Pró-Reitoria de Graduação Curso de Direito Trabalho de Conclusão de Curso O ATIVISMO JUDICIAL COMO GARANTIDOR DA EFETIVIDADE E DO FORTALECIMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Autor: Jediael Alves Ferreira Orientador: Msc. Mauro Sérgio dos Santos Brasília - DF 2010 JEDIAEL ALVES FERREIRA O ATIVISMO JUDICIAL COMO GARANTIDOR DA EFETIVIDADE E DO FORTALECIMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientador: Msc. Mauro Sérgio dos Santos. Brasília 2010 Monografia de autoria de Jediael Alves Ferreira, intitulada “O ativismo judicial como garantidor da efetividade e do fortalecimento do Estado Democrático de Direito”, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília, em _______/_______/______________, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada: ______________________________________________________________ Professor Mauro Sérgio Orientador Direito - UCB ______________________________________________________________ Direito - UCB ______________________________________________________________ Direito - UCB Brasília 2010 A Jesus Cristo, Autor da vida, Príncipe da Paz. Ao meu amado esposo Júnior. À minha terna família. AGRADECIMENTO Agradeço ao meu professor orientador Msc. Mauro Sérgio dos Santos pela dedicação ao ensino, pela amizade e pelo exemplo e aos demais professores, pela importante contribuição em minha formação acadêmica. RESUMO FERREIRA, Jediael Alves. O ativismo judicial como garantidor da efetividade e do fortalecimento do Estado Democrático de Direito. 2010. 104 folhas. Trabalho de conclusão de curso (graduação) - Faculdade de Direito, Universidade Católica de Brasília, Taguatinga, 2010. Diante da omissão dos Poderes Executivo e Legislativo no cumprimento de suas atribuições institucionais, o Judiciário vem sendo chamado a atuar em diversas questões sociais e políticas. É possível vislumbrar até mesmo um viés ideológico nas decisões do Supremo Tribunal Federal, sendo cada vez mais comum entre nós a expressão judicialização da política. A tendência mundial é aumentar o rol de atribuições das funções estatais, no âmbito de constituições principiológicas, que por reforçarem a força normativa dos princípios, de textura aberta e, às vezes, indeterminada, conferem ampla margem de interpretação aos magistrados, imbuídos da importante tarefa de efetivar os direitos fundamentais, há muito reclamados pela democracia brasileira. Há quem acredite que o ativismo judicial representa ameaça ao princípio da separação dos poderes. Por outro lado, os defensores do ativismo propugnam que, em razão do princípio da inafastabilidade de jurisdição, o Judiciário, provocado, não pode ficar apático, caso contrário, a omissão inconstitucional será da instituição a qual a sociedade confiou a guarda da Constituição e das leis. Importa que o Poder Judiciário se mantenha no âmbito estrito de suas atribuições constitucionais, alcançando o ponto ideal de conformação entre a liberdade interpretativa intrínseca à jurisdição constitucional e o ordenamento jurídico. Palavras-chave: Ativismo Judicial. Estado Democrático de Direito. Direito Constitucional. Judicialização da Política. Omissão dos Poderes Públicos. Princípios Constitucionais. Interpretação. Princípio da Separação dos Poderes. Princípio da inafastabilidade da jurisdição. Direitos Fundamentais. RESUMEN FERREIRA, Jediael Alves. El activismo judicial como garantizador de la efectividad y del fortalecimiento del Estado Democrático de Derecho. 2010. 104 páginas. Trabajo de conclusión de curso (graduación) – Faculdade de Direito, Universidade Católica de Brasília, Taguatinga, 2010. Frente las omisiones de los Poderes ejecutivo y legislativo en la observancia de sus atribuciones institucionales, el Judiciario es convocado a actuar en diversas cuestiones sociales y políticas. Es posible vislumbrar un camino ideológico en las decisiones del Supremo Tribunal Federal, donde cada dia es más frecuente entre nosotros la expresión judicialización de la política. La tendencia mundial es la de aumentar el rol de atribuciones de las funciones estatales en los ámbitos de las constituiciones principiológicas, que aumentan la fureza normativa de los principios de textura abierta y, a veces, indeterminada, confieren gran margen de interpretación a los magistrados, atribuidos de la importante tarea de efectivar los derechos fundamentales, que desde hace mucho es reclamado por la democracia brasileña. Hay los que creen que el activismo judicial representa amenaza al principio de la separación de los poderes. De otra manera, los que defienden el activismo propugnan que, en razón del principio de la inafastabilidad de la jurisdición, el Judiciario, provocado, no puede quedarse inerte, al contrario, la omisión inconstitucional será de la instituición que la sociedad confió la guardia la Constituición y las leyes. Importa que el Poder Judiciario se mantenga en el ámbito estrito de sus atribuciones constitucionales, alcanzando el punto ideal de conformación entre la libertad interpretativa intrínseca a la jurisdición y el ordenamiento jurídico. Palabras clave: Activismo Judicial, Estado Democrático de Derecho. Derecho Constitucional. Judicializacion de la Política. Omisión de los Poderes Públicos. Principios Constitucionales. Interpretación. Principio de la Separación de los Poderes. Principio de la Inafastabilidad de La jurisdición. Derechos Fundamentales. LISTA DE ABREVEATURAS E SIGLAS ABREVIATURAS Art. por artigo f. por folha nº. por número p. por página. pp. por páginas SIGLAS ADC – Ação Declaratória de Constitucionalidade ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade ADIO – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental CNJ – Conselho Nacional de Justiça CPP – Código de Processo Penal CR– Constituição da República HC – Habeas Corpus MI – Mandado de Injunção RCL – Reclamação RE – Recurso Especial Rext – Recurso Extraordinário STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça TRE – Tribunal Regional Eleitoral TSE – Tribunal Superior Eleitoral SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 1 1.1 1.2 1.3 HISTÓRICO DO ATIVISMO JUDICIAL E DIREITO COMPARADO ............. 13 CONCEITO DE ATIVISMO JUDICIAL ..................................................................... 18 ATIVISMO JUDICIAL EM SISTEMAS DE COMMON LAW E CIVIL LAW ........ 21 FATORES DE IMPULSÃO DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL ..................... 24 1.3.1 Modelo de Estado Constitucional Brasileiro ......................................................... 25 1.3.2 Expansão do controle abstrato de normas ............................................................ 26 1.3.3 Atividade normativa atípica ................................................................................... 27 1.3.4 Neoconstitucionalismo ............................................................................................. 30 1.3.5 Omissão dos Poderes Legislativo e Executivo ....................................................... 32 1.4 CRÍTICAS DOUTRINÁRIAS A RESPEITO DO ATIVISMO JUDICIAL ................ 32 2 ATIVISMO JUDICIAL À LUZ DO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ......................................................................................................................... 42 2.1 ATIVISMO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES............................................................................................... 42 2.2 APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO E ATIVISMO ................................................... 46 2.3 ATIVISMO, INTERPRETAÇÃO E PRINCÍPIOS CONSTICUCIONAIS ................. 49 2.4 A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA ........................................................................ 52 2.5 LIMITES DO ATIVISMO JUDICIAL ......................................................................... 57 2.6 OS DIVERSOS GRAUS DE CONTROLE JUDICIÁRIO EM MATÉRIA CONSTITTUCIONAL ............................................................................................................. 61 2.6.1 Inexistência de controle: função de governo ......................................................... 62 2.6.2 Controle mínimo: exercício de jurisdição pelo poder legislativo......................... 62 2.6.3 Controle médio fraco: atos interna corporis, atos de chefia de estado e controle de constitucionalidade fundado em princípios..................................................................... 63 2.6.4 Controle médio forte: controle de constitucionalidade fundado em regras e de atos administrativos em que haja discricionariedade. ........................................................ 63 2.6.5 3 3.1 3.2 Controle máximo: atos administrativos plenamente vinculados. ........................ 64 O ATIVISMO JURISDICIONAL E A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA ....... 65 JURISPRUDÊNCIA COMO FONTE DE DIREITO NO BRASIL ............................. 65 HISTÓRICO DO ATIVISMO JUDICIAL NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 67 3.2.1 Doutrina brasileira do habeas corpus..................................................................... 68 3.2.2 Reclamação constitucional ...................................................................................... 69 3.2.3 Mandado de injunção .............................................................................................. 73 3.2.4 Vinculatividade das decisões do Supremo Tribunal Federal............................... 76 3.3 ATIVISMO NA RECENTE JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ................................................................................................................................ 78 3.3.1 Perda de mandato por desfiliação partidária e questões políticas ...................... 79 3.3.2 Proibição do nepotismo ........................................................................................... 81 3.3.3 Concreção de direitos fundamentais e sociais veiculados por normas de eficácia limitada .................................................................................................................................. 84 3.4 ASPECTOS ESPECÍFICOS DO CONTROLE ABSTRATO DE NORMAS .............. 86 3.4.1 Modulação dos efeitos temporais das decisões de controle .................................. 87 3.4.2 Sentenças interpretativas e manipulativas em sentido estrito ............................. 94 CONCLUSÃO......................................................................................................................... 97 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 102 10 INTRODUÇÃO Em razão da omissão dos Poderes Legislativo e Executivo no cumprimento de suas funções institucionais, o Poder Judiciário vem atuando, cada vez mais, em questões que, em princípio, seriam da competência do legislador e do administrador. O Supremo Tribunal Federal foi instado a decidir a respeito de reforma política, fidelidade partidária, desmembramento de municípios, nepotismo, greve de servidores públicos, educação e saúde, para citar alguns exemplos. Não é apenas a Suprema Corte que tem se revelado pró-ativa; os demais tribunais e juízes estão mais ativistas. Por isso, o surgimento da expressão ativismo judicial. Essa recente mudança de orientação do Poder Judiciário e a reconfiguração do Supremo Tribunal Federal têm polarizado as discussões a respeito do tema: de um lado, os defensores do ativismo, propugnando que o Judiciário capitaneie as transformações desejadas pela sociedade, concretizando os dispositivos constitucionais, e de outro, os que receiam que o ativismo judicial possa abalar o princípio constitucional da separação dos poderes, prejudicando, por conseguinte, o Estado Democrático de Direito, devendo a Ciência Jurídica alhear-se aos problemas sociais e políticos. As modernas constituições, por seu turno, clamam por uma democracia substancial e, conseguintemente, por uma sociedade livre e igualitária. Para tanto, o Estado deve ser atuante, sendo necessariamente integrado por poderes ativos. A história brasileira narra que o Judiciário sempre foi o mais passivo dos poderes, mero espectador das cenas sociais, por razões ligadas à própria concepção clássica de suas características. A missão de guardião da Constituição e das leis, o papel de exercer o controle de constitucionalidade das leis e atos administrativos emanados dos órgãos públicos e a preocupação com a concretização dos direitos fundamentais alteraram profundamente esse quadro, tornando o Judiciário protagonista das transformações desejadas pela Constituição. Nesse contexto, delinear a atuação do Judiciário de forma a promover adequação ao ordenamento jurídico é primacial à concretização dos dispositivos constitucionais e ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Para isso, importa explicitar os limites da atuação da função judicial, no plano da democracia que exige a sociedade brasileira, de forma que consiga fazer frente às exigências da contemporaneidade. 11 Essa noção não pode escapar a um bacharel em direito, nem à comunidade jurídica e aos operadores oficiais do Direito, razão por que se mostra imprescindível a pesquisa do assunto, sem falar na atualidade do tema e na sua importância para o debate sobre os rumos da democracia representativa. O fenômeno do ativismo judicial tornou-se objeto desse trabalho a partir da leitura de um artigo jurídico, que levou à reflexão, sempre intrigante, do papel da função judicial com vistas a fortalecer o Estado de Direito, eis que um projeto político para o País só ousa prosperar no seio de uma democracia fortalecida e consolidada. Esta pesquisa, essencialmente bibliográfica e jurisprudencial, procurou reunir o arcabouço necessário para a compreensão do assunto, com apoio nas informações disponíveis, a partir das quais se buscou justapor as idéias, confrontá-las e apontar uma possível solução para a problematização posta. O ativismo judicial tem alcançado tanto os países da família romano-germânica quanto os da anglo-saxônica. Não obstante, esta pesquisa circunscreve-se à realidade brasileira, sem perder de vista o estudo do direito comparado e o histórico do ativismo judicial no Brasil e no mundo, visando à intelecção do contexto no qual se originou e vem se desenvolvendo o referido fenômeno. Esse assunto será examinado no primeiro capítulo, no qual, ainda, se discorrerá sobre o conceito de ativismo, seus fatores de impulsão no Brasil e as críticas doutrinárias a ele dirigidas. O segundo capítulo ocupa-se da abordagem do ativismo judicial à luz do Direito constitucional brasileiro. Tendo em vista que o fim último do trabalho é investigar a atuação ideal do Judiciário com o objetivo de fortalecer o Estado de Direito brasileiro, é preciso analisar o ativismo judicial enquanto expressão da aplicação da Constituição. Uma das maiores preocupações dos tribunais ativistas é concretizar os dispositivos constitucionais, o que não pode ser feito mediante arbitrária atribuição de significados às normas, configurando-se fundamental a explicitação de limites normativos. Nesse sentido, necessária se faz a utilização de métodos hermenêuticos, a saber, o literal, o lógicosistemático, o histórico-evolutivo, e o teleológico, máxime quando se trata da interpretação de princípios, que comumente apresentam textura aberta, indeterminada e dúctil. Os princípios conferem maior liberdade ao julgador, dando ensejo até mesmo a decisões que contemplam aspecto ideológico, daí o estudo, também no segundo capítulo, do fenômeno conhecido como judicialização da política. Devido ao importante papel conformador exercido pelo Supremo Tribunal Federal, na medida em que uniformiza a jurisprudência, seu dinamismo jurisprudencial é objeto de 12 análise do terceiro capítulo, momento em que também se procederá ao estudo da jurisprudência como fonte do Direito e de aspectos específicos do controle abstrato de normas. A metodologia a ser utilizada é a estruturalista, uma vez que o tema será abordado nos contornos do ordenamento jurídico e da jurisprudência, tendo por pilar estruturante a Constituição da República. A perspectiva a ser desenvolvida apresenta o ativismo judicial regido por uma ordem interna. Ao se avaliar o contexto histórico no qual está inserido o ativismo judicial, fazendo-se comparação entre o ativismo operado pelo sistema de civil law e o dinamismo jurisprudencial levado a efeito pela família common law, bem como ao realizar-se o estudo do direito comparado e dos fatores de impulsão do ativismo judiciário no Brasil, será feito uso do método comparativo, já que o fenômeno do ativismo judicial será explicado cotejando-se a experiência estrangeira. Busca-se, na explicitação do ativismo judicial como expressão da aplicação da Constituição e na abordagem do ativismo na jurisprudência da Suprema Corte brasileira, analisar o fenômeno inserido em um sistema, qual, o sistema jurídico brasileiro, com auxílio do método sistêmico, tendo-se a Constituição da República como principal parâmetro. Pretende-se, com o presente trabalho, perscrutar se o ativismo judicial é necessário à concretização dos dispositivos constitucionais e, por conseguinte, ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito ou, ao contrário, se é prejudicial ao Estado de Direito, por ameaçar o princípio da separação dos poderes. Com isso, quer-se delinear a área de atuação do Poder Judiciário, a fim de que se mantenha no âmbito estrito de suas atribuições constitucionais e legais. 13 1 HISTÓRICO DO ATIVISMO JUDICIAL E DIREITO COMPARADO Não há dúvidas de que atualmente inexistem fronteiras mundiais. Os países interagem de forma a promoveram afetação mútua, em diversos aspectos: sociais, econômicos, políticos, ambientais e, inclusive, jurídicos, para citar alguns exemplos. Não é diferente com o fenômeno do ativismo judicial, cuja abordagem não prescinde do estudo do Direito comparado. Não obstante a influência jurídica que um Estado soberano exerce sobre o outro, o modo de exercício da função jurisdicional é percebido de maneira dessemelhante em cada família de Direito, isto é, o fenômeno irá variar conforme esteja inserto no sistema romanogermânico ou no anglo-saxônico. Essa noção é pressuposto para a adequada compreensão do contexto histórico em que se originou e se desenvolveu o ativismo. Para que se entenda com proficuidade o fenômeno do ativismo importa reportar-se à Europa do século XVIII, no auge das monarquias absolutistas, momento em que floresceram teorias avessas ao absolutismo, promovidas pela burguesia, com o fim de justificar a revolução e criar uma nova ordem política. O crescimento da burguesia e de suas práticas comerciais, bem como o antropocentrismo, trazendo como vetor o racionalismo, criaram um ambiente fértil para a propagação das ideias iluministas, base teórica das revoluções burguesas que se seguiram, a partir do final do século XVIII. Na lição de Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo1, um grande expoente do Iluminismo foi o barão de Montesquieu (1689-1755), autor de O espírito das leis, obra que propunha o princípio da separação dos poderes e a supremacia da lei. Essa elaboração teórica colocava o monarca sob o império da lei, limitando seu poder absolutista. Montesquieu pregava, ainda, a necessidade de um conjunto de leis capazes de noticiar os valores gerais da sociedade, a saber, a Constituição de um Estado soberano. Finalmente, a burguesia, proclamando os ideais de liberdade, igualdade (formal) e fraternidade, conseguiu sepultar as monarquias absolutistas, tomando o poder político. Dentre as revoluções burguesas ocorridas na Europa, destaca-se a francesa, de 1789. Dez anos depois se iniciou, na França, a era napoleônica que perdurou até 1815. 1 VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História para o ensino médio: história geral e do Brasil. São Paulo: Scipione, 2002. p. 258-259. 14 Após 1804, consagrou-se, na França, a superioridade das fontes estatais sobre as demais fontes do Direito, tendo o código civil napoleônico adotado o modelo dogmático do positivismo. Os ideais da revolução francesa não coadunavam com o sistema jurídico em que o legislador estava adstrito ao Direito natural. O período histórico exigia, além do rompimento com os antigos parâmetros legais e jurídicos, a emancipação do Parlamento (representativo da soberania popular), em contraposição às monarquias absolutistas. Nesse sentido, as leis deveriam ser formuladas de forma a atender o bem estar geral, já que emanadas pelos representantes do povo. A grande importância da lei, nesse momento histórico, avultou a relevância do Parlamento, que passou a monopolizar a função legislativa. A própria teoria da separação dos poderes consolidou a supremacia política do Legislativo, sujeitando a atuação dos outros poderes à lei, obra do Parlamento. Ao Judiciário foi confiada a missão de aplicar a lei aos casos concretos, com neutralidade e mecanicamente. Ao juiz, limitado a realizar a vontade do legislador, não competia contribuir para a criação do Direito. Surge, desde então, o ideal de que o Direito deve dissociar-se das questões políticas. Embora o positivismo em sentido estrito do século XIX reconhecesse que o Direito nasce de um processo político, no momento de sua aplicação, o magistrado deveria agir de forma técnica, sem cogitar os conflitos de interesses existentes anteriormente à tomada de decisão pelo Legislativo. O que legitimava essa neutralidade era o argumento de que a lei representava a expressão da vontade geral e, portanto, o legislador já havia cotejado as implicações axiológicas e sociais. Paulatinamente, as revoluções burguesas deflagraram-se nos demais países europeus. No caso da Inglaterra, a revolução ocorreu séculos antes, em 1215, tendo como um de seus principais corolários a Magna Carta. O constitucionalismo foi fruto do florescimento das revoluções burguesas, na Europa, e das libertações das colônias européias, na América, Ásia e África. O mencionado movimento político e jurídico visava estabelecer, em todos os Estados, regimes constitucionais, em que o poder público tem seus limites traçados em constituições escritas, formuladas pela Inglaterra, em 1215, depois da revolução burguesa; pelos Estados Unidos da América, em 1787, após a independência das 13 colônias; e pela França, em 1791, após a revolução francesa. Todas as revoluções burguesas tiveram como resultado a construção do Estado de Direito Liberal, fundado no primado da lei e da Constituição e assegurador da liberdade, da igualdade e da segurança jurídica. O Estado Liberal ocupava-se da manutenção da ordem, sem imiscuir-se na liberdade individual, descurando do interesse geral. 15 Com o advento da revolução industrial e a consequente exploração da mão de obra da classe trabalhadora, surgiram as teorias sociais e a preocupação em promover o estado do bem estar social, em que se propugnava por políticas públicas afirmativas, bem como pela atuação do Poder Público, no sentido de amparar a sociedade, não devendo limitar-se a não invadir o espaço da liberdade individual. Assim, a concepção individualista esmaece-se para ceder espaço aos direitos da coletividade. Esse modelo de estado intervencionista revelou-se num solo fértil para a germinação do ativismo. Com efeito, o Estado Social Democrático é essencialmente atuante, impulsionador. Sua atitude, pautada pela lei, não é passiva perante o desenvolvimento econômico e social, que deveria ser livre, na visão liberal. Alargam-se as funções institucionais do Executivo e do Legislativo com o fim de atender à demanda social. Nesse quadro, o Judiciário é chamado a proceder ao controle jurídico da atividade dos demais poderes. Por outro lado, a sociedade espera do Judiciário o alcance das finalidades desenhadas pela Constituição, inclusive no que tange à imediata fruição de direitos fundamentais e sociais. O Judiciário acaba por responder ao clamor social que vocifera em favor da transformação do Direito e do Estado, adequando-os aos novéis contornos da sociedade do bem estar social. Existem programas previstos pelo ordenamento jurídico que precisam ser efetivados, o que demanda a contribuição do Judiciário, constitucionalmente obrigado a exigir o cumprimento do dever do Estado no âmbito social, dever esse previsto legislativamente, hábil, por esse motivo, de ser controlado pelo Judiciário. O controle de constitucionalidade significou um avanço para o Estado de Direito na medida em que minimizou a ocorrência de eventuais arbitrariedades do legislador. Pois bem, o controle constitucional das leis e atos administrativos foi o instrumento decisivo para a origem do protagonismo judicial. Diversamente do ocorrido nos demais países ocidentais, exatamente por se filiar à tradição anglo-saxônica, os Estados Unidos instituíram o controle de constitucionalidade a partir do caso Marbury contra Madison, decidido pela Suprema Corte em 1803. Ou seja, o controle de constitucionalidade difuso estadunidense foi previsto pelo próprio Judiciário, em que pese a teoria da separação dos poderes já ser um princípio constitucional, à época. O caso refere-se ao pedido formulado por Marbury à Suprema Corte em desfavor de James Madison, o secretário de justiça do presidente recém-empossado, Thomas Jefferson, para que fosse entregue o diploma de Marbury, que havia sido nomeado juiz de paz por John 16 Adams, derrotado por Thomas Jefferson nas eleições presidenciais de 1800 dos Estados Unidos. O processo foi relatado, em 1803, pelo juiz John Marshall, presidente da Suprema Corte. Procedendo ao controle de constitucionalidade da lei federal que concedia competência à Corte para emitir o mandado, decidiu-se pela inconstitucionalidade da lei, restando, portanto, prejudicada a competência do Tribunal para conceder o pleito, este com apoio em lei infraconstitucional que contrariava a Carta Maior. Essa foi a primeira decisão de um tribunal a proclamar a superioridade hierárquica da Constituição sobre as demais leis e a reconhecer a competência dos juízes e tribunais de não aplicar normas infraconstitucionais contrárias à Lei Maior, mesmo diante da inexistência de previsão constitucional nesse sentido. Em razão da forte influência do Direito norte-americano no constitucionalismo republicano brasileiro, a Constituição de 1891 introduziu no país o controle judicial difuso de constitucionalidade, aperfeiçoado pela Constituição de 1934, com a previsão do efeito erga omnes à decisão que declarava a inconstitucionalidade. O Estado Novo getulista extinguiu o instituto jurídico do controle difuso, restaurado pela Constituição de 1946, que lançou as bases do controle concentrado, advindo, finalmente, com a emenda Constitucional nº 16/65, em plena ditadura militar. A Constituição de 1967 manteve a combinação dos sistemas concreto e abstrato em seu texto. A Constituição de 1988 firmou um complexo sistema de controle jurisdicional de constitucionalidade, com a continuidade da conjugação dos sistemas difuso e concentrado2. Além disso, a Carta Cidadã previu maior número de funções institucionais a serem operadas pelo Judiciário. A tendência mundial é alargar o espectro de atribuições do Poder Judiciário. As constituições não se limitam mais a prever apenas o controle de constitucionalidade. É certo que os Estados contemporâneos vivem uma nova realidade normativa, na qual as constituições não se restringem a ditar limites e atribuições dos poderes e a elencar o rol de direitos e garantias fundamentais do cidadão. As constituições contemporâneas ocupam-se de novas tarefas, mais amplas que a das constituições tradicionais. A moderna roupagem das constituições exige de seus intérpretes – incluem-se nessa categoria os magistrados – uma forma renovada de pensar o Direito em movimento, diante dos desafios que se colocam para a interpretação constitucional. 2 PESSOA, Robertônio Santos. Controle de Constitucionalidade: jurídico-político ou políticojurídico? Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2882>. Acesso em: 22/08/2010. 17 As constituições contemporâneas são principiológicas. Devido à expansão dos princípios na estrutura normativa das constituições é que o controle de constitucionalidade e a guarda da Constituição deixaram de limitar-se apenas ao controle de constitucionalidade dos atos do Executivo e do Legislativo e dos entes federados e passaram a preocupar-se com a tarefa de promover os valores positivados nos princípios constitucionais. Ao tentar concretizar a Constituição, o Judiciário acaba por adentrar, muitas vezes, em questões políticas. No Brasil, Rui Barbosa, após o surgimento da República, dirigiu um movimento doutrinário, que, apoiado na teoria da separação dos poderes, ergueu um estorvo à ingerência do Judiciário nas questões políticas e mesmo no mérito dos atos da Administração, pelo que o juiz poderia examinar unicamente a legalidade estrita dos atos.3 Essa compreensão doutrinária durou até a chegada da Carta de 1946, com a determinação de que a lei não poderia excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual, o que propiciou o fortalecimento do Judiciário, passando a admitirse o controle judicial dos atos políticos que lesassem direitos individuais, descurando-se, nesse momento, dos direitos coletivos. Aos poucos, o Judiciário foi ganhando projeção e, por fim, chegou-se à Constituição da República (CR) de 1988, que, acompanhando o movimento de novas visões das constituições contemporâneas, levou o Judiciário a robustecer a força normativa dos princípios, quando os concretiza nas demandas que lhe são submetidas4. A partir de então, o Judiciário brasileiro passou a ter desempenho ativo nas questões políticas, na medida em que, chamado a efetivar os princípios constitucionais, cada vez mais se imerge em circunstâncias nas quais tem que se manifestar sobre assuntos administrativos. O Judiciário passou a ser reconhecido doutrinariamente como um poder político, emergindo a noção de que não somente os poderes diretamente eleitos pelo povo são compatíveis com a democracia, insurgindo daí a politização do Judiciário ou judicialização da política5. Esse novo modo de pensar o poder foi expressamente adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o que se depreende dos artigos 1º, 2º e 95, I, onde se lê que o Poder Público no Brasil está fundado não só na transitoriedade do desempenho das 3 MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009. 4 MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009. 5 MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009. 18 atribuições públicas e na eletividade, como também no exercício vitalício e por ingresso não eletivo no Poder Público, da forma que se dá no Judiciário6. A própria Carta de 1988 confiou atividades mais ousadas ao Judiciário, que vem sendo chamado a intervir em diversos espaços da vida social, diante das novas exigências impostas pela sociedade democrática contemporânea, que inadmite o passivismo de outrora. Com efeito, a história brasileira narra que o Judiciário sempre foi o mais inativo dos poderes, mero espectador das cenas sociais, por razões ligadas à própria concepção clássica de suas características. A missão de guardião da Constituição e das leis, o papel de efetivar o controle de constitucionalidade das leis, bem como o controle de constitucionalidade das leis e dos atos da Administração e a preocupação com a efetividade do Estado Democrático de Direito e com a garantia dos direitos fundamentais alterou profundamente esse quadro, tornando o Judiciário protagonista das transformações desejadas pela Constituição. Em que pese a versão atualizada do Poder Judiciário ter incitado a preocupação de muitos, em face da eventual ameaça de ruptura do princípio da separação dos três poderes, cláusula pétrea da Constituição da República Federativa do Brasil, acredita-se que um Judiciário atuante se faz necessário para que não se tornem inócuos os institutos jurídicos preconizados pela Constituição da República, garantindo, assim, a efetividade do Estado de Direito. Esse histórico até aqui esboçado evidencia a relevância institucional da discussão sobre o ativismo judicial cujo estudo detido avoluma a importância de abordar seu conceito, e pelos motivos já assinalados, o Direito comparado, para o qual imprescindível o exame do ativismo nos sistemas de common law e civil law. Além disso, visando à complementação da digressão histórica acima encetada – sem a intenção de esgotá-la –, imperiosa se faz a exposição dos fatores de impulsão do ativismo judicial no Brasil e das críticas doutrinárias a ele direcionadas. 1.1 6 CONCEITO DE ATIVISMO JUDICIAL MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009. 19 Não há consenso doutrinário quanto à conceituação do termo ativismo judicial, que assume diversas significações. Inicialmente, assinale-se que o ativismo judicial é o inverso do interpretativismo ou passivismo judicial. A conceituação funcional de ativismo não deve configurar-se alheia aos grandes sistemas jurídicos contemporâneos. Nessa esteira, é salutar levar-se em conta as diferenças entre os arquétipos que se impõe ao juiz do common law e do civil law, no que se refere ao exercício da jurisdição. Para os adeptos do literalismo e do originalismo, as decisões desvinculadas do interpretativismo são ativistas, atribuindo-se a elas valor negativo, contraposto à democracia, ao Estado de Direito, à segurança jurídica, etc.7 Os críticos do interpretativismo, isto é, do passivismo judicial, conceituam o ativismo como o protagonismo judicial, com a inevitável interpretação jurisprudencial, de forma a democratizar o sistema político ao concretizar a supremacia da Constituição e o controle de constitucionalidade. Para os não interpretativistas, o passivismo é que deve ser repelido, com a finalidade de garantir a sobrevivência da Constituição e de seus institutos, dentre os quais os direitos individuais e coletivos, por meio de uma interpretação evolutiva, de forma a amalgamar-se às transformações sociais.8 Nesse contexto, o ativismo liga-se intimamente ao compromisso do Judiciário com a efetivação dos direitos individuais e coletivos. O ativismo judicial pode ser percebido, também, em sede de fiscalização de atos legislativos ou administrativos, bem como no controle de atos administrativos de natureza concreta, de atos jurisdicionais exercidos por outro Poder ou dos atos de chefia do Estado. O professor Elival da Silva Ramos denomina de ativismo judicial o desvio ou o excesso no exercício da função jurisdicional, com prejuízo para a função legislativa, a serem repelidos em termos dogmáticos9. Assevera que [...] por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante às práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes. Não se pode deixar de registrar mais uma vez, contudo, que o fenômeno golpeia mais fortemente o Poder Legislativo, o qual tanto pode ter o produto da legiferação irregularmente invalidado 7 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 132. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 133. 9 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 129. 8 20 por decisão ativista (em sede de controle de Constitucionalidade), quanto o seu espaço de conformação normativa invadido por decisões excessivamente criativas.10 O termo ativismo judicial será utilizado neste trabalho em alusão a uma atuação mais ousada, vigorosa e criativa por parte do Judiciário, que concretiza as normas jurídicas, contraposta ao passivismo (ou interpretativismo), sendo que essa atuação ora é exercida nos estritos limites permitidos pelo ordenamento jurídico, ora os ultrapassa. Não obstante, o ativismo judicial a ser defendido aqui é o que observa inteiramente o ordenamento jurídico, devendo o juiz estar atento à natureza predominantemente executória de sua função, em respeito à cercadura jurídica que estrema os seus movimentos. O ativismo que se configura como uma atuação arbitrária e fora dos limites legais será rechaçado. Este trabalho cuida em demonstrar o ativismo judicial como garantidor da efetividade do Estado de Direito e somente a atuação jurisdicional ativa no seio do juridicamente permitido é que se mostra capaz de cumprir o propósito de efetivar os institutos constitucionais. Afinal, é inconcebível aceitar que na busca pela concretização do sonho de uma sociedade livre, justa e igualitária e de um Estado de Direito forte, o Judiciário aja além dos limites traçados por essa mesma Constituição que tenta defender, ameaçando a estrutura do Estado de Direito que quer promover. O ativismo judicial que extrapola as balizas normativas é aquele consistente na prática que desafia à atividade exercida por outro poder, capaz de ferir o princípio da separação dos poderes, bem como, na conduta do juiz que funciona na qualidade de legislador positivo, ou ainda, no afastamento dos critérios metodológicos de interpretação, quando da aplicação das leis. Outra forma de suplantar o sistema jurídico é quando o aplicador julga com o fim de alcançar resultado pré-concebido, com prevalência das suas visões particulares, agindo inspirado por sua própria consciência, ou, ainda, quando tenta promover, por meio de suas decisões, políticas públicas, sem conhecer limites na sua atividade. Nos países da tradição anglo-saxônica, o ativismo judicial de excessos pode ser sentido quando o magistrado não aplica os precedentes. Resumidamente, o ativismo judicial pode ser definido como o exercício pró-ativo da função jurisdicional, quando da aplicação e interpretação das leis, seja quando dá azo a um trabalho criativo e/ou impulsionador, seja quando atua em questões políticas. Para ser legítimo deve respeitar os limites cominados pelo ordenamento jurídico, com a premência da 10 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 129. 21 lei, posto que esta funciona como baliza no trabalho de construção da norma de decisão, em que a vontade do intérprete tem um peso reduzido. A propósito, o debate sobre os limites que sujeitam os aplicadores do Direito em sua atividade judicante só faz sentido em ordenamentos constitucionais estruturados sobre a fórmula de separação dos poderes. Conceituada a expressão ativismo judicial, passa-se à sua explanação nos sistemas romano-germânico e anglo-saxônico, tendo em vista que, repita-se, a maneira como se desenvolveu o ativismo judicial nos países que adotam o sistema da common law foi diversa da dos países filiados à civil law, devido às diferenças estruturais existentes entre esses principais sistemas jurídicos vigentes atualmente. 1.2 ATIVISMO JUDICIAL EM SISTEMAS DE COMMON LAW E CIVIL LAW Nos países da família anglo-saxônica, a jurisprudência é a principal fonte do Direito. É o caso dos Estados Unidos e da Inglaterra, por exemplo. Nesses países, a decisão judicial presta-se a duas funcionalidades. Uma delas liga-se ao caráter de definitividade (coisa julgada) e a outra consiste no valor de precedente conferido às decisões judiciais. Somente às decisões da Corte de apelação atribui-se o valor de precedente, visto que os juízos de 1º grau não geram precedentes, que, por sua vez, obrigam o tribunal ou os juízes subordinados à Corte de apelação. Os precedentes para a família common law equivalem à lei e à Constituição para o sistema romano-germânico.11 No sistema anglo-saxônico, os órgãos julgadores verificam a adequação do precedente ao caso concreto, após submetem-no a um processo de interpretação para delimitar os efeitos da norma e, caso o precedente se mostre inaplicável à demanda em apreciação, o julgador decide com respaldo nos princípios gerais, na equidade ou no raciocínio linear, semelhantemente ao procedimento de integração de lacunas nos sistemas de civil law. Caso a decisão inovadora provenha de uma Corte de apelação tornar-se-á um precedente.12 A integração de lacunas no common law assemelha-se à atividade legiferante. O mesmo não se pode dizer da integração de lacunas no civil law que não cria leis, vez que as 11 12 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 105-106. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 106. 22 decisões judiciais são desprovidas de generalidade, eis que se aplicam apenas a um caso individual colocado à sua apreciação. O sistema romano-germânico, marcado pela codificação do Direito, a partir do século XVIII, é o mais difundido no mundo. Destaca-se o imperativo da escrita, em contraposição à oralidade reinante na família anglo-saxônica. Caracteriza-se também pela generalidade das normas jurídicas, aplicadas pelos juízes aos casos concretos, diferindo do sistema common law, que infere normas gerais a partir de decisões judiciais proferidas a respeito de casos individuais. Assinaladas algumas diferenças entre os dois sistemas jurídicos, cabe analisar a forma como se originou o ativismo judicial, em alguns países de cada família do Direito. O ativismo desenvolveu-se significativamente nos Estados Unidos da América, devido a seu peculiar constitucionalismo e à importante missão confiada à Suprema Corte. Uma das marcas do ativismo nos Estados-Unidos é a revisão judicial, por meio da qual o Estado exerce políticas públicas. Na família anglo-saxônica, em relação à família romano-germânica, sempre houve maior proximidade entre a função jurisdicional e a atividade legiferante no que tange à produção de normas jurídicas. Os tribunais ingleses e estadunidenses desempenham o papel de regular comportamentos futuros e de revogar os precedentes. Nesses países as leis só são completamente integradas ao Direito quando aplicadas por decisões judiciais13. Apesar da aproximação entre as atividades do magistrado e do legislador na família anglo-saxônica, é inegável a diferença entre a função exercida por um e outro, já que o objetivo do Judiciário é a composição de conflitos de interesses, predominando a vertente aplicativa em detrimento da prescritiva. A prova disso é que, ainda que haja liberdade de interpretação diante de textos repletos de conceitos amplos e indeterminados, o magistrado terá sempre a obrigação de motivar as suas decisões, por meio da argumentação jurídica e técnica. Segundo Elival da Silva Ramos, no sistema de common law adota-se uma conceituação ampla de ativismo judicial, que envolve a atividade interpretativa do aplicador oficial do Direito ou a integração de lacunas, bem como as situações em que o magistrado extrapola os limites impostos pelo legislador.14 É comum enaltecer-se o ativismo por promover a adaptação do Direito às contemporâneas exigências sociais e axiológicas. O passivismo não é o melhor caminho a ser seguido. A sociedade não deseja o engessamento do Judiciário. Tendo em vista que no 13 14 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 107-108. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 109-110. 23 common law o Poder Judiciário é extremamente ativo no processo de geração do Direito, são consideráveis as dificuldades em identificar parâmetros no plano da dogmática jurídica que permitam encontrar abusos ao ordenamento jurídico. A discussão, nos Estados Unidos, por esse motivo, passa para a dimensão da filosofia política. Questiona-se a legitimidade da atuação pró-ativa do Poder Judiciário, levando-se em conta os ideais democráticos do sistema político estadunidense.15 É cediço que o ativismo judicial não é uma expressão exclusivamente norteamericana, tendo se mostrado recorrente nos países de civil law, não obstante a generalidade das constituições analíticas. A crescente criatividade da função judiciária é sentida em ambos os sistemas, tanto no common law quanto no civil law. Uma teoria que contribuiu para o florescimento do ativismo em países da linha romano-germânica foi o neoconstitucionalismo, marcado por textos constitucionais de expressivo conteúdo valorativo, abrindo espaço para uma metodologia interpretativa apoiada em princípios constitucionais, legitimadores do Estado do bem estar social. O Estado do bem estar social erige o Direito como um instrumento de concreção do trabalho político e do interesse geral. Diante dessa complexa conjuntura social, o Direito se vê obrigado a buscar novos horizontes, desaguando em práticas ativistas. Assim sendo, o fenômeno transcende o Direito norte-americano: acaba por alcançar a quase totalidade dos países optantes pelo constitucionalismo ocidental. Na verdade, a experiência histórica européia implica menor estranhamento em relação ao ativismo judicial, tendo em vista que o Estado europeu se desenhou, ao longo da história, de forma mais onipresente (resquício do feudalismo), se comparado aos Estados Unidos da América, onde o liberalismo atingiu proporções colossais. No caso específico da Alemanha, campo fecundo de teorizações a respeito de metodologias de interpretação, a Hermenêutica constitucional favoreceu a edificação de uma ordem de valores, fundados na garantia de direitos fundamentais, abrindo espaço para práticas ativistas. A Corte constitucional alemã passou a fazer parte do rol das entidades encarregadas pela direção do Estado, procurando, todavia, suavizar os impactos políticos de suas decisões, com o fim de evitar interferências na atuação do legislador, em conformação ao princípio da separação dos poderes. Nesse sentido, quando o legislador é deficiente em sua atuação, a Corte limita-se a adverti-lo, para que corrija suas falhas por intermédio da atividade 15 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 110. 24 legiferante. Ao declarar a inconstitucionalidade de uma norma, a Corte apenas adverte o legislador sobre a possível revogação, caso não haja retificação legislativa.16 Na Itália, a criação da Corte constitucional, o imperativo de superação de uma legislação anterior que não se aderia à Constituição e a extensão da aplicação do princípio da igualdade constituíram-se em fatores de impulsão do ativismo judicial. Nesse cenário, consagraram-se as sentenças interpretativas e aditivas, além da modulação de efeitos das decisões de controle. A teoria do Direito vivente proporcionou parâmetros para a prática do ativismo judicial.17 O tribunal constitucional espanhol funciona como importante vetor de equilíbrio da equação das forças políticas. Na Espanha, o desenvolvimento jurisprudencial de técnicas de provimento de modo a concretizarem-se atividades transcendentes da mera confirmação de validade ou nulidade dos atos controlados constitui-se em real manifestação ativista. Quando há baixa densidade de normas, a atividade interpretativa goza de maior liberdade, o que abriu espaço, no Direito espanhol, para o desenvolvimento de sentenças interpretativas e aditivas. As zonas de tensão surgidas entre os três poderes funcionam como limite a excessos do Judiciário. Não se admite que o aplicador oficial do Direito seja, no seu ofício, guiado por convicções pessoais ou políticas.18 Notório é que o ativismo cuida-se de um fenômeno mundial, sendo que numerosos fatores de impulsão podem ser apontados. Assinaladas algumas considerações sobre o Direito comparado, é momento de conhecer as causas do desenvolvimento do ativismo judicial no Brasil. 1.3 FATORES DE IMPULSÃO DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL A recente jurisprudência dos tribunais brasileiros demonstra o recrudescimento do ativismo judicial no Brasil. Importa conhecer as causas do fenômeno. 16 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 27-29. 17 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 29-30. 18 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 31-32. 25 1.3.1 Modelo de Estado Constitucional Brasileiro O modelo de Estado Constitucional brasileiro, consolidado desde 1934, é o Estado Democrático Social Intervencionista. O sistema político democrático brasileiro não é o de padrão liberal clássico e sim o do Welfare State, realidade que fica patente no conteúdo dos objetivos fundamentais da República; no largo rol de direitos sociais; na variedade de atividades econômicas de responsabilidade estatal e nos numerosos mecanismos de intervenção no domínio econômico.19 É claro que a Constituição de 1988 não se pretende socialista, mas traz em seu bojo uma preocupação com a concretização social, por intermédio da prática de direitos sociais e do exercício de mecanismos em prol da cidadania, com vistas a realizar o Estado de Direito, que comunga com o princípio da dignidade da pessoa humana. O Estado Social Democrático é fundamentalmente atuante, a ponto de impulsionar o desenvolvimento econômico e social, por intermédio da atividade legiferante – afinal, continua sendo Estado de Direito, tendo o princípio da legalidade como vetor –, o que fomentou o fortalecimento do Legislativo; o Executivo, por sua vez, passou a produzir atos de natureza normativa. O resultado é o agigantamento do Legislativo e do Executivo. Diante disso, o Judiciário posiciona-se como um terceiro gigante. Aliás, esse é um dos motivos pelos quais não se pode afirmar que o ativismo judicial, dentro de parâmetros normativos, esteja a ameaçar a estrutura de separação dos poderes. Nota-se, na verdade, aumento das atribuições do Estado, em relação a todas as funções por ele exercidas, inclusive a administrativa e a legislativa. Ocorre que esse largo rol de encargos foi distribuído pela Constituição entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Se os dois primeiros são omissos ou se atuam com desvio de finalidade ou excessos, incumbe a este último fazê-los operar em consonância como ordenamento jurídico. Portanto, o Judiciário é competente para proceder ao controle jurídico da atividade dos demais poderes. Além disso, a sociedade espera do Judiciário a concretização dos institutos jurídicos protegidos pela Constituição, máxime os direitos e garantias individuais e coletivos. Nesse contexto, o mínimo existencial deve ser garantido e abarca as exigências de um salário mínimo, nacionalmente unificado; a organização de um sistema de previdência social, de 19 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 268. 26 caráter contributivo e de filiação obrigatória; o acesso universal e igualitário ao sistema único de saúde e o acesso, universal e gratuito, ao ensino fundamental obrigatório, rol de previsões contidas em regras constitucionais20. 1.3.2 Expansão do controle abstrato de normas O Estado Social Democrático, para cumprir seu propósito, precisa ser fortalecido, o que não prescinde de poderes atuantes. As múltiplas funções do Estado convergem para a produção legislativa, porquanto, mantida a subordinação à lei, as funções de governo e de planejamento da ação estatal fomentam a criação de atos normativos. O incremento das atividades do Estado ocasionou o aumento da quantidade de leis, em regra, transitórias, particulares, técnicas e com menor padrão de qualidade. Nesse contexto, o controle judicial de constitucionalidade tornou-se uma solução para o problema da proliferação legislativa.21 Pois bem, outro fator de impulsão do ativismo no Brasil é a expansão do controle abstrato de normas, em que a decisão judicial é emitida com efeitos gerais, expressando a proximidade do ofício judicial com o exercício da função legislativa. Ademais, as normas utilizadas como balizas para se proceder ao controle de constitucionalidade são, no mais das vezes, normas-princípio, cujo conteúdo elástico permite ao órgão julgador maior liberdade interpretativa. O controle abstrato de normas foi introduzido no Direito brasileiro pela emenda nº 16, de 1965, à Constituição de 1946. De lá pra cá, esse mecanismo vem sendo ampliado, seja pelo aditamento do rol de legitimados ativos, seja pela criação da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) ou, ainda, pela elaboração da ação direta declaratória de constitucionalidade (ADC).22 20 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 271-272. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 274-275 22 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 276. 21 27 1.3.3 Atividade normativa atípica Conforme assinalado, o Judiciário se vê imbuído da tarefa de promover o controle jurídico das funções legislativa e administrativa, além de efetivar plenamente a Constituição social-democrática de 1988, razão pela qual, por vezes, acaba assumindo atividade normativa atípica, como é o caso do mandado de injunção (MI) e da edição, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de súmula vinculante, propulsores do ativismo. A súmula vinculante foi introduzida na Constituição da República pela reforma do Judiciário, operada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, que trouxe a redação do art.103A, nos seguintes termos: O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria Constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide Lei nº 11.417, de 2006). § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos Judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.23 A Lei nº. 11.417, responsável pela integração eficacial do mencionado artigo, foi editada em 2006. O STF aprovou trinta e uma súmulas vinculantes desde então. A expedição de súmula vinculante condiciona-se a requisitos formais e materiais. O conteúdo da súmula deve envolver necessariamente matéria constitucional, abrangendo a constitucionalidade de lei ou ato normativo das entidades federadas, a interpretação de dispositivo legal em face da Constituição, a vigência de lei ou ato normativo diante da Constituição ou a eficácia de dispositivo da Lei Maior. 23 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 103-A. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 28 As súmulas vinculantes, além de estamparem a orientação dominante do Supremo Tribunal Federal acerca de determinado assunto, direcionam os órgãos administrativos e Judiciários, na aplicação e interpretação das normas. A súmula vinculante, cuja expedição pelo Supremo Tribunal Federal não é obrigatória, podendo a Corte alterá-la ou cancelá-la, é um ato de aplicação do Direito, mas não deixa de ser um ato de criação. Todavia, a liberdade do julgador ao expedir súmula vinculante é inferior à do legislador ordinário. A propósito, essa atividade criativa conhece limites, a saber, restringe-se a fornecer aos órgãos administrativos e judiciais uma orientação das reiteradas decisões da Corte sobre a matéria sumulada. A interpretação da súmula vinculante tem que ser restrita, devendo o juiz limitar-se ao alcance do texto normativo, verificando se o caso concreto nele se encaixa. Caso positivo, aplicará a súmula. Em caso negativo, não a aplicará, devendo motivar sua decisão. Destarte, a súmula vinculante traz à tona a equiparação valorativa entre o precedente judicial e a norma legal. Não se trata de ato legislativo, por atuar a súmula em nível hierárquico subalterno ao da função legislativa. De outra sorte, as súmulas são hierarquicamente superiores aos regulamentos de execução, com os quais, mais aderentemente, assemelham-se, já que os dois são atos veiculadores de normas gerais abstratas de nível secundário, obrigam a alguns e não a todos.24 Essa nova figura foi instituída a fim de eliminar a insegurança jurídica resultante das controvérsias entre órgãos judiciários ou entre estes e a Administração Pública, além de reduzir a sobrecarga de trabalho, finalidades que restaram atendidas. Entretanto, juízes e tribunais ainda podem decidir de maneira contrária às súmulas, acerca da constitucionalidade de leis e atos normativos. O artigo 103-A, § 3º, da Constituição da República de 1988, disciplina que contra o ato administrativo ou a decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que a aplicar de forma indevida caberá reclamação ao STF, que a julgando procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, determinando que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. A súmula se traduz numa forma de atribuir eficácia geral às decisões proferidas pelo Supremo, na via incidental de fiscalização. O Ministro Gilmar Mendes, do STF, apresentou à imprensa, em entrevista coletiva, dada em 19/12/2008, relatório de atividades do Supremo Tribunal Federal, alusivo ao ano de 24 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 297. 29 2008, no qual constava que houve diminuição de cerca de 40% (quarenta por cento) no volume de autos de processos distribuídos aos relatores. 25 Esses dados revelam a efetividade das súmulas, ao permitirem que com uma carga menor de trabalho, a Corte constitucional possa melhor cumprir sua missão institucional. Em contrapartida, na medida em que podem ser objeto de interpretação, as súmulas fomentam dissídios de interpretação, que desaguarão no STF, face a previsão do artigo 103-A, § 3º, da CR. O professor Elival da Silva Ramos aponta dois efeitos deletérios das súmulas vinculantes, a saber, o enrijecimento da interpretação em matéria constitucional e o incremento do ativismo judicial, por vislumbrar aqui proximidade entre a atividade judicial e a legiferante, o que, para o autor, acaba por ruir, lentamente, as bases do princípio da separação dos poderes.26 Entretanto, não é aconselhável extremar-se qualquer posicionamento que seja. Ora, as súmulas vinculantes trazem efeito sadio, que é a uniformização das decisões. A sociedade não espera que o tratamento judicial seja desigual. Impera haver certa conformação e unidade entre as decisões judiciais. Isso não implica engessamento da interpretação constitucional. Prova disso é que a mesma lei é aplicada a todos indistintamente e isso não impede o trabalho criativo dos tribunais, que, aliás, vem se acentuando cada vez mais. Não fosse assim, o termo ativismo judicial não estaria tomando a cena das discussões jurídicas, este, por sua vez, se praticado em harmonia com a Constituição da República, viabiliza o fortalecimento do Estado de Direito. Portanto, a palavra de ordem é equilíbrio, o que se vislumbra no discurso do próprio Elival da Silva Ramos: Cabe à crítica doutrinária auxiliar o Poder Judiciário a encontrar o equilíbrio entre a ousadia e criatividade, imprescindíveis à tarefa de concretização de uma Constituição social-democrática, e a observância dos limites decorrentes da adequada interpretação do próprio texto que se pretende ver transformado em realidade.27 O mandado de injunção, assim como a súmula vinculante, pode ser indicado como atividade normativa atípica do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que ambos, após editados, atuam como texto normativo a serem aplicados e interpretados. Destarte, tanto na 25 MENDES, Gilmar Ferreira, 2008 apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 298. 26 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 300. 27 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 274. 30 súmula vinculante quanto no mandado de injunção, o Judiciário produz norma, neste último caso, destinada a suprir omissão. Até recentemente o STF recusava-se a exercer competência normativa no âmbito do mandado de injunção; equiparava o instituto à ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADIO). É certo que, conquanto limitadamente, em algumas situações o STF havia admitido a possibilidade de aplicar provisão normativa para o caso concreto, o que ocorreu nos mandados de injunção nº. 283-4/400, 284-3/400, 543-5/DF, 562-9/RS e 232-1/400.28 Segundo esse posicionamento, caberia ao órgão julgador remover o obstáculo consistente na ausência de regulamentação, formulando os preceitos a serem observados para a efetivação da norma constitucional no caso concreto, sem estendê-la para casos semelhantes. Para alguns doutrinadores da corrente concretista, essa remoção de obstáculo deveria ser feita por meio da formulação de regulamentação supletiva, válida apenas para o caso concreto e que fixasse os contornos necessários para o exercício do direito, liberdade ou prerrogativa até então não fruído por seu titular, ao passo que para outros concretistas, o órgão julgador deveria determinar que o obrigado satisfizesse o direito objetivo do impetrante. No julgamento dos mandados de injunção nº. 670-9/ES, 708-0/DF e 712-8/PA29, referentes à mora congressual na regulamentação do direito de greve do servidor público (art. 37, VII, da CR/1988), a Corte evoluiu e passou a assumir que lhe cabe proceder, subsidiária e provisoriamente, à regulamentação do modo do exercício do direito com eficácia geral. O Judiciário não seria responsável por definir uma norma de decisão, mas por enunciar o texto normativo faltante para tornar viável o exercício de greve dos servidores públicos. Essa virada jurisprudencial, amparada na textualidade do dispositivo legal, é nitidamente ativista, com o fim de cumprir o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais. 1.3.4 Neoconstitucionalismo O neoconstitucionalismo, caracterizado pelo debate sobre a força normativa da Constituição, é uma importante teoria para o discurso de legitimação das práticas ativistas. É 28 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandados de injunção nº. 232-1/400, 283-4/400, 284-3/400, 543-5/DF e 562-9/RS. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 30/10/ 2010. 29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandados de Injunção nº. 670-9/ES, 708-0/DF e 712-8/PA. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 30/10/ 2010. 31 responsável pela consolidação do Estado Constitucional de Direito, propugnando a valorização dos direitos fundamentais, o diálogo entre Direito e ética e a garantia da estabilidade e do dinamismo do sistema político democrático, a partir de constituições documentais e rígidas, que passaram a ser principiológicas, o que resulta na atuação pró-ativa do aplicador oficial do Direito. Isso porque os princípios giram em torno de enunciados abertos, indeterminados e polissêmicos, pelo que sua interpretação é um convite à criatividade na aplicação das normas constitucionais. O neoconstitucionalismo, com certo viés moralista, valoriza os princípios constitucionais no âmbito da Teoria da Interpretação, de forma a entender que devem ser aplicados em detrimento das regras. Os princípios passam a ser tratados como Direito, reconhecendo-se sua hegemonia em relação às regras, visto que são vetores dos ideais de justiça, de equidade e de sensibilidade perante o caso concreto, contrapondo-se às regras, que são precisas e frias. Na verdade, tendo em vista o aspecto sistêmico do Direito, quando o julgador decide amparado em princípios e fundamentando sua decisão não há desrespeito às regras, pois deve existir necessária harmonia e conformação entre princípios e regras. Em resumo, as teorias neoconstitucionalistas são marcadas por sua interação com os valores e princípios jurídicos, cuja operacionalização alcança-se por meio do método da ponderação e da argumentação jurídica, imbricada de ética ou moral, fornecendo substrato teórico denso para a impulsão do fenômeno do ativismo, notadamente na dimensão da promoção dos direitos fundamentais. A consolidação do Estado Constitucional de Direito ocorreu em momentos históricos desencontrados em cada sociedade jurídica, comumente, coincidindo com a solidificação da democracia. Sendo assim, não se pode afirmar que o novo constitucionalismo, marcado pela proposta de ampliar a jurisdição constitucional, assim como desenvolver uma nova dogmática de interpretação constitucional, é um movimento característico do final do século XX.30 O histórico brasileiro não permite designar propriamente um clássico e um novo constitucionalismo, mas um processo de marchas e contramarchas para a inserção do Estado Constitucional de Direito e a consolidação da democracia. No entanto, as elucubrações neoconstitucionalistas não deixam de fornecer subsídio teórico para práticas ativistas no Brasil. 30 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 280. 32 1.3.5 Omissão dos Poderes Legislativo e Executivo Por vezes, o Legislativo e o Executivo, não obstante o aumento de atribuições previsto na Constituição de 1988, são omissos quanto ao cumprimento de suas missões institucionais. Essa realidade afigura-se como outro fator de propulsão do ativismo no Brasil. Não raramente, o Congresso Nacional deixa de concretizar, via função legislativa, temas constitucionais. Essa postura força o Judiciário a um posicionamento mais ativo. Um exemplo emblemático disso é o direito de greve do servidor público, que, sem a devida regulamentação, ordenada pela Constituição, foi objeto de remédio injuncional, várias vezes, até que o Supremo Tribunal Federal acabou por regular diretamente a matéria. Diante desse cenário, os doutrinadores divergem em relação ao ativismo. Ninguém discorda da realidade da omissão do Executivo e do Legislativo e da ingerência do Judiciário em questões políticas e sociais, que, num primeiro momento, seriam do âmbito de competência do administrador e do legislador. Todavia não há consenso acerca de como precisa se dar o enfrentamento do problema. Para quem entende que o Judiciário deve ser atuante nas questões sociais, não podendo assumir posição passiva diante da sociedade, e sim exercer o papel de guardião garantidor da efetividade constitucional, o ativismo judicial é visto com bons olhos. Entretanto, parte da comunidade jurídica teme que o alargamento do ativismo judicial possa abalar o princípio da separação dos poderes, esposado pela Constituição da República, comprometendo, por consequência, o próprio Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, há quem entenda que o Direito não deve intervir na política e na sociedade, defendendo que a superação do problema da crise da efetividade dos institutos balizadores do Estado de Direito deve ser alcançada unicamente por meio do princípio democrático – deliberativo. Em face de posições tão antagônicas, é salutar explicitar as elaborações teóricas de algumas escolas doutrinárias, de forma a vislumbrar-se fundamento dogmático apto a fazer frente às novas exigências do Estado de Direito. 1.4 CRÍTICAS DOUTRINÁRIAS A RESPEITO DO ATIVISMO JUDICIAL 33 É pressuposto teórico da compreensão das críticas doutrinárias ao ativismo judicial a abordagem das escolas da Ciência Jurídica. Esse estudo exige o olhar detido dirigido ao positivismo jurídico, enquanto modelo de compreensão do Direito. Na visão de grande parte da comunidade jurídica, o positivismo estaria superado pelo pós-positivismo, o qual inclui no tradicional positivismo o estudo e a combinação de relações axiológicas, normativas e sociais, aspectos da nova Hermenêutica, preocupada com a efetivação das constituições principiológicas. O positivismo em sentido estrito do século XIX, momento histórico de supervalorização das ciências e dos métodos, pensou o Direito como um conjunto sistêmico de normas, sem considerações axiológicas, filosóficas ou sociológicas a seu respeito, mas com consciência de seu viés ideológico. Nessa esteira, o positivismo seria espécie de método científico para a Ciência Jurídica. Para o positivismo estrito, a validade do Direito ancora-se unicamente nos elementos de sua estrutura formal, independentemente de seu conteúdo. Entretanto admite-se que as normas jurídicas regulamentam condutas intimamente ligadas a juízos de valor. Dessa forma, no momento da compreensão, da interpretação e da aplicação das normas há um comportamento valorativo do sujeito, mas não uma conformação perfeita entre Direito e moral.31 O positivismo jurídico em sentido estrito estuda o Direito a partir de três elementoschave. O primeiro é a coação. Contudo, a visão clássica de que a coação está intrinsecamente ligada ao fenômeno jurídico, permitindo até mesmo identificá-lo, foi superada por uma abordagem moderna, pela qual a coação é objeto do Direito, podendo este daquela prescindir. O segundo elemento é a lei com primazia em relação às demais fontes do Direito. No entanto, a base desse elemento está na preponderância do Direito estatal, que, na maioria dos ordenamentos dos estados contemporâneos, contempla uma estrutura complexa de hierarquização. Com a consolidação da tônica do controle de constitucionalidade, a Constituição (não a lei) passou a gozar de hegemonia em relação às outras fontes de produção do Direito. O terceiro elemento - chave da construção da teoria positivista é a imperatividade do Direito, noção criticada no âmbito da própria dogmática do positivismo jurídico. Para Hans Kelsen, grande expoente do positivismo jurídico, por exemplo, o Direito estaria mais 31 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 36. 34 ligado à coatividade do que à imperatividade. Ademais, o imperativo da norma não seria dirigido aos jurisdicionados, mas aos magistrados.32 A noção de ordenamento jurídico é elemento identificador da Ciência Jurídica, visto que o Direito compreende um plexo de normas integradas em um sistema lógico, tendo a coerência e a completude por missão manter a unidade sistêmica. Sendo assim, o juiz não pode inovar, criando o Direito, além de estar proibido de não apresentar a solução para o caso concreto alegando a inexistência de previsão legal. A doutrina evoluiu e passou a reconhecer que a coerência e a completude não são aspectos umbilicalmente ligados ao Direito. Certo é que um ordenamento jurídico não se configura sempre coerente, já que podem existir duas normas em seu bojo, ambas válidas, mas incompatíveis entre si. O modo de pensar o Direito do positivismo em sentido estrito do século XIX reprovava práticas ativistas, por parte dos juízes, que deveriam ser meros aplicadores do Direito, sem ocupar-se de qualquer trabalho criativo. Naquele momento histórico, o receio do agigantamento do Judiciário era justificável. É de se esperar que em uma sociedade comprometida com a contenção do poder – em reação aos descomedimentos do absolutismo monárquico – e com a eliminação dos privilégios feudais a lei seja a solução ideal, pois, associada ao sistema da separação de poderes, suprimia o arbítrio governamental e garantia a todos a igualdade de diretos. Portanto, a sociedade européia, temendo o retorno do autoritarismo reinante no século XVIII, supervalorizava o governo submetido à lei. Seria inadmissível regressar ao governo dos homens, tendo o magistrado em substituição à figura do monarca. Com efeito, o magistrado, ao ser atuante, poderia estar na defesa de seus próprios interesses. Ainda mais quando se tratava de ativismo em que se permitia ao juiz julgar conforme convicções pessoais, sem qualquer vinculação ao Direito objetivo. O monarca submetido à lei – e não se situando acima dela – era uma conquista recente, assim como a lei enquanto primado de fonte do Direito e expressão da vontade geral, aplicável a todos indistintamente. Confiar poderes expressivos, e aí se inclui liberdade de interpretação e de criação do Direito, ao magistrado implicava o risco de criar outro déspota, compromissado com seus interesses pessoais e não com o bem estar da sociedade. Por isso a comunidade européia ocupou-se em emancipar-se politicamente, por intermédio das teorizações jurídicas do século XIX, que possibilitaram uma neutralização dos interesses, exigida pela separação dos poderes e pela autonomia do Judiciário, na construção 32 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 38-40. 35 da Ciência jurídica. Nesse cenário, o positivismo jurídico não se dedicou à questão da interpretação e da aplicação do Direito. O doutrinador Elival defende que a validação do positivismo, enquanto modelo de compreensão do Direito, pode ser mantida, desde que integradas as lacunas teóricas no plano da Hermenêutica, já que viável uma convivência harmônica entre o positivismo estrito e a teoria da interpretação. Explica que não é da essência do positivismo desnudar-se totalmente da dimensão fática e axiológica do Direito. Afirma que nem mesmo Kelsen pregou um positivismo nessas proporções. Assevera que se eliminada a associação entre positivismo e subsunção mecânica e afastada a referência a uma ordem de valores externa ao sistema jurídico não há porque não se afirmar a perfeita compatibilidade entre as construções mais recentes da teoria da interpretação e o positivismo jurídico, para o qual a objetividade dos textos normativos, no processo interpretativo, não pode ser ilidida pelo aplicador oficial do Direito, ainda que apoiado em justificativas sociais, filosóficas ou valorativas.33 O estudo de todas as correntes que pretenderam superar o positivismo aponta a existência de duas orientações diversas. Nota-se uma versão sociológica cujo objeto de estudo é o fato social, e uma filosófica, identificando-se, por vezes, com o tradicional jusnaturalismo. As vertentes sociológica e filosófica do Direito, cada uma ao seu modo, ao contrário do positivismo, são favoráveis ao ativismo judicial. O realismo jurídico é uma importante teoria da orientação sociológica, surgido a partir da década de 20 do século XX. Já foi dito que a Constituição passou a ser o primado de fonte do Direito. E nota-se que os Estados Unidos, após a segunda metade do século XX, começaram a viver um período em que os juízes que diziam o que era a Constituição, tamanha era a liberdade de interpretação. Sendo assim, a primazia de fonte de Direito passa a ser a jurisprudência, em verdadeira inversão.34 É claro que parte dos doutrinadores insurgiu-se contra isso, indicando que a Corte constitucional deveria atuar apenas em casos concretos, tendo o dever de não se imiscuir na vida política, além de usar a revisão judicial apenas quando extremamente necessário. Registre-se que o realismo jurídico não prega a desvalia das fontes estatais de produção do Direito, acredita, no entanto, que o Judiciário também cria o Direito. Mais que isso, o Direito só nasce após a sua concretização pelo magistrado, o que ocorre quando da prolação de uma decisão.35 33 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 58-61. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 47. 35 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 75. 34 36 A jurisprudência sociológica foi um movimento teórico que se desenvolveu paralelamente ao realismo jurídico, podendo ser vista como uma corrente intermediária entre o positivismo em sentido estrito e o realismo, na medida em que apregoava a necessidade de o magistrado não ser um mero reprodutor de leis, não obstante reconhecer que a atividade criadora do juiz devia conhecer limites.36 As escolas doutrinárias que tentaram conciliar Direito e moral (filosóficas) não chegaram a propor um retorno à dogmática jusnaturalista. A validade ética não deveria se conformar inteiramente com a validade formal como defendiam os jusnaturalistas, mas tratava-se ora de um objetivo a ser perseguido, ora de uma tendência irrefreável.37 Os defensores da vertente filosófica do Direito, responsáveis pela elaboração do neoconstitucionalismo, professam ampla liberdade de interpretação ao aplicador das normas, máxime em textos legais repletos de conceitos indeterminados ou de princípios. Essa liberdade de movimentação é premente no Direito, desde que o magistrado, no seu ofício de julgar os casos concretos, escolha qualquer dos caminhos possíveis, necessariamente apontados pela lei. A filosofia do Direito contemporâneo, notadamente a partir de meados do século passado, viabilizou a abertura da disciplina aos valores éticos e políticos, teorização dos neoconstitucionalistas. Por outro lado, correntes filosóficas possibilitaram o contato do Direito com o mundo empírico, valorizando a tônica normativa fincada na realidade social, construção teórica do pragmatismo jurídico. Por oportuno, registre-se que as principais teorias legitimadoras do ativismo são justamente o neoconstitucionalismo e o pragmatismo jurídico, esboçados pela dimensão filosófica do Direito. O neoconstitucionalismo, tendo como principais representantes Robert Alexy, Ronald Dworkin e Carlos Santiago Nino, faz uma leitura moralizante da Constituição, onipresente e expansionista, concebendo-a como uma ordem material de valores. A Constituição caracteriza-se, segundo essa corrente, pela eficácia irradiante dos direitos fundamentais, pela argumentação jurídica e pela metodologia da ponderação. Preconiza-se um ativismo judicial axiológico marcado pela argumentação jurídica cravada em princípios constitucionais. Já o pragmatismo, corrente de pensamento surgida nos Estados Unidos, na metade do século XIX, tendo como seus idealizadores Charles Sander Peirce e William James e, no século XX, John 36 37 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 48. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 49. 37 Dewey, apega-se à normatividade dos fatos e às consequências políticas, econômicas e sociais da decisão, explicando que a verdade é o que funciona, o que é útil, o que apresenta valor.38 Feitas essas considerações sobre as críticas das escolas do Direito ao ativismo, registre-se que embora se perceba ainda no século XIX, nas entrelinhas das elucubrações teóricas sobre o Direito, as primeiras discussões a respeito do ativismo, o debate sobre o tema robusteceu-se a partir do século XX. A doutrina estrangeira influenciou a incubação teórica brasileira a respeito do ativismo, sobre o qual foram elaborados dois posicionamentos, um substancial, outro formal ou procedimental. O substancialismo, seguido por Mauro Cappelletti e Ronald Dworkin, defende a extensão da atuação dos tribunais, que passam a exercer atividades típicas do Executivo ou do Legislativo, protagonizando a cena das questões sociais. Os procedimentalistas, liderados por Jurgen Habermas, Antoine Garapon e John Hartely, reprovam a intervenção do Direito na política e na sociedade .39 No plano internacional, o ativismo judicial foi objeto de críticas não apenas no campo doutrinário. É possível mencionar, pelo menos, três presidentes dos Estados Unidos que se sentiram incomodados com a interferência, pelos juízes da Suprema Corte, nas políticas públicas. Franklin Delano Roosevelt, nos anos trinta do século XX, reprovava a ingerência da Suprema Corte, no sentido de nulificar leis de intervenção no domínio econômico, entabuladas no plano de políticas públicas do Executivo, conhecido como new deal. Anos antes, Abraham Lincoln e Teodore Roosevelt reclamavam da atuação dos juízes, protestando que as políticas públicas não deveriam passar pelo crivo destes últimos, sob pena de o povo deixar de autogovernar-se, autogoverno esse entregue ao Executivo pelo povo. Na Alemanha, tendo como ponto de partida a jurisprudência de sua Corte constitucional, surgiram posições jurídicas, que passaram a entender cabível a ampliação do olhar do Judiciário, podendo, inclusive, alcançar o mérito do ato administrativo, ao proceder ao controle dos atos da Administração, aquilatando-lhes a razoabilidade e a proporcionalidade. Por óbvio, mantinha-se a restrição formal à verificação da legalidade do ato.40 38 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. pp. 99/100. 39 MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009. p.49. 40 MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009, p.49. 38 Rubén Hernández Valle sustenta que a teoria da Constituição deveria fornecer ao intérprete as categorias jurídicas que o impeçam de exercer poderes de natureza política, ou seja, que limitem sua liberdade política de valoração, minando, assim, o ativismo judicial.41 No Brasil, um dos grandes críticos do ativismo judicial é o professor e procurador do Estado de São Paulo Elival da Silva Ramos, ocupante de uma cadeira no departamento de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, autor da obra Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, que aborda o ativismo exercido pelo STF, sem deixar de reconhecer que a prática é comum também nas instâncias inferiores. Para ele, há um aspecto negativo no tocante às práticas ativistas, por implicarem descaracterização da atividade peculiar do Poder Judiciário, em prejuízo aos demais Poderes. Entende que o ativismo ameaça especialmente o Poder Legislativo, o qual tanto pode ter sua atividade legiferante irregularmente infirmada por decisão ativista, quanto o seu campo de produção normativa invadido por decisões demasiadamente inventivas.42 Ora, se o Legislativo está oprimido, de um lado, pela edição desenfreada de medidas provisórias por parte do Executivo, e de outro, pela prática ativista dos tribunais, a solução não é reivindicar espaços, estes já alargados pela Constituição de 1988, mas começar a cumprir sua função institucional. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Elival da Silva Ramos, declara que o ativismo judicial é ruim independente do resultado, não podendo ser visto como uma coisa natural. Afirma que não se pode, na interpretação do texto constitucional, reescrever seu conteúdo, vez que o texto é um limitador objetivo. Explica que o ativismo decorre, principalmente, da inércia do Legislativo. A solução seria melhorar o Congresso Nacional, resultado alcançável por meio de reforma política, a mãe de todas as reformas. Para isso, defende a implementação do parlamentarismo no Brasil, nos moldes da França e Portugal, com as necessárias adaptações.43 O autor considera que o Supremo Tribunal Federal ultrapassou os limites fixados pelo texto constitucional, nas decisões sobre perda de mandato por desfiliação partidária, nepotismo, demarcação de reserva indígena e direito de greve do servidor público. Quanto ao aborto de fetos anencéfalos, pendente de julgamento na ADPF 54, acredita que o STF irá autorizar o aborto, postura que critica, por defender que o lugar próprio para que o aborto seja 41 VALLE, Rubén Hernández, [s.d.] apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 26. 42 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.129. 43 RAMOS, Elival da Silva. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Entrevista concedida ao Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/>. Acesso em: 04/09/2010. 39 autorizado é no Código Penal. Acredita que o correto seria informar ao Congresso Nacional que a legislação está atrasada e que ele deve tomar providências. Ao ser interpelado sobre a justiça das decisões do STF, Elival assevera que não está discutindo o mérito, mas a forma, já que as decisões foram justas, todavia, deveriam ter sido materializadas no espaço próprio, o Legislativo.44 Arrazoe-se que o excesso de formalismo inviabiliza a efetividade dos dispositivos legais e constitucionais. É lesivo para a democracia e para o Estado de Direito valorizar a forma, em detrimento do mérito. Não há nada de efetivo na proposta de esperar por uma reforma política, que depende da vontade de parlamentares, em sua maioria, sabidamente, descomprometidos com a concretização do Estado Democrático de Direito. Impera adotar um discurso menos dissociado da realidade social. O fato de uma reforma fazer-se necessária não deve atravancar mudanças concretas, a serem operadas pelo Judiciário. Afinal, não é no Judiciário passivo de outrora que a sociedade democrática contemporânea lançou suas esperanças de renovação. Essa nova postura do Judiciário nasceu, dentre outros fatores, do clamor social. Repita-se que não se protesta aqui por um ativismo suplantador do texto normativo, mas pela atuação vigorosa do Judiciário, aderente ao Direito. É claro que não existe conformação perfeita entre Direito e lei. No exercício do Direito em movimento, devem ser observadas as regras, mas também os princípios, a equidade, o fato social, a moral, o ideal de justiça – e justiça é mérito –, conforme preconizado pelo direito positivo brasileiro. É o que se extrai do artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil45. Nesse sentido, em suas decisões recentes e acertadas, o Supremo Tribunal Federal tem sido ativista, sem descurar de estar em harmonia com o Estado Democrático de Direito. Quando indagado se o ativismo judicial seria de todo ruim respondeu que pode ser positivo quando a jurisprudência ou a legislação está defasada em relação aos fatos e surge uma interpretação criativa, mas de uma norma já existente. No entanto, não chama isso de ativismo e sim de interpretação criativa, presa aos parâmetros normativos. Elival entende que ativismo é quando o tribunal ultrapassa o limite do texto normativo e passa a criar. A prática ativista rompe o equilíbrio existente entre a norma e a interpretação, explica.46 44 RAMOS, Elival da Silva. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Entrevista concedida ao Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/>. Acesso em: 04/09/2010. 45 BRASIL. Decreto-Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Art. 4º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 46 RAMOS, Elival da Silva. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Entrevista concedida ao Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/>. Acesso em: 04/09/2010. 40 Entretanto, quando o tribunal faz interpretação criativa está sendo ativo. Ativista não implica necessariamente ultrapassar o texto normativo. O tribunal pode ser ativista e, ainda assim, respeitar o ordenamento jurídico. Esse é o aspecto positivo do ativismo defendido nesse trabalho. Ao ser inquirido sobre como tornar efetivos direitos constitucionais carentes de regulamentação, Elival respondeu que deveria ser conferida ao Legislativo maior eficácia, por meio de uma reforma política, já que quem faz as reformas é a estrutura política. Discursa sobre a necessidade de enxugar o calendário eleitoral e adotar o voto distrital, o que abrandaria o número de partidos políticos no país, possibilitando-se o aumento da eficiência do Parlamento.47 Finalmente, em sua entrevista, Elival esclareceu que apesar de o STF ser uma Corte política, está proibido de praticar o ativismo, vez que o papel político aparece apenas quando resolve uma questão política, mas sua atividade não pode assemelhar-se a do parlamentar. O papel do STF é mais vinculado. Judiciário é corte política, mas é Judiciário e não Legislativo, afirma.48 Não se pode negar que o ativismo judicial suplantador dos textos normativos apresenta efeitos deletérios. Por outro lado, se o aplicador fica aquém do texto opera-se o passivismo, igualmente indesejável. Logo, a solução é trilhar o caminho do equilíbrio – triunfante ao final da maior parte dos debates jurídicos –, sem ampliar o ativismo judicial a ponto de ruir um dos pilares do Estado Democrático brasileiro, a saber, o princípio da separação dos poderes – isso resultaria da inobservância dos preceitos constitucionais –, e ao mesmo tempo, sem manietar o dinamismo jurisprudencial em sua luta em favor da efetividade constitucional e, consequentemente, do Estado Democrático de Direito. O ativismo judicial deve ser expressão da aplicação da Constituição, observando os limites traçados por ela. A atuação do Judiciário não pode ficar aquém nem além. A Constituição da República já abalizou o caminho a ser seguido. Resta aplicar a adequada interpretação aos ditames constitucionais. A sociedade contemporânea pede um Poder Judiciário fiel à vontade do legislador, mas, ao mesmo tempo, garantidor dos direitos assegurados pela Constituição da República brasileira. 47 RAMOS, Elival da Silva. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Entrevista concedida ao Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/>. Acesso em: 04/09/2010. 48 RAMOS, Elival da Silva. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Entrevista concedida ao Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/>. Acesso em: 04/09/2010. 41 Examinado o processo histórico do ativismo judicial passa-se, no capítulo seguinte, ao estudo do fenômeno à luz do Direito Constitucional brasileiro. 42 2 ATIVISMO JUDICIAL À LUZ DO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO É cediço que um Estado Democrático de Direito funda-se numa Constituição hierarquicamente superior às demais normas do ordenamento jurídico. As constituições adotadas pela maior parte dos Estados desenvolvidos, por sua vez, não se satisfazem com uma democracia instrumental. Exigem, isto sim, uma sociedade livre e um Estado atuante. Com vistas a alcançar esse propósito, o Poder Judiciário tem atuado de forma pró-ativa e vigorosa, capitaneando as transformações desejadas pelo constituinte. Tem-se verificado, até mesmo, um viés político na atuação do Judiciário, consubstanciado em diversos institutos jurídicos previstos pela Constituição da República, dentre os quais podem ser destacados a ação popular, o mandado de segurança coletivo, o habeas data, a súmula vinculante e o mandado de injunção. Diante da dinâmica atuação judicial, há quem se posicione favoravelmente ao ativismo, como há quem seja contrário. Face esses dois extremos é salutar explicitar os limites da atuação do Poder Judiciário, no plano da democracia que exige a sociedade brasileira, de forma que consiga atender às novas reivindicações do Estado de Direito. Nesse contexto, saber delinear a atuação do Poder Judiciário de forma a promover a adequada aderência ao ordenamento jurídico é essencial para o alcance da efetividade e do fortalecimento do Estado Democrático de Direito, bem como para a definição dos seus novos contornos. A esse objetivo presta-se o presente capítulo. 2.1 ATIVISMO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES O Estado Democrático de Direito surge a partir da judicialização do poder e pressupõe a institucionalização deste, que passa a ser exercido pelos órgãos indicados na Constituição e na forma por ela ordenada. O constitucionalismo trouxe proposta ainda mais ousada, transformando o Estado submetido ao Direito em Estado Constitucional, dada a supremacia 43 formal e material das normas constitucionais, tendo como um dos seus principais elementos estruturais a teoria da separação dos poderes. Essa teoria foi formulada inicialmente antes do século XVIII, por Montesquieu, idealizador do princípio segundo o qual as três funções do Estado deveriam ser atribuídas a órgãos distintos, com independência institucional, gozando seus titulares de garantias funcionais, desembocando-se num sistema de freios e contrapesos inibidor de abusos. A justificativa assenta-se na comprovação histórica de que o poder nas mãos de uma só pessoa acaba por ser desviado ou excedido. Nessa teorização, admite-se certo compartilhamento de funções, com o objetivo de limitar o poder estatal, em prol da liberdade individual. Afinal, a eficácia do Estado pressupõe a comunhão de atividades e o exercício de múltiplas funções por um mesmo órgão. A função típica de cada poder admite certo compartilhamento, ficando sempre resguardada uma parcela essencial que não pode ser exercida por outro poder que não o competente, sob pena de se configurar interferência indevida na alçada de outra instituição, prática vedada pela Constituição de 1988. Logo, ao Judiciário está proscrito interferir nas atribuições essenciais das outras funções estatais a ponto de descaracterizar-se. Não existe uma separação absoluta de papéis. A uma função corresponde um titular principal, restando proibido o avanço das fronteiras legalmente delimitadas; caso contrário, haverá o esvaziamento das funções materiais atribuídas a outro poder. Ressalte-se que a separação se dá entre as estruturas orgânicas que exercem o poder estatal, a partir de um critério funcional, não se vislumbrando, por isso, quebra da unidade estatal, eis que o poder do Estado é uno e procede do povo. A Constituição brasileira de 1988 trouxe a previsão do princípio da separação dos poderes em seu artigo 2º, pelo qual, “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.49 A função jurisdicional é um instrumento de atuação do Direito objetivo, tendo em vista que o processo judicial possui escopos sociais, revelados na composição de conflitos intersubjetivos com vistas à pacificação social. As decisões judiciais são aplicações da norma; sobrepuja, portanto, a tônica executória da jurisdição em prejuízo do seu aspecto inovador. Ante essa natureza executória é forçoso aceitar que a aplicação do Direito é concomitantemente produção do Direito. As decisões judiciais são criativas e inovadoras, seja porque geram a norma de decisão, seja porque não se limitam a reproduzir o teor dos textos 49 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 2º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 44 normativos, que são interpretados e adaptados ao caso concreto. Admita-se também que a liberdade de criação confiada aos magistrados é substancialmente menor que a deferida ao legislador. Se assim é, a atividade criadora do juiz deve conhecer limites, uma vez que este não é legislador positivo. Elival da Silva Ramos, com propriedade, explica que [...] nos Estados democráticos a subversão dos limites impostos à criatividade da jurisprudência, com o esmaecimento de sua feição executória, implica a deterioração do exercício da função jurisdicional, cuja autonomia é inafastável sob a vigência de um Estado de Direito, afetando-se, inexoravelmente, as demais funções estatais, máxime a legiferante, o que, por seu turno, configura gravíssima agressão ao princípio da separação dos Poderes.50 Atribui-se, com frequência, ao controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos bem como à omissão legislativa a tensão entre os poderes provocada pela função jurisdicional. De fato, as Cortes constitucionais comumente invalidam o ato legislativo (por vezes, equivocadamente). Outras vezes, os magistrados agem como legislador positivo, com vistas a suprir a omissão do Parlamento. É difícil comungar com esses desacertos – ainda que não frequentes – face o caráter redentor assumido pela lei na esteira das revoluções que puseram fim ao absolutismo monárquico. Todavia, o controle da legalidade dos atos do Legislativo e do Executivo operado pelo Judiciário é decorrência do modelo da separação dos poderes e do ideal de freios e contrapesos, apto a limitar o poder público, até porque a justicialidade, da qual um Estado submetido ao Direito não prescinde, exige a separação absoluta entre quem diz o Direito e quem o executa. Além disso, o controle de constitucionalidade é corolário do princípio da supremacia da Constituição. A Constituição de 1988 ampliou significativamente o rol de atribuições do Judiciário, em razão das novas exigências da sociedade contemporânea. Com isso, os parlamentares sentem-se ameaçados na primazia do desempenho de sua função de legislar. A produção legislativa tem sido prática não apenas do Judiciário, mas também do Executivo, por meio da edição de medidas provisórias com força de lei, sem o menor sinal de arrefecimento. Nesse cenário, parte da comunidade jurídica teme que o alargamento do ativismo judicial possa abalar o princípio da separação dos poderes, esposado pela Constituição da República, comprometendo, por consequência, o próprio Estado Democrático de Direito. 50 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 120. 45 Porém, a atuação do Poder Judiciário, quando pautada pelos ditames constitucionais, não fere de forma nenhuma o princípio da separação dos poderes, pois o seu exercício implica necessariamente a atuação firme e permanente dos demais poderes em benefício do bem estar da sociedade, o que está determinado no próprio texto constitucional. E mais: concretizar a Constituição, ofício de que se investe o Judiciário ativo, é primacial para a preservação do sistema de separação dos poderes. A Constituição previu amplas atribuições também aos demais poderes. Se estes ficam omissos ou retardam injustificadamente o cumprimento de suas funções, o Judiciário, provocado, não pode ficar contemplativo, pois, caso contrário, a omissão inconstitucional será dele, e nada mais prejudicial à democracia e ao Estado de Direito do que a omissão inconstitucional de um Poder a quem o povo confiou a guarda da Constituição e das leis. A propósito, a conjuntura atual tem feito com que a teorização clássica da separação dos poderes seja abandonada pelos Estados contemporâneos na forma como foi concebida inicialmente. A crise do Estado e da função legislativa e os novos formatos de controle de constitucionalidade têm engrossado uma perspectiva institucional mais maleável. Diante da nova projeção do Judiciário poder-se-ia questionar a validade do sistema de freios e contrapesos, da forma como idealizado por Montesquieu. Porém, o ativismo judicial não inventa uma nova teoria, nem invalida o sistema mencionado, mas reinventa a percepção a respeito da separação dos poderes, na qual prepondera a preocupação com a concretização de direitos. Ora, o poder é uno e emana do povo, sendo mais apropriado falar em funções administrativa, legislativa e judicial. Já que o poder é do povo, o Estado, no exercício de suas atribuições, seja legislativa, executiva, ou judicial, deve atuar em benefício do bem estar geral. Se é a função judicial que irá cumprir esse propósito, que assim seja. O que não mais se admite é que a sociedade se veja constantemente desprotegida, sem ter a quem recorrer. É essa a grande contribuição do ativismo judicial respeitoso ao ordenamento jurídico, na medida em que funciona como instrumento garantidor da efetividade e do fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Assim sendo, o Judiciário precisa proporcionar a perfeita conformação entre a criatividade intrínseca à jurisdição constitucional e o necessário respeito aos princípios do Estado de Direito, dentre eles o da separação dos poderes, impedindo que o excesso institucional revele-se nefasto à soberania popular e à participação política que dela decorre. Com efeito, não se pode atribuir ao povo um papel secundário na concretização de uma Constituição que se pretenda democrática. 46 Sobre o assunto, Elival da Silva Ramos sublinha que o Supremo Tribunal Federal afirma que tem mantido sua atuação de forma a observar rigorosamente o princípio da separação dos poderes na forma como foi formulado pelo Direito Constitucional brasileiro, tendo em vista que o referido princípio não possui uma fórmula universal e completa. O direito objetivo brasileiro tem a sua própria construção da teoria da separação dos poderes. Não está adstrito, portanto, às experiências concretas de outros países.51 Por óbvio, a intenção do Judiciário não pode ser usurpar a competência do Legislativo, mas levá-lo a cumprir seu papel, cujo fim último é a efetivação da Constituição. As considerações acima expostas revelam a grande conexão existente entre o ativismo e a concretização da Constituição. Mais que isso: a preocupação com a efetivação de direitos previstos constitucionalmente é uma das maiores causas do desenvolvimento do ativismo judicial. Essa temática será tratada com mais propriedade no próximo tópico. 2.2 APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO E ATIVISMO A preocupação das Constituições contemporâneas relaciona-se mais intimamente com a concretização dos valores substanciais da sociedade que com a preservação das regras procedimentais. Desse modo, o elenco dos direitos fundamentais – comumente redigido de maneira vaga e indeterminada – faz menção a valores, a saber, liberdade, dignidade, igualdade, democracia, justiça, etc. Por conseguinte, o juiz é titular da tarefa – bastante criativa – de conferir conteúdo a tais preceitos, conceitos e valores, vez que está imbuído de fazer atuar a Constituição, não podendo se afastar dessa missão. Nos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da CR: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a Direito”.52 Em decorrência do princípio da inafastabilidade da jurisdição, positivado por esse dispositivo constitucional, o juiz não pode eximir-se de julgar a relação particular que lhe é submetida, quando instado a decidir, por não haver lei que regule o caso concreto. 51 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 114. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 5º, inciso XXXV. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 52 47 Obviamente, por mais inventivo que seja o legislador, não é humanamente possível que preveja a totalidade das situações concretas, criando normas para regulá-las. Logo, é comum que existam espaços vazios nas leis, cabendo ao magistrado preencher esses vácuos por meio de processos interpretativos que levem em consideração os valores aclamados pela sociedade brasileira, já que não pode se abster de julgar o caso colocado à sua apreciação. A Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 4º53, ordena que em caso de omissão da lei, o juiz decida a relação específica que está sob seu exame com apoio na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de Direito. Assim, em face da inexistência de regras, o aplicador oficial do Direito está autorizado pela lei a amparar sua decisão em princípios. De tal modo, a margem de liberdade deferida ao magistrado é um imperativo legal e constitucional. Corrobora essa afirmação o princípio da máxima efetividade do texto constitucional, que propugna que a uma norma constitucional deve ser atribuída a significação que maior eficácia lhe dê. Para isso, as condicionantes da realidade social devem ser consideradas, já que dificilmente uma Constituição jurídica destoante da realidade de seu tempo terá eficácia. Registre-se, porém, que a norma constitucional não é mera transcrição da realidade, porque dotada de força normativa e, portanto, imperativa e capaz de produzir efeitos jurídicos. Em decorrência da força normativa da Constituição, as normas constitucionais devem ter aplicabilidade direta e imediata. Ora, se toda norma constitucional é jurídica, logo, caracteriza-se pela imperatividade, revelando-se apta a produzir efeitos jurídicos imediatos. O artigo 5º, § 1º, da Constituição de 198854 determina que as normas definidoras de direitos fundamentais devem ser concretizadas de modo a se lhes atribuir eficácia plena e aplicabilidade imediata. Deve ter-se em vista que a salvaguarda dos direitos fundamentais do homem em reação às arbitrariedades do Estado é o núcleo central das constituições modernas. Núcleo esse vinculante e portador de eficácia plena, aplicabilidade imediata, força normativa e máxima efetividade. A concretização dos dispositivos veiculadores de direitos fundamentais é a proposta mais atraente do ativismo. O ativismo judicial não suplantador dos limites impostos pelo ordenamento jurídico, entendido este como um sistema harmônico, constitui-se em instrumento apto a concretizar a 53 BRASIL. Decreto-Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Art. 4º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 54 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 5º, § 1º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 48 Constituição. Funciona, portanto, como garantidor da efetividade do Estado de Direito brasileiro, posto que os institutos constitucionais são os principais sustentáculos desse Estado. Não se espera um Judiciário inexpressivo, alheio às aflições humanas. Urge saber ousar, em nome do justo, da igualdade e da dignidade humanas. Isso não significa que o juiz esteja compelido a problematizar os textos normativos, na proporção ampla como essa tarefa é desempenhada pelo legislador positivo. Não pode, entretanto, deixar de verificar, em menor medida, como e em que alcance as normas incidem na vida dos sujeitos, sem desconsiderar a primeira problematização já procedida pelo Parlamento. Nesse trabalho, o campo de atuação do magistrado é aquele não cotejado pelo legislador. Num Estado Democrático de Direito, sustentado por uma Constituição democrática (fruto da soberania popular), que pretende democratizar o Direito, a tarefa do Judiciário é consolidar os regimes democráticos, por meio de uma judicialização mais intensa da vida e da política. Somente um tribunal ativista configura-se apto a determinar ou descobrir o significado unívoco do texto constitucional e preservar o jogo democrático. Nesse contexto, o ativismo é resposta à esperança da sociedade na concretização constitucional. Cícero Martins de Macedo Filho declara que “o ativismo judicial, que hoje é realidade, não nasceu e não significa senão uma busca de proteção contra a desesperança.” 55 São pertinentes as palavras dos autores da obra “Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF”, a seguir transcritas: [...] superadas as mais imediatas preocupações com a sustentabilidade das democracias – e, portanto, da proteção da constituição como instrumento de estruturação do poder – abriu-se espaço a uma atuação mais construtora e reparadora do sentido Constitucional e de seus efeitos sobre a sociedade. Menos que defender a Constituição (que já não parecia alvo de riscos reais e imediatos) aquilo de que se passam a ocupar as cortes constitucionais, trata-se de garantir os enunciados prospectivos desse mesmo texto fundante, buscando a sua eficácia. 56 É claro que a aplicação da Constituição pelo Judiciário não pode ser feita por meio de discricionária imputação de efeitos às normas efetivadas; o juiz deve se ater aos elementos hermenêuticos que, objetivamente, indiquem o seu ajuste ao texto constitucional, cotejando as estruturas gramaticais, sistemáticas, histórico-evolutivas, racionais e teleológicas. Mediante a aplicação de cânones adequados de interpretação é possível repelir o governo dos juízes, bem 55 MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 2009, p.49. 56 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 27. 49 como uma jurisdição tendente a uma solução pré-determinada. Daí a necessidade da abordagem que segue. 2.3 ATIVISMO, INTERPRETAÇÃO E PRINCÍPIOS CONSTICUCIONAIS O aspecto lógico-formal do sistema jurídico unívoco não deve se dissociar dos valores fundamentais, erigidos a princípios do Estado de Direito, consignados nas constituições, aptos a provocarem uma conexão orgânica entre valores singulares e coletivos, dirigidos à generalidade, o que acaba por suscitar o alargamento axiológico do Direito. Os princípios jurídicos são um conjunto de proposições que alicerçam o Direito. São normas fundamentais e estruturantes que devem orientar o legislador, no momento da formulação das leis, e o magistrado, ao aplicá-las ao caso concreto. Assim, os princípios devem informar todo o sistema jurídico, promovendo a sua unidade. São normas, em um primeiro momento, indeterminadas, só adquirindo concreção quando de sua aplicação à relação particular submetida ao julgador. Daí dizer-se que proporcionam abertura ao mundo dos fatos e dos valores, por meio da interpretação. Ademais, os princípios jurídicos guiam o intérprete a um ideal normativo e evolutivo, otimizando as possibilidades morais no âmbito do sistema jurídico. Permitem expandir o campo de incidência da norma sobre todo o ordenamento jurídico, demarcando a onipresença da Constituição. Enquanto elementos normativos do sistema, os princípios constitucionais, inclusive os implícitos, devem ser manejados pelo Judiciário tendo em vista suas peculiaridades hermenêuticas decorrentes do seu sentido mais abrangente. O intérprete deve considerar que os institutos e conceitos jurídicos não estão simplesmente justapostos no ordenamento, havendo vínculos funcionais entre eles. A interpretação não se reduz a usar adequadamente os critérios de Hermenêutica; implica necessariamente o cuidado metodológico em estabelecer em que termos se dá a harmonização entre os institutos e os conceitos jurídicos.57 Por terem significado com delimitação mais estreita, as regras sugerem menor espaço de atuação judicial, enquanto os princípios, de conteúdo mais elástico, dão ampla margem de 57 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 178. 50 interpretação, identificada esta pela relação dialética entre um sujeito cognoscente (intérprete) e um objeto cognoscível (norma). Não obstante, há que se considerar que os textos normativos, ainda que consignem princípios, contêm algo de objetivo, que não pode ser eliminado pela vontade do juiz. Nesse contexto, as técnicas de interpretação são extremamente importantes na definição do significado da norma – regra ou princípio –, bem como na determinação do seu alcance. O método de interpretação é um elemento hermenêutico que, objetivamente, indica ao magistrado o sentido da norma. Faz-se referência à interpretação literal ou gramatical, lógica ou linear, histórica ou evolutiva, sistemática e teleológica, na qualidade de métodos hermenêuticos. Em razão da supremacia do Texto Fundamental, bem como da presunção da constitucionalidade da lei, tem sido utilizada como técnica a interpretação conforme a Constituição, desde que o significado do texto normativo não seja alterado ou violado. Por esse critério de interpretação, deve preferir-se o sentido da norma que seja adequado à Constituição. Como bem anota Alexandre de Moraes, em face de normas com vários significados possíveis, deve ser eleito o sentido que apresente conformidade com as normas constitucionais, impedindo a declaração de inconstitucionalidade da lei interpretada e sua retirada do ordenamento jurídico.58 Esse princípio interpretativo integra a nova concepção constitucional, pela qual todo o ordenamento jurídico deve estar impregnado de normas constitucionais. É a chamada constitucionalização do ordenamento jurídico, que passa a condicionar o espaço de liberdade de conformação do legislador ordinário, na medida em que se eliminam os vácuos, vez que nada escapa da regulação do Direito Constitucional. Por conseguinte, as normas do ordenamento jurídico só são válidas juridicamente se guardarem conformação com a Constituição. Além de procurar auxilio em métodos de interpretação, o magistrado deve estar consciente do viés ideológico que exerce e ao qual está condicionado ao interpretar. O olhar do intérprete é iluminado pelos valores sociais decorrentes do seu tempo e espaço. Os fatores geográfico e temporal fazem com que novos significados se afirmem para os mesmos significantes. 58 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 11. 51 Prova disso é a evolução semântica do princípio da igualdade assinalado na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, publicada em 4 de julho de 1776, segundo o qual todos os homens nascem livres e iguais em direitos59. Hoje essas palavras significam que todos indistintamente, independentemente de religião, idade, etnia, cor, sexo, origem econômica, social ou nacional, nascem livres e iguais em direitos. Essa é a compreensão do princípio da igualdade na quase totalidade dos Estados contemporâneos. Entretanto, nos Estados Unidos do século XVIII, pouco depois da independência das treze colônias, esse mesmo significante possuía sentido diverso, pelo qual todos os homens (sexo masculino) brancos, livres e protestantes nasciam livres e iguais em direitos. A linguagem norte-americana foi sendo reconstruída, até que no século XIX, os mesmos símbolos passaram a ser assim traduzidos: todos os homens (sexo masculino) brancos e negros nascem livres e iguais em direitos, mas devem viver segregados. Os movimentos pelos direitos civis nas décadas de 50 e 60, graças à colaboração das grandes personalidades Malcon X, Matin Luther King, John Kennedy e Bob Kennedy, construíram uma nova leitura do princípio da igualdade jurídica, que passou a ser compreendido como a igualdade e liberdade de todos os homens (sexo masculino), independente de cor e etnia, sem que pudessem ser segregados. Somente após 1972, a Corte estadunidense passou a incluir no manto de proteção do princípio as mulheres. Assim, todos os homens (todos os seres humanos), sem nenhuma distinção, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser segregados ou discriminados por nenhum motivo, seja cor, etnia, gênero, origem social ou econômica. Essa evolução constitucional demonstra que a interpretação pode ir ganhando outros contornos com o passar do tempo sem que haja uma alteração ou uma violação no texto literal da Constituição. Ainda que o texto permaneça inalterado, condicionantes históricos, sociais, culturais, políticos vão determinando um novo olhar, um novo sentido para os mesmos signos. Esse processo ocorre mais frequentemente em relação aos princípios, que, por sua própria natureza, esboçam enunciados mais abertos, dúcteis e, por vezes, indeterminados. Não raro o legislador emprega conceitos vagos e indefinidos nos textos normativos, especialmente na Constituição, o que confere maior flexibilidade ao magistrado. O magistrado tem se ocupado na busca dos significados da textura aberta dos enunciados constitucionais, o que vem permitindo uma leitura construtiva dos princípios e sua prevalência em relação às regras, viabilizando mais ponderação, ao invés de apenas 59 Cláudio VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História para o ensino médio: história geral e do Brasil. São Paulo: Scipione, 2002. p. 267-268. 52 subsunção, em detrimento do raciocínio meramente linear. Essa atitude tem propiciado à sociedade maior concretização do texto constitucional. As Constituições contemporâneas são principiológicas. Desse modo, a interpretação constitucional, na medida em que incrementa a liberdade de atuação do magistrado, impulsiona a expansão do Poder Judiciário e, por conseguinte, o ativismo judicial. Em razão de a Constituição exercer influência sobre as relações políticas, os conflitos de natureza eminentemente política passam a ser solucionados pelo Poder Judiciário, com apoio em normas constitucionais principiológicas. Daí o surgimento no Brasil da expressão judicialização da política, utilizada para designar o novo fenômeno jurídico-político, já disseminado há tempos em outros sistemas jurídicos. 2.4 A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA A constitucionalização do ordenamento jurídico implica a subordinação da legislação, da jurisprudência, da doutrina e das relações sociais à Constituição. Nada escapa de seu alcance, nenhum dos ramos do Direito, nem mesmo questões políticas. Afinal, a Constituição não é um ato unicamente jurídico, mas está imbricada de questões políticas. Já que incumbe ao Judiciário fazer atuar a Carta Política inevitavelmente adentrará em algum aspecto político, operando a judicialização da política, conhecida também como politização da justiça. O alcance do Direito extrapola as partes em conflito, revelando sua tônica política. As questões políticas não são fenômenos simples e unilaterais. Há várias questões que se encerram na questão política, as quais ora são verdadeiramente e exclusivamente políticas, ora unicamente judiciais. É política quando envolve critérios de oportunidade e conveniência, sem que haja direitos legais em jogo. É judicial quando se resolve pela aplicação da lei a direitos individuais.60 Certo é que devido à expansão da produção legislativa levada a efeito pelo Legislativo e pelo Executivo, aumenta-se o rol de bens e princípios juridicamente protegidos, o que suscita a proliferação de decisões jurídicas que atuam em questões políticas. Some-se a isso o fato de que temas que sequer mereceriam tratamento legislativo hoje se encontram previstos na Constituição. Ainda assim, inevitavelmente deve o Judiciário atuar quando há discussão 60 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 147. 53 em torno da constitucionalidade ou não do ato de qualquer dos poderes, por estar presente a questão judicial, escapando a problemática do campo exclusivamente político. O assunto pode afigurar-se político de três modos: a) por sua natureza; b) pela forma que a controvérsia assume (relacionada ao exame da constitucionalidade de uma lei ou ato normativo enquanto objeto principal do processo ou se for resolvida em termos abrangentes com eficácia erga omnes, neste caso uma questão de constitucionalidade caracteriza-se como política); e c) pelos termos em que se resolve a controvérsia.61 Critica-se o Poder Judiciário por atuar em assuntos políticos. Problemas que, inicialmente, deveriam ser resolvidos pelo Legislativo e Executivo são constantemente objeto de decisões judiciais. No entanto, admita-se que a própria Carta da República afirma que o Judiciário é também um poder, que retira sua legitimidade da vontade do povo. Assim sendo, o Poder Judiciário é dotado de força política tal como os demais poderes. Sem dúvida, o texto constitucional vigente valorizou o Judiciário, recrudescendo suas atribuições, seja em relação ao controle de constitucionalidade e ao controle dos atos dos demais poderes, seja em razão dos institutos jurídicos do habeas data, mandado de injunção, ação popular, mandado de segurança coletivo.62 É certo que as decisões de inconstitucionalidade fizeram o Judiciário agir, ainda que com postura conservadora, como legislador negativo, desqualificando o agir do legislador e do administrador.63 Para evitar esse tipo de situação, há quem defenda que o Direito não deve intervir na política e na sociedade. Inspirado por esse pensamento, o Supremo Tribunal Federal, Corte constitucional político-jurídica, durante muito tempo, afastou-se da dimensão política, eximindo-se de adentrar em assuntos dessa natureza. Nesse sentido, aumentou o âmbito de incidência das controvérsias que excluíam a sua atuação, as chamadas cláusulas de exclusão das questões políticas. O caso emblemático de maximização das cláusulas de exclusão das questões políticas pelo STF foi o não acolhimento do pedido consignado no habeas corpus (HC) nº 300, impetrado por Rui Barbosa em favor de pessoas presas durante um período de intensas conturbações políticas e de estado de sítio. A decretação de estado de sítio sempre esteve nas 61 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 144. MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 200. 63 MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 4851, setembro, 200. 62 54 listas da cláusula de exclusão, mas isso não autorizava o Supremo a deixar em desamparo os direitos individuais dos pacientes, declarando-se incompetente para atuar por ser impossível isolar esses direitos das questões políticas.64 Assim procedendo, em sua orientação jurisprudencial inicial, o STF aceitava a existência de assuntos inacessíveis ao controle jurisdicional, mesmo que neles figurassem questões jurídicas, como é o caso da transgressão à Constituição. Essa postura é flagrantemente contrária aos princípios do Estado Democrático de Direito. Não há dúvida de que a existência de uma função privativa de um dos poderes do Estado não impede que o Judiciário seja demandado e defina se o exercício dessa atribuição balizou-se pela Constituição. Essa construção teórica – controle de constitucionalidade das leis e dos atos administrativos – possibilita delinear a esfera de atuação do Judiciário quando diante de questões políticas. No ofício de proceder ao controle de constitucionalidade, o Judiciário deve investigar se há envolvimento dos critérios de conveniência e oportunidade; se os houver estará impedido de atuar. Caso contrário, a legalidade e a constitucionalidade do ato do Poder Público devem ser submetidas ao exame do Judiciário, desde que os fundamentos articulem questões constitucionais e legais. Assinale-se que o exercício de poderes discricionários – para a o administrador e o legislador – descamba no binômio conveniência e oportunidade. Esse binômio, por sua vez, deve ater-se aos estritos limites descritos pelo ordenamento; extrapolados esses contornos e/ou presente a lesão a direito subjetivo, deverá o Poder Judiciário intervir, se provocado. O caráter político da função não pode deixar pessoas ofendidas desamparadas, já que o Estado tomou para si, com exclusividade, o exercício da jurisdição. Quando o legislador e o administrador atuam na qualidade de instrumentos políticos seus atos são examináveis apenas politicamente, âmbito impenetrável pelo Judiciário. Por outro lado, quando a lei regulamenta um dever, havendo direitos individuais e coletivos em jogo ou ainda bens e princípios juridicamente protegidos, qualquer indivíduo que se sinta prejudicado tem o direito de recorrer ao Judiciário, que está constitucionalmente obrigado a agir, ainda que existam questões políticas em cena. Elival da Silva Ramos entende ser uma espécie de autocontenção do Poder Judiciário quando este qualifica uma questão como política, sujeita à discricionariedade de outro Poder do Estado, como forma de abster-se de julgar questões delicadas. Defende que nem todo 64 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 145-146. 55 ativismo judicial deve ser contido pela invocação dos poderes discricionários dos órgãos emissores dos atos controlados. Sustenta, ainda, que a exacerbação do uso da cláusula de exclusão pode resultar em passivismo judiciário, altamente prejudicial ao Estado de Direito. Por fim, reconhece que a tendência do tempo presente é limitar o âmbito de incidência da cláusula de exclusão, o que representa a retomada do processo evolutivo das Cortes constitucionais.65 Se a efetividade e o fortalecimento do Estado Constitucional de Direito são anseios da sociedade brasileira, deve-se aceitar que o Judiciário tome decisões políticas. Mas decisões políticas, motivadas por princípios e não por questões políticas, isto é, as decisões devem ser formuladas no tocante aos direitos individuais e coletivos à luz da Constituição e não conjecturarem sobre qual a melhor maneira de se promover o bem estar geral. Apesar das relutâncias contra a jurisdição constitucional, ela constitui-se numa tendência irrefreável, uma vez que ao se juridificar a política, fatalmente, politiza-se a justiça.66 Contudo, não se pode permitir que o Judiciário vire palco para a prática de politicagem. Ressalte-se que o Estado é a maior expressão da manifestação do Poder Político e a Constituição é uma carta na qual se revelam os elementos constitutivos do Estado. Sendo este uma entidade política, seu estatuto fundamental será, por via de consequência, eminentemente político. E mais: onde quer que se originem relações de mando, alguém terá que compor os conflitos daí advindos. Inevitavelmente, aí estará o Judiciário. Afinal, a jurisdição é monopólio do Estado e ela não pode ser afastada de quem quer que a provoque. Por óbvio, os magistrados exercem as suas atividades diversamente da maneira como os representantes políticos o fazem em relação ao Direito. Estes promovem política legislativa, com total liberdade de atuação para se orientar por esta ou por aquela ideologia. Já aos magistrados resta apenas escolher uma das opções já delimitadas pelo legislador, estando no âmbito restrito das escolhas políticas primárias. Em que pese o posicionamento inicial do Supremo Tribunal Federal quanto ao tema, percebe-se uma mudança na ideologia política e jurídica acompanhada de um processo de transmutação de cenários, em que o Judiciário brasileiro passa a conhecer de questões políticas. Esse movimento vem sendo identificado, conforme já assinalado, mediante a expressão judicialização da política, fenômeno que indica a expansão do Judiciário no 65 66 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 150. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 25. 56 processo decisório das democracias contemporâneas. Por outro lado, observa-se também métodos peculiares do Judiciário praticados no âmbito de outros poderes. Seria uma espécie de tribunalização da política. As condições propícias ao surgimento de uma judicialização da política estão presentes no Direito brasileiro desde o advento da Constituição da República de 1988, que trouxe um sistema complexo de jurisdição constitucional, com previsão de controle de constitucionalidade difuso e concentrado. O processo de judicialização da política resulta de uma crescente apropriação das inovações do Texto Fundamental por parte da sociedade e dos agentes institucionais, especialmente o Ministério Público. A sociedade anseia uma postura pró-ativa do Judiciário, obrigado a agir quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem seus encargos institucionais, comprometam a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos previstos constitucionalmente, ainda que em normas programáticas. No entanto, não se inclui entre as suas atribuições a de formular e implementar políticas públicas, pois, esse encargo compete ao Executivo e ao Legislativo. O Judiciário tem respondido ao clamor social. O comportamento do Supremo Tribunal Federal referente às pesquisas com embriões e às questões de saúde submetidas à sua apreciação comprova essa afirmação. Em ambos os casos a Corte realizou audiências públicas com a participação de representantes dos múltiplos segmentos sociais, com vistas a formar seu convencimento. Diferente não é na primeira instância da jurisdição, na qual os juízes estão cada vez mais atuantes, notadamente nas áreas de saúde, saneamento e meio ambiente. Em seu ministério, o Judiciário não pode perder de vista que suas decisões devem estimular a atuação do Legislativo e a participação da sociedade nas questões políticas. O deslinde das questões políticas serve para demarcar a área de atuação do Poder Judiciário permitida pela Constituição, que traçou limites impregnados em todo o sistema jurídico. Essa baliza normativa, unívoca e sistêmica deve necessariamente ser observada pelo Judiciário, se este não quer golpear o princípio da separação dos poderes. Jamais se pode deixar escapar a noção de que os juízes, em sua atuação, estão vinculados à Constituição, à lei, à distribuição funcional de competências constitucionais e ao princípio democrático. À explanação desse assunto presta-se o próximo tópico. 57 2.5 LIMITES DO ATIVISMO JUDICIAL Os efeitos do ativismo judicial provocam a preocupação com os limites objetivos do processo hermenêutico, tanto em relação ao princípio da separação dos poderes quanto à importância da segurança jurídica num Estado de Direito. Necessário se faz que sejam contidos os riscos de a interpretação extrapolar o exigido pela Constituição. Afinal, um Estado de Direito é necessariamente um Estado submetido à Constituição e às leis. O desprendimento do juiz à norma promulgada pelo legislador gera insegurança social, já que a sociedade espera garantia e previsibilidade das ações do magistrado que devem ser orientadas pela lei. A atuação harmônica dos poderes depende da obediência aos limites definidos pela Constituição. A fixação precisa dos limites impostos ao Poder Judiciário no exercício da jurisdição não pode restar destituída de contornos técnicos, razão pela qual aumenta a responsabilidade da doutrina constitucional na busca pela resposta adequada à questão. Nesse sentido, a identificação dos parâmetros dogmáticos que devem circunscrever o ativismo judicial é o apoio lógico que precisa nortear a passagem da lei para a decisão judicial, que necessita harmonizar-se com o conteúdo da consciência jurídica geral. Não há um critério universal na delimitação da atuação dos juízes. Há quem vocifere por uma atuação mecânica ou objetiva como há também quem sustente a ideia da atuação subjetiva, conferindo ampla liberdade interpretativa ao juiz. A atividade do magistrado não se reduz a declarar ou reproduzir um Direito preexistente. O juiz também cria o Direito e a discussão sobre esse aspecto nos dias atuais é improfícua. Todavia, ao exercer o seu papel criador deve observar os parâmetros definidos pela própria lei. Deve estar sempre presente na mente do intérprete a preocupação em manter a imperatividade do texto legal, não descurando em conservar certo distanciamento axiológico do caso particular que lhe é submetido, a fim de não apaixonar-se pela questão em exame. É compatível com o princípio da equidade que o juiz expresse a consciência ética que compartilha com a sociedade em que vive; porém, sua opção há de ser justificada racionalmente e demonstrar aderência ao ordenamento jurídico. O magistrado que impõe suas concepções pessoais não atende ao imperativo da segurança jurídica, tão indispensável ao Estado de Direito. A ordem jurídica deve partir de imperativos ético-evolutivos no tempo, formulados levando-se em conta o que melhor convém à sociedade, mas não deve ser complementada por uma ordem subjetiva de valores. Obviamente, não se pode negar a 58 existência de diferentes propostas interpretativas juridicamente válidas, mas ao eleger uma delas, o intérprete não pode ser movido por suas próprias convicções. O Direito deve ser descoberto pelo juiz por meio de um processo criador, tarefa na qual irá se guiar pelos princípios de valor expressos pelo sistema jurídico – com conteúdo mais rico do que o da lei – e pela própria ideia de Direito e não por considerações pessoais. A consciência jurídica geral, norteadora do ofício judicial, abrange novas construções e ideias jurídicas, permeadas por critérios éticos e jurídicos, por vezes, sem expressão na lei, ou tão somente sugeridos por ela. Já que vinculado somente à lei, o magistrado deve atender à evolução da consciência jurídica geral dentro dos limites da interpretação ou da integração das lacunas.67 Se a interpretação ultrapassa a fronteira imposta pelo significado literal do texto normativo, pelo contexto em que elaborado, cotejando-se sua formulação histórica, pelo intento do legislador e pelo sentido razoável no sistema em que se densifica quedará numa insegurança inconciliável com o Estado de Direito. Elival da Silva Ramos, citando Miguel Reale, esclarece que a liberdade do juiz está no agir dentro da lei e não perante a lei. Não é no pensar de novo, mas no pensar até o fim o que outro já começou a pensar. A verdade está no equilíbrio, na conciliação dos opostos. A interpretação de uma norma é saber olhar todo o sistema na qual esta norma está inserida.68 Há diferença entre a liberdade/discricionariedade legislativa e a judicial. O legislador esbarra apenas nas normas constitucionais ao passo que o juiz se sujeita à totalidade do ordenamento jurídico. O juiz atua com liberdade mínima quando o texto legal é preciso e objetivo e com liberdade máxima se tiver que fazer integração de lacuna. Enquanto as discricionariedades legislativa e administrativa se guiam por critérios de conveniência e oportunidade, a discricionariedade judicial deve refletir a consciência jurídica geral. A discricionariedade legislativa é resultado da ausência de parâmetros legais ou da sua flexibilidade; a administrativa liga-se à abertura textual bem como ao permissivo legal de mais de uma possibilidade de conduta ante a concretude da situação. A discricionariedade judicial envolve todo o campo da criatividade na interpretação. Em qualquer vertente, a discricionariedade deve ser exercida com observância ao princípio da separação dos poderes. Se o ativismo judicial ultrapassar a demarcação constitucional estará a provocar mutação inconstitucional, caracterizando-se o cerceamento inaceitável do Judiciário na 67 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 101. REALE, Miguel, 1975 apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 137. 68 59 atividade de outro poder. Por isso, ao exercer o controle de constitucionalidade, o magistrado deve ter a prudência de não agredir o Direito vigente, zelando pela normatividade constitucional e infraconstitucional. Para se fortalecer a Constituição deve-se valorizar sua força normativa, o que se dá pela observância aos seus ditames, em especial, ao princípio da separação dos poderes. Desse modo, ao Judiciário não é permitido fazer o controle do mérito do ato estatal praticado pelo administrador, mas apenas da forma, vez que este pode eleger, tendo em conta o princípio da razoabilidade, um, dentre os caminhos cabíveis e autorizados pela lei, visando alcançar à satisfação da finalidade legal. Não incumbe ao juiz substituir-se ao poder controlado, mediante a imposição de determinado padrão de conduta ou visão de justiça. Ou seja, o Poder Judiciário não deve apreciar o mérito dos atos administrativos e legislativos, o que pode fazer é examiná-los quanto à sua legalidade, sob pena de violar o princípio da separação dos poderes. O mérito está no sentido político do ato (estranho à seara jurídica), que perquire aspectos concernentes à justiça, utilidade, moralidade do ato; resulta, portanto, no binômio oportunidade-conveniência, a envolver interesses e não direitos. O Judiciário irá controlar atos que violem direitos constitucionais e legais. Na seara jurisdicional há maior proximidade entre discricionariedade e interpretação, perspectiva que não se abriga no plano administrativo. Se assim não fosse, a quase totalidade da atuação da Administração daria ensejo ao emprego do poder discricionário, reduzindo-se, de modo intolerável, à luz dos princípios do Estado de Direito, o controle judicial sobre os atos administrativos. De outra sorte, a discricionariedade do juiz não se coaduna com os critérios de conveniência e oportunidade, deve, na verdade, orientar-se pela consciência jurídica geral. No exercício da discricionariedade, o magistrado deve ser diligente com vistas a alcançar a paz e a ordem sociais, em correlação com as diretrizes éticas da sociedade em que vive. A fim de conter os avanços para além dos limites normativos, ao interpretar, o magistrado necessita vincular-se ao texto normativo. Ou seja, toda e qualquer interpretação, particularmente a constitucional, deve ser compatível com a amplitude de sentidos projetada pelo texto da norma. Portanto, não se pode atribuir um significado arbitrário ao signo linguístico dos textos normativos. Espera-se do magistrado que investigue o significado do texto elaborado pelo legislador. A atividade interpretativa do aplicador oficial do Direito deve revelar adesão à textualidade do dispositivo aplicado. 60 Uma mutação constitucional por interpretação é admissível, mas é absolutamente repelida a ideia de um rompimento constitucional, o que ocorrerá se o intérprete decidir de forma contrária aos dispositivos da Constituição. Estar atento aos limites impostos pelo texto constitucional não significa aplicar indiscriminadamente o método gramatical de interpretação. Se toda atividade interpretativa é em parte cognoscitiva, os métodos de interpretação devem ser enriquecidos pela racionalidade, sendo esta realizada de forma segura, controlável e ordenada, segundo critérios que devem balizar a atividade do intérprete. Destarte, a limitação imposta à interpretação pela textualidade do dispositivo de regência configura-se pela utilização da metodologia exegética, compreendendo os métodos sistêmico, gramatical, histórico e teleológico de cuja ponderação diante do caso concreto resulta delimitação do espaço de interpretação disponível ao aplicador.69 Tendo em vista que a Constituição da República limita materialmente o exercício da criatividade de juízes e tribunais, é necessária, por vezes, a intervenção legislativa para o desdobramento de princípios e regras constitucionais, especialmente quando a Constituição prevê que algum conteúdo por ela sugerido seja regulamentado por lei a ser elaborada pelo Legislativo. Entretanto, se omisso o legislador, a mesma Constituição trouxe um remédio – o mandado de injunção – assegurador dos direitos dos jurisdicionados, que poderão valer-se do Judiciário para ver seus direitos e, conseguintemente, a Constituição concretizados. Genericamente pode se assinalar que ora a intervenção legislativa é totalmente vedada; ora é exigida pela própria Constituição; em outras ocasiões, a atuação do legislador é meramente permitida. As matérias de âmbito exclusivamente constitucional são aquelas cuja regulação de cunho infraconstitucional desvirtua a própria finalidade da disciplina normativa da Lei Maior. Disso conclui-se que não pode o Legislativo formular leis sobre matérias objeto de normas por meio das quais o constituinte quis limitá-lo no desempenho da função que lhe é peculiar, como acontece com algumas garantias fundamentais e com certos institutos associados à função de chefia de Estado, a exemplo da intervenção federal e do estado de sítio. Quando é exigida a intervenção legislativa, as normas infraconstitucionais desempenham o papel de normas integrativas de comandos constitucionais e de normas de desdobramento de princípios e regras constitucionais. 69 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 173-174. 61 As normas de eficácia limitada exigem intervenção legislativa para que possam desfrutar de plenitude eficacial. As normas de eficácia plena, porém restringível, são aquelas que autorizam o legislador ordinário a restringi-lhes a eficácia, nas condições e forma especificadas pelos princípios e regras constitucionais. É de se notar que, neste caso, o legislador está legitimado e não obrigado a agir. As normas de eficácia plena propiciam também a intervenção legislativa, que, nesse caso, buscam a concretização de um ponto ótimo no ajuste entre as normas em disputa.70 As normas constitucionais principiológicas podem comportar seu desdobramento em nível de legislação ordinária. Se esta não for elaborada, os princípios, ainda assim, são aptos a produzir efeitos. A expansividade dos princípios constitucionais estimula o legislador infraconstitucional a traçar novos segmentos normativos que lhes agreguem conteúdo. As regras têm caráter retrospectivo na medida em que descrevem uma situação de fato conhecida pelo legislador ao passo que os princípios possuem caráter prospectivo por determinarem um estado de coisas a ser construído. A força expansiva dos princípios é maior do que a das regras, estas, por sua vez, regulam de modo mais completo a situação fática que a elas se sujeita. Sendo assim, o cuidado do intérprete-aplicador para não extrapolar os estreitos limites estipulados pela Constituição deve ser maior quando se tratar de princípios. A aplicação da Constituição pelo Judiciário não pode ser feita por meio de discricionária atribuição de efeitos às normas concretizadas, o juiz deve se ater aos elementos hermenêuticos que, objetivamente, indiquem o seu enquadramento ao texto normativo. Se a decisão judicial não deve ser completamente livre e arbitrária, é no integral limite que o próprio Direito a aplicar lhe impõe que se há de esquadrinhar os critérios para a prática do ativismo judicial, tendo em vista a estrutura plural do Poder Judiciário e a necessária prevalência da racionalidade jurídica em prejuízo das leis da razão propriamente ditas. Com o propósito de fixar com maior precisão esses limites, a seguir serão abordados os diversos graus de controle judicial em matéria constitucional. 2.6 OS DIVERSOS GRAUS DE CONTROLE JUDICIÁRIO EM MATÉRIA CONSTITTUCIONAL 70 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 182-183. 62 O professor Elival da Silva Ramos elaborou uma gradação – oriunda do Direito Constitucional – do controle praticado pelo Poder Judiciário sobre os atos exercidos pelos outros poderes. Esses níveis de controle judiciário em âmbito constitucional, expostos a seguir, são importantes parâmetros dogmáticos para a prática do ativismo. 2.6.1 Inexistência de controle: função de governo O Executivo brasileiro desempenha atividades de natureza diversificada, correspondentes à função de chefia de Estado, à função de governo, à participação na função legislativa e à função administrativa. A função de governo, em regra, se desenvolve mediante a elaboração de programas de governo, de planos de ação, globais ou setoriais, compreendendo, ainda, a busca do engajamento dos demais poderes e da sociedade civil em relação às diretrizes traçadas. Enquanto se mantém no plano exclusivamente político, a função de governo revela-se judicialmente incontrolável, tanto por não afetar a esfera jurídicosubjetiva de qualquer sujeito, quanto porque o controle prévio de constitucionalidade não retroage a ponto de surpreender a planificação política de ação governamental.71 2.6.2 Controle mínimo: exercício de jurisdição pelo poder legislativo Um exemplo de exercício de jurisdição pelo Legislativo é o processo e julgamento do Presidente da República e de outras autoridades operados pelo Senado Federal, nos crimes de responsabilidade. Nesse caso, sofre o Poder Judiciário forte restrição no tocante ao controle jurisdicional amplo que, enquanto garantia constitucional, lhe compete exercer. Não pode, por exemplo, substituir a decisão de mérito proferida pelo Senado, sob qualquer viés. Nesse caso, o grau mínimo de controle se dá quanto ao princípio do devido processo legal e seus consectários no plano formal. Há, ainda, outra hipótese de controle de grau mínimo, que é aquele exercido sobre o veto presidencial a projetos de lei aprovados pelo Congresso Nacional; neste caso, o 71 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.153-155. 63 Judiciário não irá controlar o mérito, mas, por exemplo, pode reconhecer a intempestividade de veto oposto fora do prazo constitucional ou a invalidade do veto que não esteja acompanhado de motivação.72 2.6.3 Controle médio fraco: atos interna corporis, atos de chefia de estado e controle de constitucionalidade fundado em princípios. Os atos interna corporis relacionam-se à economia interna das casas legislativas. Essas normas regimentais sobre o processo legislativo são meramente ordinatórias e, portanto, insuscetíveis de violar direitos subjetivos de parlamentares, afastando a fiscalização jurisdicional. Admite-se a intervenção judicial se o procedimento de elaboração legislativa violar dispositivo constitucional ou se os parlamentares exercerem suas atribuições institucionais com ofensa a direitos públicos subjetivos impregnados de qualificação constitucional. O STF vem se abstendo de julgar as questões interna corporis que dizem respeito à interpretação e aplicação de dispositivos regimentais. Também pode ser enquadrada na modalidade controle de padrão médio fraco a apreciação judicial dos atos pelos quais se exerce a função de chefia de Estado.73 O controle de constitucionalidade sobre leis e demais atos normativos em que o parâmetro para se aferir a sua conformidade ou não à Constituição seja fornecido principalmente por princípios são de grau médio fraco. Isso porque os princípios são passíveis de interpretação também pelo legislador e pelo administrador, com liberdade avultada quando se trata de precisar o alcance de normas com maior abertura textual. 2.6.4 Controle médio forte: controle de constitucionalidade fundado em regras e de atos administrativos em que haja discricionariedade. A intensidade do controle judicial é maior se o parâmetro a ser utilizado forem as regras, em razão de serem normas, inicialmente, decisivas e abarcantes e com aspiração de 72 73 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 156-158 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 158-165. 64 gerar uma solução específica para o conflito entre razões. Devido à maior densidade de sentidos das normas-regra há substancial redução da discricionariedade legislativa, o que, conseguintemente, majora o controle jurisdicional. Inclui-se no controle de constitucionalidade médio forte aquele que é exercido sobre ato administrativo em que subsista alguma discricionariedade em favor da Administração.74 2.6.5 Controle máximo: atos administrativos plenamente vinculados. Os atos administrativos plenamente vinculados são aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua execução, dando ensejo a um nível mínimo de liberdade ao administrador, vez que sua ação circunscreve-se aos pressupostos estabelecidos pela norma legal para a validade do ato. O controle judicial atinge os atos administrativos plenamente vinculados no grau máximo de intensidade, que, por sua vez, restarão passíveis de anulação pela Administração ou pelo Judiciário, caso provocado.75 Examinado o ativismo judicial à luz da Constituição da República brasileira é hora de analisar a forma como a jurisprudência vem operando-o, se respeitosa aos limites esboçados pelo sistema jurídico ou, ao contrário, se suplantadora das leis e da Constituição. 74 75 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 165-167. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 167-168. 65 3 O ATIVISMO JURISDICIONAL E A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA A recente jurisprudência brasileira é visivelmente ativista. O ativismo judicial é operado não apenas pelos tribunais; os juízes singulares estão cada vez mais ativos. Este capítulo examinará apenas o ativismo judicial levado a efeito pela Corte guardiã da Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal, analisando sua recente produção jurisprudencial e o histórico do ativismo em suas decisões. A propósito, o protagonismo das Cortes constitucionais, no Ocidente, é um apanágio da contemporaneidade. Revoluções constitucionais alcançaram inclusive África do Sul, Canadá, Israel e Nova Zelândia. Devido ao importante papel conformador exercido pela Suprema Corte brasileira, na medida em que uniformiza a jurisprudência, importa deter-se na apreciação de suas decisões, a fim de perceber a maneira como o ativismo vem sendo realizado no Brasil. Antes, porém, proceder-se-á ao estudo da jurisprudência como fonte do Direito brasileiro. Por fim, o último tópico deste capítulo destina-se ao estudo de aspectos específicos do controle abstrato de normas. 3.1 JURISPRUDÊNCIA COMO FONTE DE DIREITO NO BRASIL As fontes do Direito, que podem ser formais ou materiais, revelam de onde provém o Direito, de onde este emana. Antes de perscrutar se a jurisprudência é apta a gerar o Direito, cabe conceituá-la. Maria Helena Diniz doutrina que o termo jurisprudência compreende o conjunto de decisões uniformes e constantes dos tribunais, resultantes da aplicação de normas a casos semelhantes, constituindo uma norma geral aplicável a todas as hipóteses similares ou idênticas. É o conjunto de normas emanadas dos juízes em sua atividade jurisdicional.76 Segundo a autora, a jurisprudência é fonte do Direito, tanto formal, porque constituída de normas gerais e obrigatórias criadas pela prática consuetudinária do Judiciário, integrando 76 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 295. 66 o direito vigente, quanto material, tendo em vista que participa do fenômeno de produção do Direito.77 Com efeito, a jurisprudência contribui para a criação de normas jurídicas assim como para a interpretação das leis e criação do Direito. Ademais, influi na visão do legislador quanto aos institutos jurídicos, por vezes, alterando-os e levando à elaboração de leis que acatem a sua orientação. Entretanto, no Brasil não existe vinculação judicial às decisões dos tribunais78, em razão da independência funcional de que gozam os magistrados e que lhes confere liberdade para interpretar a lei e aplicá-la à relação particular que lhes é submetida. Por isso, seria mais apropriado afirmar que a jurisprudência é fonte material de produção do Direito, na medida em que as decisões judiciais criam o Direito. De fato, a discussão a respeito da produção do Direito por parte de juízes e tribunais é estéril e só faz sentido para o positivismo jurídico extremo, pelas razões já apontadas. Não há dúvida de que a jurisprudência participa ativamente do processo de formação do Direito, notadamente mediante os institutos do mandado de injunção, da reclamação constitucional, da orientação jurisprudencial, da súmula vinculante e do controle de constitucionalidade operado pelo Judiciário, sem falar no efeito erga omnes atribuído à pronúncia de inconstitucionalidade da lei. Em tempos de ativismo judicial não se pode mais falar em alheamento do Judiciário no processo criativo da Ciência Jurídica. Por outro lado, se o conceito de fonte formal do Direito for tomado como o sistema de atos dotados de força normativa e vinculatividade sobre o comportamento dos sujeitos de direito e sobre os órgãos públicos jurisdicionais judiciários e administrativos, há que se recusar à jurisprudência o caráter de fonte formal do Direito, eis que não obriga os jurisdicionados nem a jurisdição administrativa e judicial, não obstante o caráter vinculativo das súmulas vinculantes, que, por óbvio, não servem a substituir a lei, vez que não se destinam a regular coercitivamente situações em abstrato. Aliás, a lei, esta sim é a fonte formal por excelência do Direito. Em sistemas romano-germânicos, a lei é a fonte basilar da Ciência Jurídica. Todavia, Elival da Silva Ramos observa que, no Direito contemporâneo, não há propriamente uma sobrepujança da lei em detrimento das outras fontes de produção do 77 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 18ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 299. 78 À exceção do instituto da súmula vinculante. 67 Direito, há na verdade, a superioridade das fontes estatais, figurando a Constituição no ápice da hierarquia sistêmica.79 Nesse cenário, amplia-se a liberdade de atuação do Supremo Tribunal Federal, quando instado a se manifestar nas questões que envolvem a aplicação da Constituição, particularmente porque esta, apesar de ser jurídica, possui grande conteúdo de natureza política. Daí a imprescindibilidade de o STF respeitar a Constituição e ater-se cuidadosamente ao ordenamento jurídico, sob pena de tornar-se nefasto para a democracia brasileira, que precisa ser transformadora, ocupada em construir uma ordem justa e não apenas livre. A força dinâmica do STF não pode estar direcionada à manutenção do status quo socioeconômico; deve, isto sim, ser guiada pelo vetor axiológico da igualdade, da universalização da liberdade política e do dinamismo democrático, intento alcançado somente com decisões que guardem conformação com o sistema jurídico, a fim de fortalecer e concretizar o Estado Democrático de Direito. Os próximos tópicos prestam-se a avaliar se a atuação do STF tem cumprido esse propósito. 3.2 HISTÓRICO DO ATIVISMO JUDICIAL NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A partir da promulgação da Constituição de 1988 e, principalmente, após a emenda 45/04, nota-se uma postura mais ativa por parte do Supremo Tribunal Federal, que passou a suprimir lacunas deixadas pelo Poder Legislativo, devido, entre outros fatores, à valorização dos institutos constitucionais, experimentada há mais tempo em outros países. Presentemente, estima-se mais o acesso à justiça que a forma e flexibilizam-se velhos dogmas do processo em favor da real garantia da prestação jurisdicional. Contudo, nem sempre foi assim. O Judiciário, por muito tempo, foi o mais passivo dos poderes do Estado. Durante a ditadura militar (1964 – 1985), o Supremo Tribunal Federal mostrou-se extremamente contemplativo, apático e inexpressivo. Nesse período, o anseio de parte considerável da comunidade jurídica e da sociedade brasileira era um Judiciário aliado às decisões interpretativas, assumindo uma atuação criativa com vistas a solucionar antigos problemas ligados à inconstitucionalidade por omissão, eliminando as barreiras opostas contra a efetivação de direitos e garantias fundamentais previstos constitucionalmente. 79 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 57. 68 Antes da ditadura militar, durante a República de 1889 a 1930, o STF assumiu postura relativamente inovadora, com a doutrina brasileira do habeas corpus, que representou significativa mudança de posicionamento rumo a uma atuação mais desembaraçada por parte do STF. 3.2.1 Doutrina brasileira do habeas corpus A doutrina do habeas corpus refere-se à construção interpretativa desse instituto, antes da elaboração constitucional do mandado de segurança. A ausência na Constituição de garantias processuais voltadas à tutela de liberdades outras que a de locomoção, ameaçadas gravemente pelo autoritarismo presidencial dos primeiros anos da República, forçava advogados e juízes a procurarem alargamento nas situações de incidência do habeas corpus. Nessa construção doutrinária, fica nítida a criatividade no exercício da função jurisdicional, imprescindível à adaptação do Direito diante de novas exigências sociais. A Constituição de 1824 elaborou garantias para impedir prisões arbitrárias, mas não contemplou um instituto processual apto a fazer cessar a coação ilegal em prejuízo da liberdade de locomoção. Essa lacuna foi preenchida pelo Código de Processo Penal de 1832, que trouxe em seu bojo a ação de habeas corpus. Após a proclamação da República, sob a influência estadunidense, o habeas corpus ganhou guarida constitucional, em 1934. Rui Barbosa defendeu com afinco que a Constituição tinha conferido ao instituto conformação mais ampla que a constante do Código de Processe Penal de 1832. Alicerçado na teoria da posse dos direitos pessoais, o mencionado doutrinador entendia que a proteção possessória não se prestava apenas à defesa de coisas corpóreas, mas também de coisas intangíveis.80 No entanto, o STF não admitia a extensão dos interditos a outros casos não legalmente expressos até que veio a estender a garantia protetiva do artigo 72, § 22, da Constituição de 1891 a liberdades outras que a de locomoção, quando concedeu habeas corpus a um grupo de intendentes do Conselho Municipal do Distrito Federal, autorizando-os a adentrarem no edifício sede do Conselho e concluir a tarefa de averiguação de poderes dos intendentes eleitos, contrariando o decreto presidencial, que, ante a polêmica sobre a regularidade das eleições para o Conselho, havia determinado que o prefeito do Distrito Federal assumisse a 80 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 226-228. 69 administração e o governo total da Capital. O Presidente da República, Hermes da Fonseca, desobedeceu à decisão do STF, dissolvendo o órgão legislativo do Distrito Federal e convocando novas eleições. Provocado, o STF concedeu nova ordem de habeas corpus, também desrespeitada pelo Presidente de República, sob o argumento de que o Judiciário havia extrapolado suas atribuições, substituindo-se ao Executivo.81 O habeas corpus se destina unicamente a garantir a liberdade de locomoção, ainda que constitua essa um instrumento para o exercício de outros direitos individuais, bem como de direitos secundários civis, políticos ou administrativos. A proteção estendida que o habeas corpus propiciava para além da liberdade de locomoção beneficiava apenas o exercício conexo de outros direitos e liberdades constitucionais – líquidos e certos, que não demandavam dilação probatória – e não o exercício inteiramente autônomo dessas prerrogativas. Ao final da segunda metade do século XX, já estava quase consolidada a jurisprudência do alargamento do habeas corpus. Esse posicionamento não excedia os limites legais e constitucionais já que completamente estruturado a partir da interpretação extensiva da garantia, com apoio em elementos genéticos, gramaticais, sistemáticos e teleológicos. A doutrina brasileira do habeas corpus foi suprimida pela reforma constitucional de 1926, que acolheu a posição restritiva. O problema restou resolvido quando da previsão do mandado de segurança na Carta de 1934. A par do habeas corpus, a reclamação constitucional e o mandado de injunção foram reconfigurados por meio de uma interpretação criativa, demarcando a mudança no entendimento jurisprudencial do STF. Com efeito, a reclamação constitucional e o mandado de injunção, após a promulgação da Emenda Constitucional nº. 45/200482, vêm perdendo a característica de instrumentos de tutela de direito individual para adentrarem, por meio de uma construção interpretativa do STF, no palco dos processos objetivos de tutela de controle de constitucionalidade das leis e atos do Poder Público. 3.2.2 Reclamação constitucional 81 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 228-229. BRASIL, Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm>. Acesso em: 10/10/2010. 82 70 A reclamação (RCL), resultado de construção pretoriana, nasceu com o surgimento do Supremo Tribunal Federal. Sua formulação recebeu influência da Suprema Corte estadunidense. O cabimento da reclamação como veículo próprio à superação de ofensa a julgado do STF foi afirmado no Recurso Extraordinário nº. 13.828/1950. Iniciou-se, a partir de então, um longo debate, que perdurou ainda na fase em que o instituto foi incluído no regimento interno do STF e conheceu fim com sua previsão constitucional. Inicialmente o STF entendeu não cabível a reclamação nas seguintes hipóteses fáticas, revelando percuciente prudência na adoção do mecanismo: a) a interposição preventiva, tendo em conta ato futuro; b) aquelas que tenham por objeto decisões judiciais já transitadas em julgado (Súmula 734/STF); c) as que invoquem como paradigma (decisão violada) o indeferimento pelo Supremo Tribunal Federal de liminar em sede de ADI; d) aquelas cuja análise da eventual violação à autoridade de decisão pretérita esteja a exigir exame de matéria de fato; e) as em que a assertiva proferida em sede do Supremo Tribunal Federal que se afirme violada seja, no acórdão, mero dicta; f) aquelas em que a suposta decisão violadora da competência ou autoridade do Supremo Tribunal Federal tenha tão - somente negado providência acauteladora, entre outras.83 Nota-se que o STF vem revertendo essa orientação limitadora primitiva, ampliando o alcance da reclamação. A Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 199384, consagrou a vinculatividade de pronúncia em controle abstrato, o que resultou na expansão do rol de legitimados à propositura de reclamação, para nele se compreender todos os atingidos pela negativa de observância desse mesmo efeito vinculante. O Ministro Gilmar Mendes, do STF, entende que a reclamação apresenta-se como oportunidade para o exercício do poder de fiscalização da constitucionalidade das leis, provocado não pelo ajuizamento das figuras próprias (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade, Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental), mas por essa ferramenta mais universalizada. Na relatoria da Reclamação nº. 2.126/SP, o ministro afirmou que a abrangência do efeito vinculante das decisões não está adstrita à parte dispositiva, envolvendo também os fundamentos determinantes, a fim de se alcançar a proteção mais abarcante da Constituição.85 83 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 45-46. 84 BRASIL, Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc03.htm>. Acesso em: 10/10/2010. 85 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 49-52. 71 A ampliação das potencialidades da reclamação revela-se pela expansão do elenco de legitimados, assim como pela possibilidade de pronúncia incidental de inconstitucionalidade legal no seio da reclamação, como ocorreu na RCL 595/SE de 23/05/2003, bem assim pelas propostas de transcendência dos motivos determinantes. Nota-se nesses três aspectos a dilatação das fronteiras da reclamação, possibilitando ao STF intervir no tratamento de temas que não haviam percorrido, necessariamente, a estrutura hierárquica do Judiciário. A partir do decidido nas RCL 1.987/DF, RCL 4.219 e RCL 4.987/PE fixa-se precedente no sentido da admissibilidade da transcendência dos motivos determinantes da decisão para provimento de reclamação. Entretanto, o tema ainda não foi pacificado. Na RCL 4.335, o STF passou a reconhecer o cabimento de reclamação para extensão dos efeitos da decisão proferida na seara do controle concreto a outros sujeitos não integrantes da demanda originária. A possibilidade de ampliar os limites subjetivos da pronúncia de inconstitucionalidade via reclamação não prescinde da aplicação do mecanismo da mutação constitucional operada sobre o artigo 52, X, da Constituição86, esvaziando-o de qualquer conteúdo para dispensar a intervenção do Senado na outorga dos efeitos erga omnes à decisão. No Habeas Corpus (HC) 82.959/SP foi declarada, incidentalmente, pelo STF, a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da lei 8.072/90, que proscreve a progressão do regime penal nos crimes hediondos. A questão da reclamação em exame era a de saber se essa declaração de inconstitucionalidade inter partes teria o condão de estender os efeitos para outros sujeitos não integrantes da demanda originária. O juiz da vara de execuções penais do Estado do Acre havia afixado comunicado nas dependências do Fórum explicando que o teor do HC 82.959/AC somente teria eficácia aos condenados por crimes hediondos que estivessem cumprindo penas, a partir de expedição de resolução, pelo Senado Federal, suspendendo a eficácia do dispositivo declarado inconstitucional pelo STF, nos termos do artigo 52, X, da Constituição da República de 1988. Todavia, o Ministro Gilmar Mendes entendeu por bem concluir pela mutação do teor do referido artigo, a partir da sistematização da jurisprudência recente da Corte. O resultado dessa sistematização chamou de contexto normativo, porque formado por normas oriundas da jurisprudência e das leis. Assim, o sistema do controle difuso paulatinamente se esvaziaria, afastando o Senado Federal do referido processo e fortalecendo o controle concentrado de 86 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 52, inciso X. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 72 constitucionalidade. A justificativa para isso seria a morosidade na prestação jurisdicional e a insegurança jurídica proveniente da divergência de interpretação das normas.87 O Ministro Gilmar Mendes apresentou um novo contexto normativo, diferente do que teria dado origem à suspensão pelo Senado da execução da lei declarada inconstitucional, amparado nos seguintes argumentos: a) a origem do sistema de controle remonta ao common law, que, por ter feitio incidental nos seus julgados, necessita de um poder competente para declarar a nulidade da norma inconstitucional definitivamente; b) a situação é diferente em sistema de controle concentrado, que é o caso do Brasil, onde se reconhece à Suprema Corte o poder de atuar como legislador negativo, retirando a validade da lei inconstitucional; c) o instituto da suspensão da execução da lei pelo Senado é falho por não cingir a interpretação conforme; d) o artigo 97 da Constituição (1988) disciplina que fica dispensado o encaminhamento do tema constitucional ao plenário do tribunal quando o STF já tiver se pronunciado a respeito do tema (equiparam-se os efeitos das decisões proferidas nos processos de controle abstrato e concreto); e) o STF reconhece o efeito vinculante da declaração de inconstitucionalidade de lei municipal sobre lei de idêntico conteúdo, em sede de recurso extraordinário, caracterizando-se o efeito vinculante dos fundamentos determinantes; f) o controle de constitucionalidade exercido nas ações coletivas, a priori inter partes, na verdade tem alcance maior; g) a ADPF estabeleceu elo entre os dois modelos de controle, atribuindo eficácia geral a decisões incidentais; h) uma vez declarada a nulidade pelo STF de ato normativo inexistente, não é preciso a atuação de outro poder para suspender os efeitos do que o Judiciário já declarou inexistente, com efeitos ex tunc.88 O Ministro Gilmar Mendes propugna pela não aplicação do artigo 52, X, da Constituição, com apoio na operação do mecanismo de mutação constitucional ou reforma da Constituição sem expressa modificação de texto. Isto é, o ministro está a afirmar que, mediante o mecanismo da mutação constitucional, o sentido empregado ao texto, que indica competência do Senado Federal para suspender a execução da lei declarada inconstitucional por decisão do STF, passaria a exprimir competência do Senado Federal para dar publicidade à suspensão da execução operada pelo STF de lei declarada inconstitucional, também pelo STF. Essa teoria do novo contexto normativo proposta pelo Ministro Gilmar Mendes com vistas a operar a mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal de 1988, não 87 MENDES, Gilmar Ferreira, 2006 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 124-125. 88 MENDES, Gilmar Ferreira, 2006 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 125-126. 73 guarda conformidade com a literalidade do texto constitucional, que expressamente exige a atuação do Senado Federal para suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF. O processo de mutação constitucional é desejável a fim de adaptar o Direito às novas exigências sociais; todavia, deve ser levado a efeito sem violar a literalidade do texto normativo. Como dito alhures, uma mutação constitucional por interpretação é admissível, mas é absolutamente repelida a ideia de um rompimento constitucional, o que ocorre se o intérprete decide de forma contrária aos dispositivos da Constituição. Emprestar ao mencionado artigo o sentido de que ao Senado Federal cumpre dar publicidade à suspensão da execução realizada pelo STF quando o dispositivo constitucional expressamente confiou ao Senado a missão de suspender a execução de lei declarada inconstitucional é desrespeitar a Constituição, o que se revela em ativismo judicial afrontoso ao Estado de Direito e, especialmente, pernicioso, por advir da Corte que deve zelar pela guarda da Constituição e das leis. Além disso, nos termos do artigo 103-A da Constituição89, o Supremo Tribunal Federal, diante da repercussão geral da matéria, analisando incidentalmente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, pode editar súmula vinculante, que guarde pertinência temática com o assunto tratado, promovendo a celeridade e a segurança jurídica. Não há razão, portanto, nem ao menos de ordem pragmática, a justificar que o STF realize esse inconstitucional mecanismo de mutação constitucional atinente ao artigo 52, X, da CR90. Assinale-se que em relação ao controle concentrado, a Constituição não exige a resolução senatorial suspensiva do ato estatal declarado inconstitucional pelo STF, situação em que os efeitos da decisão, com o trânsito em julgado do aresto da Corte constitucional, são retroativos e dirigidos à generalidade. 3.2.3 Mandado de injunção 89 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art.103-A. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 90 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 52, inciso X. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 74 Após a Constituição de 1988, o princípio da força normativa trouxe os institutos da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do mandado de injunção. Da ação direta de inconstitucionalidade por omissão resulta a cientificação ao poder competente para adoção das providências necessárias ou, ainda, a concessão de prazo ao órgão omisso para elaborar a norma faltante. Quanto ao mandado de injunção a polêmica é grande. De início, o STF limitava-se a comunicar a omissão ao órgão competente para a elaboração da lei faltante, entregando provimento de natureza meramente declaratória. Tal posicionamento encontrava resistência na própria Corte. Havia ministros que defendiam a natureza condenatória da decisão acolhedora do pedido injuncional, que teria o condão de ofertar prazo ao órgão competente para formular a norma faltante, admitindo-se, na persistência da inércia, a intervenção mais concreta do Judiciário para transpor o obstáculo à efetividade do direito fundamental prejudicado pela ausência de norma reguladora. O terceiro posicionamento reconhecia caráter constitutivo ao provimento jurisdicional, competindo ao Judiciário elaborar a norma faltante para disciplinar a matéria pendente de regulamentação, a suprir, dessa forma, a omissão do legislador. O mandado de injunção teve como precedente inicial o MI 107/QO de 1990, que se restringiu a reconhecer a omissão do legislador e o prejuízo do gozo de um direito fundamental, para declarar a mora e alertar a autoridade competente para suprir a omissão, sem que houvesse, depois disso, mudanças substanciais nas decisões da Corte. Até que o STF passou a entender que ao término do prazo conferido para o legislador suprir a omissão, sem que o tivesse feito, à parte autorizava-se pedir, em juízo próprio, o benefício solicitado (MI 238), ou mesmo imediatamente desfrutar do direito pretendido (MI 232 e 284). A predominância do pensamento conservador perdurou até a prolação das decisões nos mandados de injunção 670, 708 e 712, que enunciaram, a partir dos parâmetros traduzidos na lei 7.783/89, a regra abstrata de conduta a disciplinar o exercício do direito de greve por parte dos servidores públicos, até a edição de legislação própria. Essa nova postura sustenta-se no argumento de que a simples comunicação da existência da omissão não supera a inobservância da Constituição. Sendo assim, o STF deve construir provimento apto a ensejar contornos normativos aplicáveis ao caso concreto. Nesse contexto, o alargamento das potencialidades do mandado de injunção manifesta-se pelo afastamento da cláusula de bloqueio atinente à suposta violação da harmonia entre os poderes. 75 O MI 712-8/PA é sobre a greve dos servidores públicos do Poder Judiciário e o MI 670 é sobre a greve de policiais civis. A questão objeto de discussão tanto em um quanto no outro se relaciona ao direito de greve no serviço público. O primeiro trazia o pedido do sindicato dos servidores da justiça do Estado do Pará no sentido de se efetivar o dispositivo constitucional que reconhece aos servidores públicos o direito à greve (artigo 37, VII, da CR). O ministro Eros Grau, relator do processo, viabilizou o exercício do direito de greve aos servidores públicos, apresentando como parâmetro normativo a Lei nº. 7.783/89. O Ministro Eros Grau, do STF, fundamentou sua decisão explicando que não haveria risco de violação do equilíbrio e harmonia entre os poderes, quando do exercício de função normativa pela Corte, posto que a função normativa e a legislativa não se identificam, eis que texto e normas são coisas diferentes, aquele é objeto de interpretação da qual resultam as normas. No mandado de injunção, o Judiciário interpreta o Direito, em sua integralidade, para produzir a norma aplicável à omissão. Assim, segundo o ministro, ao Judiciário incumbe retirar a omissão, definindo a norma adequada à regulação do caso concreto, norma essa encartada como texto normativo sujeito à interpretação. Portanto, o julgador não estaria legislando, mas exercendo função normativa, compatível com o compromisso do mandado de injunção de efetivar o texto constitucional. Isto é, no mandado de injunção, o Poder Judiciário não define norma de decisão, mas emite a norma regulamentadora faltante para, no caso concreto, viabilizar o exercício do direito. 91 Nessa esteira de pensamento, o mandado de injunção visa proporcionar maior efetividade ao direito fundamental, ainda não exercido em razão da omissão legislativa. Para o Ministro Eros Grau, a proteção não se dirige apenas ao impetrante. Assim, o resultado do MI 712-8/PA não afetaria apenas o patrimônio jurídico do sindicato impetrante, mas também o de todos os servidores do Poder Judiciário do Estado do Pará. Destarte, não se trata de contemplar um direito subjetivo, mas garantir a efetividade da Constituição no seu sentido objetivo, com efeitos erga omnes.92 Igualmente, no julgamento do mandado de injunção nº 721-7/DF, constatou-se expressiva alteração no posicionamento da Suprema Corte, passando-se a atribuir à decisão que defere o pleito de injunção natureza constitutivo-condenatória ou constitutivomandamental. 91 GRAU, Eros, 2007 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p.59. 92 GRAU, Eros, 2007 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p.130-131 76 Verifica-se nesse novo posicionamento do STF concernente ao mandado de injunção a preocupação em efetivar os direitos fundamentais, sem que isso implique comprometer o equilíbrio entre os poderes, eis que a inércia em legislar quando a Constituição exige a produção legislativa altera o alcance dos dispositivos constitucionais, gerando um processo inconstitucional de mutação constitucional. Desse modo, a paralisação legislativa deve ser tida como inconstitucional. As consequências da não observância de dispositivos constitucionais são graves para o Estado Democrático de Direito. Nada justifica a inércia do Legislativo e a inapetência do Judiciário. O direito à legislação é passível de ser reclamado pelo interessado, quando exista previsão constitucional do dever estatal de produzir normas. Cuida-se do direito que o cidadão tem à norma. Não há razoabilidade na omissão: já são 22 anos de promulgação da Constituição. O Congresso Nacional, não obstante a existência de inúmeros projetos de leis, não assumiu postura séria no sentido de concretizar os dispositivos constitucionais. A força normativa da Constituição viabiliza interpretação capaz de possibilitar a máxima efetividade do texto constitucional, tarefa confiada não exclusivamente ao Legislativo. Desse modo, a força normativa da Constituição é um postulado que fornece substrato teórico para a postura ativista dos tribunais, em casos desarrazoados de omissão legislativa. A transição do passivismo judicial para o ativismo, ocorrida no Supremo Tribunal Federal, a par da doutrina brasileira do habeas corpus, da reclamação constitucional e do mandado de injunção, deve-se também à concessão de efeito vinculante às decisões da Corte; por isso a abordagem que segue. 3.2.4 Vinculatividade das decisões do Supremo Tribunal Federal O Supremo Tribunal Federal, ocupando o topo da estrutura do Poder Judiciário, é o guardião da Constituição; atua na qualidade de principal intérprete do Texto Fundamental. Tal estrutura funcional leva a questionar se as decisões do STF subordinam os tribunais inferiores e outras estruturas de poder e, ainda, se a vinculatividade de uma decisão restringe-se tão somente à parte dispositiva. 77 O efeito vinculante não é fenômeno recente no Direito brasileiro, tendo sido previsto pela emenda constitucional nº 7, de 13 de abril de 1977. A finalidade do efeito vinculante, resultante do papel político-institucional desempenhado pela Corte constitucional na qualidade de guardiã da Carta Fundamental, é funcionar como elo entre o controle concentrado e o difuso, além de proporcionar certeza jurídica e, assim, assegurar a justiça, com o que o STF cumpre a sua missão institucional de salvaguardar a Constituição. Ao conferir efeitos vinculantes a uma decisão, o STF submete os demais órgãos do Judiciário e a Administração Pública aos seus posicionamentos. O tema tem enfrentado grandes controvérsias. O tom das discussões foi agravado com a instituição do mecanismo da súmula vinculante, o que contribuiu para o surgimento de uma nova problemática: a transcendência dos motivos determinantes. A propósito, na ADI em agravo regimental da RCL 1.880/SP, o relator entendeu que o alcance do efeito vinculante das decisões não se limita ao dispositivo, devendo abraçar os fundamentos determinantes. Na medida cautelar em RCL 4.987-6/PE, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que mesmo que não se conceda efeito vinculante dos fundamentos determinantes à decisão, o tribunal, em sede de reclamação contra a aplicação de lei análoga àquela afirmada inconstitucional, poderá declarar incidentalmente a inconstitucionalidade da lei ainda não atingida pelo juízo de inconstitucionalidade. Na RCL 1.987-0/DF, o ministro Maurício Corrêa entendeu admissível a reclamação contra qualquer ato administrativo ou judicial que exija interpretação constitucional consagrada pelo STF, na seara de controle concentrado, conquanto a ofensa se dê de forma oblíqua.93 Gilmar Mendes, na RCL 2.363-0/PA, aduziu que a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) é uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) com o sinal trocado, tendo ambas efeitos práticos semelhantes. A decisão de mérito proferida na ADC produz eficácia erga omnes e efeito vinculante para os demais órgãos do Judiciário e para a Administração Pública. Quando cabível em tese a ADC, a mesma força vinculante deverá ser atribuída à decisão da ADI.94 A partir desses julgados, o efeito vinculante traz algumas implicações, a saber: a) dever geral imposto a todos os órgãos sujeitos ao tribunal de acatar e cumprir sua decisão, ainda que não tenham participado do processo no qual foi proferida; b) os órgãos mencionados vinculam-se aos fundamentos da decisão da Corte, também em suas condutas 93 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 89-90. 94 MENDES, Gilmar Ferreira, [20 _ _] apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 88-89. 78 futuras, uma vez que o efeito vinculante abarca não apenas o dispositivo, mas, de igual modo, os fundamentos determinantes da decisão. Assim sendo, a decisão vinculante não se restringe a solucionar o caso em exame, contém comandos gerais e abstratos, que indicam uma norma reguladora e sua respectiva obrigatoriedade.95 Esse novo posicionamento demonstra uma performance ativista por parte do STF que, de um lado, cumpre o propósito de alcançar a racionalização das competências inerentes à Corte, seja no atinente ao desejo de evitar a multiplicidade de demandas, seja com vistas a garantir a uniformização de tratamento, seja com o fim de servir à celeridade, bem como à segurança jurídica, e de outro, se concretizada além dos limites legais e constitucionais enseja afronta ao Direito, na medida em que o Supremo Tribunal Federal dota-se de poderes soberanos e acaba por limitar a atuação jurisdicional dos juízes, também investidos da prerrogativa de dizer o direito, com independência. Por isso, o STF, quando diante de questões concernentes à vinculatividade de suas decisões deve agir prudentemente, incorporando sua incumbência de fielmente salvaguardar a democracia brasileira, sem prostrar-se aos interesses dos grupos de poder preocupados em manter o status quo sócio-econômico. Examinado o processo de transição do Supremo Tribunal Federal do passivismo para o ativismo, passa-se à análise do ativismo já consolidado na Corte constitucional. 3.3 ATIVISMO NA RECENTE JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL É notória a consagração da ampliação da jurisprudência, que se forma no sentido de uma maior intervenção do Poder Judiciário. Não se ouvida que o STF vem capitaneando o arbitramento dos atuais conflitos políticos nacionais, com decisões que repercutem profundamente na sociedade. No tópico anterior, estudou-se o histórico da prática do ativismo nas decisões da Suprema Corte. Aqui será abordada a produção jurisprudencial mais recente, nitidamente ativista, abrangendo a construção pretoriana da perda de mandato por desfiliação 95 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 92. 79 partidária, a restrição à nomeação de parentes para cargos de confiança e a implementação de direitos sociais e fundamentais veiculados por normas de eficácia limitada. 3.3.1 Perda de mandato por desfiliação partidária e questões políticas O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), fincado no princípio da representação proporcional e no teor do artigo 14, § 3º, IV, da Constituição da República96, decidiu que o desligamento voluntário do partido integrado pelo parlamentar no momento de sua eleição traz como consequência a perda do mandato, eis que os partidos políticos mantêm a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional. A perda do mandato, que não se dá de forma automática, decorre da desfiliação partidária voluntária, não se tratando de uma sanção, já que filiação e desligamento de partido político são direitos subjetivos. O mandato, a rigor, pertence ao partido, devido ao regime constitucional de democracia representativa e partidária, orientado por regras do sistema proporcional; os candidatos são, portanto, instrumentos das coligações para a execução de programas acolhidos pelo eleitor. Nesse sentido posicionou-se recentemente o STF, alterando sua tradicional orientação, o que ficou assentado no julgamento dos Mandados de Segurança nº. 26.602/DF, 26.603/DF, 26.604/DF e 20.927-5/DF. Ressalve-se que nos casos de ocorrência de alteração significativa na orientação programática do partido, bem como de comprovada perseguição política, a saída do partido não enseja a perda do mandato. O principal argumento que legitima a perda do mandato por desfiliação partidária está esteado no princípio da representação proporcional e na norma-princípio que assegura aos partidos o monopólio das candidaturas em eleições sob o sistema proporcional ou majoritário. Além disso, a infidelidade partidária causa impacto negativo ao direito fundamental de oposição e, por conseguinte, ao pluralismo político, um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito. O STF, portanto, andou bem, já que está compelido pela Constituição a efetivar os dispositivos constitucionais. A perda de mandato do parlamentar, eleito pelo sistema proporcional, que se desligue voluntariamente do partido pelo qual concorreu é um reforço ao princípio da 96 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 14, § 3º, inciso IV. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 80 proporcionalidade, projetando-o para um momento posterior ao procedimento eleitoral em si e protegendo o partido político cuja importância avulta cada vez mais. O mandato é da legenda e os eleitos pelo partido o foram para cumprir seu programa. De tal modo, os mandatos pertencem ao partido e seus titulares devem ater-se às diretrizes do mesmo, sob pena de violar a vontade do eleitor, salvo se houver uma mudança de orientação, ou, ainda, em situação de perseguição política. Parte da comunidade jurídica critica esse posicionamento ativista do STF, que estaria agindo além de suas competências previstas constitucionalmente. Esses juristas sustentam que um princípio constitucional não pode servir de fundamento para impor normatização destoante da competência da Suprema Corte, pensamento que não merece prosperar. Os princípios, impregnados de valores e dotados de força normativa, são as normas mais importantes do Direito positivo, máxime em sede constitucional, revelando-se hábeis a resolver o caso concreto. A Resolução nº 22.610/2007, do TSE, firmou o caráter constitutivo da decisão sobre a perda do mandato em caso de troca de legenda; atribuiu a competência decisória ao TSE, no caso de mandatos federais, e aos tribunais regionais, nos demais casos; assegurou ampla defesa aos parlamentares e; por fim, fixou um rol de justas causas capazes de afastar a perda de mandato.97 Ressalte-se que não obstante o Supremo Tribunal Federal estar se revelando um tribunal ativista, o que fica demonstrado em seu posicionamento sobre a fidelidade partidária; algumas de suas decisões, porém, denotam a prudência da Corte no que toca a determinadas questões políticas. Exemplo disso é a decisão do STF, proferida no dia 18/11/2009, sobre a extradição de Cesare Battisti para a Itália, na qual o Plenário do Supremo Tribunal Federal autorizou a extradição, por cinco votos a quatro. No entanto, apontou que a entrega ou não do italiano caberia ao presidente da República, por entender que este se dota de poder discricionário, na qualidade de chefe de Estado. Ainda sobre questões políticas, recentemente, o STF foi provocado por Joaquim Roriz, ex-candidato ao governo do Distrito Federal, que teve sua candidatura impugnada, pela Justiça Eleitoral, com base na Lei Complementar nº. 64/9098, com a redação alterada pela Lei Complementar nº 135/2010, a famigerada Lei da Ficha Limpa, a qual proíbe a candidatura de 97 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº. 22.610, de 08 de novembro de 2007. Disponível em: <http://www.tse.gov.br/internet/legislacao/eleitoral.htm>. Acesso em: 10/10/2010. 98 BRASIL. Lei Complementar nº. 64, de 18 de maio de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp64.htm> Acesso em: 10/10/2010. 81 políticos com condenações por segunda instância. Joaquim Roriz aduzia em seu recurso que o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contrariaram a Constituição, eis que a Lei da Ficha Limpa deveria ter entrado em vigor um ano antes das eleições a fim de aplicar-se à sua candidatura. O julgamento do recurso de Roriz ficou suspenso diante do impasse criado pelo empate em cinco votos a cinco, tendo em vista que a Corte está com uma de suas cadeiras vagas desde a aposentadoria de Eros Grau, ocorrida em agosto de 2010. O desempate poderia se dar de três formas, de acordo com o regimento interno: a) voto do presidente Cezar Peluso; b) indicação de um novo ministro pelo Presidente da República; ou c) convocação de um magistrado do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O ministro Cesar Peluso entendeu por bem esperar a indicação de um ministro pelo Presidente da República. A falta de definição do STF levou o ex-governador a anunciar a renúncia à disputa. Após a renúncia, por perda de objeto, o Plenário do STF decidiu arquivar o recurso. Antes de interromper a sessão, os ministros do STF aprovaram a chamada repercussão geral, determinando que a decisão sobre o caso sirva de precedente para processos semelhantes em instâncias inferiores. A indefinição do Supremo Tribunal Federal perdurou até o dia 27/10/2010, quando os ministros do STF decidiram a favor da aplicação da Lei da Ficha Limpa, indeferindo a candidatura do Deputado Federal Jader Barbalho (PMDB-PA). O placar permaneceu dividido sobre a constitucionalidade da vigência da lei para as eleições desse ano. Porém, os ministros decidiram, por sete votos a três, que prevalece a decisão do TSE, ante a ausência de posição majoritária no STF. O impasse do STF havia provocado críticas por parte da sociedade, que respirou aliviada após a resolução do assunto. Esse episódio demonstrou o quanto o povo brasileiro anseia que o Judiciário moralize a política e fortaleça o jogo democrático. Nesse sentido, vem a tona uma questão há muito debatida, a saber, o nepotismo, contra o qual vem se insurgindo a sociedade. Agiu bem o STF, ao restringir a nomeação de parentes para cargos de confiança, não apenas no âmbito do Judiciário, mas no Executivo e no Legislativo. 3.3.2 Proibição do nepotismo 82 O STF há algum tempo vem se posicionando contrariamente à prática do nepotismo, em observância aos princípios constitucionais da moralidade administrativa – norteador de toda a Administração Pública, em qualquer esfera do poder –, da eficiência e da impessoalidade, pelo qual a Administração não pode prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas. A Resolução nº 7/05 do Conselho Nacional de Justiça99, na esfera do poder normativo secundário, proibiu a prática do nepotismo no Judiciário. No recurso extraordinário nº 579.951-4/RN, por unanimidade, o STF pronunciou que, embora a Resolução nº. 7/05, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), se restrinja ao Judiciário, a prática do nepotismo nos demais poderes é ilícita, em virtude dos princípios explicitados pelo artigo 37, caput, da Constituição100. A Carta Maior determina que o provimento de cargos públicos se dê por intermédio de concurso público de provas ou de provas e títulos, excetuando-se as nomeações para cargos estipulados em lei de livre nomeação e exoneração (art. 37, II, CF), que são os chamados cargos em comissão, instituto diverso da função de confiança. Esta corresponde a atividades de chefia, coordenação, supervisão, etc., destinada a cargos de provimento efetivo; logo, privativa de servidores. Os cargos em comissão, reservados às atribuições de direção, chefia e assessoramento, correspondem a atividades nas quais é salutar a confiança pessoal no servidor que as exerce. Sendo assim, a confiança é requisito para a investidura e para a manutenção no cargo. A fim de ampliar os efeitos do entendimento consubstanciado no recurso especial (RE) nº 579.951, o STF expediu a Súmula Vinculante nº13, in verbis: A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.101 99 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº. 07, de 18 de outubro de 2005. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&task=view&id=101&Itemid=160 > Acesso em: 10/10/2010. 100 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 37, caput. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 101 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula vinculante nº. 13. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso: 14/10/2010. 83 Essa orientação jurisprudencial tornou-se de observância obrigatória para o Poder Judiciário e para a Administração Pública. A propósito, na edição de súmulas vinculantes fica patente o papel instrumental do poder jurisdicional, pelo qual o Tribunal decide de forma prospectiva, voltada para o futuro, e não de forma retrospectiva, preocupado unicamente com a solução de problema pretérito, à luz de proposições antecipadamente determinadas. Elival da Silva Ramos advoga que o princípio da impessoalidade não é impeditivo, por si só, do nepotismo, tendo em vista que a regra constitucional permite a nomeação por critério de confiança pessoal, presente aí grande carga de subjetividade. O autor acredita que a regra do livre provimento para cargos em comissão deve subjugar o princípio da impessoalidade, já que a escolha de um parente próximo da autoridade nomeante para ocupar cargo em comissão não é impessoal, mas se adéqua ao requisito da confiança estabelecido em regra constitucional explicitamente prevista. Defende que somente a disciplina legal revela-se apta a restringir o provimento de cargos de confiança por parentes da autoridade nomeante.102 Desse modo, o autor está a sugerir que uma regra prevaleça sobre um princípio. Entretanto, não se pode olvidar da força normativa das normas-princípio, cujo conteúdo prescritivo é conformador da realidade material subjacente ao ordenamento, mediante intervenção judicial, se necessário, com o fim de efetivar os dispositivos constitucionais, removendo-se o obstáculo gerado pela omissão dos poderes públicos. Não há dúvida de que o princípio da moralidade sirva de sucedâneo para invalidação de atos lesivos ao patrimônio público praticados pela Administração. Ademais, a nomeação para cargo em comissão comprovadamente realizada por razões de interesse particular deve ser anulada por desvio de finalidade. E é claro: o princípio da impessoalidade deve predominar sobre a regra do livre provimento para cargos em comissão. Diógenes Gasparini, citando Celso Antônio Bandeira de Mello, leciona que: Os princípios são mandamentos nucleares de um sistema, seu verdadeiro alicerce, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão, como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (RDP, 15:284). Sendo assim é certo que “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”, afirma esse notável administrativista. (RDP, 15:284)103 102 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 261-164. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, 2004 apud GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 13 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 07. 103 84 Outrossim, os princípios afiguram-se importantes para a concretização de direitos fundamentais e sociais expressos em normas de eficácia limitada, o que proporciona abertura para práticas ativistas pelo Supremo Tribunal Federal. 3.3.3 Concreção de direitos fundamentais e sociais veiculados por normas de eficácia limitada O Supremo Tribunal Federal atribuiu eficácia plena à norma do artigo 208, IV, da Constituição104, que determina ao Poder Público o dever de garantir a educação infantil às crianças de até cinco anos de idade, obrigação que se dirige principalmente aos municípios (artigo 208 § 2º, CF105). Dessa forma, o STF assegurou a fruição de um direito subjetivo previsto constitucionalmente; todavia, desenhado em uma norma de eficácia limitada e de natureza programática, cuja efetivação estava a depender da execução de políticas públicas apropriadas, papel do Legislativo e do Executivo. No entanto, passível de controle por parte do Poder Judiciário. Os objetivos de efetividade revelam o compromisso que o Judiciário deve ter com a concreção do rol de direitos fundamentais, um dos principais argumentos fundamentadores do ativismo judicial. A omissão ou o retardamento injustificável dos poderes públicos em concretizar normas veiculadoras de direitos fundamentais, como é o caso do direito à educação, autoriza o Poder Judiciário a conferir-lhes eficácia plena e aplicabilidade imediata. É o que se extrai do artigo 5º, § 1º, da Constituição da República, segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.106 Nos Embargos Infringentes na ADI 1.289-4/DF e na Suspensão de Segurança 3.1546/RS, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que a concretização das promessas constitucionais deve ocorrer na proporção do que é faticamente possível em uma sociedade pluralista. Para isso é indispensável a abertura do texto constitucional à influência do contexto fático em que 104 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 208, inciso IV. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 105 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 208, § 2º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 106 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 5º, §1º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 85 seja aplicado. A Constituição, como Lei Fundamental que é, obriga o magistrado a proceder à sua correta interpretação, devendo definir o alcance de suas disposições, tendo sempre em vista que o Texto Fundamental deve estar compreendido no bojo da realidade que impera. 107 O pensamento da reserva do possível está relacionado à realidade, perscrutando as possibilidades do que ainda não é real e do que pode ser real no futuro. É o pensamento na perspectiva de existência de alternativas. Indaga sobre a realidade atual sem se despreocupar com as novas realidades, em constante adaptação às necessidades presentes e futuras, com possibilidade de correção do passado. No caso da Suspensão de Segurança 3.154-6/RS, requerida pelo governo do Rio Grande do Sul para suspender decisão liminar que determinava o pagamento integral dos salários dos delegados de polícia do estado até o último dia útil do mês, o STF entendeu que a eficácia da norma constitucional do artigo 35, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, que obrigava a realização do pagamento da remuneração mensal dos servidores públicos até o último dia útil do mês do trabalho prestado, estava a depender de um estado de normalidade das finanças pública estaduais, atenuando-se a norma ante a presença de situação de crise. Para o Ministro Gilmar Mendes, estar-se-ia diante de uma situação em que o Direito se manifesta como negação do Direito. O estado de exceção ocorre no momento em que segmentos da ordem jurídica são suspensos a fim de atender a necessidades específicas, por meio de medidas estatais revestidas de força normativa, apresentadas como Direito, que, em determinado momento, suspendem parcelas da ordem jurídica. Assim, o estado de anormalidade enfrentado pelo Rio Grande do Sul justificaria o afastamento das regras criadas para situações normais.108 Não obstante, admita-se que o estado de exceção não é um Estado de Direito. O pensamento da reserva do possível não é um parâmetro dogmático apto a delimitar a atuação dos poderes institucionais. Este argumento pode ser facilmente utilizado como pretexto para o não cumprimento dos dispositivos constitucionais, visto que não tem densidade teórica para evitar uma patologia sistêmica resultante do desrespeito à ordem jurídica. Como visto alhures, o controle judicial das leis e atos dos órgãos públicos fomentou ambiente propício para o desenvolvimento de práticas ativistas, devido, entre outros fatores, ao nível de liberdade dos magistrados no exercício do controle de constitucionalidade. Tendo 107 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 78-80. 108 MENDES, Gilmar Ferreira, 2007 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 80-82. 86 em vista que o presente capítulo destina-se a analisar a produção jurisprudencial ativista do Supremo Tribunal Federal importa abordar determinados aspectos do controle abstrato de normas, exercido unicamente pela Suprema Corte. 3.4 ASPECTOS ESPECÍFICOS DO CONTROLE ABSTRATO DE NORMAS O controle de constitucionalidade pode ser concreto ou abstrato. O controle concreto, também conhecido como difuso, aberto, por via de exceção ou defesa, é aquele exercido por todo e qualquer juiz ou tribunal, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal. Na via de exceção, a pronúncia de inconstitucionalidade, projetada apenas ao caso concreto, não é o objeto principal da demanda, mas uma questão indispensável ao julgamento do mérito. Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso são retroativos e restritos às partes envolvidas na demanda. Contudo, se o STF, por maioria absoluta de seus membros, pronuncia a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, os efeitos podem se estender para todos, mediante resolução suspensiva do ato estatal editada pelo Senado Federal, nos termos do artigo 52, X, da CR109, situação em que os efeitos não retroagirão. Por meio do controle abstrato, também chamado de controle concentrado ou por via de ação direta, na qual a declaração de inconstitucionalidade é objeto principal da ação, objetivase obter a pronúncia de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo em tese a fim de que o ato estatal inconstitucional seja retirado do ordenamento jurídico. Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle concentrado, realizado somente pelo Supremo Tribunal Federal, são retroativos e dirigidos à generalidade. Porém, tanto no controle concreto quanto no abstrato é possível que razões de ordem pública, informadas pelos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, exijam que a declaração de inconstitucionalidade tenha efeitos projetados para o futuro, ou que não retroajam. Embora a modulação de efeitos nas decisões seja possível no controle concreto, proceder-se-á ao estudo da modulação de efeitos apenas no controle abstrato de normas, por ser ponto culminante do ativismo judicial. A modulação dos efeitos temporais das decisões de controle e a manipulação do conteúdo normativo do ato controlado, aspectos específicos do controle abstrato de normas, 109 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 52, inciso X. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 87 marcam o espaço em que a jurisdição constitucional mais se aproxima da função legislativa, fomentando a criatividade dos órgãos responsáveis pelo controle judicial de constitucionalidade das leis. 3.4.1 Modulação dos efeitos temporais das decisões de controle Os institutos da boa-fé e da segurança jurídica, temas centrais no Estado de Direito, têm sido utilizados como argumento para justificar práticas ativistas, na medida em que fundamentam a modulação dos efeitos temporais das decisões de controle. A questão da eficácia temporal das decisões de controle tem relação direta com a natureza da sanção cominada à prática inconstitucional. Nos ordenamentos europeus, que adotam a sanção de anulabilidade para coibir o vício constitucional, o ato legislativo desfruta de validade constitucional, até que seja golpeado por uma decisão anulatória – de natureza desconstitutiva – por parte do tribunal incumbido de fazer o controle. Diversamente, nos modelos de fiscalização, como é o caso dos Estados Unidos, o ato normativo inconstitucional é declarado nulo. A decisão de controle, neste caso, é apenas declaratória, reconhecendo a inaptidão absoluta do ato legislativo para produzir efeitos. A diferença entre os dois sistemas, o europeu e o estadunidense, se atrela aos efeitos temporais das decisões de controle. Se o ato legislativo é nulificado pela decisão de controle, esta irá gozar de efeitos retroativos. Ocorrendo a anulação da lei inconstitucional, necessário é disciplinar-lhe a eficácia temporal. A prática da modulação dos efeitos temporais é característica dos ordenamentos europeus, que, por se ajustarem à natureza da sanção de invalidade imposta, pode ser objeto de regulação em nível de legislação ordinária ou ter sua marcação confiada à Corte constitucional. Nos sistemas como o dos Estados Unidos, a atenuação das consequências da sanção de nulidade é alcançada por intermédio da manutenção excepcional dos efeitos de algumas situações. Quando declarada incidentalmente a inconstitucionalidade da lei, recorre-se à técnica da ponderação. O constituinte pode entender por bem resguardar essas situações concretas, confiando ao órgão máximo da competência constitucional a missão de restringir a 88 amplitude temporal da declaração de nulidade, nas condições estipuladas pela Constituição. Essa é a diretriz da Constituição de Portugal. Nesse caso, a manipulação da eficácia temporal das decisões de controle cuida-se de técnica compreendida no estatuto jurídico do controle de constitucionalidade da qual pode se valer o órgão Judiciário incumbido do controle em harmonia com o Direito objetivo. Ora o juiz constitucional desfrutará de maior liberdade, ora o juiz estará mais limitado por haver expressa regulação no Direito positivo. A Constituição brasileira de 1988 adotou o modelo estadunidense de controle. A sanção de invalidade cominada aos atos normativos inconstitucionais é a de nulidade. Na lição de Elival da Silva Ramos, a sanção de nulidade exige a presença do controle em via incidental ao passo que a sanção de anulabilidade associa-se necessariamente ao controle concentrado, em que se produzam decisões anulatórias com eficácia erga omnes e não retroativas ou com retroatividade limitada. Entretanto, no Brasil inexiste qualquer cláusula temporal a limitar a análise da constitucionalidade das leis, seja pela via do controle difuso, seja nas ações diretas110. A regra é que atos inconstitucionais são nulos e destituídos, em consequência, de qualquer carga de eficácia jurídica, em razão do princípio da supremacia da Constituição, segundo o qual dispositivos legais devem necessariamente guardar conformidade vertical com o texto constitucional. No entanto, a ideia da segurança jurídica permitiu uma construção jurisprudencial defensora da possibilidade de se determinar uma reformulação nos efeitos da pronúncia de inconstitucionalidade de lei. A matéria acabou por ser tratada no artigo 27 da Lei nº. 9.868/99111. Elival da Silva Ramos advoga que os operadores do Direito não podem se basear apenas em princípios constitucionais para excepcionar a sanção de nulidade absoluta, operada no plano abstrato, considerando necessária a elaboração de uma norma expressa de mesmo nível hierárquico, prevendo a atenuação pretendida sobre o ato invalidado, de modo que o artigo 27 da Lei nº. 9.868/99 não poderia se prestar à regulação da modulação dos efeitos temporais das decisões de controle.112 Antes da Lei Federal nº. 9.868/99 utilizava-se a ponderação de princípios a fim de preservar as situações concretas constituídas fundadas nas normas invalidadas. Certo é que não obstante o princípio da nulidade ter sido adotado pelo Direito brasileiro, seu afastamento 110 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.235. BRASIL. Lei Federal nº. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Artigo 27. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15/10/2010. 112 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 235-236. 111 89 é possível, a depender de um juízo de ponderação, fundado no princípio da proporcionalidade que indique a prevalência da segurança jurídica (necessidade de estabilidade das situações jurídicas), boa-fé ou outro princípio constitucional encartado no interesse social relevante. Antes da entrada em vigor da Lei Federal nº. 9.868/99, o STF pronunciou-se sobre a modulação de efeitos temporais no Recurso Extraordinário nº. 147.776. Nesse caso, o STF, ao examinar a recepção do texto contido no artigo 68 do Código de Processo Penal – que deferia ao Ministério Público competência, expressa da assistência judiciária, para executar pena de multa imposta no processo penal –, se rendeu ao fato de que a Defensoria Pública não estava nacionalmente organizada, situação que determinaria a protração dos efeitos da pronúncia da não-recepção. Contraditoriamente, o STF compreendeu que a modulação de efeitos não se opera em hipóteses de não-recepção da norma jurídica controlada. No entanto, Gilmar Mendes entende que também a não-recepção merece modulação de efeitos, com fundamento em razões de segurança jurídica. A Lei Federal nº. 9.868/99 adotou a técnica da restrição temporal dos efeitos da declaração de nulidade, confira-se o teor do seu artigo 27: Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.113 Elival da Silva Ramos professa que a restrição de efeitos da declaração de nulidade em perspectiva temporal corresponde a uma convalidação parcial do ato sancionado, sendo possível ainda a produção de alguns efeitos. Para o autor, o artigo 27 da Lei nº. 9.868 rejeita a convalidação, sem qualquer restrição no plano temporal, de dispositivos ou normas da legislação censurada.114 O autor relaciona os seguintes pressupostos para que a Suprema Corte promova a convalidação parcial de ato conforme a Constituição: a) o momento em que pode ser adotada a medida é o da prolação da decisão de mérito em ação direta de inconstitucionalidade, logo após ser declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo impugnado; b) exige-se manifestação favorável de dois terços dos membros do Tribunal; c) a motivação da medida deve balizar-se em razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social. O Direito 113 BRASIL. Lei Federal nº. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Artigo 27. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15/10/2010. 114 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 203. 90 positivo faculta ao órgão de controle: a) impedir que a ineficácia do ato normativo remonte à sua edição, estipulando um termo limite, situado entre esta e o trânsito em julgado da decisão (restrição temporal projetada para o passado); b) determinar que a eficácia seja ex nunc (convalidação dos efeitos até o trânsito em julgado da decisão); ou c) determinar a eficácia pro futuro da declaração, que é a eficácia a partir de outro momento subsequente à decisão.115 Pouco tempo depois da entrada em vigor da Lei nº. 9.868/99, duas ações de inconstitucionalidade foram propostas perante o STF, questionando a constitucionalidade de alguns dos dispositivos da lei mencionada, dentre eles o artigo 27. Em que pese a pendência de impugnação à constitucionalidade do artigo 27, o STF fez uso do mesmo, antes de decidir a questão. O principal caso, após a Lei nº. 9.868/99, cujo provimento jurisdicional ancorou-se no princípio da segurança jurídica, foi traçado pelo ministro Maurício Corrêa no RE 197.917/SP. Examinava-se lei orgânica municipal que dispunha sobre a fixação do número de parlamentares integrantes do Legislativo, tendo o STF decidido, fundado em um cálculo de proporcionalidade, que a Câmara de Vereadores contava com mais edis que o devido, contaminando-se todas as deliberações ali ocorridas. Foram conferidos efeitos retroativos à decisão, mas a partir de data futura, ante a imprescindibilidade de salvaguardar o interesse público. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 197.917, firmou posição favorável à aplicação do artigo 27 da Lei nº. 9.868/99 ao controle concretoincidental. Os Recursos Extraordinários nº. 266.994, 273.844, 274.048, 274.384, 276.546, 282.606, 199.522, 300.343 configuram casos nos quais o STF declarou incidentalmente a inconstitucionalidade da lei orgânica municipal, conferindo efeitos prospectivos à decisão de controle, por razões de segurança jurídica. Também foram proferidos efeitos prospectivos à decisão da ADI 3.615. Verifica-se que no âmbito da fiscalização concreta, os juízes, apoiados nos princípios constitucionais de incidência simultânea ao da nulidade da lei inconstitucional, tais como segurança jurídica, boa-fé, intangibilidade da coisa julgada, sempre preservaram certas situações, embora fulminadas de inconstitucionalidade. Apenas as consequências indiretas do ato invalidado são atenuadas pelo órgão julgador, valendo-se este de ponderação entre os princípios constitucionais, não necessitando de prévia autorização do constituinte, por se referir unicamente à função jurisdicional. 115 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 204. 91 O principal argumento que fundamenta a prática da modulação de efeitos das decisões de controle é o fato de que, desde a vigência das normas inquinadas de vício de inconstitucionalidade, foram consolidadas diversas situações jurídicas, que não podem ser desconstituídas desde sua origem, sem prejuízo para o princípio da segurança jurídica. O Ministro Gilmar Mendes leciona que o princípio da nulidade da lei inconstitucional há de considerar que esse mesmo Estado Constitucional também seja axiologicamente comprometido, revelando a presença do componente de ética jurídica e seu emprego nas relações regidas pelo Direito. O ministro assinala que assim como o princípio da legalidade deve ser observado, em igual medida o devem ser o da segurança jurídica e outros valores constitucionalmente relevantes, tornando-se cogente a aplicação de um juízo de ponderação entre esses vetores, empreendendo a solução que implique a mais extensa proteção da ordem normativa.116 Na ADI 2.240-7, o Partido dos Trabalhadores ingressou com o pleito de inconstitucionalidade da lei instituidora do Município de Luiz Eduardo Magalhães, criado em ano de eleição municipal (2002), resultante do desmembramento de dois distritos, quando pendente promulgação de lei complementar federal prevista no § 4º, artigo 18, da CR117, que deveria definir o período em que se tornaria lícita a reconfiguração de municípios. O Governador do Estado-membro defendeu a constitucionalidade da norma instituidora, argumentando que a Constituição prevê o desmembramento de municípios. O ministro Eros grau, no seu voto, destacou que a lei complementar não havia sido criada e que o município assumiu existência fática, praticando atos próprios de ente federado, há mais de seis anos, tendo, inclusive, legislado. Os cidadãos do município, de boa-fé, acreditaram na sua autonomia política. A interpretação literal do dispositivo constitucional conduziria a irremediável declaração de inconstitucionalidade da lei instituidora do município. No entanto, uma decisão nesse sentido poderia gerar efeitos maléficos, promovendo insegurança jurídica, o que serviu de fundamento para Eros Grau afirmar que a Corte não poderia limitar-se ao exercício de subsunção. O ministro ressaltou que a normalidade é condição para a validade e, consequentemente, a anormalidade é suscetível de excepcionar. 116 MENDES, Gilmar Ferreira, 2007 apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 72-73. 117 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 18, § 4º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 92 No caso, a omissão legislativa teria instalado um estado de exceção, excepcionando as normas, que só valem para as situações normais.118 Acresceu o ministro que a realidade consolidada não pode ser afastada na hora da tomada de decisão. Apontou que a declaração de inconstitucionalidade pode até declarar o ato nulo, mas não faz desaparecer o município, dotado de existência institucional, marcada pelo desempenho de atividades jurídicas próprias de sua competência e pelas relações institucionais peculiares a ente da federação. Eros Grau subjuga o princípio da nulidade à força normativa dos fatos. Em seu voto, o ministro argumenta que não aplicar o princípio da nulidade numa situação de exceção não gera desrespeito ao ordenamento, vez que nessas condições a norma é aplicada ao não aplicá-la. Já que devido ao tempo decorrido, uma situação de fato equiparou-se a uma situação jurídica, o vício originário de criação deveria ser superado, preservando-se os atos praticados, bem assim a perduração do município por tempo indeterminado.119 A tese propugnada pelo Ministro Eros Grau não prosperou. Havia o receio de que fosse aberto espaço para a convalidação institucional de municípios contaminados por esse mesmo vício. Além disso, a mora legislativa na edição da lei complementar reclamada pelo artigo 18, § 4º, da CR120 poderia ser sanada, promulgando-se a lei estadual. O julgado da ADI em comento deferiu o pedido, determinando a inconstitucionalidade sobre a norma que estabeleceu a criação do município de Luiz Eduardo Magalhães; porém, com a modulação dos efeitos da pronúncia. Na ADI 3.615, o Ministro Eros Grau propôs que a Corte fizesse uma ponderação de quais situações mereceriam convalidação, não obstante o juízo de inconstitucionalidade. Sugestão não acolhida pelo colegiado, que optou pela modulação de efeitos da sentença, com a qual se teria a preservação genérica de todas as situações que se tivessem materializado sob a regência da norma instituidora inconstitucional. O objeto da ADI 3.489-8/SC é também a criação de município, resultante de desmembramento, sem a lei complementar exigida pelo artigo 18, § 4º da Constituição. O Ministro Gilmar Mendes, lançando seu olhar para as consequências políticas, econômicas e sociais da decisão, asseverou que o tribunal não poderia focar toda a sua atenção nas 118 GRAU, Eros, [20 _ _] apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 113-114. 119 GRAU, Eros, [20 _ _] apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 115-116. 120 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Art. 18, § 4º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. 93 realidades concretas constituídas impossibilitadas de serem desfeitas. Em seu voto, defendeu a viabilidade da otimização de ambos os princípios – o da nulidade e o da segurança jurídica – de forma a aplicá-los na maior medida possível, finalidade alcançada pela procedência da ADI com a modulação dos efeitos da decisão.121 No caso em exame, o princípio da nulidade está em conflito aparente com os princípios da segurança jurídica e da boa-fé. Sendo assim, a solução do problema assenta-se na utilização da técnica da ponderação e no exame da proporcionalidade a legitimação normativa para a modulação temporal dos efeitos da decisão. Ponderam-se os efeitos da lei inconstitucional e os resultados da declaração de inconstitucionalidade. O melhor caminho que se afigura, portanto, é a declaração de inconstitucionalidade da lei impugnada sem negligenciar em conservar na maior medida possível os efeitos por ela produzidos. Na ADI 3.489-8/SC, assim como na ADI 2.240-7, foi declarada a inconstitucionalidade, mas não a nulidade, por 24 meses, tendo o Judiciário fixado prazo para a edição da norma complementar faltante. Observa-se que no ministério de concretizar a Constituição, o STF promove sua força normativa e sua tarefa estabilizadora, reportando-se à integridade da norma concreta, representação culminante no plano do direito pressuposto. Mostra-se relevante a preservação de atos normativos das sanções de invalidade decretadas pelo ordenamento e operadas pelo Judiciário, o que reflete a postura hermenêutica de um aplicador preocupado em harmonizar o sistema jurídico, sem descuidar de outros valores inerentes ao Estado Constitucional de Direito, tais como a isonomia, a segurança jurídica e a proporcionalidade. Essa postura contribui para consolidar a ideia do máximo aproveitamento dos atos normativos emanados dos poderes competentes. Sob essa orientação, têm grassado decisões de controle que interferem no conteúdo normativo dos dispositivos legais fiscalizados, com vistas a impor, aos operadores e destinatários do sistema jurídico, certas variantes interpretativas ou efeitos, em detrimento de outros. Tais decisões, classificadas como manipulativas em sentido amplo, serão estudadas a seguir. 121 MENDES, Gilmar Ferreira apud VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 120-121. 94 3.4.2 Sentenças interpretativas e manipulativas em sentido estrito As decisões manipulativas em sentido amplo, usadas com maior frequência na Europa e em sistemas de perfil estadunidense, que acolhem dupla via de aplicação modal, podem ter fundamento formal na Constituição, na legislação ordinária ou decorrer de construção jurisprudencial, sendo subdivididas em duas categorias: as sentenças interpretativas e as sentenças manipulativas em sentido estrito122. Anote-se que essas sentenças vêm sendo utilizadas também no âmbito do controle difuso de constitucionalidade. A técnica decisória empregada na sentença interpretativa origina-se da verificação de mais de um significado para o mesmo significante – sem alteração de texto –, sendo que alguns desses sentidos guardam conformidade com a Constituição e outros não, pelo que deve ser eleito o significado conforme. O artigo 28, parágrafo único, da Lei Federal 9868/99, preceitua eficácia para todos da interpretação conforme a Constituição, confira-se: A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.123 A eficácia geral da interpretação conforme se explica pela possibilidade de utilização combinada das duas formas de sentenças interpretativas, sendo que determinado dispositivo pode ser considerado válido a depender do significado que se lhe atribui ou receber a pecha de inconstitucional, se cotejado com outras variantes interpretativas. As sentenças manipulativas em sentido estrito não se restringem a utilizar a interpretação conforme, ensejando uma reelaboração mais intensa do conteúdo prescritivo, reforçado por intermédio de elementos contidos em outras normas. As sentenças manipulativas em sentido estrito subdividem-se, na Itália, em sentenças aditivas e sentenças substitutivas ou criativas. As aditivas declaram a inconstitucionalidade de norma sem a redução do texto de seu enunciado, sendo que o dispositivo normativo não é eliminado do ordenamento, visto que a Corte procede a um trabalho de integralização com uma normatização ulterior, restando configurada a inconstitucionalidade apenas se o 122 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 209-2010. BRASIL. Lei Federal nº. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Artigo 28. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15/10/2010. 123 95 enunciado for lido sem a parte adjuntiva. O uso de sentenças manipulativas aditivas é uma prática ativista respeitosa ao ordenamento jurídico.124 A norma constitucional utilizada como parâmetro para proceder-se ao controle de constitucionalidade tem que dispor de eficácia plena, devendo o dispositivo inconstitucional estar contido no campo de abrangência da regra ou do princípio. O dispositivo objeto da extensão reconstrutiva deve contar com uma textualidade que lhe dê suporte, não se admite, portanto, interpretação que ultrapasse as fronteiras indicadas pelo próprio texto. As sentenças manipulativas aditivas não podem criar um Direito novo, mas apenas corrigir normas que já existem no ordenamento. Se existe uma lacuna há a possibilidade de integração por meio de interpretação conforme a Constituição. É claro que há efeitos negativos na omissão legislativa ou, ainda, numa lacuna na decisão do Tribunal, por isso a importância da integração. A sentença aditiva de princípio é a que aponta desconformidade entre a legislação fiscalizada e as normas constitucionais, não se introduzindo uma regra imediatamente atuante e aplicável; fixa-se, ao contrário, um princípio geral que se deve executar por meio de uma intervenção do legislador, porém que já pode, dentro de certos limites, ser referido pelo juiz na decisão de casos concretos. No Brasil, a sentença aditiva de princípio não é utilizada em razão do sistema sancionatório constitucionalmente estabelecido. Já que assim é, podem surgir situações de inconstitucionalidade que não recomendem a pronúncia de nulidade, mediante o diferimento dos efeitos temporais da decisão, nos termos do artigo 27 da Lei nº. 9.868/99.125 As decisões manipulativas substitutivas declaram a inconstitucionalidade de uma disciplina e individualizam a única outra disciplina possível. Neste caso, o conteúdo prescritivo do enunciado é substituído por outro, respeitoso aos ditames constitucionais, mas não ao limite da textualidade. Verifica-se que, no uso de sentenças manipulativas, o julgador tem condições de ultrapassar a interpretação conforme, produzindo sentenças que se projetam para o conteúdo normativo do dispositivo constitucional, substituindo-o, ampliando ou reduzindo seu alcance, o que aproxima sobremaneira a função jurisdicional da atividade legislativa. Obviamente a interpretação conforme a Constituição é necessária; entretanto, o rompimento com o conteúdo do dispositivo normativo, do ponto de vista dos elementos 124 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 217-218. BRASIL, Lei Federal nº. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Artigo 27. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15/10/2010. 125 96 gramatical, histórico, sistemático e teleológico, deve ser repelido em termos científicos. Quando o texto admite mais de uma significação, por conter enunciados abertos, dúcteis e/ou de conteúdo principiológico, o Judiciário, indubitavelmente, deve eleger aquela consentânea à Constituição e ao ordenamento jurídico, promovendo a segurança jurídica e a unidade sistêmica do Direito; mas as opções semânticas devem ser fornecidas pelo próprio texto normativo e não integralmente criadas pelo julgador, ao adicionar conteúdo normativo flagrantemente violador da literalidade textual. Atento a esses limites e a outros explicitados nesse trabalho, o Poder Judiciário está constitucionalmente autorizado a operar o ativismo judicial com o intento de fortalecer o jogo democrático, assim como concretizar os dispositivos constitucionais e, por conseguinte, efetivar o Estado Democrático de Direito. 97 CONCLUSÃO O modelo de Estado intervencionista revelou-se um solo fértil para a germinação do ativismo judicial, entendido aqui como o exercício pró-ativo da função judicial, quando da aplicação e interpretação das leis e da Constituição, seja ao desempenhar trabalho criativo ou construtivo, seja ao atuar em situações jurídicas imbricadas por questões políticas, sendo que somente o ativismo respeitoso aos limites traçados pelo ordenamento jurídico pode ser operado pelo Poder Judiciário. A tendência mundial é alargar o elenco de atribuições do Poder Judiciário, no âmbito de constituições principiológicas. No Brasil, o Judiciário foi ganhando projeção paulatinamente e, por fim, chegou-se à Constituição da República de 1988, que, acompanhando as novas visões das constituições contemporâneas, levou o Judiciário a reforçar cada vez mais a força normativa dos princípios, quando os concretiza nas demandas que lhe são submetidas. Por vezes, os Poderes Legislativo e Executivo, não obstante o aumento das competências previstas na Constituição de 1988, são omissos quanto ao cumprimento de sua missão institucional. Não raramente, o Congresso Nacional deixa de concretizar, via função legislativa, temas constitucionais, o que acaba por forçar o Judiciário a um posicionamento mais ativo. Tem-se verificado, até mesmo, um viés político na atuação do Judiciário, consubstanciado em diversos institutos jurídicos previstos pela Constituição da República, dentre os quais podem ser destacados a ação popular, o mandado de segurança coletivo, a súmula vinculante e o mandado de injunção. A partir da promulgação da Constituição de 1988 e, principalmente, após a emenda 45/04, nota-se uma postura mais ativa por parte do Supremo Tribunal Federal, o que fica evidente na interpretação criativa dos institutos da reclamação constitucional, do mandado de injunção e da súmula vinculante, assim como nas decisões sobre perda de mandato por desfiliação partidária, restrição à nomeação de parentes para cargos de confiança, concreção de direitos fundamentais e sociais veiculados em normas de eficácia limitada e, principalmente, na produção jurisprudencial atinente à modulação dos efeitos temporais das decisões de controle e à manipulação do conteúdo normativo do ato controlado. 98 Diante desse cenário, os doutrinadores divergem em relação ao ativismo. Para quem entende que o Judiciário deve ser atuante, não podendo assumir posição passiva diante da sociedade, e sim exercer o papel de guardião garantidor da efetividade constitucional, o ativismo judicial é visto com bons olhos. Entretanto, parte da comunidade jurídica teme que o alargamento do ativismo judicial possa abalar o princípio da separação dos poderes, consagrado pela Constituição da República, prejudicando, por consequência, o próprio Estado Democrático de Direito. Por isso, há quem defenda que o Direito não deve intervir na política e na sociedade. Na verdade, não se pode afirmar que o ativismo judicial, dentro de parâmetros normativos, esteja a ameaçar a estrutura de separação dos poderes. Assinale-se que o Estado Social Democrático é essencialmente atuante, a ponto de impulsionar o desenvolvimento econômico e social, ocasionando o incremento de todas as suas atribuições, inclusive a administrativa e a legislativa. Se os Poderes Executivo e Legislativo ficam omissos ou se atuam com desvio de finalidade ou excessos, incumbe ao Poder Judiciário fazê-los agir com aderência ao ordenamento jurídico. O Judiciário, provocado, não pode ficar contemplativo, pois, caso contrário, diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição – monopólio estatal –, a omissão inconstitucional será dele, e nada mais danoso à democracia e ao Estado de Direito que a omissão inconstitucional de um Poder a quem o povo confiou a guarda da Constituição e das leis. Não há razoabilidade na omissão: já são 22 anos de promulgação da Constituição. Apesar da existência de numerosos projetos de lei, o Congresso Nacional não assumiu postura séria concernente à concretização dos dispositivos constitucionais. A força normativa da Constituição viabiliza interpretação capaz de possibilitar a máxima efetividade do texto constitucional, tarefa confiada não exclusivamente ao Legislativo. Por óbvio, o Judiciário não pode substituir-se ao Parlamento, mas deve levá-lo a cumprir sua atividade legiferante, a fim de efetivar a Constituição. Concretizar a Constituição, ofício de que se investe o Judiciário ativo, é essencial para a preservação do sistema de separação dos poderes, cujo exercício implica necessariamente atuação firme e permanente de todas as funções estatais em benefício do bem estar da sociedade, o que está assentado no próprio texto constitucional. Nesse ofício, o Judiciário precisa alcançar a perfeita conformação entre a criatividade inerente à jurisdição constitucional e a necessária observância aos princípios do Estado de Direito, dentre eles o da separação dos poderes, impedindo que o excesso institucional resulte em lesão à soberania popular e à participação política que dela decorre. Com efeito, não se 99 pode atribuir ao povo um papel secundário na concretização de uma Constituição que se pretende democrática. O modo de pensar o Direito do positivismo em sentido estrito do século XIX, época de supervalorização das ciências e dos métodos, reprovava práticas ativistas, por parte dos juízes, que deveriam ser meros aplicadores do Direito, sem ocupar-se de qualquer trabalho criativo. O Direito foi formulado como um conjunto sistêmico de normas, sem ponderações axiológicas, filosóficas ou sociológicas; o positivismo, por sua vez, seria espécie de método científico para a construção da Ciência Jurídica. Naquele momento histórico, o receio do agigantamento do Judiciário era justificável. É de se esperar que em uma sociedade comprometida com a contenção do poder – em reação aos descomedimentos do absolutismo monárquico – e com a eliminação dos privilégios feudais a lei seja a solução ideal, pois, associada ao sistema da separação de Poderes, possibilitava a emancipação política dos europeus e a neutralização dos interesses, com a consequente supressão do arbítrio governamental. É comum a mudança de ideologias e de exigências sistêmicas ao longo da História. Os temas têm seu tempo: em determinada época desenvolve-se uma problemática especial, que acende, aprofunda-se e, por fim, emudece-se. Quando as circunstâncias mudam e as necessidades se tornam outras, as teorias acompanham essas transformações, o que não significa que esta ou aquela teoria esteja equivocada, eis que o pensamento irá variar ao sabor do tempo e do lugar. O positivismo jurídico emprestou forma ao Direito, que passou a carecer de conteúdo, motivo pelo qual recebeu importantes contribuições das correntes sociológicas e filosóficas, as quais fornecem – cada uma ao seu modo – substrato teórico ao ativismo judicial. Num Estado Democrático de Direito, a tarefa do Judiciário é consolidar os regimes democráticos, por meio de uma judicialização mais intensa da vida e da política, concretizando os dispositivos constitucionais, o que não pode ser feito mediante arbitrária imputação de efeitos ao signo linguístico dos textos normativos, posto que o desprendimento do juiz à norma promulgada pelo legislador gera insegurança social, fazendo-se premente a imposição de limites objetivos no processo hermenêutico, mediante as técnicas de interpretação. Assim, toda e qualquer interpretação deve ser compatível com a amplitude de sentidos projetada pelo texto da norma. Comumente o legislador emprega conceitos vagos, abertos e indefinidos nos textos normativos, especialmente na Constituição, o que confere maior liberdade interpretativa ao 100 magistrado, permitindo uma leitura construtiva dos princípios e sua prevalência em relação às regras, viabilizando mais ponderação, ao invés de apenas subsunção. Desse modo, a fixação precisa dos limites impostos ao Poder Judiciário no exercício da jurisdição não pode restar destituída de contornos técnicos, razão pela qual aumenta a responsabilidade da doutrina constitucional na busca pela resposta adequada à questão. Nesse sentido, a identificação dos parâmetros dogmáticos que devem circunscrever o ativismo judicial é o apoio lógico que precisa nortear a passagem da lei para a decisão judicial, que necessita harmonizar-se com o conteúdo da consciência jurídica geral. Se o ativismo judicial ultrapassar a demarcação constitucional estará a provocar mutação inconstitucional, caracterizando-se o cerceamento inaceitável do Judiciário na atividade de outro poder. Por isso, ao exercer o controle de constitucionalidade, o magistrado deve ter a prudência de zelar pela normatividade constitucional e infraconstitucional. A fim de fortalecer a Constituição deve-se valorizar sua força normativa, o que se dá pela observância aos seus ditames. Esse trabalho cuidou em demonstrar o ativismo judicial na qualidade de garantidor da efetividade e do fortalecimento do Estado de Direito, por intermédio do estudo do Direito comparado, do contexto histórico no qual se desenvolveu o ativismo, dos seus fatores de impulsão e críticas doutrinárias, dos dispositivos constitucionais em que se revela e da produção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. A metodologia utilizada foi a estruturalista, uma vez que o tema foi abordado nos contornos da Constituição de 1988. Examinar o ativismo à luz do Texto Fundamental mostrou-se essencial, tendo em vista que um Estado Democrático de Direito é necessariamente um Estado submetido à Constituição. Não se pode negar que o ativismo judicial suplantador dos textos normativos apresenta efeitos nefastos. Por outro lado, se o aplicador fica aquém da norma opera-se o passivismo, igualmente indesejável. Portanto, a solução é trilhar o caminho do equilíbrio – triunfante ao final da maior parte dos debates jurídicos –, sem ampliar o ativismo judicial a ponto de ruir um dos pilares do Estado Democrático brasileiro, a saber, o princípio da separação dos poderes – isso ocorreria ante a inobservância dos preceitos constitucionais –, e ao mesmo tempo, sem manietar o dinamismo jurisprudencial em sua luta pela efetividade constitucional e, consequentemente, pelo fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Conclui-se que somente a atuação jurisdicional ativa no seio do juridicamente permitido é que se mostra capaz de cumprir o propósito de efetivar os institutos constitucionais. É inaceitável que na busca pela concretização do sonho de uma sociedade 101 livre, justa e igualitária e de um Estado de Direito forte, o Judiciário aja além dos limites traçados pela Constituição que está obrigado a defender, ameaçando a estrutura do Estado de Direito que quer promover. A Constituição da República já traçou o caminho a ser seguido, assim como os objetivos a serem perseguidos. Resta ao Judiciário apegar-se aos elementos hermenêuticos que, objetivamente, indiquem o sentido do texto normativo, cotejando as estruturas gramaticais, sistemáticas, histórico-evolutivas, racionais e teleológicas da norma, eis que a interpretação e a aplicação do Direito não podem ficar deslocadas dos textos constitucionais e legais de referência. Afinal, um Estado Democrático de Direito é necessariamente um Estado submetido à Constituição e às leis, frutos da soberania popular. Nesse contexto, o papel do Judiciário é fortalecer o jogo democrático, por intermédio da judicialização social e política. 102 REFERÊNCIAS VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História para o ensino médio: história geral e do Brasil. São Paulo: Scipione, 2002. PESSOA, Robertônio Santos. Controle de Constitucionalidade: jurídico-político ou político-jurídico? Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2882>. Acesso em: 22/08/2010. MACEDO FILHO, Cícero Martins de. Ativismo judicial. Revista jurídica Consulex, ano XIII, n. 304, p. 48-51, setembro, 2009. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. BRASIL, Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm>. Acesso em: 10/10/2010. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandados de Injunção nº 107, 232, 238, 284, 670, 708, 712, 721. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 30/10/ 2010. RAMOS, Elival da Silva. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Entrevista concedida ao Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-ago01/entrevista-elival-silva-ramos-procurador-estado-sao-paulo>. Acesso em: 04/09/2010. BRASIL. Decreto-Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24/10/2010. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. 103 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamações nº 595/SE, 1.880/SP, 1.987-0/DF, 2.126/SP, 2.363-0/PA, 4.219, 4.335 e 4.987/PE. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 30/10/ 2010. BRASIL, Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc03.htm>. Acesso em: 10/10/2010. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº. 22.610, de 08 de novembro de 2007. Disponível em: <http://www.tse.gov.br/internet/legislacao/eleitoral.htm>. Acesso em: 10/10/2010. BRASIL. Lei Complementar nº. 64, de 18 de maio de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp64.htm> Acesso em: 10/10/2010. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº. 07, de 18 de outubro de 2005. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br> Acesso em: 10/10/2010. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula vinculante nº. 13. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso: 14/10/2010. GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 13 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº. 1.2894/DF, 2.240-7, 3.489-8/SC e 3.615. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 30/10/ 2010. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandados de segurança nº. 3.154-6/RS, 20.927-5/DF, 26.602/DF, 26.603/DF e 26.604/DF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 10/10/2010. BRASIL. Lei Federal nº. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Artigos 27 e 28. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15/10/2010. 104 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recursos Extraordinários nº. 13.828, 147.776, 197.917/SP, 199.522, 266.994, 273.844, 274.048, 274.384, 276.546, 282.606, 300.343 e 579.951-4/RN. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 10/10/2010.