrandaria o número de partidos políticos no país, possibilitando-se o aumento da eficiência
do Parlamento.47
Finalmente, em sua entrevista, Elival esclareceu que apesar de o STF ser uma Corte
política, está proibido de praticar o ativismo, vez que o papel político aparece apenas quando
resolve uma questão política, mas sua atividade não pode assemelhar-se a do parlamentar. O
papel do STF é mais vinculado. Judiciário é corte política, mas é Judiciário e não Legislativo,
afirma.48
Não se pode negar que o ativismo judicial suplantador dos textos normativos apresenta
efeitos deletérios. Por outro lado, se o aplicador fica aquém do texto opera-se o passivismo,
igualmente indesejável. Logo, a solução é trilhar o caminho do equilíbrio – triunfante ao final
da maior parte dos debates jurídicos –, sem ampliar o ativismo judicial a ponto de ruir um dos
pilares do Estado Democrático brasileiro, a saber, o princípio da separação dos poderes – isso
resultaria da inobservância dos preceitos constitucionais –, e ao mesmo tempo, sem manietar
o dinamismo jurisprudencial em sua luta em favor da efetividade constitucional e,
consequentemente, do Estado Democrático de Direito.
O ativismo judicial deve ser expressão da aplicação da Constituição, observando os
limites traçados por ela. A atuação do Judiciário não pode ficar aquém nem além. A
Constituição da República já abalizou o caminho a ser seguido. Resta aplicar a adequada
interpretação aos ditames constitucionais.
A sociedade contemporânea pede um Poder Judiciário fiel à vontade do legislador,
mas, ao mesmo tempo, garantidor dos direitos assegurados pela Constituição da República
brasileira.
47
RAMOS, Elival da Silva. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Entrevista concedida ao
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/>. Acesso em: 04/09/2010.
48
RAMOS, Elival da Silva. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Entrevista concedida ao
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/>. Acesso em: 04/09/2010.
41
Examinado o processo histórico do ativismo judicial passa-se, no capítulo seguinte, ao
estudo do fenômeno à luz do Direito Constitucional brasileiro.
42
2
ATIVISMO JUDICIAL À LUZ DO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
É cediço que um Estado Democrático de Direito funda-se numa Constituição
hierarquicamente superior às demais normas do ordenamento jurídico. As constituições
adotadas pela maior parte dos Estados desenvolvidos, por sua vez, não se satisfazem com uma
democracia instrumental. Exigem, isto sim, uma sociedade livre e um Estado atuante. Com
vistas a alcançar esse propósito, o Poder Judiciário tem atuado de forma pró-ativa e vigorosa,
capitaneando as transformações desejadas pelo constituinte.
Tem-se verificado, até mesmo, um viés político na atuação do Judiciário,
consubstanciado em diversos institutos jurídicos previstos pela Constituição da República,
dentre os quais podem ser destacados a ação popular, o mandado de segurança coletivo, o
habeas data, a súmula vinculante e o mandado de injunção.
Diante da dinâmica atuação judicial, há quem se posicione favoravelmente ao
ativismo, como há quem seja contrário. Face esses dois extremos é salutar explicitar os limites
da atuação do Poder Judiciário, no plano da democracia que exige a sociedade brasileira, de
forma que consiga atender às novas reivindicações do Estado de Direito.
Nesse contexto, saber delinear a atuação do Poder Judiciário de forma a promover a
adequada aderência ao ordenamento jurídico é essencial para o alcance da efetividade e do
fortalecimento do Estado Democrático de Direito, bem como para a definição dos seus novos
contornos. A esse objetivo presta-se o presente capítulo.
2.1
ATIVISMO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: O PRINCÍPIO DA
SEPARAÇÃO DOS PODERES
O Estado Democrático de Direito surge a partir da judicialização do poder e pressupõe
a institucionalização deste, que passa a ser exercido pelos órgãos indicados na Constituição e
na forma por ela ordenada. O constitucionalismo trouxe proposta ainda mais ousada,
transformando o Estado submetido ao Direito em Estado Constitucional, dada a supremacia
43
formal e material das normas constitucionais, tendo como um dos seus principais elementos
estruturais a teoria da separação dos poderes.
Essa teoria foi formulada inicialmente antes do século XVIII, por Montesquieu,
idealizador do princípio segundo o qual as três funções do Estado deveriam ser atribuídas a
órgãos distintos, com independência institucional, gozando seus titulares de garantias
funcionais, desembocando-se num sistema de freios e contrapesos inibidor de abusos.
A justificativa assenta-se na comprovação histórica de que o poder nas mãos de uma
só pessoa acaba por ser desviado ou excedido. Nessa teorização, admite-se certo
compartilhamento de funções, com o objetivo de limitar o poder estatal, em prol da liberdade
individual. Afinal, a eficácia do Estado pressupõe a comunhão de atividades e o exercício de
múltiplas funções por um mesmo órgão.
A função típica de cada poder admite certo compartilhamento, ficando sempre
resguardada uma parcela essencial que não pode ser exercida por outro poder que não o
competente, sob pena de se configurar interferência indevida na alçada de outra instituição,
prática vedada pela Constituição de 1988. Logo, ao Judiciário está proscrito interferir nas
atribuições essenciais das outras funções estatais a ponto de descaracterizar-se.
Não existe uma separação absoluta de papéis. A uma função corresponde um titular
principal, restando proibido o avanço das fronteiras legalmente delimitadas; caso contrário,
haverá o esvaziamento das funções materiais atribuídas a outro poder. Ressalte-se que a
separação se dá entre as estruturas orgânicas que exercem o poder estatal, a partir de um
critério funcional, não se vislumbrando, por isso, quebra da unidade estatal, eis que o poder do
Estado é uno e procede do povo.
A Constituição brasileira de 1988 trouxe a previsão do princípio da separação dos
poderes em seu artigo 2º, pelo qual, “São Poderes da União, independentes e harmônicos
entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.49
A função jurisdicional é um instrumento de atuação do Direito objetivo, tendo em
vista que o processo judicial possui escopos sociais, revelados na composição de conflitos
intersubjetivos com vistas à pacificação social. As decisões judiciais são aplicações da norma;
sobrepuja, portanto, a tônica executória da jurisdição em prejuízo do seu aspecto inovador.
Ante essa natureza executória é forçoso aceitar que a aplicação do Direito é
concomitantemente produção do Direito. As decisões judiciais são criativas e inovadoras, seja
porque geram a norma de decisão, seja porque não se limitam a reproduzir o teor dos textos
49
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 2º. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
44
normativos, que são interpretados e adaptados ao caso concreto. Admita-se também que a
liberdade de criação confiada aos magistrados é substancialmente menor que a deferida ao
legislador. Se assim é, a atividade criadora do juiz deve conhecer limites, uma vez que este
não é legislador positivo.
Elival da Silva Ramos, com propriedade, explica que
[...] nos Estados democráticos a subversão dos limites impostos à criatividade da
jurisprudência, com o esmaecimento de sua feição executória, implica a deterioração
do exercício da função jurisdicional, cuja autonomia é inafastável sob a vigência de
um Estado de Direito, afetando-se, inexoravelmente, as demais funções estatais,
máxime a legiferante, o que, por seu turno, configura gravíssima agressão ao
princípio da separação dos Poderes.50
Atribui-se, com frequência, ao controle de constitucionalidade das leis e dos atos
normativos bem como à omissão legislativa a tensão entre os poderes provocada pela função
jurisdicional. De fato, as Cortes constitucionais comumente invalidam o ato legislativo (por
vezes, equivocadamente). Outras vezes, os magistrados agem como legislador positivo, com
vistas a suprir a omissão do Parlamento. É difícil comungar com esses desacertos – ainda que
não frequentes – face o caráter redentor assumido pela lei na esteira das revoluções que
puseram fim ao absolutismo monárquico.
Todavia, o controle da legalidade dos atos do Legislativo e do Executivo operado pelo
Judiciário é decorrência do modelo da separação dos poderes e do ideal de freios e
contrapesos, apto a limitar o poder público, até porque a justicialidade, da qual um Estado
submetido ao Direito não prescinde, exige a separação absoluta entre quem diz o Direito e
quem o executa. Além disso, o controle de constitucionalidade é corolário do princípio da
supremacia da Constituição.
A Constituição de 1988 ampliou significativamente o rol de atribuições do Judiciário,
em razão das novas exigências da sociedade contemporânea. Com isso, os parlamentares
sentem-se ameaçados na primazia do desempenho de sua função de legislar. A produção
legislativa tem sido prática não apenas do Judiciário, mas também do Executivo, por meio da
edição de medidas provisórias com força de lei, sem o menor sinal de arrefecimento.
Nesse cenário, parte da comunidade jurídica teme que o alargamento do ativismo
judicial possa abalar o princípio da separação dos poderes, esposado pela Constituição da
República, comprometendo, por consequência, o próprio Estado Democrático de Direito.
50
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 120.
45
Porém, a atuação do Poder Judiciário, quando pautada pelos ditames constitucionais,
não fere de forma nenhuma o princípio da separação dos poderes, pois o seu exercício implica
necessariamente a atuação firme e permanente dos demais poderes em benefício do bem estar
da sociedade, o que está determinado no próprio texto constitucional. E mais: concretizar a
Constituição, ofício de que se investe o Judiciário ativo, é primacial para a preservação do
sistema de separação dos poderes.
A Constituição previu amplas atribuições também aos demais poderes. Se estes ficam
omissos ou retardam injustificadamente o cumprimento de suas funções, o Judiciário,
provocado, não pode ficar contemplativo, pois, caso contrário, a omissão inconstitucional será
dele, e nada mais prejudicial à democracia e ao Estado de Direito do que a omissão
inconstitucional de um Poder a quem o povo confiou a guarda da Constituição e das leis.
A propósito, a conjuntura atual tem feito com que a teorização clássica da separação
dos poderes seja abandonada pelos Estados contemporâneos na forma como foi concebida
inicialmente. A crise do Estado e da função legislativa e os novos formatos de controle de
constitucionalidade têm engrossado uma perspectiva institucional mais maleável.
Diante da nova projeção do Judiciário poder-se-ia questionar a validade do sistema de
freios e contrapesos, da forma como idealizado por Montesquieu. Porém, o ativismo judicial
não inventa uma nova teoria, nem invalida o sistema mencionado, mas reinventa a percepção
a respeito da separação dos poderes, na qual prepondera a preocupação com a concretização
de direitos.
Ora, o poder é uno e emana do povo, sendo mais apropriado falar em funções
administrativa, legislativa e judicial. Já que o poder é do povo, o Estado, no exercício de suas
atribuições, seja legislativa, executiva, ou judicial, deve atuar em benefício do bem estar
geral. Se é a função judicial que irá cumprir esse propósito, que assim seja. O que não mais se
admite é que a sociedade se veja constantemente desprotegida, sem ter a quem recorrer.
É essa a grande contribuição do ativismo judicial respeitoso ao ordenamento jurídico,
na medida em que funciona como instrumento garantidor da efetividade e do fortalecimento
do Estado Democrático de Direito.
Assim sendo, o Judiciário precisa proporcionar a perfeita conformação entre a
criatividade intrínseca à jurisdição constitucional e o necessário respeito aos princípios do
Estado de Direito, dentre eles o da separação dos poderes, impedindo que o excesso
institucional revele-se nefasto à soberania popular e à participação política que dela decorre.
Com efeito, não se pode atribuir ao povo um papel secundário na concretização de uma
Constituição que se pretenda democrática.
46
Sobre o assunto, Elival da Silva Ramos sublinha que o Supremo Tribunal Federal
afirma que tem mantido sua atuação de forma a observar rigorosamente o princípio da
separação dos poderes na forma como foi formulado pelo Direito Constitucional brasileiro,
tendo em vista que o referido princípio não possui uma fórmula universal e completa. O
direito objetivo brasileiro tem a sua própria construção da teoria da separação dos poderes.
Não está adstrito, portanto, às experiências concretas de outros países.51
Por óbvio, a intenção do Judiciário não pode ser usurpar a competência do Legislativo,
mas levá-lo a cumprir seu papel, cujo fim último é a efetivação da Constituição.
As considerações acima expostas revelam a grande conexão existente entre o ativismo
e a concretização da Constituição. Mais que isso: a preocupação com a efetivação de direitos
previstos constitucionalmente é uma das maiores causas do desenvolvimento do ativismo
judicial. Essa temática será tratada com mais propriedade no próximo tópico.
2.2
APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO E ATIVISMO
A preocupação das Constituições contemporâneas relaciona-se mais intimamente com
a concretização dos valores substanciais da sociedade que com a preservação das regras
procedimentais.
Desse modo, o elenco dos direitos fundamentais – comumente redigido de maneira
vaga e indeterminada – faz menção a valores, a saber, liberdade, dignidade, igualdade,
democracia, justiça, etc. Por conseguinte, o juiz é titular da tarefa – bastante criativa – de
conferir conteúdo a tais preceitos, conceitos e valores, vez que está imbuído de fazer atuar a
Constituição, não podendo se afastar dessa missão.
Nos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da CR: “A lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário, lesão ou ameaça a Direito”.52 Em decorrência do princípio da
inafastabilidade da jurisdição, positivado por esse dispositivo constitucional, o juiz não pode
eximir-se de julgar a relação particular que lhe é submetida, quando instado a decidir, por não
haver lei que regule o caso concreto.
51
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 114.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 5º, inciso XXXV.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
52
47
Obviamente, por mais inventivo que seja o legislador, não é humanamente possível
que preveja a totalidade das situações concretas, criando normas para regulá-las. Logo, é
comum que existam espaços vazios nas leis, cabendo ao magistrado preencher esses vácuos
por meio de processos interpretativos que levem em consideração os valores aclamados pela
sociedade brasileira, já que não pode se abster de julgar o caso colocado à sua apreciação.
A Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 4º53, ordena que em caso de
omissão da lei, o juiz decida a relação específica que está sob seu exame com apoio na
analogia, nos costumes e nos princípios gerais de Direito. Assim, em face da inexistência de
regras, o aplicador oficial do Direito está autorizado pela lei a amparar sua decisão em
princípios.
De tal modo, a margem de liberdade deferida ao magistrado é um imperativo legal e
constitucional. Corrobora essa afirmação o princípio da máxima efetividade do texto
constitucional, que propugna que a uma norma constitucional deve ser atribuída a significação
que maior eficácia lhe dê. Para isso, as condicionantes da realidade social devem ser
consideradas, já que dificilmente uma Constituição jurídica destoante da realidade de seu
tempo terá eficácia. Registre-se, porém, que a norma constitucional não é mera transcrição da
realidade, porque dotada de força normativa e, portanto, imperativa e capaz de produzir
efeitos jurídicos.
Em decorrência da força normativa da Constituição, as normas constitucionais devem
ter aplicabilidade direta e imediata. Ora, se toda norma constitucional é jurídica, logo,
caracteriza-se pela imperatividade, revelando-se apta a produzir efeitos jurídicos imediatos.
O artigo 5º, § 1º, da Constituição de 198854 determina que as normas definidoras de
direitos fundamentais devem ser concretizadas de modo a se lhes atribuir eficácia plena e
aplicabilidade imediata. Deve ter-se em vista que a salvaguarda dos direitos fundamentais do
homem em reação às arbitrariedades do Estado é o núcleo central das constituições modernas.
Núcleo esse vinculante e portador de eficácia plena, aplicabilidade imediata, força normativa
e máxima efetividade. A concretização dos dispositivos veiculadores de direitos fundamentais
é a proposta mais atraente do ativismo.
O ativismo judicial não suplantador dos limites impostos pelo ordenamento jurídico,
entendido este como um sistema harmônico, constitui-se em instrumento apto a concretizar a
53
BRASIL. Decreto-Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.
Art. 4º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
54
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 5º, § 1º.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
48
Constituição. Funciona, portanto, como garantidor da efetividade do Estado de Direito
brasileiro, posto que os institutos constitucionais são os principais sustentáculos desse Estado.
Não se espera um Judiciário inexpressivo, alheio às aflições humanas. Urge saber
ousar, em nome do justo, da igualdade e da dignidade humanas. Isso não significa que o juiz
esteja compelido a problematizar os textos normativos, na proporção ampla como essa tarefa
é desempenhada pelo legislador positivo. Não pode, entretanto, deixar de verificar, em menor
medida, como e em que alcance as normas incidem na vida dos sujeitos, sem desconsiderar a
primeira problematização já procedida pelo Parlamento. Nesse trabalho, o campo de atuação
do magistrado é aquele não cotejado pelo legislador.
Num Estado Democrático de Direito, sustentado por uma Constituição democrática
(fruto da soberania popular), que pretende democratizar o Direito, a tarefa do Judiciário é
consolidar os regimes democráticos, por meio de uma judicialização mais intensa da vida e da
política. Somente um tribunal ativista configura-se apto a determinar ou descobrir o
significado unívoco do texto constitucional e preservar o jogo democrático. Nesse contexto, o
ativismo é resposta à esperança da sociedade na concretização constitucional.
Cícero Martins de Macedo Filho declara que “o ativismo judicial, que hoje é realidade,
não nasceu e não significa senão uma busca de proteção contra a desesperança.”
55
São
pertinentes as palavras dos autores da obra “Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal
Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF”, a seguir transcritas:
[...] superadas as mais imediatas preocupações com a sustentabilidade das
democracias – e, portanto, da proteção da constituição como instrumento de
estruturação do poder – abriu-se espaço a uma atuação mais construtora e reparadora
do sentido Constitucional e de seus efeitos sobre a sociedade. Menos que defender a
Constituição (que já não parecia alvo de riscos reais e imediatos) aquilo de que se
passam a ocupar as cortes constitucionais, trata-se de garantir os enunciados
prospectivos desse mesmo texto fundante, buscando a sua eficácia. 56
É claro que a aplicação da Constituição pelo Judiciário não pode ser feita por meio de
discricionária imputação de efeitos às normas efetivadas; o juiz deve se ater aos elementos
hermenêuticos que, objetivamente, indiquem o seu ajuste ao texto constitucional, cotejando as
estruturas gramaticais, sistemáticas, histórico-evolutivas, racionais e teleológicas. Mediante a
aplicação de cânones adequados de interpretação é possível repelir o governo dos juízes, bem
55
MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009, p.49.
56
VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório
de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 27.
49
como uma jurisdição tendente a uma solução pré-determinada. Daí a necessidade da
abordagem que segue.
2.3
ATIVISMO, INTERPRETAÇÃO E PRINCÍPIOS CONSTICUCIONAIS
O aspecto lógico-formal do sistema jurídico unívoco não deve se dissociar dos valores
fundamentais, erigidos a princípios do Estado de Direito, consignados nas constituições, aptos
a provocarem uma conexão orgânica entre valores singulares e coletivos, dirigidos à
generalidade, o que acaba por suscitar o alargamento axiológico do Direito.
Os princípios jurídicos são um conjunto de proposições que alicerçam o Direito. São
normas fundamentais e estruturantes que devem orientar o legislador, no momento da
formulação das leis, e o magistrado, ao aplicá-las ao caso concreto. Assim, os princípios
devem informar todo o sistema jurídico, promovendo a sua unidade. São normas, em um
primeiro momento, indeterminadas, só adquirindo concreção quando de sua aplicação à
relação particular submetida ao julgador. Daí dizer-se que proporcionam abertura ao mundo
dos fatos e dos valores, por meio da interpretação.
Ademais, os princípios jurídicos guiam o intérprete a um ideal normativo e evolutivo,
otimizando as possibilidades morais no âmbito do sistema jurídico. Permitem expandir o
campo de incidência da norma sobre todo o ordenamento jurídico, demarcando a onipresença
da Constituição.
Enquanto elementos normativos do sistema, os princípios constitucionais, inclusive os
implícitos, devem ser manejados pelo Judiciário tendo em vista suas peculiaridades
hermenêuticas decorrentes do seu sentido mais abrangente.
O intérprete deve considerar que os institutos e conceitos jurídicos não estão
simplesmente justapostos no ordenamento, havendo vínculos funcionais entre eles. A
interpretação não se reduz a usar adequadamente os critérios de Hermenêutica; implica
necessariamente o cuidado metodológico em estabelecer em que termos se dá a harmonização
entre os institutos e os conceitos jurídicos.57
Por terem significado com delimitação mais estreita, as regras sugerem menor espaço
de atuação judicial, enquanto os princípios, de conteúdo mais elástico, dão ampla margem de
57
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 178.
50
interpretação, identificada esta pela relação dialética entre um sujeito cognoscente (intérprete)
e um objeto cognoscível (norma). Não obstante, há que se considerar que os textos
normativos, ainda que consignem princípios, contêm algo de objetivo, que não pode ser
eliminado pela vontade do juiz.
Nesse contexto, as técnicas de interpretação são extremamente importantes na
definição do significado da norma – regra ou princípio –, bem como na determinação do seu
alcance. O método de interpretação é um elemento hermenêutico que, objetivamente, indica
ao magistrado o sentido da norma. Faz-se referência à interpretação literal ou gramatical,
lógica ou linear, histórica ou evolutiva, sistemática e teleológica, na qualidade de métodos
hermenêuticos.
Em razão da supremacia do Texto Fundamental, bem como da presunção da
constitucionalidade da lei, tem sido utilizada como técnica a interpretação conforme a
Constituição, desde que o significado do texto normativo não seja alterado ou violado. Por
esse critério de interpretação, deve preferir-se o sentido da norma que seja adequado à
Constituição.
Como bem anota Alexandre de Moraes, em face de normas com vários significados
possíveis, deve ser eleito o sentido que apresente conformidade com as normas
constitucionais, impedindo a declaração de inconstitucionalidade da lei interpretada e sua
retirada do ordenamento jurídico.58
Esse princípio interpretativo integra a nova concepção constitucional, pela qual todo o
ordenamento jurídico deve estar impregnado de normas constitucionais. É a chamada
constitucionalização do ordenamento jurídico, que passa a condicionar o espaço de liberdade
de conformação do legislador ordinário, na medida em que se eliminam os vácuos, vez que
nada escapa da regulação do Direito Constitucional. Por conseguinte, as normas do
ordenamento jurídico só são válidas juridicamente se guardarem conformação com a
Constituição.
Além de procurar auxilio em métodos de interpretação, o magistrado deve estar
consciente do viés ideológico que exerce e ao qual está condicionado ao interpretar. O olhar
do intérprete é iluminado pelos valores sociais decorrentes do seu tempo e espaço. Os fatores
geográfico e temporal fazem com que novos significados se afirmem para os mesmos
significantes.
58
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 11.
51
Prova disso é a evolução semântica do princípio da igualdade assinalado na
Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, publicada em 4 de julho de
1776, segundo o qual todos os homens nascem livres e iguais em direitos59. Hoje essas
palavras significam que todos indistintamente, independentemente de religião, idade, etnia,
cor, sexo, origem econômica, social ou nacional, nascem livres e iguais em direitos. Essa é a
compreensão do princípio da igualdade na quase totalidade dos Estados contemporâneos.
Entretanto, nos Estados Unidos do século XVIII, pouco depois da independência das
treze colônias, esse mesmo significante possuía sentido diverso, pelo qual todos os homens
(sexo masculino) brancos, livres e protestantes nasciam livres e iguais em direitos.
A linguagem norte-americana foi sendo reconstruída, até que no século XIX, os
mesmos símbolos passaram a ser assim traduzidos: todos os homens (sexo masculino)
brancos e negros nascem livres e iguais em direitos, mas devem viver segregados.
Os movimentos pelos direitos civis nas décadas de 50 e 60, graças à colaboração das
grandes personalidades Malcon X, Matin Luther King, John Kennedy e Bob Kennedy,
construíram uma nova leitura do princípio da igualdade jurídica, que passou a ser
compreendido como a igualdade e liberdade de todos os homens (sexo masculino),
independente de cor e etnia, sem que pudessem ser segregados.
Somente após 1972, a Corte estadunidense passou a incluir no manto de proteção do
princípio as mulheres. Assim, todos os homens (todos os seres humanos), sem nenhuma
distinção, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser segregados ou discriminados
por nenhum motivo, seja cor, etnia, gênero, origem social ou econômica.
Essa evolução constitucional demonstra que a interpretação pode ir ganhando outros
contornos com o passar do tempo sem que haja uma alteração ou uma violação no texto literal
da Constituição. Ainda que o texto permaneça inalterado, condicionantes históricos, sociais,
culturais, políticos vão determinando um novo olhar, um novo sentido para os mesmos signos.
Esse processo ocorre mais frequentemente em relação aos princípios, que, por sua própria
natureza, esboçam enunciados mais abertos, dúcteis e, por vezes, indeterminados.
Não raro o legislador emprega conceitos vagos e indefinidos nos textos normativos,
especialmente na Constituição, o que confere maior flexibilidade ao magistrado.
O magistrado tem se ocupado na busca dos significados da textura aberta dos
enunciados constitucionais, o que vem permitindo uma leitura construtiva dos princípios e sua
prevalência em relação às regras, viabilizando mais ponderação, ao invés de apenas
59
Cláudio VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História para o ensino médio: história geral e do
Brasil. São Paulo: Scipione, 2002. p. 267-268.
52
subsunção, em detrimento do raciocínio meramente linear. Essa atitude tem propiciado à
sociedade maior concretização do texto constitucional.
As Constituições contemporâneas são principiológicas. Desse modo, a interpretação
constitucional, na medida em que incrementa a liberdade de atuação do magistrado,
impulsiona a expansão do Poder Judiciário e, por conseguinte, o ativismo judicial.
Em razão de a Constituição exercer influência sobre as relações políticas, os conflitos
de natureza eminentemente política passam a ser solucionados pelo Poder Judiciário, com
apoio em normas constitucionais principiológicas. Daí o surgimento no Brasil da expressão
judicialização da política, utilizada para designar o novo fenômeno jurídico-político, já
disseminado há tempos em outros sistemas jurídicos.
2.4
A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
A constitucionalização do ordenamento jurídico implica a subordinação da legislação,
da jurisprudência, da doutrina e das relações sociais à Constituição. Nada escapa de seu
alcance, nenhum dos ramos do Direito, nem mesmo questões políticas. Afinal, a Constituição
não é um ato unicamente jurídico, mas está imbricada de questões políticas. Já que incumbe
ao Judiciário fazer atuar a Carta Política inevitavelmente adentrará em algum aspecto político,
operando a judicialização da política, conhecida também como politização da justiça.
O alcance do Direito extrapola as partes em conflito, revelando sua tônica política. As
questões políticas não são fenômenos simples e unilaterais. Há várias questões que se
encerram na questão política, as quais ora são verdadeiramente e exclusivamente políticas, ora
unicamente judiciais. É política quando envolve critérios de oportunidade e conveniência, sem
que haja direitos legais em jogo. É judicial quando se resolve pela aplicação da lei a direitos
individuais.60
Certo é que devido à expansão da produção legislativa levada a efeito pelo Legislativo
e pelo Executivo, aumenta-se o rol de bens e princípios juridicamente protegidos, o que
suscita a proliferação de decisões jurídicas que atuam em questões políticas. Some-se a isso o
fato de que temas que sequer mereceriam tratamento legislativo hoje se encontram previstos
na Constituição. Ainda assim, inevitavelmente deve o Judiciário atuar quando há discussão
60
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 147.
53
em torno da constitucionalidade ou não do ato de qualquer dos poderes, por estar presente a
questão judicial, escapando a problemática do campo exclusivamente político.
O assunto pode afigurar-se político de três modos: a) por sua natureza; b) pela forma
que a controvérsia assume (relacionada ao exame da constitucionalidade de uma lei ou ato
normativo enquanto objeto principal do processo ou se for resolvida em termos abrangentes
com eficácia erga omnes, neste caso uma questão de constitucionalidade caracteriza-se como
política); e c) pelos termos em que se resolve a controvérsia.61
Critica-se o Poder Judiciário por atuar em assuntos políticos. Problemas que,
inicialmente, deveriam ser resolvidos pelo Legislativo e Executivo são constantemente objeto
de decisões judiciais.
No entanto, admita-se que a própria Carta da República afirma que o Judiciário é
também um poder, que retira sua legitimidade da vontade do povo. Assim sendo, o Poder
Judiciário é dotado de força política tal como os demais poderes. Sem dúvida, o texto
constitucional vigente valorizou o Judiciário, recrudescendo suas atribuições, seja em relação
ao controle de constitucionalidade e ao controle dos atos dos demais poderes, seja em razão
dos institutos jurídicos do habeas data, mandado de injunção, ação popular, mandado de
segurança coletivo.62
É certo que as decisões de inconstitucionalidade fizeram o Judiciário agir, ainda que
com postura conservadora, como legislador negativo, desqualificando o agir do legislador e
do administrador.63
Para evitar esse tipo de situação, há quem defenda que o Direito não deve intervir na
política e na sociedade. Inspirado por esse pensamento, o Supremo Tribunal Federal, Corte
constitucional político-jurídica, durante muito tempo, afastou-se da dimensão política,
eximindo-se de adentrar em assuntos dessa natureza. Nesse sentido, aumentou o âmbito de
incidência das controvérsias que excluíam a sua atuação, as chamadas cláusulas de exclusão
das questões políticas.
O caso emblemático de maximização das cláusulas de exclusão das questões políticas
pelo STF foi o não acolhimento do pedido consignado no habeas corpus (HC) nº 300,
impetrado por Rui Barbosa em favor de pessoas presas durante um período de intensas
conturbações políticas e de estado de sítio. A decretação de estado de sítio sempre esteve nas
61
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 144.
MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 200.
63
MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 200.
62
54
listas da cláusula de exclusão, mas isso não autorizava o Supremo a deixar em desamparo os
direitos individuais dos pacientes, declarando-se incompetente para atuar por ser impossível
isolar esses direitos das questões políticas.64
Assim procedendo, em sua orientação jurisprudencial inicial, o STF aceitava a
existência de assuntos inacessíveis ao controle jurisdicional, mesmo que neles figurassem
questões jurídicas, como é o caso da transgressão à Constituição. Essa postura é
flagrantemente contrária aos princípios do Estado Democrático de Direito.
Não há dúvida de que a existência de uma função privativa de um dos poderes do
Estado não impede que o Judiciário seja demandado e defina se o exercício dessa atribuição
balizou-se pela Constituição. Essa construção teórica – controle de constitucionalidade das
leis e dos atos administrativos – possibilita delinear a esfera de atuação do Judiciário quando
diante de questões políticas.
No ofício de proceder ao controle de constitucionalidade, o Judiciário deve investigar
se há envolvimento dos critérios de conveniência e oportunidade; se os houver estará
impedido de atuar. Caso contrário, a legalidade e a constitucionalidade do ato do Poder
Público devem ser submetidas ao exame do Judiciário, desde que os fundamentos articulem
questões constitucionais e legais.
Assinale-se que o exercício de poderes discricionários – para a o administrador e o
legislador – descamba no binômio conveniência e oportunidade. Esse binômio, por sua vez,
deve ater-se aos estritos limites descritos pelo ordenamento; extrapolados esses contornos
e/ou presente a lesão a direito subjetivo, deverá o Poder Judiciário intervir, se provocado. O
caráter político da função não pode deixar pessoas ofendidas desamparadas, já que o Estado
tomou para si, com exclusividade, o exercício da jurisdição.
Quando o legislador e o administrador atuam na qualidade de instrumentos políticos
seus atos são examináveis apenas politicamente, âmbito impenetrável pelo Judiciário. Por
outro lado, quando a lei regulamenta um dever, havendo direitos individuais e coletivos em
jogo ou ainda bens e princípios juridicamente protegidos, qualquer indivíduo que se sinta
prejudicado tem o direito de recorrer ao Judiciário, que está constitucionalmente obrigado a
agir, ainda que existam questões políticas em cena.
Elival da Silva Ramos entende ser uma espécie de autocontenção do Poder Judiciário
quando este qualifica uma questão como política, sujeita à discricionariedade de outro Poder
do Estado, como forma de abster-se de julgar questões delicadas. Defende que nem todo
64
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 145-146.
55
ativismo judicial deve ser contido pela invocação dos poderes discricionários dos órgãos
emissores dos atos controlados. Sustenta, ainda, que a exacerbação do uso da cláusula de
exclusão pode resultar em passivismo judiciário, altamente prejudicial ao Estado de Direito.
Por fim, reconhece que a tendência do tempo presente é limitar o âmbito de incidência da
cláusula de exclusão, o que representa a retomada do processo evolutivo das Cortes
constitucionais.65
Se a efetividade e o fortalecimento do Estado Constitucional de Direito são anseios da
sociedade brasileira, deve-se aceitar que o Judiciário tome decisões políticas. Mas decisões
políticas, motivadas por princípios e não por questões políticas, isto é, as decisões devem ser
formuladas no tocante aos direitos individuais e coletivos à luz da Constituição e não
conjecturarem sobre qual a melhor maneira de se promover o bem estar geral.
Apesar das relutâncias contra a jurisdição constitucional, ela constitui-se numa
tendência irrefreável, uma vez que ao se juridificar a política, fatalmente, politiza-se a
justiça.66 Contudo, não se pode permitir que o Judiciário vire palco para a prática de
politicagem.
Ressalte-se que o Estado é a maior expressão da manifestação do Poder Político e a
Constituição é uma carta na qual se revelam os elementos constitutivos do Estado. Sendo este
uma entidade política, seu estatuto fundamental será, por via de consequência, eminentemente
político. E mais: onde quer que se originem relações de mando, alguém terá que compor os
conflitos daí advindos. Inevitavelmente, aí estará o Judiciário. Afinal, a jurisdição é
monopólio do Estado e ela não pode ser afastada de quem quer que a provoque.
Por óbvio, os magistrados exercem as suas atividades diversamente da maneira como
os representantes políticos o fazem em relação ao Direito. Estes promovem política
legislativa, com total liberdade de atuação para se orientar por esta ou por aquela ideologia. Já
aos magistrados resta apenas escolher uma das opções já delimitadas pelo legislador, estando
no âmbito restrito das escolhas políticas primárias.
Em que pese o posicionamento inicial do Supremo Tribunal Federal quanto ao tema,
percebe-se uma mudança na ideologia política e jurídica acompanhada de um processo de
transmutação de cenários, em que o Judiciário brasileiro passa a conhecer de questões
políticas.
Esse movimento vem sendo identificado, conforme já assinalado, mediante a
expressão judicialização da política, fenômeno que indica a expansão do Judiciário no
65
66
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 150.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 25.
56
processo decisório das democracias contemporâneas. Por outro lado, observa-se também
métodos peculiares do Judiciário praticados no âmbito de outros poderes. Seria uma espécie
de tribunalização da política.
As condições propícias ao surgimento de uma judicialização da política estão
presentes no Direito brasileiro desde o advento da Constituição da República de 1988, que
trouxe um sistema complexo de jurisdição constitucional, com previsão de controle de
constitucionalidade difuso e concentrado. O processo de judicialização da política resulta de
uma crescente apropriação das inovações do Texto Fundamental por parte da sociedade e dos
agentes institucionais, especialmente o Ministério Público.
A sociedade anseia uma postura pró-ativa do Judiciário, obrigado a agir quando os
órgãos estatais competentes, por descumprirem seus encargos institucionais, comprometam a
eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos previstos constitucionalmente,
ainda que em normas programáticas. No entanto, não se inclui entre as suas atribuições a de
formular e implementar políticas públicas, pois, esse encargo compete ao Executivo e ao
Legislativo.
O Judiciário tem respondido ao clamor social. O comportamento do Supremo Tribunal
Federal referente às pesquisas com embriões e às questões de saúde submetidas à sua
apreciação comprova essa afirmação. Em ambos os casos a Corte realizou audiências públicas
com a participação de representantes dos múltiplos segmentos sociais, com vistas a formar
seu convencimento. Diferente não é na primeira instância da jurisdição, na qual os juízes
estão cada vez mais atuantes, notadamente nas áreas de saúde, saneamento e meio ambiente.
Em seu ministério, o Judiciário não pode perder de vista que suas decisões devem estimular a
atuação do Legislativo e a participação da sociedade nas questões políticas.
O deslinde das questões políticas serve para demarcar a área de atuação do Poder
Judiciário permitida pela Constituição, que traçou limites impregnados em todo o sistema
jurídico. Essa baliza normativa, unívoca e sistêmica deve necessariamente ser observada pelo
Judiciário, se este não quer golpear o princípio da separação dos poderes. Jamais se pode
deixar escapar a noção de que os juízes, em sua atuação, estão vinculados à Constituição, à
lei, à distribuição funcional de competências constitucionais e ao princípio democrático. À
explanação desse assunto presta-se o próximo tópico.
57
2.5
LIMITES DO ATIVISMO JUDICIAL
Os efeitos do ativismo judicial provocam a preocupação com os limites objetivos do
processo hermenêutico, tanto em relação ao princípio da separação dos poderes quanto à
importância da segurança jurídica num Estado de Direito. Necessário se faz que sejam
contidos os riscos de a interpretação extrapolar o exigido pela Constituição. Afinal, um Estado
de Direito é necessariamente um Estado submetido à Constituição e às leis. O desprendimento
do juiz à norma promulgada pelo legislador gera insegurança social, já que a sociedade espera
garantia e previsibilidade das ações do magistrado que devem ser orientadas pela lei.
A atuação harmônica dos poderes depende da obediência aos limites definidos pela
Constituição. A fixação precisa dos limites impostos ao Poder Judiciário no exercício da
jurisdição não pode restar destituída de contornos técnicos, razão pela qual aumenta a
responsabilidade da doutrina constitucional na busca pela resposta adequada à questão. Nesse
sentido, a identificação dos parâmetros dogmáticos que devem circunscrever o ativismo
judicial é o apoio lógico que precisa nortear a passagem da lei para a decisão judicial, que
necessita harmonizar-se com o conteúdo da consciência jurídica geral.
Não há um critério universal na delimitação da atuação dos juízes. Há quem vocifere
por uma atuação mecânica ou objetiva como há também quem sustente a ideia da atuação
subjetiva, conferindo ampla liberdade interpretativa ao juiz.
A atividade do magistrado não se reduz a declarar ou reproduzir um Direito
preexistente. O juiz também cria o Direito e a discussão sobre esse aspecto nos dias atuais é
improfícua. Todavia, ao exercer o seu papel criador deve observar os parâmetros definidos
pela própria lei. Deve estar sempre presente na mente do intérprete a preocupação em manter
a imperatividade do texto legal, não descurando em conservar certo distanciamento axiológico
do caso particular que lhe é submetido, a fim de não apaixonar-se pela questão em exame.
É compatível com o princípio da equidade que o juiz expresse a consciência ética que
compartilha com a sociedade em que vive; porém, sua opção há de ser justificada
racionalmente e demonstrar aderência ao ordenamento jurídico. O magistrado que impõe suas
concepções pessoais não atende ao imperativo da segurança jurídica, tão indispensável ao
Estado de Direito. A ordem jurídica deve partir de imperativos ético-evolutivos no tempo,
formulados levando-se em conta o que melhor convém à sociedade, mas não deve ser
complementada por uma ordem subjetiva de valores. Obviamente, não se pode negar a
58
existência de diferentes propostas interpretativas juridicamente válidas, mas ao eleger uma
delas, o intérprete não pode ser movido por suas próprias convicções.
O Direito deve ser descoberto pelo juiz por meio de um processo criador, tarefa na
qual irá se guiar pelos princípios de valor expressos pelo sistema jurídico – com conteúdo
mais rico do que o da lei – e pela própria ideia de Direito e não por considerações pessoais.
A consciência jurídica geral, norteadora do ofício judicial, abrange novas construções
e ideias jurídicas, permeadas por critérios éticos e jurídicos, por vezes, sem expressão na lei,
ou tão somente sugeridos por ela. Já que vinculado somente à lei, o magistrado deve atender à
evolução da consciência jurídica geral dentro dos limites da interpretação ou da integração das
lacunas.67
Se a interpretação ultrapassa a fronteira imposta pelo significado literal do texto
normativo, pelo contexto em que elaborado, cotejando-se sua formulação histórica, pelo
intento do legislador e pelo sentido razoável no sistema em que se densifica quedará numa
insegurança inconciliável com o Estado de Direito.
Elival da Silva Ramos, citando Miguel Reale, esclarece que a liberdade do juiz está no
agir dentro da lei e não perante a lei. Não é no pensar de novo, mas no pensar até o fim o que
outro já começou a pensar. A verdade está no equilíbrio, na conciliação dos opostos. A
interpretação de uma norma é saber olhar todo o sistema na qual esta norma está inserida.68
Há diferença entre a liberdade/discricionariedade legislativa e a judicial. O legislador
esbarra apenas nas normas constitucionais ao passo que o juiz se sujeita à totalidade do
ordenamento jurídico. O juiz atua com liberdade mínima quando o texto legal é preciso e
objetivo e com liberdade máxima se tiver que fazer integração de lacuna. Enquanto as
discricionariedades legislativa e administrativa se guiam por critérios de conveniência e
oportunidade, a discricionariedade judicial deve refletir a consciência jurídica geral.
A discricionariedade legislativa é resultado da ausência de parâmetros legais ou da sua
flexibilidade; a administrativa liga-se à abertura textual bem como ao permissivo legal de
mais de uma possibilidade de conduta ante a concretude da situação. A discricionariedade
judicial envolve todo o campo da criatividade na interpretação. Em qualquer vertente, a
discricionariedade deve ser exercida com observância ao princípio da separação dos poderes.
Se o ativismo judicial ultrapassar a demarcação constitucional estará a provocar
mutação inconstitucional, caracterizando-se o cerceamento inaceitável do Judiciário na
67
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 101.
REALE, Miguel, 1975 apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 137.
68
59
atividade de outro poder. Por isso, ao exercer o controle de constitucionalidade, o magistrado
deve ter a prudência de não agredir o Direito vigente, zelando pela normatividade
constitucional e infraconstitucional. Para se fortalecer a Constituição deve-se valorizar sua
força normativa, o que se dá pela observância aos seus ditames, em especial, ao princípio da
separação dos poderes.
Desse modo, ao Judiciário não é permitido fazer o controle do mérito do ato estatal
praticado pelo administrador, mas apenas da forma, vez que este pode eleger, tendo em conta
o princípio da razoabilidade, um, dentre os caminhos cabíveis e autorizados pela lei, visando
alcançar à satisfação da finalidade legal. Não incumbe ao juiz substituir-se ao poder
controlado, mediante a imposição de determinado padrão de conduta ou visão de justiça.
Ou seja, o Poder Judiciário não deve apreciar o mérito dos atos administrativos e
legislativos, o que pode fazer é examiná-los quanto à sua legalidade, sob pena de violar o
princípio da separação dos poderes. O mérito está no sentido político do ato (estranho à seara
jurídica), que perquire aspectos concernentes à justiça, utilidade, moralidade do ato; resulta,
portanto, no binômio oportunidade-conveniência, a envolver interesses e não direitos. O
Judiciário irá controlar atos que violem direitos constitucionais e legais.
Na seara jurisdicional há maior proximidade entre discricionariedade e interpretação,
perspectiva que não se abriga no plano administrativo. Se assim não fosse, a quase totalidade
da atuação da Administração daria ensejo ao emprego do poder discricionário, reduzindo-se,
de modo intolerável, à luz dos princípios do Estado de Direito, o controle judicial sobre os
atos administrativos. De outra sorte, a discricionariedade do juiz não se coaduna com os
critérios de conveniência e oportunidade, deve, na verdade, orientar-se pela consciência
jurídica geral. No exercício da discricionariedade, o magistrado deve ser diligente com vistas
a alcançar a paz e a ordem sociais, em correlação com as diretrizes éticas da sociedade em que
vive.
A fim de conter os avanços para além dos limites normativos, ao interpretar, o
magistrado necessita vincular-se ao texto normativo. Ou seja, toda e qualquer interpretação,
particularmente a constitucional, deve ser compatível com a amplitude de sentidos projetada
pelo texto da norma.
Portanto, não se pode atribuir um significado arbitrário ao signo linguístico dos textos
normativos. Espera-se do magistrado que investigue o significado do texto elaborado pelo
legislador. A atividade interpretativa do aplicador oficial do Direito deve revelar adesão à
textualidade do dispositivo aplicado.
60
Uma mutação constitucional por interpretação é admissível, mas é absolutamente
repelida a ideia de um rompimento constitucional, o que ocorrerá se o intérprete decidir de
forma contrária aos dispositivos da Constituição.
Estar atento aos limites impostos pelo texto constitucional não significa aplicar
indiscriminadamente o método gramatical de interpretação. Se toda atividade interpretativa é
em parte cognoscitiva, os métodos de interpretação devem ser enriquecidos pela
racionalidade, sendo esta realizada de forma segura, controlável e ordenada, segundo critérios
que devem balizar a atividade do intérprete. Destarte, a limitação imposta à interpretação pela
textualidade do dispositivo de regência configura-se pela utilização da metodologia exegética,
compreendendo os métodos sistêmico, gramatical, histórico e teleológico de cuja ponderação
diante do caso concreto resulta delimitação do espaço de interpretação disponível ao
aplicador.69
Tendo em vista que a Constituição da República limita materialmente o exercício da
criatividade de juízes e tribunais, é necessária, por vezes, a intervenção legislativa para o
desdobramento de princípios e regras constitucionais, especialmente quando a Constituição
prevê que algum conteúdo por ela sugerido seja regulamentado por lei a ser elaborada pelo
Legislativo.
Entretanto, se omisso o legislador, a mesma Constituição trouxe um remédio – o
mandado de injunção – assegurador dos direitos dos jurisdicionados, que poderão valer-se do
Judiciário para ver seus direitos e, conseguintemente, a Constituição concretizados.
Genericamente pode se assinalar que ora a intervenção legislativa é totalmente vedada;
ora é exigida pela própria Constituição; em outras ocasiões, a atuação do legislador é
meramente permitida.
As matérias de âmbito exclusivamente constitucional são aquelas cuja regulação de
cunho infraconstitucional desvirtua a própria finalidade da disciplina normativa da Lei Maior.
Disso conclui-se que não pode o Legislativo formular leis sobre matérias objeto de normas
por meio das quais o constituinte quis limitá-lo no desempenho da função que lhe é peculiar,
como acontece com algumas garantias fundamentais e com certos institutos associados à
função de chefia de Estado, a exemplo da intervenção federal e do estado de sítio.
Quando é exigida a intervenção legislativa, as normas infraconstitucionais
desempenham o papel de normas integrativas de comandos constitucionais e de normas de
desdobramento de princípios e regras constitucionais.
69
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 173-174.
61
As normas de eficácia limitada exigem intervenção legislativa para que possam
desfrutar de plenitude eficacial. As normas de eficácia plena, porém restringível, são aquelas
que autorizam o legislador ordinário a restringi-lhes a eficácia, nas condições e forma
especificadas pelos princípios e regras constitucionais. É de se notar que, neste caso, o
legislador está legitimado e não obrigado a agir. As normas de eficácia plena propiciam
também a intervenção legislativa, que, nesse caso, buscam a concretização de um ponto ótimo
no ajuste entre as normas em disputa.70
As normas constitucionais principiológicas podem comportar seu desdobramento em
nível de legislação ordinária. Se esta não for elaborada, os princípios, ainda assim, são aptos a
produzir efeitos. A expansividade dos princípios constitucionais estimula o legislador
infraconstitucional a traçar novos segmentos normativos que lhes agreguem conteúdo.
As regras têm caráter retrospectivo na medida em que descrevem uma situação de fato
conhecida pelo legislador ao passo que os princípios possuem caráter prospectivo por
determinarem um estado de coisas a ser construído. A força expansiva dos princípios é maior
do que a das regras, estas, por sua vez, regulam de modo mais completo a situação fática que
a elas se sujeita. Sendo assim, o cuidado do intérprete-aplicador para não extrapolar os
estreitos limites estipulados pela Constituição deve ser maior quando se tratar de princípios.
A aplicação da Constituição pelo Judiciário não pode ser feita por meio de
discricionária atribuição de efeitos às normas concretizadas, o juiz deve se ater aos elementos
hermenêuticos que, objetivamente, indiquem o seu enquadramento ao texto normativo.
Se a decisão judicial não deve ser completamente livre e arbitrária, é no integral limite
que o próprio Direito a aplicar lhe impõe que se há de esquadrinhar os critérios para a prática
do ativismo judicial, tendo em vista a estrutura plural do Poder Judiciário e a necessária
prevalência da racionalidade jurídica em prejuízo das leis da razão propriamente ditas. Com o
propósito de fixar com maior precisão esses limites, a seguir serão abordados os diversos
graus de controle judicial em matéria constitucional.
2.6
OS
DIVERSOS
GRAUS
DE
CONTROLE
JUDICIÁRIO
EM
MATÉRIA
CONSTITTUCIONAL
70
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 182-183.
62
O professor Elival da Silva Ramos elaborou uma gradação – oriunda do Direito
Constitucional – do controle praticado pelo Poder Judiciário sobre os atos exercidos pelos
outros poderes. Esses níveis de controle judiciário em âmbito constitucional, expostos a
seguir, são importantes parâmetros dogmáticos para a prática do ativismo.
2.6.1 Inexistência de controle: função de governo
O
Executivo
brasileiro
desempenha
atividades
de
natureza
diversificada,
correspondentes à função de chefia de Estado, à função de governo, à participação na função
legislativa e à função administrativa. A função de governo, em regra, se desenvolve mediante
a elaboração de programas de governo, de planos de ação, globais ou setoriais,
compreendendo, ainda, a busca do engajamento dos demais poderes e da sociedade civil em
relação às diretrizes traçadas. Enquanto se mantém no plano exclusivamente político, a função
de governo revela-se judicialmente incontrolável, tanto por não afetar a esfera jurídicosubjetiva de qualquer sujeito, quanto porque o controle prévio de constitucionalidade não
retroage a ponto de surpreender a planificação política de ação governamental.71
2.6.2 Controle mínimo: exercício de jurisdição pelo poder legislativo
Um exemplo de exercício de jurisdição pelo Legislativo é o processo e julgamento do
Presidente da República e de outras autoridades operados pelo Senado Federal, nos crimes de
responsabilidade. Nesse caso, sofre o Poder Judiciário forte restrição no tocante ao controle
jurisdicional amplo que, enquanto garantia constitucional, lhe compete exercer. Não pode, por
exemplo, substituir a decisão de mérito proferida pelo Senado, sob qualquer viés. Nesse caso,
o grau mínimo de controle se dá quanto ao princípio do devido processo legal e seus
consectários no plano formal.
Há, ainda, outra hipótese de controle de grau mínimo, que é aquele exercido sobre o
veto presidencial a projetos de lei aprovados pelo Congresso Nacional; neste caso, o
71
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.153-155.
63
Judiciário não irá controlar o mérito, mas, por exemplo, pode reconhecer a intempestividade
de veto oposto fora do prazo constitucional ou a invalidade do veto que não esteja
acompanhado de motivação.72
2.6.3 Controle médio fraco: atos interna corporis, atos de chefia de estado e controle de
constitucionalidade fundado em princípios.
Os atos interna corporis relacionam-se à economia interna das casas legislativas.
Essas normas regimentais sobre o processo legislativo são meramente ordinatórias e, portanto,
insuscetíveis de violar direitos subjetivos de parlamentares, afastando a fiscalização
jurisdicional. Admite-se a intervenção judicial se o procedimento de elaboração legislativa
violar dispositivo constitucional ou se os parlamentares exercerem suas atribuições
institucionais com ofensa a direitos públicos subjetivos impregnados de qualificação
constitucional. O STF vem se abstendo de julgar as questões interna corporis que dizem
respeito à interpretação e aplicação de dispositivos regimentais. Também pode ser enquadrada
na modalidade controle de padrão médio fraco a apreciação judicial dos atos pelos quais se
exerce a função de chefia de Estado.73
O controle de constitucionalidade sobre leis e demais atos normativos em que o
parâmetro para se aferir a sua conformidade ou não à Constituição seja fornecido
principalmente por princípios são de grau médio fraco. Isso porque os princípios são passíveis
de interpretação também pelo legislador e pelo administrador, com liberdade avultada quando
se trata de precisar o alcance de normas com maior abertura textual.
2.6.4 Controle médio forte: controle de constitucionalidade fundado em regras e de
atos administrativos em que haja discricionariedade.
A intensidade do controle judicial é maior se o parâmetro a ser utilizado forem as
regras, em razão de serem normas, inicialmente, decisivas e abarcantes e com aspiração de
72
73
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 156-158
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 158-165.
64
gerar uma solução específica para o conflito entre razões. Devido à maior densidade de
sentidos das normas-regra há substancial redução da discricionariedade legislativa, o que,
conseguintemente,
majora
o
controle
jurisdicional.
Inclui-se
no
controle
de
constitucionalidade médio forte aquele que é exercido sobre ato administrativo em que
subsista alguma discricionariedade em favor da Administração.74
2.6.5 Controle máximo: atos administrativos plenamente vinculados.
Os atos administrativos plenamente vinculados são aqueles para os quais a lei
estabelece os requisitos e condições de sua execução, dando ensejo a um nível mínimo de
liberdade ao administrador, vez que sua ação circunscreve-se aos pressupostos estabelecidos
pela norma legal para a validade do ato. O controle judicial atinge os atos administrativos
plenamente vinculados no grau máximo de intensidade, que, por sua vez, restarão passíveis de
anulação pela Administração ou pelo Judiciário, caso provocado.75
Examinado o ativismo judicial à luz da Constituição da República brasileira é hora de
analisar a forma como a jurisprudência vem operando-o, se respeitosa aos limites esboçados
pelo sistema jurídico ou, ao contrário, se suplantadora das leis e da Constituição.
74
75
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 165-167.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 167-168.
65
3
O ATIVISMO JURISDICIONAL E A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA
A recente jurisprudência brasileira é visivelmente ativista. O ativismo judicial é
operado não apenas pelos tribunais; os juízes singulares estão cada vez mais ativos. Este
capítulo examinará apenas o ativismo judicial levado a efeito pela Corte guardiã da
Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal, analisando sua recente produção
jurisprudencial e o histórico do ativismo em suas decisões. A propósito, o protagonismo das
Cortes constitucionais, no Ocidente, é um apanágio da contemporaneidade. Revoluções
constitucionais alcançaram inclusive África do Sul, Canadá, Israel e Nova Zelândia.
Devido ao importante papel conformador exercido pela Suprema Corte brasileira, na
medida em que uniformiza a jurisprudência, importa deter-se na apreciação de suas decisões,
a fim de perceber a maneira como o ativismo vem sendo realizado no Brasil. Antes, porém,
proceder-se-á ao estudo da jurisprudência como fonte do Direito brasileiro. Por fim, o último
tópico deste capítulo destina-se ao estudo de aspectos específicos do controle abstrato de
normas.
3.1
JURISPRUDÊNCIA COMO FONTE DE DIREITO NO BRASIL
As fontes do Direito, que podem ser formais ou materiais, revelam de onde provém o
Direito, de onde este emana. Antes de perscrutar se a jurisprudência é apta a gerar o Direito,
cabe conceituá-la. Maria Helena Diniz doutrina que o termo jurisprudência compreende
o conjunto de decisões uniformes e constantes dos tribunais, resultantes da aplicação
de normas a casos semelhantes, constituindo uma norma geral aplicável a todas as
hipóteses similares ou idênticas. É o conjunto de normas emanadas dos juízes em
sua atividade jurisdicional.76
Segundo a autora, a jurisprudência é fonte do Direito, tanto formal, porque constituída
de normas gerais e obrigatórias criadas pela prática consuetudinária do Judiciário, integrando
76
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2006. p. 295.
66
o direito vigente, quanto material, tendo em vista que participa do fenômeno de produção do
Direito.77
Com efeito, a jurisprudência contribui para a criação de normas jurídicas assim como
para a interpretação das leis e criação do Direito. Ademais, influi na visão do legislador
quanto aos institutos jurídicos, por vezes, alterando-os e levando à elaboração de leis que
acatem a sua orientação.
Entretanto, no Brasil não existe vinculação judicial às decisões dos tribunais78, em
razão da independência funcional de que gozam os magistrados e que lhes confere liberdade
para interpretar a lei e aplicá-la à relação particular que lhes é submetida.
Por isso, seria mais apropriado afirmar que a jurisprudência é fonte material de
produção do Direito, na medida em que as decisões judiciais criam o Direito. De fato, a
discussão a respeito da produção do Direito por parte de juízes e tribunais é estéril e só faz
sentido para o positivismo jurídico extremo, pelas razões já apontadas.
Não há dúvida de que a jurisprudência participa ativamente do processo de formação
do Direito, notadamente mediante os institutos do mandado de injunção, da reclamação
constitucional, da orientação jurisprudencial, da súmula vinculante e do controle de
constitucionalidade operado pelo Judiciário, sem falar no efeito erga omnes atribuído à
pronúncia de inconstitucionalidade da lei. Em tempos de ativismo judicial não se pode mais
falar em alheamento do Judiciário no processo criativo da Ciência Jurídica.
Por outro lado, se o conceito de fonte formal do Direito for tomado como o sistema de
atos dotados de força normativa e vinculatividade sobre o comportamento dos sujeitos de
direito e sobre os órgãos públicos jurisdicionais judiciários e administrativos, há que se
recusar à jurisprudência o caráter de fonte formal do Direito, eis que não obriga os
jurisdicionados nem a jurisdição administrativa e judicial, não obstante o caráter vinculativo
das súmulas vinculantes, que, por óbvio, não servem a substituir a lei, vez que não se
destinam a regular coercitivamente situações em abstrato. Aliás, a lei, esta sim é a fonte
formal por excelência do Direito. Em sistemas romano-germânicos, a lei é a fonte basilar da
Ciência Jurídica.
Todavia, Elival da Silva Ramos observa que, no Direito contemporâneo, não há
propriamente uma sobrepujança da lei em detrimento das outras fontes de produção do
77
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 18ª. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2006. p. 299.
78
À exceção do instituto da súmula vinculante.
67
Direito, há na verdade, a superioridade das fontes estatais, figurando a Constituição no ápice
da hierarquia sistêmica.79
Nesse cenário, amplia-se a liberdade de atuação do Supremo Tribunal Federal, quando
instado a se manifestar nas questões que envolvem a aplicação da Constituição,
particularmente porque esta, apesar de ser jurídica, possui grande conteúdo de natureza
política. Daí a imprescindibilidade de o STF respeitar a Constituição e ater-se cuidadosamente
ao ordenamento jurídico, sob pena de tornar-se nefasto para a democracia brasileira, que
precisa ser transformadora, ocupada em construir uma ordem justa e não apenas livre.
A força dinâmica do STF não pode estar direcionada à manutenção do status quo
socioeconômico; deve, isto sim, ser guiada pelo vetor axiológico da igualdade, da
universalização da liberdade política e do dinamismo democrático, intento alcançado somente
com decisões que guardem conformação com o sistema jurídico, a fim de fortalecer e
concretizar o Estado Democrático de Direito. Os próximos tópicos prestam-se a avaliar se a
atuação do STF tem cumprido esse propósito.
3.2
HISTÓRICO DO ATIVISMO JUDICIAL NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A partir da promulgação da Constituição de 1988 e, principalmente, após a emenda
45/04, nota-se uma postura mais ativa por parte do Supremo Tribunal Federal, que passou a
suprimir lacunas deixadas pelo Poder Legislativo, devido, entre outros fatores, à valorização
dos institutos constitucionais, experimentada há mais tempo em outros países. Presentemente,
estima-se mais o acesso à justiça que a forma e flexibilizam-se velhos dogmas do processo em
favor da real garantia da prestação jurisdicional. Contudo, nem sempre foi assim. O
Judiciário, por muito tempo, foi o mais passivo dos poderes do Estado.
Durante a ditadura militar (1964 – 1985), o Supremo Tribunal Federal mostrou-se
extremamente contemplativo, apático e inexpressivo. Nesse período, o anseio de parte
considerável da comunidade jurídica e da sociedade brasileira era um Judiciário aliado às
decisões interpretativas, assumindo uma atuação criativa com vistas a solucionar antigos
problemas ligados à inconstitucionalidade por omissão, eliminando as barreiras opostas contra
a efetivação de direitos e garantias fundamentais previstos constitucionalmente.
79
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 57.
68
Antes da ditadura militar, durante a República de 1889 a 1930, o STF assumiu postura
relativamente inovadora, com a doutrina brasileira do habeas corpus, que representou
significativa mudança de posicionamento rumo a uma atuação mais desembaraçada por parte
do STF.
3.2.1 Doutrina brasileira do habeas corpus
A doutrina do habeas corpus refere-se à construção interpretativa desse instituto, antes
da elaboração constitucional do mandado de segurança. A ausência na Constituição de
garantias processuais voltadas à tutela de liberdades outras que a de locomoção, ameaçadas
gravemente pelo autoritarismo presidencial dos primeiros anos da República, forçava
advogados e juízes a procurarem alargamento nas situações de incidência do habeas corpus.
Nessa construção doutrinária, fica nítida a criatividade no exercício da função jurisdicional,
imprescindível à adaptação do Direito diante de novas exigências sociais.
A Constituição de 1824 elaborou garantias para impedir prisões arbitrárias, mas não
contemplou um instituto processual apto a fazer cessar a coação ilegal em prejuízo da
liberdade de locomoção. Essa lacuna foi preenchida pelo Código de Processo Penal de 1832,
que trouxe em seu bojo a ação de habeas corpus. Após a proclamação da República, sob a
influência estadunidense, o habeas corpus ganhou guarida constitucional, em 1934. Rui
Barbosa defendeu com afinco que a Constituição tinha conferido ao instituto conformação
mais ampla que a constante do Código de Processe Penal de 1832. Alicerçado na teoria da
posse dos direitos pessoais, o mencionado doutrinador entendia que a proteção possessória
não se prestava apenas à defesa de coisas corpóreas, mas também de coisas intangíveis.80
No entanto, o STF não admitia a extensão dos interditos a outros casos não legalmente
expressos até que veio a estender a garantia protetiva do artigo 72, § 22, da Constituição de
1891 a liberdades outras que a de locomoção, quando concedeu habeas corpus a um grupo de
intendentes do Conselho Municipal do Distrito Federal, autorizando-os a adentrarem no
edifício sede do Conselho e concluir a tarefa de averiguação de poderes dos intendentes
eleitos, contrariando o decreto presidencial, que, ante a polêmica sobre a regularidade das
eleições para o Conselho, havia determinado que o prefeito do Distrito Federal assumisse a
80
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 226-228.
69
administração e o governo total da Capital. O Presidente da República, Hermes da Fonseca,
desobedeceu à decisão do STF, dissolvendo o órgão legislativo do Distrito Federal e
convocando novas eleições. Provocado, o STF concedeu nova ordem de habeas corpus,
também desrespeitada pelo Presidente de República, sob o argumento de que o Judiciário
havia extrapolado suas atribuições, substituindo-se ao Executivo.81
O habeas corpus se destina unicamente a garantir a liberdade de locomoção, ainda que
constitua essa um instrumento para o exercício de outros direitos individuais, bem como de
direitos secundários civis, políticos ou administrativos. A proteção estendida que o habeas
corpus propiciava para além da liberdade de locomoção beneficiava apenas o exercício
conexo de outros direitos e liberdades constitucionais – líquidos e certos, que não
demandavam dilação probatória – e não o exercício inteiramente autônomo dessas
prerrogativas.
Ao final da segunda metade do século XX, já estava quase consolidada a
jurisprudência do alargamento do habeas corpus. Esse posicionamento não excedia os limites
legais e constitucionais já que completamente estruturado a partir da interpretação extensiva
da garantia, com apoio em elementos genéticos, gramaticais, sistemáticos e teleológicos. A
doutrina brasileira do habeas corpus foi suprimida pela reforma constitucional de 1926, que
acolheu a posição restritiva. O problema restou resolvido quando da previsão do mandado de
segurança na Carta de 1934.
A par do habeas corpus, a reclamação constitucional e o mandado de injunção foram
reconfigurados por meio de uma interpretação criativa, demarcando a mudança no
entendimento jurisprudencial do STF. Com efeito, a reclamação constitucional e o mandado
de injunção, após a promulgação da Emenda Constitucional nº. 45/200482, vêm perdendo a
característica de instrumentos de tutela de direito individual para adentrarem, por meio de
uma construção interpretativa do STF, no palco dos processos objetivos de tutela de controle
de constitucionalidade das leis e atos do Poder Público.
3.2.2 Reclamação constitucional
81
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 228-229.
BRASIL, Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm>. Acesso em: 10/10/2010.
82
70
A reclamação (RCL), resultado de construção pretoriana, nasceu com o surgimento do
Supremo Tribunal Federal. Sua formulação recebeu influência da Suprema Corte
estadunidense. O cabimento da reclamação como veículo próprio à superação de ofensa a
julgado do STF foi afirmado no Recurso Extraordinário nº. 13.828/1950. Iniciou-se, a partir
de então, um longo debate, que perdurou ainda na fase em que o instituto foi incluído no
regimento interno do STF e conheceu fim com sua previsão constitucional.
Inicialmente o STF entendeu não cabível a reclamação nas seguintes hipóteses fáticas,
revelando percuciente prudência na adoção do mecanismo:
a) a interposição preventiva, tendo em conta ato futuro; b) aquelas que
tenham por objeto decisões judiciais já transitadas em julgado (Súmula 734/STF); c)
as que invoquem como paradigma (decisão violada) o indeferimento pelo Supremo
Tribunal Federal de liminar em sede de ADI; d) aquelas cuja análise da eventual
violação à autoridade de decisão pretérita esteja a exigir exame de matéria de fato; e)
as em que a assertiva proferida em sede do Supremo Tribunal Federal que se afirme
violada seja, no acórdão, mero dicta; f) aquelas em que a suposta decisão violadora
da competência ou autoridade do Supremo Tribunal Federal tenha tão - somente
negado providência acauteladora, entre outras.83
Nota-se que o STF vem revertendo essa orientação limitadora primitiva, ampliando o
alcance da reclamação. A Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 199384, consagrou a
vinculatividade de pronúncia em controle abstrato, o que resultou na expansão do rol de
legitimados à propositura de reclamação, para nele se compreender todos os atingidos pela
negativa de observância desse mesmo efeito vinculante.
O Ministro Gilmar Mendes, do STF, entende que a reclamação apresenta-se como
oportunidade para o exercício do poder de fiscalização da constitucionalidade das leis,
provocado não pelo ajuizamento das figuras próprias (Ação Direta de Inconstitucionalidade,
Ação Declaratória de Constitucionalidade, Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão
e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental), mas por essa ferramenta mais
universalizada. Na relatoria da Reclamação nº. 2.126/SP, o ministro afirmou que a
abrangência do efeito vinculante das decisões não está adstrita à parte dispositiva, envolvendo
também os fundamentos determinantes, a fim de se alcançar a proteção mais abarcante da
Constituição.85
83
VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório
de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 45-46.
84
BRASIL, Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc03.htm>. Acesso em: 10/10/2010.
85
VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório
de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 49-52.
71
A ampliação das potencialidades da reclamação revela-se pela expansão do elenco de
legitimados, assim como pela possibilidade de pronúncia incidental de inconstitucionalidade
legal no seio da reclamação, como ocorreu na RCL 595/SE de 23/05/2003, bem assim pelas
propostas de transcendência dos motivos determinantes. Nota-se nesses três aspectos a
dilatação das fronteiras da reclamação, possibilitando ao STF intervir no tratamento de temas
que não haviam percorrido, necessariamente, a estrutura hierárquica do Judiciário.
A partir do decidido nas RCL 1.987/DF, RCL 4.219 e RCL 4.987/PE fixa-se
precedente no sentido da admissibilidade da transcendência dos motivos determinantes da
decisão para provimento de reclamação. Entretanto, o tema ainda não foi pacificado.
Na RCL 4.335, o STF passou a reconhecer o cabimento de reclamação para extensão
dos efeitos da decisão proferida na seara do controle concreto a outros sujeitos não integrantes
da demanda originária. A possibilidade de ampliar os limites subjetivos da pronúncia de
inconstitucionalidade via reclamação não prescinde da aplicação do mecanismo da mutação
constitucional operada sobre o artigo 52, X, da Constituição86, esvaziando-o de qualquer
conteúdo para dispensar a intervenção do Senado na outorga dos efeitos erga omnes à
decisão.
No Habeas Corpus (HC) 82.959/SP foi declarada, incidentalmente, pelo STF, a
inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da lei 8.072/90, que proscreve a progressão do regime
penal nos crimes hediondos. A questão da reclamação em exame era a de saber se essa
declaração de inconstitucionalidade inter partes teria o condão de estender os efeitos para
outros sujeitos não integrantes da demanda originária.
O juiz da vara de execuções penais do Estado do Acre havia afixado comunicado nas
dependências do Fórum explicando que o teor do HC 82.959/AC somente teria eficácia aos
condenados por crimes hediondos que estivessem cumprindo penas, a partir de expedição de
resolução, pelo Senado Federal, suspendendo a eficácia do dispositivo declarado
inconstitucional pelo STF, nos termos do artigo 52, X, da Constituição da República de 1988.
Todavia, o Ministro Gilmar Mendes entendeu por bem concluir pela mutação do teor
do referido artigo, a partir da sistematização da jurisprudência recente da Corte. O resultado
dessa sistematização chamou de contexto normativo, porque formado por normas oriundas da
jurisprudência e das leis. Assim, o sistema do controle difuso paulatinamente se esvaziaria,
afastando o Senado Federal do referido processo e fortalecendo o controle concentrado de
86
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 52, inciso X.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
72
constitucionalidade. A justificativa para isso seria a morosidade na prestação jurisdicional e a
insegurança jurídica proveniente da divergência de interpretação das normas.87
O Ministro Gilmar Mendes apresentou um novo contexto normativo, diferente do que
teria dado origem à suspensão pelo Senado da execução da lei declarada inconstitucional,
amparado nos seguintes argumentos: a) a origem do sistema de controle remonta ao common
law, que, por ter feitio incidental nos seus julgados, necessita de um poder competente para
declarar a nulidade da norma inconstitucional definitivamente; b) a situação é diferente em
sistema de controle concentrado, que é o caso do Brasil, onde se reconhece à Suprema Corte o
poder de atuar como legislador negativo, retirando a validade da lei inconstitucional; c) o
instituto da suspensão da execução da lei pelo Senado é falho por não cingir a interpretação
conforme; d) o artigo 97 da Constituição (1988) disciplina que fica dispensado o
encaminhamento do tema constitucional ao plenário do tribunal quando o STF já tiver se
pronunciado a respeito do tema (equiparam-se os efeitos das decisões proferidas nos
processos de controle abstrato e concreto); e) o STF reconhece o efeito vinculante da
declaração de inconstitucionalidade de lei municipal sobre lei de idêntico conteúdo, em sede
de recurso extraordinário, caracterizando-se o efeito vinculante dos fundamentos
determinantes; f) o controle de constitucionalidade exercido nas ações coletivas, a priori inter
partes, na verdade tem alcance maior; g) a ADPF estabeleceu elo entre os dois modelos de
controle, atribuindo eficácia geral a decisões incidentais; h) uma vez declarada a nulidade
pelo STF de ato normativo inexistente, não é preciso a atuação de outro poder para suspender
os efeitos do que o Judiciário já declarou inexistente, com efeitos ex tunc.88
O Ministro Gilmar Mendes propugna pela não aplicação do artigo 52, X, da
Constituição, com apoio na operação do mecanismo de mutação constitucional ou reforma da
Constituição sem expressa modificação de texto. Isto é, o ministro está a afirmar que,
mediante o mecanismo da mutação constitucional, o sentido empregado ao texto, que indica
competência do Senado Federal para suspender a execução da lei declarada inconstitucional
por decisão do STF, passaria a exprimir competência do Senado Federal para dar publicidade
à suspensão da execução operada pelo STF de lei declarada inconstitucional, também pelo
STF.
Essa teoria do novo contexto normativo proposta pelo Ministro Gilmar Mendes com
vistas a operar a mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal de 1988, não
87
MENDES, Gilmar Ferreira, 2006 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o
Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 124-125.
88
MENDES, Gilmar Ferreira, 2006 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o
Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 125-126.
73
guarda conformidade com a literalidade do texto constitucional, que expressamente exige a
atuação do Senado Federal para suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo
STF. O processo de mutação constitucional é desejável a fim de adaptar o Direito às novas
exigências sociais; todavia, deve ser levado a efeito sem violar a literalidade do texto
normativo. Como dito alhures, uma mutação constitucional por interpretação é admissível,
mas é absolutamente repelida a ideia de um rompimento constitucional, o que ocorre se o
intérprete decide de forma contrária aos dispositivos da Constituição.
Emprestar ao mencionado artigo o sentido de que ao Senado Federal cumpre dar
publicidade à suspensão da execução realizada pelo STF quando o dispositivo constitucional
expressamente confiou ao Senado a missão de suspender a execução de lei declarada
inconstitucional é desrespeitar a Constituição, o que se revela em ativismo judicial afrontoso
ao Estado de Direito e, especialmente, pernicioso, por advir da Corte que deve zelar pela
guarda da Constituição e das leis.
Além disso, nos termos do artigo 103-A da Constituição89, o Supremo Tribunal
Federal,
diante
da
repercussão
geral
da
matéria,
analisando
incidentalmente
a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, pode editar súmula
vinculante, que guarde pertinência temática com o assunto tratado, promovendo a celeridade e
a segurança jurídica. Não há razão, portanto, nem ao menos de ordem pragmática, a justificar
que o STF realize esse inconstitucional mecanismo de mutação constitucional atinente ao
artigo 52, X, da CR90.
Assinale-se que em relação ao controle concentrado, a Constituição não exige a
resolução senatorial suspensiva do ato estatal declarado inconstitucional pelo STF, situação
em que os efeitos da decisão, com o trânsito em julgado do aresto da Corte constitucional, são
retroativos e dirigidos à generalidade.
3.2.3 Mandado de injunção
89
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art.103-A.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
90
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 52, inciso X.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
74
Após a Constituição de 1988, o princípio da força normativa trouxe os institutos da
ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do mandado de injunção. Da ação direta de
inconstitucionalidade por omissão resulta a cientificação ao poder competente para adoção
das providências necessárias ou, ainda, a concessão de prazo ao órgão omisso para elaborar a
norma faltante. Quanto ao mandado de injunção a polêmica é grande.
De início, o STF limitava-se a comunicar a omissão ao órgão competente para a
elaboração da lei faltante, entregando provimento de natureza meramente declaratória. Tal
posicionamento encontrava resistência na própria Corte. Havia ministros que defendiam a
natureza condenatória da decisão acolhedora do pedido injuncional, que teria o condão de
ofertar prazo ao órgão competente para formular a norma faltante, admitindo-se, na
persistência da inércia, a intervenção mais concreta do Judiciário para transpor o obstáculo à
efetividade do direito fundamental prejudicado pela ausência de norma reguladora. O terceiro
posicionamento reconhecia caráter constitutivo ao provimento jurisdicional, competindo ao
Judiciário elaborar a norma faltante para disciplinar a matéria pendente de regulamentação, a
suprir, dessa forma, a omissão do legislador.
O mandado de injunção teve como precedente inicial o MI 107/QO de 1990, que se
restringiu a reconhecer a omissão do legislador e o prejuízo do gozo de um direito
fundamental, para declarar a mora e alertar a autoridade competente para suprir a omissão,
sem que houvesse, depois disso, mudanças substanciais nas decisões da Corte.
Até que o STF passou a entender que ao término do prazo conferido para o legislador
suprir a omissão, sem que o tivesse feito, à parte autorizava-se pedir, em juízo próprio, o
benefício solicitado (MI 238), ou mesmo imediatamente desfrutar do direito pretendido (MI
232 e 284).
A predominância do pensamento conservador perdurou até a prolação das decisões
nos mandados de injunção 670, 708 e 712, que enunciaram, a partir dos parâmetros traduzidos
na lei 7.783/89, a regra abstrata de conduta a disciplinar o exercício do direito de greve por
parte dos servidores públicos, até a edição de legislação própria.
Essa nova postura sustenta-se no argumento de que a simples comunicação da
existência da omissão não supera a inobservância da Constituição. Sendo assim, o STF deve
construir provimento apto a ensejar contornos normativos aplicáveis ao caso concreto. Nesse
contexto, o alargamento das potencialidades do mandado de injunção manifesta-se pelo
afastamento da cláusula de bloqueio atinente à suposta violação da harmonia entre os poderes.
75
O MI 712-8/PA é sobre a greve dos servidores públicos do Poder Judiciário e o MI
670 é sobre a greve de policiais civis. A questão objeto de discussão tanto em um quanto no
outro se relaciona ao direito de greve no serviço público.
O primeiro trazia o pedido do sindicato dos servidores da justiça do Estado do Pará no
sentido de se efetivar o dispositivo constitucional que reconhece aos servidores públicos o
direito à greve (artigo 37, VII, da CR). O ministro Eros Grau, relator do processo, viabilizou o
exercício do direito de greve aos servidores públicos, apresentando como parâmetro
normativo a Lei nº. 7.783/89.
O Ministro Eros Grau, do STF, fundamentou sua decisão explicando que não haveria
risco de violação do equilíbrio e harmonia entre os poderes, quando do exercício de função
normativa pela Corte, posto que a função normativa e a legislativa não se identificam, eis que
texto e normas são coisas diferentes, aquele é objeto de interpretação da qual resultam as
normas. No mandado de injunção, o Judiciário interpreta o Direito, em sua integralidade, para
produzir a norma aplicável à omissão. Assim, segundo o ministro, ao Judiciário incumbe
retirar a omissão, definindo a norma adequada à regulação do caso concreto, norma essa
encartada como texto normativo sujeito à interpretação. Portanto, o julgador não estaria
legislando, mas exercendo função normativa, compatível com o compromisso do mandado de
injunção de efetivar o texto constitucional. Isto é, no mandado de injunção, o Poder Judiciário
não define norma de decisão, mas emite a norma regulamentadora faltante para, no caso
concreto, viabilizar o exercício do direito. 91
Nessa esteira de pensamento, o mandado de injunção visa proporcionar maior
efetividade ao direito fundamental, ainda não exercido em razão da omissão legislativa. Para o
Ministro Eros Grau, a proteção não se dirige apenas ao impetrante. Assim, o resultado do MI
712-8/PA não afetaria apenas o patrimônio jurídico do sindicato impetrante, mas também o de
todos os servidores do Poder Judiciário do Estado do Pará. Destarte, não se trata de
contemplar um direito subjetivo, mas garantir a efetividade da Constituição no seu sentido
objetivo, com efeitos erga omnes.92
Igualmente, no julgamento do mandado de injunção nº 721-7/DF, constatou-se
expressiva alteração no posicionamento da Suprema Corte, passando-se a atribuir à decisão
que defere o pleito de injunção natureza constitutivo-condenatória ou constitutivomandamental.
91
GRAU, Eros, 2007 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo
Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p.59.
92
GRAU, Eros, 2007 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo
Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p.130-131
76
Verifica-se nesse novo posicionamento do STF concernente ao mandado de injunção a
preocupação em efetivar os direitos fundamentais, sem que isso implique comprometer o
equilíbrio entre os poderes, eis que a inércia em legislar quando a Constituição exige a
produção legislativa altera o alcance dos dispositivos constitucionais, gerando um processo
inconstitucional de mutação constitucional. Desse modo, a paralisação legislativa deve ser
tida como inconstitucional.
As consequências da não observância de dispositivos constitucionais são graves para o
Estado Democrático de Direito. Nada justifica a inércia do Legislativo e a inapetência do
Judiciário. O direito à legislação é passível de ser reclamado pelo interessado, quando exista
previsão constitucional do dever estatal de produzir normas. Cuida-se do direito que o cidadão
tem à norma.
Não há razoabilidade na omissão: já são 22 anos de promulgação da Constituição. O
Congresso Nacional, não obstante a existência de inúmeros projetos de leis, não assumiu
postura séria no sentido de concretizar os dispositivos constitucionais. A força normativa da
Constituição viabiliza interpretação capaz de possibilitar a máxima efetividade do texto
constitucional, tarefa confiada não exclusivamente ao Legislativo. Desse modo, a força
normativa da Constituição é um postulado que fornece substrato teórico para a postura ativista
dos tribunais, em casos desarrazoados de omissão legislativa.
A transição do passivismo judicial para o ativismo, ocorrida no Supremo Tribunal
Federal, a par da doutrina brasileira do habeas corpus, da reclamação constitucional e do
mandado de injunção, deve-se também à concessão de efeito vinculante às decisões da Corte;
por isso a abordagem que segue.
3.2.4 Vinculatividade das decisões do Supremo Tribunal Federal
O Supremo Tribunal Federal, ocupando o topo da estrutura do Poder Judiciário, é o
guardião da Constituição; atua na qualidade de principal intérprete do Texto Fundamental. Tal
estrutura funcional leva a questionar se as decisões do STF subordinam os tribunais inferiores
e outras estruturas de poder e, ainda, se a vinculatividade de uma decisão restringe-se tão
somente à parte dispositiva.
77
O efeito vinculante não é fenômeno recente no Direito brasileiro, tendo sido previsto
pela emenda constitucional nº 7, de 13 de abril de 1977. A finalidade do efeito vinculante,
resultante do papel político-institucional desempenhado pela Corte constitucional na
qualidade de guardiã da Carta Fundamental, é funcionar como elo entre o controle
concentrado e o difuso, além de proporcionar certeza jurídica e, assim, assegurar a justiça,
com o que o STF cumpre a sua missão institucional de salvaguardar a Constituição. Ao
conferir efeitos vinculantes a uma decisão, o STF submete os demais órgãos do Judiciário e a
Administração Pública aos seus posicionamentos.
O tema tem enfrentado grandes controvérsias. O tom das discussões foi agravado com
a instituição do mecanismo da súmula vinculante, o que contribuiu para o surgimento de uma
nova problemática: a transcendência dos motivos determinantes. A propósito, na ADI em
agravo regimental da RCL 1.880/SP, o relator entendeu que o alcance do efeito vinculante das
decisões não se limita ao dispositivo, devendo abraçar os fundamentos determinantes.
Na medida cautelar em RCL 4.987-6/PE, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que
mesmo que não se conceda efeito vinculante dos fundamentos determinantes à decisão, o
tribunal, em sede de reclamação contra a aplicação de lei análoga àquela afirmada
inconstitucional, poderá declarar incidentalmente a inconstitucionalidade da lei ainda não
atingida pelo juízo de inconstitucionalidade. Na RCL 1.987-0/DF, o ministro Maurício Corrêa
entendeu admissível a reclamação contra qualquer ato administrativo ou judicial que exija
interpretação constitucional consagrada pelo STF, na seara de controle concentrado,
conquanto a ofensa se dê de forma oblíqua.93
Gilmar Mendes, na RCL 2.363-0/PA, aduziu que a ação declaratória de
constitucionalidade (ADC) é uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) com o sinal
trocado, tendo ambas efeitos práticos semelhantes. A decisão de mérito proferida na ADC
produz eficácia erga omnes e efeito vinculante para os demais órgãos do Judiciário e para a
Administração Pública. Quando cabível em tese a ADC, a mesma força vinculante deverá ser
atribuída à decisão da ADI.94
A partir desses julgados, o efeito vinculante traz algumas implicações, a saber: a)
dever geral imposto a todos os órgãos sujeitos ao tribunal de acatar e cumprir sua decisão,
ainda que não tenham participado do processo no qual foi proferida; b) os órgãos
mencionados vinculam-se aos fundamentos da decisão da Corte, também em suas condutas
93
VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório
de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 89-90.
94
MENDES, Gilmar Ferreira, [20 _ _] apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o
Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 88-89.
78
futuras, uma vez que o efeito vinculante abarca não apenas o dispositivo, mas, de igual modo,
os fundamentos determinantes da decisão. Assim sendo, a decisão vinculante não se restringe
a solucionar o caso em exame, contém comandos gerais e abstratos, que indicam uma norma
reguladora e sua respectiva obrigatoriedade.95
Esse novo posicionamento demonstra uma performance ativista por parte do STF que,
de um lado, cumpre o propósito de alcançar a racionalização das competências inerentes à
Corte, seja no atinente ao desejo de evitar a multiplicidade de demandas, seja com vistas a
garantir a uniformização de tratamento, seja com o fim de servir à celeridade, bem como à
segurança jurídica, e de outro, se concretizada além dos limites legais e constitucionais enseja
afronta ao Direito, na medida em que o Supremo Tribunal Federal dota-se de poderes
soberanos e acaba por limitar a atuação jurisdicional dos juízes, também investidos da
prerrogativa de dizer o direito, com independência.
Por isso, o STF, quando diante de questões concernentes à vinculatividade de suas
decisões deve agir prudentemente, incorporando sua incumbência de fielmente salvaguardar a
democracia brasileira, sem prostrar-se aos interesses dos grupos de poder preocupados em
manter o status quo sócio-econômico.
Examinado o processo de transição do Supremo Tribunal Federal do passivismo para o
ativismo, passa-se à análise do ativismo já consolidado na Corte constitucional.
3.3
ATIVISMO NA RECENTE JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL
É notória a consagração da ampliação da jurisprudência, que se forma no sentido de
uma maior intervenção do Poder Judiciário. Não se ouvida que o STF vem capitaneando o
arbitramento dos atuais conflitos políticos nacionais, com decisões que repercutem
profundamente na sociedade. No tópico anterior, estudou-se o histórico da prática do ativismo
nas decisões da Suprema Corte. Aqui será abordada a produção jurisprudencial mais recente,
nitidamente ativista, abrangendo a construção pretoriana da perda de mandato por desfiliação
95
VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório
de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 92.
79
partidária, a restrição à nomeação de parentes para cargos de confiança e a implementação de
direitos sociais e fundamentais veiculados por normas de eficácia limitada.
3.3.1 Perda de mandato por desfiliação partidária e questões políticas
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), fincado no princípio da representação
proporcional e no teor do artigo 14, § 3º, IV, da Constituição da República96, decidiu que o
desligamento voluntário do partido integrado pelo parlamentar no momento de sua eleição
traz como consequência a perda do mandato, eis que os partidos políticos mantêm a vaga
obtida pelo sistema eleitoral proporcional.
A perda do mandato, que não se dá de forma automática, decorre da desfiliação
partidária voluntária, não se tratando de uma sanção, já que filiação e desligamento de partido
político são direitos subjetivos. O mandato, a rigor, pertence ao partido, devido ao regime
constitucional de democracia representativa e partidária, orientado por regras do sistema
proporcional; os candidatos são, portanto, instrumentos das coligações para a execução de
programas acolhidos pelo eleitor.
Nesse sentido posicionou-se recentemente o STF, alterando sua tradicional orientação,
o que ficou assentado no julgamento dos Mandados de Segurança nº. 26.602/DF, 26.603/DF,
26.604/DF e 20.927-5/DF. Ressalve-se que nos casos de ocorrência de alteração significativa
na orientação programática do partido, bem como de comprovada perseguição política, a
saída do partido não enseja a perda do mandato.
O principal argumento que legitima a perda do mandato por desfiliação partidária está
esteado no princípio da representação proporcional e na norma-princípio que assegura aos
partidos o monopólio das candidaturas em eleições sob o sistema proporcional ou majoritário.
Além disso, a infidelidade partidária causa impacto negativo ao direito fundamental de
oposição e, por conseguinte, ao pluralismo político, um dos fundamentos do nosso Estado
Democrático de Direito. O STF, portanto, andou bem, já que está compelido pela
Constituição a efetivar os dispositivos constitucionais.
A perda de mandato do parlamentar, eleito pelo sistema proporcional, que se desligue
voluntariamente do partido pelo qual concorreu é um reforço ao princípio da
96
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 14, § 3º, inciso
IV. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
80
proporcionalidade, projetando-o para um momento posterior ao procedimento eleitoral em si e
protegendo o partido político cuja importância avulta cada vez mais. O mandato é da legenda
e os eleitos pelo partido o foram para cumprir seu programa. De tal modo, os mandatos
pertencem ao partido e seus titulares devem ater-se às diretrizes do mesmo, sob pena de violar
a vontade do eleitor, salvo se houver uma mudança de orientação, ou, ainda, em situação de
perseguição política.
Parte da comunidade jurídica critica esse posicionamento ativista do STF, que estaria
agindo além de suas competências previstas constitucionalmente. Esses juristas sustentam que
um princípio constitucional não pode servir de fundamento para impor normatização
destoante da competência da Suprema Corte, pensamento que não merece prosperar. Os
princípios, impregnados de valores e dotados de força normativa, são as normas mais
importantes do Direito positivo, máxime em sede constitucional, revelando-se hábeis a
resolver o caso concreto.
A Resolução nº 22.610/2007, do TSE, firmou o caráter constitutivo da decisão sobre a
perda do mandato em caso de troca de legenda; atribuiu a competência decisória ao TSE, no
caso de mandatos federais, e aos tribunais regionais, nos demais casos; assegurou ampla
defesa aos parlamentares e; por fim, fixou um rol de justas causas capazes de afastar a perda
de mandato.97
Ressalte-se que não obstante o Supremo Tribunal Federal estar se revelando um
tribunal ativista, o que fica demonstrado em seu posicionamento sobre a fidelidade partidária;
algumas de suas decisões, porém, denotam a prudência da Corte no que toca a determinadas
questões políticas.
Exemplo disso é a decisão do STF, proferida no dia 18/11/2009, sobre a extradição de
Cesare Battisti para a Itália, na qual o Plenário do Supremo Tribunal Federal autorizou a
extradição, por cinco votos a quatro. No entanto, apontou que a entrega ou não do italiano
caberia ao presidente da República, por entender que este se dota de poder discricionário, na
qualidade de chefe de Estado.
Ainda sobre questões políticas, recentemente, o STF foi provocado por Joaquim Roriz,
ex-candidato ao governo do Distrito Federal, que teve sua candidatura impugnada, pela
Justiça Eleitoral, com base na Lei Complementar nº. 64/9098, com a redação alterada pela Lei
Complementar nº 135/2010, a famigerada Lei da Ficha Limpa, a qual proíbe a candidatura de
97
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº. 22.610, de 08 de novembro de 2007. Disponível em:
<http://www.tse.gov.br/internet/legislacao/eleitoral.htm>. Acesso em: 10/10/2010.
98
BRASIL. Lei Complementar nº. 64, de 18 de maio de 1990. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp64.htm> Acesso em: 10/10/2010.
81
políticos com condenações por segunda instância. Joaquim Roriz aduzia em seu recurso que o
Tribunal Regional Eleitoral (TRE) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contrariaram a
Constituição, eis que a Lei da Ficha Limpa deveria ter entrado em vigor um ano antes das
eleições a fim de aplicar-se à sua candidatura.
O julgamento do recurso de Roriz ficou suspenso diante do impasse criado pelo
empate em cinco votos a cinco, tendo em vista que a Corte está com uma de suas cadeiras
vagas desde a aposentadoria de Eros Grau, ocorrida em agosto de 2010. O desempate poderia
se dar de três formas, de acordo com o regimento interno: a) voto do presidente Cezar Peluso;
b) indicação de um novo ministro pelo Presidente da República; ou c) convocação de um
magistrado do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O ministro Cesar Peluso entendeu por bem esperar a indicação de um ministro pelo
Presidente da República. A falta de definição do STF levou o ex-governador a anunciar a
renúncia à disputa. Após a renúncia, por perda de objeto, o Plenário do STF decidiu arquivar
o recurso. Antes de interromper a sessão, os ministros do STF aprovaram a chamada
repercussão geral, determinando que a decisão sobre o caso sirva de precedente para
processos semelhantes em instâncias inferiores.
A indefinição do Supremo Tribunal Federal perdurou até o dia 27/10/2010, quando os
ministros do STF decidiram a favor da aplicação da Lei da Ficha Limpa, indeferindo a
candidatura do Deputado Federal Jader Barbalho (PMDB-PA). O placar permaneceu dividido
sobre a constitucionalidade da vigência da lei para as eleições desse ano. Porém, os ministros
decidiram, por sete votos a três, que prevalece a decisão do TSE, ante a ausência de posição
majoritária no STF.
O impasse do STF havia provocado críticas por parte da sociedade, que respirou
aliviada após a resolução do assunto. Esse episódio demonstrou o quanto o povo brasileiro
anseia que o Judiciário moralize a política e fortaleça o jogo democrático. Nesse sentido, vem
a tona uma questão há muito debatida, a saber, o nepotismo, contra o qual vem se insurgindo
a sociedade. Agiu bem o STF, ao restringir a nomeação de parentes para cargos de confiança,
não apenas no âmbito do Judiciário, mas no Executivo e no Legislativo.
3.3.2 Proibição do nepotismo
82
O STF há algum tempo vem se posicionando contrariamente à prática do nepotismo,
em observância aos princípios constitucionais da moralidade administrativa – norteador de
toda a Administração Pública, em qualquer esfera do poder –, da eficiência e da
impessoalidade, pelo qual a Administração não pode prejudicar ou beneficiar pessoas
determinadas.
A Resolução nº 7/05 do Conselho Nacional de Justiça99, na esfera do poder normativo
secundário, proibiu a prática do nepotismo no Judiciário. No recurso extraordinário nº
579.951-4/RN, por unanimidade, o STF pronunciou que, embora a Resolução nº. 7/05, do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), se restrinja ao Judiciário, a prática do nepotismo nos
demais poderes é ilícita, em virtude dos princípios explicitados pelo artigo 37, caput, da
Constituição100.
A Carta Maior determina que o provimento de cargos públicos se dê por intermédio de
concurso público de provas ou de provas e títulos, excetuando-se as nomeações para cargos
estipulados em lei de livre nomeação e exoneração (art. 37, II, CF), que são os chamados
cargos em comissão, instituto diverso da função de confiança. Esta corresponde a atividades
de chefia, coordenação, supervisão, etc., destinada a cargos de provimento efetivo; logo,
privativa de servidores. Os cargos em comissão, reservados às atribuições de direção, chefia e
assessoramento, correspondem a atividades nas quais é salutar a confiança pessoal no servidor
que as exerce. Sendo assim, a confiança é requisito para a investidura e para a manutenção no
cargo.
A fim de ampliar os efeitos do entendimento consubstanciado no recurso especial (RE)
nº 579.951, o STF expediu a Súmula Vinculante nº13, in verbis:
A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por
afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da
mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento,
para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função
gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste
mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.101
99
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº. 07, de 18 de outubro de 2005. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&task=view&id=101&Itemid=160 > Acesso em:
10/10/2010.
100
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 37, caput.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
101
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula vinculante nº. 13. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>.
Acesso: 14/10/2010.
83
Essa orientação jurisprudencial tornou-se de observância obrigatória para o Poder
Judiciário e para a Administração Pública. A propósito, na edição de súmulas vinculantes fica
patente o papel instrumental do poder jurisdicional, pelo qual o Tribunal decide de forma
prospectiva, voltada para o futuro, e não de forma retrospectiva, preocupado unicamente com
a solução de problema pretérito, à luz de proposições antecipadamente determinadas.
Elival da Silva Ramos advoga que o princípio da impessoalidade não é impeditivo, por
si só, do nepotismo, tendo em vista que a regra constitucional permite a nomeação por critério
de confiança pessoal, presente aí grande carga de subjetividade. O autor acredita que a regra
do livre provimento para cargos em comissão deve subjugar o princípio da impessoalidade, já
que a escolha de um parente próximo da autoridade nomeante para ocupar cargo em comissão
não é impessoal, mas se adéqua ao requisito da confiança estabelecido em regra constitucional
explicitamente prevista. Defende que somente a disciplina legal revela-se apta a restringir o
provimento de cargos de confiança por parentes da autoridade nomeante.102
Desse modo, o autor está a sugerir que uma regra prevaleça sobre um princípio.
Entretanto, não se pode olvidar da força normativa das normas-princípio, cujo conteúdo
prescritivo é conformador da realidade material subjacente ao ordenamento, mediante
intervenção judicial, se necessário, com o fim de efetivar os dispositivos constitucionais,
removendo-se o obstáculo gerado pela omissão dos poderes públicos.
Não há dúvida de que o princípio da moralidade sirva de sucedâneo para invalidação
de atos lesivos ao patrimônio público praticados pela Administração. Ademais, a nomeação
para cargo em comissão comprovadamente realizada por razões de interesse particular deve
ser anulada por desvio de finalidade. E é claro: o princípio da impessoalidade deve
predominar sobre a regra do livre provimento para cargos em comissão.
Diógenes Gasparini, citando Celso Antônio Bandeira de Mello, leciona que:
Os princípios são mandamentos nucleares de um sistema, seu verdadeiro alicerce,
disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o
espírito e servindo de critério para sua exata compreensão, como ensina Celso
Antônio Bandeira de Mello (RDP, 15:284). Sendo assim é certo que “violar um
princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio
implica ofensa não a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema
de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,
conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo
o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu
arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”, afirma esse notável
administrativista. (RDP, 15:284)103
102
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 261-164.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, 2004 apud GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 13 ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 07.
103
84
Outrossim, os princípios afiguram-se importantes para a concretização de direitos
fundamentais e sociais expressos em normas de eficácia limitada, o que proporciona abertura
para práticas ativistas pelo Supremo Tribunal Federal.
3.3.3 Concreção de direitos fundamentais e sociais veiculados por normas de eficácia
limitada
O Supremo Tribunal Federal atribuiu eficácia plena à norma do artigo 208, IV, da
Constituição104, que determina ao Poder Público o dever de garantir a educação infantil às
crianças de até cinco anos de idade, obrigação que se dirige principalmente aos municípios
(artigo 208 § 2º, CF105). Dessa forma, o STF assegurou a fruição de um direito subjetivo
previsto constitucionalmente; todavia, desenhado em uma norma de eficácia limitada e de
natureza programática, cuja efetivação estava a depender da execução de políticas públicas
apropriadas, papel do Legislativo e do Executivo. No entanto, passível de controle por parte
do Poder Judiciário.
Os objetivos de efetividade revelam o compromisso que o Judiciário deve ter com a
concreção do rol de direitos fundamentais, um dos principais argumentos fundamentadores do
ativismo judicial. A omissão ou o retardamento injustificável dos poderes públicos em
concretizar normas veiculadoras de direitos fundamentais, como é o caso do direito à
educação, autoriza o Poder Judiciário a conferir-lhes eficácia plena e aplicabilidade imediata.
É o que se extrai do artigo 5º, § 1º, da Constituição da República, segundo o qual “as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.106
Nos Embargos Infringentes na ADI 1.289-4/DF e na Suspensão de Segurança 3.1546/RS, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que a concretização das promessas constitucionais
deve ocorrer na proporção do que é faticamente possível em uma sociedade pluralista. Para
isso é indispensável a abertura do texto constitucional à influência do contexto fático em que
104
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 208, inciso IV.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
105
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 208, § 2º.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
106
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 5º, §1º. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
85
seja aplicado. A Constituição, como Lei Fundamental que é, obriga o magistrado a proceder à
sua correta interpretação, devendo definir o alcance de suas disposições, tendo sempre em
vista que o Texto Fundamental deve estar compreendido no bojo da realidade que impera. 107
O pensamento da reserva do possível está relacionado à realidade, perscrutando as
possibilidades do que ainda não é real e do que pode ser real no futuro. É o pensamento na
perspectiva de existência de alternativas. Indaga sobre a realidade atual sem se despreocupar
com as novas realidades, em constante adaptação às necessidades presentes e futuras, com
possibilidade de correção do passado.
No caso da Suspensão de Segurança 3.154-6/RS, requerida pelo governo do Rio
Grande do Sul para suspender decisão liminar que determinava o pagamento integral dos
salários dos delegados de polícia do estado até o último dia útil do mês, o STF entendeu que a
eficácia da norma constitucional do artigo 35, da Constituição do Estado do Rio Grande do
Sul, que obrigava a realização do pagamento da remuneração mensal dos servidores públicos
até o último dia útil do mês do trabalho prestado, estava a depender de um estado de
normalidade das finanças pública estaduais, atenuando-se a norma ante a presença de situação
de crise.
Para o Ministro Gilmar Mendes, estar-se-ia diante de uma situação em que o Direito se
manifesta como negação do Direito. O estado de exceção ocorre no momento em que
segmentos da ordem jurídica são suspensos a fim de atender a necessidades específicas, por
meio de medidas estatais revestidas de força normativa, apresentadas como Direito, que, em
determinado momento, suspendem parcelas da ordem jurídica. Assim, o estado de
anormalidade enfrentado pelo Rio Grande do Sul justificaria o afastamento das regras criadas
para situações normais.108
Não obstante, admita-se que o estado de exceção não é um Estado de Direito. O
pensamento da reserva do possível não é um parâmetro dogmático apto a delimitar a atuação
dos poderes institucionais. Este argumento pode ser facilmente utilizado como pretexto para o
não cumprimento dos dispositivos constitucionais, visto que não tem densidade teórica para
evitar uma patologia sistêmica resultante do desrespeito à ordem jurídica.
Como visto alhures, o controle judicial das leis e atos dos órgãos públicos fomentou
ambiente propício para o desenvolvimento de práticas ativistas, devido, entre outros fatores,
ao nível de liberdade dos magistrados no exercício do controle de constitucionalidade. Tendo
107
VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal:
laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 78-80.
108
MENDES, Gilmar Ferreira, 2007 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o
Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 80-82.
86
em vista que o presente capítulo destina-se a analisar a produção jurisprudencial ativista do
Supremo Tribunal Federal importa abordar determinados aspectos do controle abstrato de
normas, exercido unicamente pela Suprema Corte.
3.4
ASPECTOS ESPECÍFICOS DO CONTROLE ABSTRATO DE NORMAS
O controle de constitucionalidade pode ser concreto ou abstrato. O controle concreto,
também conhecido como difuso, aberto, por via de exceção ou defesa, é aquele exercido por
todo e qualquer juiz ou tribunal, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal. Na via de exceção,
a pronúncia de inconstitucionalidade, projetada apenas ao caso concreto, não é o objeto
principal da demanda, mas uma questão indispensável ao julgamento do mérito.
Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso são retroativos e
restritos às partes envolvidas na demanda. Contudo, se o STF, por maioria absoluta de seus
membros, pronuncia a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, os efeitos podem se
estender para todos, mediante resolução suspensiva do ato estatal editada pelo Senado
Federal, nos termos do artigo 52, X, da CR109, situação em que os efeitos não retroagirão.
Por meio do controle abstrato, também chamado de controle concentrado ou por via de
ação direta, na qual a declaração de inconstitucionalidade é objeto principal da ação, objetivase obter a pronúncia de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo em tese a fim de que o
ato estatal inconstitucional seja retirado do ordenamento jurídico. Os efeitos da declaração de
inconstitucionalidade no controle concentrado, realizado somente pelo Supremo Tribunal
Federal, são retroativos e dirigidos à generalidade.
Porém, tanto no controle concreto quanto no abstrato é possível que razões de ordem
pública, informadas pelos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, exijam que a
declaração de inconstitucionalidade tenha efeitos projetados para o futuro, ou que não
retroajam. Embora a modulação de efeitos nas decisões seja possível no controle concreto,
proceder-se-á ao estudo da modulação de efeitos apenas no controle abstrato de normas, por
ser ponto culminante do ativismo judicial.
A modulação dos efeitos temporais das decisões de controle e a manipulação do
conteúdo normativo do ato controlado, aspectos específicos do controle abstrato de normas,
109
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 52, inciso X.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
87
marcam o espaço em que a jurisdição constitucional mais se aproxima da função legislativa,
fomentando
a
criatividade
dos
órgãos
responsáveis
pelo
controle
judicial
de
constitucionalidade das leis.
3.4.1 Modulação dos efeitos temporais das decisões de controle
Os institutos da boa-fé e da segurança jurídica, temas centrais no Estado de Direito,
têm sido utilizados como argumento para justificar práticas ativistas, na medida em que
fundamentam a modulação dos efeitos temporais das decisões de controle.
A questão da eficácia temporal das decisões de controle tem relação direta com a
natureza da sanção cominada à prática inconstitucional. Nos ordenamentos europeus, que
adotam a sanção de anulabilidade para coibir o vício constitucional, o ato legislativo desfruta
de validade constitucional, até que seja golpeado por uma decisão anulatória – de natureza
desconstitutiva – por parte do tribunal incumbido de fazer o controle. Diversamente, nos
modelos de fiscalização, como é o caso dos Estados Unidos, o ato normativo inconstitucional
é declarado nulo. A decisão de controle, neste caso, é apenas declaratória, reconhecendo a
inaptidão absoluta do ato legislativo para produzir efeitos.
A diferença entre os dois sistemas, o europeu e o estadunidense, se atrela aos efeitos
temporais das decisões de controle. Se o ato legislativo é nulificado pela decisão de controle,
esta irá gozar de efeitos retroativos. Ocorrendo a anulação da lei inconstitucional, necessário é
disciplinar-lhe a eficácia temporal.
A prática da modulação dos efeitos temporais é característica dos ordenamentos
europeus, que, por se ajustarem à natureza da sanção de invalidade imposta, pode ser objeto
de regulação em nível de legislação ordinária ou ter sua marcação confiada à Corte
constitucional.
Nos sistemas como o dos Estados Unidos, a atenuação das consequências da sanção de
nulidade é alcançada por intermédio da manutenção excepcional dos efeitos de algumas
situações. Quando declarada incidentalmente a inconstitucionalidade da lei, recorre-se à
técnica da ponderação. O constituinte pode entender por bem resguardar essas situações
concretas, confiando ao órgão máximo da competência constitucional a missão de restringir a
88
amplitude temporal da declaração de nulidade, nas condições estipuladas pela Constituição.
Essa é a diretriz da Constituição de Portugal.
Nesse caso, a manipulação da eficácia temporal das decisões de controle cuida-se de
técnica compreendida no estatuto jurídico do controle de constitucionalidade da qual pode se
valer o órgão Judiciário incumbido do controle em harmonia com o Direito objetivo. Ora o
juiz constitucional desfrutará de maior liberdade, ora o juiz estará mais limitado por haver
expressa regulação no Direito positivo.
A Constituição brasileira de 1988 adotou o modelo estadunidense de controle. A
sanção de invalidade cominada aos atos normativos inconstitucionais é a de nulidade. Na
lição de Elival da Silva Ramos, a sanção de nulidade exige a presença do controle em via
incidental ao passo que a sanção de anulabilidade associa-se necessariamente ao controle
concentrado, em que se produzam decisões anulatórias com eficácia erga omnes e não
retroativas ou com retroatividade limitada. Entretanto, no Brasil inexiste qualquer cláusula
temporal a limitar a análise da constitucionalidade das leis, seja pela via do controle difuso,
seja nas ações diretas110.
A regra é que atos inconstitucionais são nulos e destituídos, em consequência, de
qualquer carga de eficácia jurídica, em razão do princípio da supremacia da Constituição,
segundo o qual dispositivos legais devem necessariamente guardar conformidade vertical com
o texto constitucional. No entanto, a ideia da segurança jurídica permitiu uma construção
jurisprudencial defensora da possibilidade de se determinar uma reformulação nos efeitos da
pronúncia de inconstitucionalidade de lei. A matéria acabou por ser tratada no artigo 27 da
Lei nº. 9.868/99111.
Elival da Silva Ramos advoga que os operadores do Direito não podem se basear
apenas em princípios constitucionais para excepcionar a sanção de nulidade absoluta, operada
no plano abstrato, considerando necessária a elaboração de uma norma expressa de mesmo
nível hierárquico, prevendo a atenuação pretendida sobre o ato invalidado, de modo que o
artigo 27 da Lei nº. 9.868/99 não poderia se prestar à regulação da modulação dos efeitos
temporais das decisões de controle.112
Antes da Lei Federal nº. 9.868/99 utilizava-se a ponderação de princípios a fim de
preservar as situações concretas constituídas fundadas nas normas invalidadas. Certo é que
não obstante o princípio da nulidade ter sido adotado pelo Direito brasileiro, seu afastamento
110
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.235.
BRASIL. Lei Federal nº. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Artigo 27. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15/10/2010.
112
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 235-236.
111
89
é possível, a depender de um juízo de ponderação, fundado no princípio da proporcionalidade
que indique a prevalência da segurança jurídica (necessidade de estabilidade das situações
jurídicas), boa-fé ou outro princípio constitucional encartado no interesse social relevante.
Antes da entrada em vigor da Lei Federal nº. 9.868/99, o STF pronunciou-se sobre a
modulação de efeitos temporais no Recurso Extraordinário nº. 147.776. Nesse caso, o STF, ao
examinar a recepção do texto contido no artigo 68 do Código de Processo Penal – que deferia
ao Ministério Público competência, expressa da assistência judiciária, para executar pena de
multa imposta no processo penal –, se rendeu ao fato de que a Defensoria Pública não estava
nacionalmente organizada, situação que determinaria a protração dos efeitos da pronúncia da
não-recepção. Contraditoriamente, o STF compreendeu que a modulação de efeitos não se
opera em hipóteses de não-recepção da norma jurídica controlada. No entanto, Gilmar
Mendes entende que também a não-recepção merece modulação de efeitos, com fundamento
em razões de segurança jurídica.
A Lei Federal nº. 9.868/99 adotou a técnica da restrição temporal dos efeitos da
declaração de nulidade, confira-se o teor do seu artigo 27:
Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões
de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal
Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela
declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou
de outro momento que venha a ser fixado.113
Elival da Silva Ramos professa que a restrição de efeitos da declaração de nulidade em
perspectiva temporal corresponde a uma convalidação parcial do ato sancionado, sendo
possível ainda a produção de alguns efeitos. Para o autor, o artigo 27 da Lei nº. 9.868 rejeita a
convalidação, sem qualquer restrição no plano temporal, de dispositivos ou normas da
legislação censurada.114
O autor relaciona os seguintes pressupostos para que a Suprema Corte promova a
convalidação parcial de ato conforme a Constituição: a) o momento em que pode ser adotada
a medida é o da prolação da decisão de mérito em ação direta de inconstitucionalidade, logo
após ser declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo impugnado; b) exige-se
manifestação favorável de dois terços dos membros do Tribunal; c) a motivação da medida
deve balizar-se em razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social. O Direito
113
BRASIL. Lei Federal nº. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Artigo 27. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15/10/2010.
114
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 203.
90
positivo faculta ao órgão de controle: a) impedir que a ineficácia do ato normativo remonte à
sua edição, estipulando um termo limite, situado entre esta e o trânsito em julgado da decisão
(restrição temporal projetada para o passado); b) determinar que a eficácia seja ex nunc
(convalidação dos efeitos até o trânsito em julgado da decisão); ou c) determinar a eficácia
pro futuro da declaração, que é a eficácia a partir de outro momento subsequente à decisão.115
Pouco tempo depois da entrada em vigor da Lei nº. 9.868/99, duas ações de
inconstitucionalidade foram propostas perante o STF, questionando a constitucionalidade de
alguns dos dispositivos da lei mencionada, dentre eles o artigo 27. Em que pese a pendência
de impugnação à constitucionalidade do artigo 27, o STF fez uso do mesmo, antes de decidir
a questão.
O principal caso, após a Lei nº. 9.868/99, cujo provimento jurisdicional ancorou-se no
princípio da segurança jurídica, foi traçado pelo ministro Maurício Corrêa no RE 197.917/SP.
Examinava-se lei orgânica municipal que dispunha sobre a fixação do número de
parlamentares integrantes do Legislativo, tendo o STF decidido, fundado em um cálculo de
proporcionalidade, que a Câmara de Vereadores contava com mais edis que o devido,
contaminando-se todas as deliberações ali ocorridas. Foram conferidos efeitos retroativos à
decisão, mas a partir de data futura, ante a imprescindibilidade de salvaguardar o interesse
público.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 197.917,
firmou posição favorável à aplicação do artigo 27 da Lei nº. 9.868/99 ao controle concretoincidental. Os Recursos Extraordinários nº. 266.994, 273.844, 274.048, 274.384, 276.546,
282.606, 199.522, 300.343 configuram casos nos quais o STF declarou incidentalmente a
inconstitucionalidade da lei orgânica municipal, conferindo efeitos prospectivos à decisão de
controle, por razões de segurança jurídica. Também foram proferidos efeitos prospectivos à
decisão da ADI 3.615.
Verifica-se que no âmbito da fiscalização concreta, os juízes, apoiados nos princípios
constitucionais de incidência simultânea ao da nulidade da lei inconstitucional, tais como
segurança jurídica, boa-fé, intangibilidade da coisa julgada, sempre preservaram certas
situações, embora fulminadas de inconstitucionalidade. Apenas as consequências indiretas do
ato invalidado são atenuadas pelo órgão julgador, valendo-se este de ponderação entre os
princípios constitucionais, não necessitando de prévia autorização do constituinte, por se
referir unicamente à função jurisdicional.
115
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 204.
91
O principal argumento que fundamenta a prática da modulação de efeitos das decisões
de controle é o fato de que, desde a vigência das normas inquinadas de vício de
inconstitucionalidade, foram consolidadas diversas situações jurídicas, que não podem ser
desconstituídas desde sua origem, sem prejuízo para o princípio da segurança jurídica.
O Ministro Gilmar Mendes leciona que o princípio da nulidade da lei inconstitucional
há de considerar que esse mesmo Estado Constitucional também seja axiologicamente
comprometido, revelando a presença do componente de ética jurídica e seu emprego nas
relações regidas pelo Direito. O ministro assinala que assim como o princípio da legalidade
deve ser observado, em igual medida o devem ser o da segurança jurídica e outros valores
constitucionalmente relevantes, tornando-se cogente a aplicação de um juízo de ponderação
entre esses vetores, empreendendo a solução que implique a mais extensa proteção da ordem
normativa.116
Na ADI 2.240-7, o Partido dos Trabalhadores ingressou com o pleito de
inconstitucionalidade da lei instituidora do Município de Luiz Eduardo Magalhães, criado em
ano de eleição municipal (2002), resultante do desmembramento de dois distritos, quando
pendente promulgação de lei complementar federal prevista no § 4º, artigo 18, da CR117, que
deveria definir o período em que se tornaria lícita a reconfiguração de municípios. O
Governador do Estado-membro defendeu a constitucionalidade da norma instituidora,
argumentando que a Constituição prevê o desmembramento de municípios.
O ministro Eros grau, no seu voto, destacou que a lei complementar não havia sido
criada e que o município assumiu existência fática, praticando atos próprios de ente federado,
há mais de seis anos, tendo, inclusive, legislado. Os cidadãos do município, de boa-fé,
acreditaram na sua autonomia política. A interpretação literal do dispositivo constitucional
conduziria a irremediável declaração de inconstitucionalidade da lei instituidora do município.
No entanto, uma decisão nesse sentido poderia gerar efeitos maléficos, promovendo
insegurança jurídica, o que serviu de fundamento para Eros Grau afirmar que a Corte não
poderia limitar-se ao exercício de subsunção. O ministro ressaltou que a normalidade é
condição para a validade e, consequentemente, a anormalidade é suscetível de excepcionar.
116
MENDES, Gilmar Ferreira, 2007 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o
Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 72-73.
117
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 18, § 4º.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
92
No caso, a omissão legislativa teria instalado um estado de exceção, excepcionando as
normas, que só valem para as situações normais.118
Acresceu o ministro que a realidade consolidada não pode ser afastada na hora da
tomada de decisão. Apontou que a declaração de inconstitucionalidade pode até declarar o ato
nulo, mas não faz desaparecer o município, dotado de existência institucional, marcada pelo
desempenho de atividades jurídicas próprias de sua competência e pelas relações
institucionais peculiares a ente da federação. Eros Grau subjuga o princípio da nulidade à
força normativa dos fatos. Em seu voto, o ministro argumenta que não aplicar o princípio da
nulidade numa situação de exceção não gera desrespeito ao ordenamento, vez que nessas
condições a norma é aplicada ao não aplicá-la. Já que devido ao tempo decorrido, uma
situação de fato equiparou-se a uma situação jurídica, o vício originário de criação deveria ser
superado, preservando-se os atos praticados, bem assim a perduração do município por tempo
indeterminado.119
A tese propugnada pelo Ministro Eros Grau não prosperou. Havia o receio de que
fosse aberto espaço para a convalidação institucional de municípios contaminados por esse
mesmo vício. Além disso, a mora legislativa na edição da lei complementar reclamada pelo
artigo 18, § 4º, da CR120 poderia ser sanada, promulgando-se a lei estadual. O julgado da ADI
em comento deferiu o pedido, determinando a inconstitucionalidade sobre a norma que
estabeleceu a criação do município de Luiz Eduardo Magalhães; porém, com a modulação dos
efeitos da pronúncia.
Na ADI 3.615, o Ministro Eros Grau propôs que a Corte fizesse uma ponderação de
quais situações mereceriam convalidação, não obstante o juízo de inconstitucionalidade.
Sugestão não acolhida pelo colegiado, que optou pela modulação de efeitos da sentença, com
a qual se teria a preservação genérica de todas as situações que se tivessem materializado sob
a regência da norma instituidora inconstitucional.
O objeto da ADI 3.489-8/SC é também a criação de município, resultante de
desmembramento, sem a lei complementar exigida pelo artigo 18, § 4º da Constituição. O
Ministro Gilmar Mendes, lançando seu olhar para as consequências políticas, econômicas e
sociais da decisão, asseverou que o tribunal não poderia focar toda a sua atenção nas
118
GRAU, Eros, [20 _ _] apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo
Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 113-114.
119
GRAU, Eros, [20 _ _] apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo
Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 115-116.
120
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 18, § 4º.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010.
93
realidades concretas constituídas impossibilitadas de serem desfeitas. Em seu voto, defendeu a
viabilidade da otimização de ambos os princípios – o da nulidade e o da segurança jurídica –
de forma a aplicá-los na maior medida possível, finalidade alcançada pela procedência da
ADI com a modulação dos efeitos da decisão.121
No caso em exame, o princípio da nulidade está em conflito aparente com os
princípios da segurança jurídica e da boa-fé. Sendo assim, a solução do problema assenta-se
na utilização da técnica da ponderação e no exame da proporcionalidade a legitimação
normativa para a modulação temporal dos efeitos da decisão. Ponderam-se os efeitos da lei
inconstitucional e os resultados da declaração de inconstitucionalidade. O melhor caminho
que se afigura, portanto, é a declaração de inconstitucionalidade da lei impugnada sem
negligenciar em conservar na maior medida possível os efeitos por ela produzidos.
Na
ADI
3.489-8/SC,
assim
como
na
ADI
2.240-7,
foi
declarada
a
inconstitucionalidade, mas não a nulidade, por 24 meses, tendo o Judiciário fixado prazo para
a edição da norma complementar faltante.
Observa-se que no ministério de concretizar a Constituição, o STF promove sua força
normativa e sua tarefa estabilizadora, reportando-se à integridade da norma concreta,
representação culminante no plano do direito pressuposto.
Mostra-se relevante a preservação de atos normativos das sanções de invalidade
decretadas pelo ordenamento e operadas pelo Judiciário, o que reflete a postura hermenêutica
de um aplicador preocupado em harmonizar o sistema jurídico, sem descuidar de outros
valores inerentes ao Estado Constitucional de Direito, tais como a isonomia, a segurança
jurídica e a proporcionalidade. Essa postura contribui para consolidar a ideia do máximo
aproveitamento dos atos normativos emanados dos poderes competentes.
Sob essa orientação, têm grassado decisões de controle que interferem no conteúdo
normativo dos dispositivos legais fiscalizados, com vistas a impor, aos operadores e
destinatários do sistema jurídico, certas variantes interpretativas ou efeitos, em detrimento de
outros. Tais decisões, classificadas como manipulativas em sentido amplo, serão estudadas a
seguir.
121
MENDES, Gilmar Ferreira apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.). Ativismo jurisdicional e o
Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 120-121.
94
3.4.2 Sentenças interpretativas e manipulativas em sentido estrito
As decisões manipulativas em sentido amplo, usadas com maior frequência na Europa
e em sistemas de perfil estadunidense, que acolhem dupla via de aplicação modal, podem ter
fundamento formal na Constituição, na legislação ordinária ou decorrer de construção
jurisprudencial, sendo subdivididas em duas categorias: as sentenças interpretativas e as
sentenças manipulativas em sentido estrito122. Anote-se que essas sentenças vêm sendo
utilizadas também no âmbito do controle difuso de constitucionalidade.
A técnica decisória empregada na sentença interpretativa origina-se da verificação de
mais de um significado para o mesmo significante – sem alteração de texto –, sendo que
alguns desses sentidos guardam conformidade com a Constituição e outros não, pelo que deve
ser eleito o significado conforme. O artigo 28, parágrafo único, da Lei Federal 9868/99,
preceitua eficácia para todos da interpretação conforme a Constituição, confira-se:
A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a
interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de
inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito
vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública
federal, estadual e municipal.123
A eficácia geral da interpretação conforme se explica pela possibilidade de utilização
combinada das duas formas de sentenças interpretativas, sendo que determinado dispositivo
pode ser considerado válido a depender do significado que se lhe atribui ou receber a pecha de
inconstitucional, se cotejado com outras variantes interpretativas.
As sentenças manipulativas em sentido estrito não se restringem a utilizar a
interpretação conforme, ensejando uma reelaboração mais intensa do conteúdo prescritivo,
reforçado por intermédio de elementos contidos em outras normas.
As sentenças manipulativas em sentido estrito subdividem-se, na Itália, em sentenças
aditivas e sentenças substitutivas ou criativas. As aditivas declaram a inconstitucionalidade de
norma sem a redução do texto de seu enunciado, sendo que o dispositivo normativo não é
eliminado do ordenamento, visto que a Corte procede a um trabalho de integralização com
uma normatização ulterior, restando configurada a inconstitucionalidade apenas se o
122
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 209-2010.
BRASIL. Lei Federal nº. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Artigo 28. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15/10/2010.
123
95
enunciado for lido sem a parte adjuntiva. O uso de sentenças manipulativas aditivas é uma
prática ativista respeitosa ao ordenamento jurídico.124
A norma constitucional utilizada como parâmetro para proceder-se ao controle de
constitucionalidade tem que dispor de eficácia plena, devendo o dispositivo inconstitucional
estar contido no campo de abrangência da regra ou do princípio. O dispositivo objeto da
extensão reconstrutiva deve contar com uma textualidade que lhe dê suporte, não se admite,
portanto, interpretação que ultrapasse as fronteiras indicadas pelo próprio texto.
As sentenças manipulativas aditivas não podem criar um Direito novo, mas apenas
corrigir normas que já existem no ordenamento. Se existe uma lacuna há a possibilidade de
integração por meio de interpretação conforme a Constituição. É claro que há efeitos
negativos na omissão legislativa ou, ainda, numa lacuna na decisão do Tribunal, por isso a
importância da integração.
A sentença aditiva de princípio é a que aponta desconformidade entre a legislação
fiscalizada e as normas constitucionais, não se introduzindo uma regra imediatamente atuante
e aplicável; fixa-se, ao contrário, um princípio geral que se deve executar por meio de uma
intervenção do legislador, porém que já pode, dentro de certos limites, ser referido pelo juiz
na decisão de casos concretos. No Brasil, a sentença aditiva de princípio não é utilizada em
razão do sistema sancionatório constitucionalmente estabelecido. Já que assim é, podem
surgir situações de inconstitucionalidade que não recomendem a pronúncia de nulidade,
mediante o diferimento dos efeitos temporais da decisão, nos termos do artigo 27 da Lei nº.
9.868/99.125
As decisões manipulativas substitutivas declaram a inconstitucionalidade de uma
disciplina e individualizam a única outra disciplina possível. Neste caso, o conteúdo
prescritivo do enunciado é substituído por outro, respeitoso aos ditames constitucionais, mas
não ao limite da textualidade.
Verifica-se que, no uso de sentenças manipulativas, o julgador tem condições de
ultrapassar a interpretação conforme, produzindo sentenças que se projetam para o conteúdo
normativo do dispositivo constitucional, substituindo-o, ampliando ou reduzindo seu alcance,
o que aproxima sobremaneira a função jurisdicional da atividade legislativa.
Obviamente a interpretação conforme a Constituição é necessária; entretanto, o
rompimento com o conteúdo do dispositivo normativo, do ponto de vista dos elementos
124
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 217-218.
BRASIL, Lei Federal nº. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Artigo 27. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15/10/2010.
125
96
gramatical, histórico, sistemático e teleológico, deve ser repelido em termos científicos.
Quando o texto admite mais de uma significação, por conter enunciados abertos, dúcteis e/ou
de conteúdo principiológico, o Judiciário, indubitavelmente, deve eleger aquela consentânea à
Constituição e ao ordenamento jurídico, promovendo a segurança jurídica e a unidade
sistêmica do Direito; mas as opções semânticas devem ser fornecidas pelo próprio texto
normativo e não integralmente criadas pelo julgador, ao adicionar conteúdo normativo
flagrantemente violador da literalidade textual.
Atento a esses limites e a outros explicitados nesse trabalho, o Poder Judiciário está
constitucionalmente autorizado a operar o ativismo judicial com o intento de fortalecer o jogo
democrático, assim como concretizar os dispositivos constitucionais e, por conseguinte,
efetivar o Estado Democrático de Direito.
97
CONCLUSÃO
O modelo de Estado intervencionista revelou-se um solo fértil para a germinação do
ativismo judicial, entendido aqui como o exercício pró-ativo da função judicial, quando da
aplicação e interpretação das leis e da Constituição, seja ao desempenhar trabalho criativo ou
construtivo, seja ao atuar em situações jurídicas imbricadas por questões políticas, sendo que
somente o ativismo respeitoso aos limites traçados pelo ordenamento jurídico pode ser
operado pelo Poder Judiciário.
A tendência mundial é alargar o elenco de atribuições do Poder Judiciário, no âmbito
de constituições principiológicas. No Brasil, o Judiciário foi ganhando projeção
paulatinamente e, por fim, chegou-se à Constituição da República de 1988, que,
acompanhando as novas visões das constituições contemporâneas, levou o Judiciário a
reforçar cada vez mais a força normativa dos princípios, quando os concretiza nas demandas
que lhe são submetidas.
Por vezes, os Poderes Legislativo e Executivo, não obstante o aumento das
competências previstas na Constituição de 1988, são omissos quanto ao cumprimento de sua
missão institucional. Não raramente, o Congresso Nacional deixa de concretizar, via função
legislativa, temas constitucionais, o que acaba por forçar o Judiciário a um posicionamento
mais ativo. Tem-se verificado, até mesmo, um viés político na atuação do Judiciário,
consubstanciado em diversos institutos jurídicos previstos pela Constituição da República,
dentre os quais podem ser destacados a ação popular, o mandado de segurança coletivo, a
súmula vinculante e o mandado de injunção.
A partir da promulgação da Constituição de 1988 e, principalmente, após a emenda
45/04, nota-se uma postura mais ativa por parte do Supremo Tribunal Federal, o que fica
evidente na interpretação criativa dos institutos da reclamação constitucional, do mandado de
injunção e da súmula vinculante, assim como nas decisões sobre perda de mandato por
desfiliação partidária, restrição à nomeação de parentes para cargos de confiança, concreção
de direitos fundamentais e sociais veiculados em normas de eficácia limitada e,
principalmente, na produção jurisprudencial atinente à modulação dos efeitos temporais das
decisões de controle e à manipulação do conteúdo normativo do ato controlado.
98
Diante desse cenário, os doutrinadores divergem em relação ao ativismo. Para quem
entende que o Judiciário deve ser atuante, não podendo assumir posição passiva diante da
sociedade, e sim exercer o papel de guardião garantidor da efetividade constitucional, o
ativismo judicial é visto com bons olhos.
Entretanto, parte da comunidade jurídica teme que o alargamento do ativismo judicial
possa abalar o princípio da separação dos poderes, consagrado pela Constituição da
República, prejudicando, por consequência, o próprio Estado Democrático de Direito. Por
isso, há quem defenda que o Direito não deve intervir na política e na sociedade.
Na verdade, não se pode afirmar que o ativismo judicial, dentro de parâmetros
normativos, esteja a ameaçar a estrutura de separação dos poderes. Assinale-se que o Estado
Social Democrático é essencialmente atuante, a ponto de impulsionar o desenvolvimento
econômico e social, ocasionando o incremento de todas as suas atribuições, inclusive a
administrativa e a legislativa. Se os Poderes Executivo e Legislativo ficam omissos ou se
atuam com desvio de finalidade ou excessos, incumbe ao Poder Judiciário fazê-los agir com
aderência ao ordenamento jurídico. O Judiciário, provocado, não pode ficar contemplativo,
pois, caso contrário, diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição – monopólio estatal
–, a omissão inconstitucional será dele, e nada mais danoso à democracia e ao Estado de
Direito que a omissão inconstitucional de um Poder a quem o povo confiou a guarda da
Constituição e das leis.
Não há razoabilidade na omissão: já são 22 anos de promulgação da Constituição.
Apesar da existência de numerosos projetos de lei, o Congresso Nacional não assumiu postura
séria concernente à concretização dos dispositivos constitucionais. A força normativa da
Constituição viabiliza interpretação capaz de possibilitar a máxima efetividade do texto
constitucional, tarefa confiada não exclusivamente ao Legislativo. Por óbvio, o Judiciário não
pode substituir-se ao Parlamento, mas deve levá-lo a cumprir sua atividade legiferante, a fim
de efetivar a Constituição.
Concretizar a Constituição, ofício de que se investe o Judiciário ativo, é essencial para
a preservação do sistema de separação dos poderes, cujo exercício implica necessariamente
atuação firme e permanente de todas as funções estatais em benefício do bem estar da
sociedade, o que está assentado no próprio texto constitucional.
Nesse ofício, o Judiciário precisa alcançar a perfeita conformação entre a criatividade
inerente à jurisdição constitucional e a necessária observância aos princípios do Estado de
Direito, dentre eles o da separação dos poderes, impedindo que o excesso institucional resulte
em lesão à soberania popular e à participação política que dela decorre. Com efeito, não se
99
pode atribuir ao povo um papel secundário na concretização de uma Constituição que se
pretende democrática.
O modo de pensar o Direito do positivismo em sentido estrito do século XIX, época de
supervalorização das ciências e dos métodos, reprovava práticas ativistas, por parte dos juízes,
que deveriam ser meros aplicadores do Direito, sem ocupar-se de qualquer trabalho criativo.
O Direito foi formulado como um conjunto sistêmico de normas, sem ponderações
axiológicas, filosóficas ou sociológicas; o positivismo, por sua vez, seria espécie de método
científico para a construção da Ciência Jurídica.
Naquele momento histórico, o receio do agigantamento do Judiciário era justificável.
É de se esperar que em uma sociedade comprometida com a contenção do poder – em reação
aos descomedimentos do absolutismo monárquico – e com a eliminação dos privilégios
feudais a lei seja a solução ideal, pois, associada ao sistema da separação de Poderes,
possibilitava a emancipação política dos europeus e a neutralização dos interesses, com a
consequente supressão do arbítrio governamental.
É comum a mudança de ideologias e de exigências sistêmicas ao longo da História. Os
temas têm seu tempo: em determinada época desenvolve-se uma problemática especial, que
acende, aprofunda-se e, por fim, emudece-se. Quando as circunstâncias mudam e as
necessidades se tornam outras, as teorias acompanham essas transformações, o que não
significa que esta ou aquela teoria esteja equivocada, eis que o pensamento irá variar ao sabor
do tempo e do lugar. O positivismo jurídico emprestou forma ao Direito, que passou a carecer
de conteúdo, motivo pelo qual recebeu importantes contribuições das correntes sociológicas e
filosóficas, as quais fornecem – cada uma ao seu modo – substrato teórico ao ativismo
judicial.
Num Estado Democrático de Direito, a tarefa do Judiciário é consolidar os regimes
democráticos, por meio de uma judicialização mais intensa da vida e da política,
concretizando os dispositivos constitucionais, o que não pode ser feito mediante arbitrária
imputação de efeitos ao signo linguístico dos textos normativos, posto que o desprendimento
do juiz à norma promulgada pelo legislador gera insegurança social, fazendo-se premente a
imposição de limites objetivos no processo hermenêutico, mediante as técnicas de
interpretação. Assim, toda e qualquer interpretação deve ser compatível com a amplitude de
sentidos projetada pelo texto da norma.
Comumente o legislador emprega conceitos vagos, abertos e indefinidos nos textos
normativos, especialmente na Constituição, o que confere maior liberdade interpretativa ao
100
magistrado, permitindo uma leitura construtiva dos princípios e sua prevalência em relação às
regras, viabilizando mais ponderação, ao invés de apenas subsunção.
Desse modo, a fixação precisa dos limites impostos ao Poder Judiciário no exercício
da jurisdição não pode restar destituída de contornos técnicos, razão pela qual aumenta a
responsabilidade da doutrina constitucional na busca pela resposta adequada à questão. Nesse
sentido, a identificação dos parâmetros dogmáticos que devem circunscrever o ativismo
judicial é o apoio lógico que precisa nortear a passagem da lei para a decisão judicial, que
necessita harmonizar-se com o conteúdo da consciência jurídica geral.
Se o ativismo judicial ultrapassar a demarcação constitucional estará a provocar
mutação inconstitucional, caracterizando-se o cerceamento inaceitável do Judiciário na
atividade de outro poder. Por isso, ao exercer o controle de constitucionalidade, o magistrado
deve ter a prudência de zelar pela normatividade constitucional e infraconstitucional. A fim de
fortalecer a Constituição deve-se valorizar sua força normativa, o que se dá pela observância
aos seus ditames.
Esse trabalho cuidou em demonstrar o ativismo judicial na qualidade de garantidor da
efetividade e do fortalecimento do Estado de Direito, por intermédio do estudo do Direito
comparado, do contexto histórico no qual se desenvolveu o ativismo, dos seus fatores de
impulsão e críticas doutrinárias, dos dispositivos constitucionais em que se revela e da
produção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. A metodologia utilizada foi a
estruturalista, uma vez que o tema foi abordado nos contornos da Constituição de 1988.
Examinar o ativismo à luz do Texto Fundamental mostrou-se essencial, tendo em vista
que um Estado Democrático de Direito é necessariamente um Estado submetido à
Constituição. Não se pode negar que o ativismo judicial suplantador dos textos normativos
apresenta efeitos nefastos. Por outro lado, se o aplicador fica aquém da norma opera-se o
passivismo, igualmente indesejável.
Portanto, a solução é trilhar o caminho do equilíbrio – triunfante ao final da maior
parte dos debates jurídicos –, sem ampliar o ativismo judicial a ponto de ruir um dos pilares
do Estado Democrático brasileiro, a saber, o princípio da separação dos poderes – isso
ocorreria ante a inobservância dos preceitos constitucionais –, e ao mesmo tempo, sem
manietar o dinamismo jurisprudencial em sua luta pela efetividade constitucional e,
consequentemente, pelo fortalecimento do Estado Democrático de Direito.
Conclui-se que somente a atuação jurisdicional ativa no seio do juridicamente
permitido é que se mostra capaz de cumprir o propósito de efetivar os institutos
constitucionais. É inaceitável que na busca pela concretização do sonho de uma sociedade
101
livre, justa e igualitária e de um Estado de Direito forte, o Judiciário aja além dos limites
traçados pela Constituição que está obrigado a defender, ameaçando a estrutura do Estado de
Direito que quer promover.
A Constituição da República já traçou o caminho a ser seguido, assim como os
objetivos a serem perseguidos. Resta ao Judiciário apegar-se aos elementos hermenêuticos
que, objetivamente, indiquem o sentido do texto normativo, cotejando as estruturas
gramaticais, sistemáticas, histórico-evolutivas, racionais e teleológicas da norma, eis que a
interpretação e a aplicação do Direito não podem ficar deslocadas dos textos constitucionais e
legais de referência. Afinal, um Estado Democrático de Direito é necessariamente um Estado
submetido à Constituição e às leis, frutos da soberania popular. Nesse contexto, o papel do
Judiciário é fortalecer o jogo democrático, por intermédio da judicialização social e política.
102
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Jediael Alves Ferreira - Universidade Católica de Brasília