REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS SOBRE A ATIVIDADE DO PROFESSOR Ana Cecilia Teixeira Gonçalves1 Francieli Matzenbacher Pinton Universidade Federal da Fronteira Sul – Cerro Largo, RS, Brasil Resumo Este trabalho tem como objetivo analisar as representações discursivas de professores a respeito da atividade docente. Como é possível observar, a reflexão sobre o trabalho docente traz muitos pontos interessantes que contribuem para uma análise crítica do ato de ensinar e do papel do professor. Tendo como base algumas pesquisas, como Bronckart (2006), Machado (2004), Machado et al (2009), pretendemos propiciar uma reflexão por parte dos próprios professores sobre questões que façam parte de sua atividade. A metodologia adotada faz uma análise das manifestações linguísticas (escritas) de professores, realizada a partir das categorias do interacionismo sociodiscursivo. Como resultado, podemos observar que o compartilhamento de problemas e de ideias possibilitaram uma reflexão crítica sobre essa atividade e também permitiram compreender questões relacionadas ao trabalho docente. Palavras-chave: representações discursivas; trabalho; atividade docente. Introdução Neste artigo, o estudo sobre o trabalho docente está pautado em uma abordagem interacionista sociodiscursiva. Para essa corrente, é ilusório tentar compreender o homem considerando-o apenas sob o aspecto de propriedades biológicas ou comportamentais; ou seja, assumir uma posição em detrimento da outra e ignorar o papel que tem, de fato, o contexto social em seu desenvolvimento. Ao contrário, para essa perspectiva, é inevitável, que seja assumida a interação entre o organismo humano e o meio social. Nesse sentido, interessada na forma através da qual a linguagem se relaciona com o mundo exterior, a abordagem interacionista tem colaborado para a valorização dessa relação (BRONCKART, 1999). Nessa perspectiva, pretendemos analisar, a partir do ISD, as relações entre linguagem e trabalho docente que ocorrem num contexto discursivo, no qual se desenvolvem atividades sociais, atividades de linguagem e ações de linguagem. É nesse contexto que pretendemos observar as práticas de linguagem que estão voltadas para o trabalho educacional. A motivação para a pesquisa pode ser explicada pelo fato de que há poucos estudos, no Brasil e no exterior, sobre o ensino como trabalho a partir de uma abordagem discursiva que possibilitem analisar textos relacionados com o trabalho educacional: “textos no e sobre o trabalho 1 Professoras do Curso de Licenciatura em Letras Português – Espanhol da Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Cerro Largo/RS. 1 educacional” (MACHADO et al, 2009, p. 16). É importante ressaltar ainda que o interesse pelo tema explica-se por apresentarmos, em consonância com Machado et al (2009, p. 17), uma posição contrária a um “discurso generalizador, ideologicamente marcado, que considera o professor como um ser a quem sempre 'falta' algo”; além disso, por acreditarmos que, na verdade, é preciso ter mais conhecimento sobre o trabalho docente, antes de qualquer tipo de avaliação precipitada. Assim, buscamos observar as representações discursivas sobre a atividade do professor. Para tal análise, utilizamos como suporte os pressupostos teórico-metodológicos do ISD, que se baseia na Ergonomia da Atividade e na Psicologia do Trabalho. É preciso destacar que essas teorias têm como ponto em comum o fato de desenvolverem uma abordagem marxiana do trabalho; uma abordagem vygotskyana do desenvolvimento e uma abordagem sócio-discursiva da linguagem (MACHADO et al, 2009). Nesse sentido, autores como Vygotsky (1988) e Bakhtin (1981, 1992), cujos trabalhos constituem a base epistemológica do ISD, também fazem parte de nossa pesquisa. O objeto de investigação configura-se como sendo as representações discursivas de professores a respeito da atividade docente. Como é possível observar, a reflexão sobre a atividade educacional, por parte dos próprios professores, traz, sem dúvida, muitos pontos interessantes que contribuem para uma análise do ato de ensinar. Acreditamos que o compartilhamento de problemas e de ideias referentes à profissão possibilitem uma reflexão crítica sobre essa prática e também permitam observar questões essenciais relacionadas a essa atividade. Pressupostos do ISD: a linguagem como forma de inter (ação) A linguagem é fundadora do social, visto que, por ser uma capacidade específica, permite aos homens construírem e compartilharem representações de mundo, como também avaliarem as atividades que se desenvolvem nesse meio. Por isso, podemos dizer que é ela a principal responsável pela instituição do homem como agente social, capaz de produzir, num contexto de permanente atividade, ações sociais e ações de linguagem, tornando-o, no meio social, um ser com habilidades superiores, diferenciado dos demais. Levando em consideração essa forma de entender a linguagem, o presente artigo fará uso dos pressupostos do ISD, segundo os quais a linguagem é entendida como uma forma de ação socialmente contextualizada. Dessa maneira, a linguagem representa uma ação humana que pode ser desenvolvida em diferentes contextos sociais e por diversos agentes, sempre utilizada com um objetivo definido. Partindo dessa concepção de linguagem, o ISD apresenta como referencial, principalmente, os pressupostos de Vygotsky, no âmbito do desenvolvimento, e de Bakhtin, no domínio da 2 linguagem, atribuindo à Psicologia uma dimensão social, por meio da qual é possível explicar as condições da emergência, bem como do funcionamento do pensamento consciente específico dos seres humanos. Nesse sentido, a linguagem é vista como fundadora do social, visto que permite aos homens construírem e compartilharem representações de mundo, como também avaliarem as atividades que se desenvolvem nesse contexto. Desse modo, institui o ser humano como agente social, capaz de produzir ações sociais e ações de linguagem, tornando-o um ser consciente e pensante. Conforme Bronckart (1999), o aparecimento da linguagem permitiu à espécie humana a formação de grupos dentro dos quais se realizam atividades com um caráter particular – social. É preciso destacar que a participação cooperativa dos indivíduos nas atividades é regulada e mediada pela linguagem. A atividade humana é, dessa forma, caracterizada por essa dimensão que Habermas (1999) chamou de agir comunicativo. Desse modo, podemos afirmar, conforme Vygotsky (1988), que o aparecimento da linguagem possibilita ao homem o desenvolvimento de seu psiquismo e o institui como ser social. O autor apresenta como proposta a tese de que os processos psicológicos tipicamente humanos (denominados de funções psicológicas superiores) como, por exemplo, o controle consciente do comportamento, a atenção, a lembrança voluntária, o pensamento abstrato, o raciocínio e outras capacidades, têm origem sócio-cultural e emergem de processos psicológicos elementares de origem biológica. Esse processo de desenvolvimento está arraigado nas relações entre história individual e social. Nesse sentido, o que possibilita o desenvolvimento dessas funções psicológicas superiores é o aparecimento e o desenvolvimento de instrumentos mediadores dessa relação entre indivíduo e contexto social. Assim, a linguagem é a forma principal dessa mediação e, por isso, fundamental para a evolução dos seres humanos. Para Vygotsky (1988), os processos de transformação do desenvolvimento dos seres humanos têm origens sociais. Nesse sentido, propõe que organismo biológico e meio social não podem ser analisados separadamente; ao contrário, são indissociáveis. Por isso, concede à linguagem um papel fundamental no desenvolvimento do homem, pois, para o autor, é ela a base de outras habilidades mentais do ser humano. Defende que o desenvolvimento dos mecanismos psicológicos mais sofisticados está extremamente relacionado com o contexto social, e, desse modo, ocorre de fora para dentro, no chamado processo de internalização2. Além de ser estruturada pelas circunstâncias e referências do mundo social, a linguagem, ao mesmo tempo, estrutura nosso conhecimento e estende simbolicamente nossa ação sobre o mundo, 2 O processo de internalização consiste na construção interna de uma operação externa. Ver Vygotsky (1988). 3 o que permite compreendê-la sob um aspecto coletivo. Assim, cada indivíduo é orientado por um auditório social, e, a partir dele, constrói suas representações interiores que serão confrontadas com outras a partir de interações linguísticas (BAKHTIN, 1981). Para Bronckart (1999), “é a atividade nas formações sociais [...] que constitui o princípio explicativo das ações imputáveis a uma pessoa” (p. 30). Assim, é preciso considerar a linguagem, em suas relações com a atividade social e com as ações atribuídas a um actante singular envolvido nas atividades. Para essa análise, a abordagem defendida por Bronckart concorda com a unidade verbal escolhida por Bakhtin, denominada de gêneros do discurso. Conforme Bakhtin (1992), as atividades humanas, ricas por suas variadas dimensões, estão relacionadas com o uso concreto de uma língua. Nessa relação entre atividade e linguagem, esta absorve o caráter heterogêneo daquela. Assim, a utilização da língua integra as várias formas de atividades em seus contextos de uso; em decorrência disso, formas linguísticas emergem na comunicação, relacionadas a contextos comunicativos e ativos, nos quais ação e linguagem se misturam e se condicionam. Tal é a dinâmica dos gêneros discursivos. Nesse sentido, entendemos que a utilização da língua se dá através de enunciados “orais e escritos”, “concretos e únicos”, que, conforme Bakhtin (1992, p. 279), estariam relacionados não só ao contexto de comunicação, como também aos objetivos do locutor. Desse modo, o enunciado apresenta algumas características que são próprias da esfera na qual a língua está sendo utilizada: “Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso”. Assim, entendemos que os textos (ou discursos) representam unidades verbais coerentes com a concepção de linguagem proposta, uma vez que representam a produção de sentido na situação concreta de uso, ou seja, na atividade e na ação que esta pressupõe. Enfim, sabendo que o ISD baseia-se nessas questões que foram apresentadas, é valido salientar que as mesmas apontam para a consideração das “ações humanas em suas dimensões sociais e discursivas constitutivas” (BRONCKART, 1999, p. 31). Dessa forma, é preciso levar em conta as ações dos seres humanos a partir das propriedades sociais e das propriedades discursivas que são fundamentais para sua constituição. Procura-se, também, mostrar como o agir comunicativo (HABERMAS, 1999) – ou melhor, as atividades de linguagem que ocorrem nos grupos de seres humanos – constitui o social e contribui para “delimitar as ações imputáveis a agentes particulares”, e para “moldar a pessoa humana”, atribuindo-lhe capacidades psicológicas (BRONCKART, 1999, p. 29). Nesse contexto, o que será focalizado na pesquisa é um tipo de agir humano específico – o agir comunicativo relacionado ao trabalho do professor. 4 Trabalho docente: algumas considerações Analisar as representações de professores sobre a atividade educacional requer observar também algumas questões relacionadas ao trabalho docente. A atividade de ensino, há algum tempo, tem ganhado especial atenção no âmbito dos estudos sobre educação. Isso fez com que as características do trabalho do professor passassem a ser objeto de reflexão e debates. Com o tempo, projetos de ensino modernizados surgem trazendo novos instrumentos, assim como pesquisas que investigam em que medida os professores exploram essas novas abordagens e se elas são, de fato, eficazes. De acordo com Bronckart (2006, p. 207), a disciplina da didática, por muitos anos, centrouse nos alunos e em seus processos de aprendizagem. Há algum tempo, tomou-se consciência de que é preciso se deter, também, no trabalho docente. Isso não significa que o processo desenvolvido pelos alunos não é mais tão importante; ao contrário, essa análise continua sendo indispensável. No entanto, é necessário compreender quais são “as capacidades e os conhecimentos necessários para que os professores possam ser bem-sucedidos naquilo que é a especificidade de seu ofício: a gestão de uma situação de aula e seu percurso”. A prática do professor em sala de aula é consequência, por um lado, de um conjunto de expectativas e objetivos predefinidos por instituições e documentos reguladores de ensino e, por outro, do modo como o profissional da educação entende essas prescrições. Dessa maneira, como em qualquer profissão, o trabalho docente utiliza procedimentos determinados por outros, resultado de uma “cascata hierárquica” que se estende em nível nacional, com a LDB, e passa por outros instrumentos reguladores característicos de cada instituição em particular (SOUZA-E-SILVA, p. 90). A prática do professor se dá, dessa forma, em um contexto que já está organizado, que lhe é imposto. Nesse sentido, analisar as representações de professores pressupõe refletir sobre todas essas questões que perpassam a prática docente e que interferem na construção de uma imagem do professor e na formação de sua identidade profissional. É preciso observar, então, o trabalho docente, suas prescrições, e, sobretudo, como isso participa da constituição de seu agir profissional. Bronckart (2006, p. 209) faz algumas considerações sobre a concepção de trabalho: O trabalho se constitui, claramente, como um tipo de atividade ou de prática. Mas, mais precisamente, é um tipo de atividade própria da espécie humana, que decorre do surgimento, desde o início da história da humanidade, de formas de organização coletiva destinadas a assegurar a sobrevivência econômica dos membros de um grupo: tarefas diversas são distribuídas entre esses membros (o que se chama de divisão do trabalho); 5 assim, esses membros se vêem com papéis e responsabilidades específicas a eles atribuídos, e a efetivação do controle dessa organização se traduz, necessariamente, pelo estabelecimento de uma hierarquia. (Grifos do autor) Machado (2007) salienta que essa concepção, embora verdadeira, é muito genérica, quando relacionada ao trabalho educacional, visto que, segundo o próprio Bonckart (2006, p. 203), a atividade de ensino, somente há alguns anos, é considerada como um “verdadeiro trabalho” (grifo do autor). A autora ressalta que o trabalho do professor pode ser considerado como um objeto de estudo novo, atual e, por isso, seu estudo requer um olhar minucioso a respeito de pesquisas existentes sobre trabalho, conceitos, sua relação com a linguagem, a relação existente entre a linguagem e a situação de trabalho, para chegarmos a um conceito de trabalho docente. Seguindo o pensamento de Machado (2007, p. 95), pensamos numa concepção de trabalho docente diferenciada do que se tem de referente, isto é, representações que continuam a “sustentar uma imagem extremamente negativa dos professores, na medida em que continuam a negar-lhes o papel de verdadeiros atores de seu próprio trabalho”. É, nesse sentido, que a pesquisa será pautada nas representações dos próprios professores sobre seu trabalho, o que, a nosso ver, pode contribuir para a compreensão de questões relacionadas a esse agir humano específico. Metodologia A metodologia adotada neste trabalho desenvolve uma análise das manifestações linguísticas (escritas) de professores sobre a atividade docente. Essa análise será realizada a partir do modelo de análise de textos, proposto por Bronckart (1999), focalizando-se, em especial, o nível dos mecanismos enunciativos. É importante ressaltar que os sujeitos da pesquisa são quatro professores pertencentes à rede pública de Ensino Fundamental e Médio, que têm formação em Língua Portuguesa. Já com relação ao contexto no qual se desenvolveu o trabalho, pode ser descrito da seguinte maneira: trata-se de uma cidade pequena do interior do Rio Grande do Sul, com pouco mais de nove mil habitantes, de colonização alemã e que tem estudantes que apresentam grande dificuldade ao saírem do Ensino Médio da rede pública. Desde setembro de 2009, foi instituída uma universidade federal nesse local, o que permitiu a continuidade dos estudos para muitos indivíduos. Estes, ao entrarem na universidade, têm apresentado grandes dificuldades, principalmente, no que diz respeito às atividades relativas à linguagem. Para tentar auxiliar nessa situação, e por fazer parte do quadro de professores do Curso de Letras da instituição, procuramos trazer os professores de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental e Médio para o âmbito da universidade e lhes dar oportunidade 6 de refletir e mudar o contexto o qual foi apresentado. Assim, primeiramente, utilizamos um mecanismo – uso de questionário – que nos auxiliou a promover uma reflexão a respeito do trabalho docente pelos próprios professores. Em um segundo momento, buscamos interpretar as respostas dadas. Análise dos dados O modelo de análise e descrição de textos, proposto por Bronckart (1999), relaciona as condições de produção de um texto – as ações de linguagem e suas relações de interdependência com o contexto social e com a intertextualidade – e sua organização material. O autor propõe a hipótese segundo a qual todo texto é organizado em três níveis superpostos e interativos, constituindo o que denomina de “folhado” textual3. Para esta análise, focalizamos o nível dos mecanismos enunciativos, responsável pela coerência pragmática ou interativa do texto. Esses mecanismos contribuem para marcar os posicionamentos enunciativos (vozes) e as avaliações (julgamentos, opiniões, sentimentos) referentes a alguns aspectos do conteúdo temático4. São independentes da progressão do conteúdo temático, por isso, não apresentam uma organização isotópica; seu objetivo maior é orientar a interpretação do texto pelos destinatários. Para ilustrar o que é proposto, será realizada uma análise das respostas dadas por quatro professores a um questionário aplicado pelo entrevistador com roteiro definido pelos seguintes pontos: aspectos positivos da profissão; aspectos negativos; posição do docente frente a sua atividade. Como mencionado anteriormente, a proposta de análise vai enfocar o gerenciamento dos mecanismos enunciativos, em especial, o posicionamento enunciativo e o uso de modalizações, no discurso sobre o trabalho docente, pois acredita-se que, através dessa interpretação, será possível compreender as representações que os professores fazem sobre seu trabalho. Conforme Guimarães (2007), a análise do nível enunciativo permite observar diferentes formas de manifestação da voz do professor. O posicionamento enunciativo é frequentemente atribuído ao autor (agente-produtor do texto): a produção de um texto pressupõe a criação, por parte do agente, de um ou vários mundos discursivos, cujas coordenadas e normas que regem seu funcionamento são diferentes daquelas que regem o mundo ordinário do qual o autor faz parte. Dessa forma, é a partir das instâncias formais (textualizador, expositor, narrador) – que regem os 3 Conforme Bronckart, a metáfora do “folhado” é inspirada em Haller (1995 apud BRONCKART, 1999). 4 O conteúdo temático – pertencente à primeira camada do folhado textual – está relacionado, conforme Bronckart (1999), ao gênero a que pertence o texto e às condições externas de produção. De acordo com Guimarães (2004), o conteúdo temático pode ser analisado, por exemplo, quanto ao léxico típico ou quanto às situações típicas relacionadas ao gênero em questão. 7 mundos virtuais – que são distribuídas as vozes (voz do autor empírico, voz social e voz de personagens) que se exprimem em um texto. Quanto às modalizações, correspondem às avaliações realizadas acerca de alguns aspectos do conteúdo temático. Bronckart (1999) as divide em quatro subconjuntos: modalizações lógicas – julgamentos relativos ao valor de verdade das proposições enunciadas, que são apresentadas como: certas, possíveis, prováveis, necessárias, improváveis, etc. modalizações deônticas – avaliam o enunciado em decorrência de valores sociais: permitido, proibido, necessário, etc. modalizações apreciativas – julgamento mais subjetivo; os fatos enunciados são apresentados como: bons, maus, estranhos, etc, sob o ponto de vista da instância avaliadora. modalizações pragmáticas – julgamento relativo a uma faceta da responsabilidade de uma personagem com relação ao seu papel de agente em um processo: capacidade de ação, intenção e razões. As modalizações são cristalizadas por unidades linguísticas denominadas modalidades. Como exemplo, temos os tempos verbais no futuro do pretérito, os auxiliares de modalização (poder, dever etc.), certos advérbios (certamente, sem dúvida etc.), algumas frases impessoais (é evidente que... etc.). Desse modo, os mecanismos enunciativos foram focalizados nas manifestações discursivas dos professores que responderam ao seguinte questionário: 1. De acordo com sua opinião, reflita sobre os aspectos positivos da profissão. Explicite, também, se houver, os aspectos negativos. 2. Com relação a sua profissão, você se considera um profissional bem sucedido? Justifique. Seguem as respostas obtidas e a respectiva análise. Professor A 1. Eu, como professor de línguas vejo como positivo a facilidade de comunicação. Adoro português e me orgulho saber escrever o “português”. Negativos: temos uma responsabilidade maior (cobrança) e além do mais, o dinheiro é pouco. 2. Não. Penso que com meus 27 anos de profissão foram muito tumultuados com muitas mudanças e inseguranças. Hoje acho que precisamos é estudar com mestrado e doutorado para não ficar por baixo em termos de salário e conhecimento. Quanto às diferentes formas de manifestação da voz do Professor A, notamos a presença do 8 “eu”, quando fala dos aspectos positivos da profissão e quando fala de sua trajetória (meus 27 anos de profissão). O “nós” coletivo aparece quando fala dos aspectos negativos e da necessidade de dar seguimento aos estudos. Percebemos que a posição do indivíduo é refletida quando fala, por exemplo, de algo bem subjetivo, como sua adoração pelo português e seu orgulho de saber utilizar a língua; também, a utilização do “eu” marca sua experiência pessoal como professor durante seus 27 anos de magistério. A utilização do “nós” marca questões voltadas para o coletivo, como a responsabilidade que têm os professores na formação do cidadão, bem como a necessidade de continuar estudando, que, conforme o professor A, é de todos os docentes. Com relação ao uso de modalizadores, é possível vermos a ocorrência de modalização deôntica, mediante a apresentação de algo que deve ser entendido como uma obrigação moral e social: temos uma responsabilidade maior. Também, podemos notar o uso de modalizações apreciativas, que permitem a avaliação de determinado ponto. Nesse caso, avaliam-se alguns pontos considerados benéficos, como a questão comunicativa vejo como positivo, e o fato de se adorar o português e de sentir orgulho de saber escrever. No que diz respeito à satisfação do profissional, temos uma apreciação negativa: Penso que com meus 27 anos de profissão foram muito tumultuados..., que enfatiza, de certo modo, a experiência obtida com o tempo de trabalho, o que lhe autoriza a dizer que não é um profissional bem sucedido. Encontra-se modalização apreciativa também na passagem acho que. Por fim, em precisamos é estudar..., observamos o valor deôntico que explicita uma obrigação social do professor; esta avaliação, que é apoiada em convenções socialmente constituídas, apresenta o que poderia ser feito para que o contexto de insatisfação fosse mudado. Professor B 1. Aspectos positivos: constantemente em atualização; grande número de relações interpessoais; a oportunidade de ajudar a mudar a vida de uma pessoa. Aspectos negativos: pouca remuneração e reconhecimento; alto nível de cobrança pela sociedade como um todo; submetidos à um nível alto de stress. 2. Posso me considerar bem-sucedido, pois gosto do que faço, apesar de todos os aspectos negativos da profissão. Ao listar os pontos positivos e negativos da profissão, o Professor B faz uso da 3ª pessoa. É como se os fatos fossem apresentados por alguém que não é professor, mas que observa o contexto e o descreve. A voz pessoal aparece no momento em que o docente fala de sua posição com relação à profissão. 9 No que diz respeito à presença de modalizadores, temos a ocorrência do tipo pragmático ou intencional, que evidenciam a responsabilidade de uma entidade, como em oportunidade de ajudar a mudar a vida de uma pessoa, referindo-se à função social do professor. Ao apresentar os aspectos negativos e positivos, o professor constrói um jogo de oposições a partir da utilização de adjetivos: grande número de relações interpessoais; pouca remuneração e reconhecimento; alto nível de cobrança; nível alto de stress. Aparece também o modalizador deôntico, que apresenta uma avaliação apoiada no domínio do direito de manifestar uma opinião: Posso me considerar bemsucedido. Por outro lado, temos um modalizador apreciativo, me considerar, mediante avaliação apoiada no mundo subjetivo, o ponto de vista do autor empírico. Percebemos que, embora prevaleçam na descrição os aspectos negativos da atividade educacional, o Professor B ainda se considera satisfeito profissionalmente. Professor C 1. Aspectos positivos: primeiramente ter uma estabilidade no trabalho. Nos dá oportunidade de trabalhar com pessoas o que, às vezes nos realiza um pouco, em poder ensinar ou transmitir nossos conhecimentos. Aspectos negativos: a falta disponível de tempo, para poder ministrar nossas aulas, a baixa remuneração dos salários e a insatisfação nos resultados da aprendizagem. 2. De maneira geral sim, no entanto há muitas dificuldades que interferem no sucesso pleno do nosso trabalho. A falta de participação de toda comunidade escolar. Por outro lado, temos atualmente muitos instrumentos e oportunidades para o aperfeiçoamento do nosso trabalho. O Professor C usa predominantemente o “nós” coletivo, com exceção de uma passagem, na qual fala da estabilidade do trabalho e para isso usa o verbo de forma impessoal. É possível notar que os aspectos positivos e negativos que cita têm, na sua concepção, um caráter genérico, como se representassem a posição de uma classe coletiva. Mesmo quando fala de sua posição quanto à profissão, resposta que teria um aspecto mais pessoal, o Professor C continua usando o “nós” como se todo o grupo de professores compartilhasse de suas opiniões. Podemos perceber a ocorrência de modalização deôntica, a partir da apresentação de um fato positivo entendido como sendo do domínio do direito, da obrigação social que tem a sociedade para com os professores: primeiramente ter uma estabilidade no trabalho. Há ocorrência desse tipo de modalizador também em: poder ensinar ou transmitir..., para poder ministrar nossas aulas, que evidenciam o domínio do direito e da obrigação, respectivamente. Temos ainda a ocorrência de um modalizador lógico que apresenta um fato provável: o que, às vezes nos realiza. Questionado sobre sua satisfação profissional, o Professor C pondera pontos positivos e negativos, prevalecendo os 10 fatores benéficos. Notamos aqui o uso de modalizadores pragmáticos, que atribuem razões para as ações do agente, como na passagem há muitas dificuldades que interferem no sucesso pleno, a partir da qual podemos entender que a satisfação profissional depende da solução de muitas dificuldades existentes na atividade educacional como A falta de participação de toda comunidade escolar. Em contrapartida, alguns pontos contribuem para o desempenho de uma atividade satisfatória, como podemos notar no seguinte fragmento temos atualmente muitos instrumentos e oportunidades para o aperfeiçoamento do nosso trabalho, no qual elencam-se aspectos positivos do trabalho docente. Professor D 1. Adoro o que eu faço. Interação professor x aluno Negativos: A não valorização do professor pelos governantes e também sociedade. Sobrecarga de trabalho, deveres que precisam ser feitos em casa por não termos tempo na escola. A não participação dos pais na vida escolar do filho. 2. Sim, me considero um bom profissional, com meus 30 anos de magistério, sempre procuro inovar as minhas aulas, pois as mudanças estão a cada ano muito notáveis e os alunos vem sempre com outras concepções. Notamos, aqui, que o Professor D manifesta suas posições utilizando tanto o “eu” pessoal, quando menciona, por exemplo, que adora o que faz, ou quando fala de sua experiência na profissão, meus 30 anos de magistério, quanto o “nós” coletivo, no momento em que cita os aspectos negativos. Também, em uma passagem, fala como se fosse alguém de fora da situação, um observador: A não valorização do professor. É possível perceber o uso de modalização deôntica, através da apresentação de fatos que devem ser entendidos como uma obrigação social: deveres que precisam ser feitos. Podemos notar, também, o uso de modalizações apreciativas, que permitem avaliar determinado aspecto. Aqui, avaliam-se alguns pontos considerados bons, como o fato de adorar o que se faz. Além disso, notamos o uso de modalização pragmática, que atribui responsabilidades a instituições, como o governo e a sociedade, no que diz respeito à representação da atividade docente: não valorização do professor pelos governantes e também sociedade. Quanto à satisfação do profissional, temos mais uma apreciação: me considero um bom profissional, com meus 30 anos de magistério, na qual se salienta a experiência do professor construída ao longo do tempo de trabalho. Também, no fragmento sempre procuro inovar as minhas aulas, o uso de modalizadores deônticos, através do advérbio e do verbo, evidenciam uma justificativa para o fato de ser um bom profissional e explicitam uma necessidade do professor, que é a constante atualização. Percebemos que o conjunto 11 dos fatos – a experiência e a inovação – lhe dá autoridade para dizer que é bem sucedido no que faz. Discussão dos resultados Em consonância com Bronckart (2006), Machado et al (2009, p. 18) afirma que as ações só podem ser apreendidas por meio de interpretações, produzidas principalmente com a utilização da linguagem, em textos dos próprios actantes ou observadores dessas ações. Esses textos que se referem a uma determinada atividade social exercem influência sobre essa atividade e sobre as ações nela envolvidas; ao mesmo tempo em que refletem representações/interpretações/avaliações sociais sobre essa atividade e sobre essas ações, podendo contribuir para a consolidação ou para a modificação dessas mesmas representações e das próprias atividades e ações. Dessa forma, conforme a autora, para compreendermos o trabalho docente é necessário tomar como objeto de análise não as condutas diretamente observáveis desses profissionais, mas os textos que são produzidos acerca dessa atividade. No nosso caso, analisamos as produções discursivas de professores da rede pública de ensino, mais especificamente, um questionário respondido pelos docentes. A partir da análise realizada, é possível notar que os professores manifestam suas posições apoiando-se fundamentalmente na voz do “eu” pessoal, no “nós” coletivo e/ou na 3ª pessoa, de forma neutra ou impessoal. A voz do autor é utilizada basicamente para manifestar a posição pessoal com relação ao ensino de Língua Portuguesa e com relação à própria língua, assim como salientar a experiência no magistério, entendida como fator importante. Observamos que a voz do autor empírico procede diretamente da pessoa que produz o texto em questão, esta que, por várias vezes, intervém para comentar ou avaliar algum aspecto do que é enunciado. Ela é fundamentalmente um marcador de identidade. Percebemos que, por vezes, o autor empírico divide sua responsabilidade e frustração com o coletivo, compartilhando com os demais professores sua posição, principalmente no que diz respeito a questões voltadas para a cobrança social e para as necessidades dos docentes. As manifestações em 3ª pessoa (neutras ou impessoais) aparecem a partir do uso de verbos impessoais ou de expressões que parecem proceder de instâncias sociais externas à situação avaliada. Parece que há uma tentativa de mostrar que a representação não é apenas da classe dos professores, mas geral, de toda a sociedade. O professor usa esse recurso com a finalidade de apresentar uma neutralidade, como se fosse um observador externo que consegue visualizar o problema sem fazer juízos que tendenciem para um lado, que vitimizem o professor. Nesse sentido, 12 sua avaliação é feita a partir de uma voz social, a voz da sociedade em geral, e não como indivíduo professor, que sofre com a situação retratada. Notamos, nessa situação, a atribuição da responsabilidade do dizer não para si ou para o grupo de professores, mas para o social. Quanto aos modalizadores, é possível traçar um perfil das representações apresentadas pelos docentes, levando-se em consideração o valor das modalizações empregadas. Podemos notar uma maior proporção do valor apreciativo e do valor deôntico, o que confirma o que foi informado acima sobre a responsabilidade enunciativa, quando mostramos que os professores manifestam suas posições transitando entre a voz do “eu”, do “nós” e da 3ª pessoa. Isso denota que as avaliações baseiam-se tanto no mundo subjetivo, na experiência do profissional, quanto no mundo social, contexto das regras e convenções. Esses dados demonstram que, em alguns momentos, os professores apresentam uma responsabilidade enunciativa; em outros, preferem atribuir a responsabilidade do dizer para o grupo de professores ou até mesmo para instâncias sociais externas à prática educacional. É interessante ressaltar que ao falarem sobre os aspectos positivos e negativos do trabalho docente, os professores listaram um número consideravelmente maior de aspectos negativos. Dentre os que mais apareceram, podemos mencionar a questão salarial, a falta de tempo ocasionada pela sobrecarga de trabalho, e a não participação dos pais/comunidade escolar no processo educacional. Embora prevaleçam os fatores negativos, curiosamente a maioria dos professores descreve-se como sendo bem sucedido na sua profissão, o que, de certo modo, explica a permanência desses profissionais no trabalho educacional por tantos anos. Considerações finais Acreditamos que o conjunto de procedimentos adotado nos permitiu observar posicionamentos e avaliações dos professores envolvidos na pesquisa com relação a alguns aspectos da atividade docente. A nosso ver, essa prática reflexiva, a qual o artigo propôs-se a realizar, pode funcionar como um recurso que contribui com o trabalho de professores de língua portuguesa. O compartilhamento de situações que fazem parte da rotina do professor pode funcionar como um mecanismo “deflagrador”, que provoque uma reflexão sobre o que se faz e como seria o ideal de se fazer e uma retomada de conceitos, de experiências, de sentimentos experimentados nos mais diversos contextos de atuação profissional. (TELLES, 2007, p. 328) É possível concluir que essas manifestações discursivas dos professores nos levam ao conhecimento da representação que têm sobre o trabalho educacional e, nesse sentido, possibilitam13 nos refletir sobre o que é ser professor: as contradições, as angústias, as ações da profissão. Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BAKHTIN, Mikhail. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem. 7.ed. São Paulo: HUCITEC, 1981. BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 1999. _____. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas: Mercado de Letras, 2006. GUIMARÃES, Ana Maria de Mattos. O agir educacional nas representações de professores de língua materna. In: GUIMARÃES, Ana Maria de Mattos; MACHADO, Anna Rachel; COUTINHO, Antónia. O interacionismo sociodiscursivo. 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