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Coordenação Editorial: Fátima Beghetto
Capa: Sônia Maria Borba
Crédito imagem da capa: Bologna meeting @ marzolino
CPI-BRASIL. Catalogação na fonte
Costa, Marli Marlene Moraes da (Org.)
C837
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo, volume V
[recurso eletrônico] / organização de Marli Marlene Moraes da Costa e
Mônia Clarissa Hennig Leal – Curitiba: Multideia, 2014.
264 p.; 23 cm
ISBN 978-85-86265-93-8
(VERSÃO ELETRÔNICA)
1. Direito constitucional. 2. Políticas públicas. I. Leal, Mônia
Clarissa Hennig (org.). II. Título.
CDD 340 (22.ed)
CDU 340
É de inteira responsabilidade dos autores a emissão dos conceitos aqui apresentados.
Autorizamos a reprodução dos textos, desde que citada a fonte.
Respeite os direitos autorais – Lei 9.610/98
Marli Marlene Moraes da Costa
Mônia Clarissa Hennig Leal
Organizadoras
POLÍTICAS PÚBLICAS NO
CONSTITUCIONALISMO
CONTEMPORÂNEO
Volume V
Colaboradores
Ademar Antunes da Costa
Adilson Hirsch
André Viana Custódio
Civana Silveira Ribeiro
Cleize Carmelinda Kohls
Daniela M. L. de Cademartori
Fabiano Rodrigo Dupont
Felipe da Veiga Dias
Guilherme A. Dornelles de Souza
Hugo Thamir Rodrigues
Josiane Petry Faria
Leandro Dani
Letícia Bodanese Rodegheri
Luíza Quadros da Silveira Bolzan
Mateus Lopes da Silva
Maurício Pinto da Silva
Mônia Clarissa Hennig Leal
Paula Helena Schmitt
Quelen Brondani de Aquino
Rafael Santos de Oliveira
Renato Fioreze
Rene José Keller
Rodrigo Cristiano Diehl
Rosane Leal da Silva
Rosane Teresinha Carvalho Porto
Sergio Urquhart de Cademartori
Tiago Pires Fidelis da Luz
Curitiba
2014
SUMÁRIO
Capítulo 1
O DIREITO FUNDAMENTAL À INFORMAÇÃO PARA
CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA INTERNET: ANTIGOS
CONFLITOS NO NOVO AMBIENTE VIRTUAL ......................
André Viana Custódio
Felipe da Veiga Dias
Capítulo 2
A NECESSÁRIA REFORMA DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA: UMA ABORDAGEM SOBRE A SEGURANÇA
PÚBLICA, COM ÊNFASE PARA A FORMAÇÃO POLICIAL
MILITAR .....................................................................................
Ademar Antunes da Costa
Quelen Brondani de Aquino
Capítulo 3
O CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS
PÚBLICAS, A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA, O
ATIVISMO JUDICIAL E A PEC/33: UMA ANÁLISE
CRÍTICA ......................................................................................
Mônia Clarissa Henning Leal
Civana Silveira Ribeiro
Capítulo 4
DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A
MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA ANÁLISE NA
PERSPECTIVA DO CONTROLE JURISDICIONAL DE
POLÍTICAS PÚBLICAS ..............................................................
Cleize Carmelinda Kohls
Adilson Hirsch
9
25
43
61
6
André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias
Capítulo 5
ALÉM DA PRISÃO: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DAS
ALTERNATIVAS À PRISÃO NO BRASIL EM SEU
FUNCIONAMENTO BIOPOLÍTICO ........................................
Guilherme Augusto Dornelles de Souza
Capítulo 6
RELAÇÕES DE PODER, RACIONALIDADE E
DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE DO MARCO
REGULATÓRIO DAS INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS E A
BUSCA DA SUSTENTABILIDADE ...........................................
Josiane Petry Faria
Renato Fioreze
77
95
Capítulo 7
PARTICIPAÇÃO CIDADÃ NA ADOÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS: ANÁLISE DO PORTAL GABINETE DIGITAL......
Letícia Bodanese Rodegheri
Rafael Santos de Oliveira
113
Capítulo 8
O DIREITO À SAÚDE NA FRONTEIRA MERCOSUL:
DESAFIOS DA COOPERAÇÃO BRASIL/URUGUAI ................
Maurício Pinto da Silva
Mateus Lopes da Silva
131
Capítulo 9
ESPAÇO E IDENTIDADE: ESTIGMA, DISTINÇÃO,
SEGURANÇA .............................................................................
Paula Helena Schmitt
Tiago Pires Fidelis da Luz
151
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
7
Capítulo 10
A CORRUPÇÃO ESTATAL BRASILEIRA À LUZ DA RAIZ
HISTÓRICO-ANTROPOLÓGICA .............................................. 171
Rene José Keller
Capítulo 11
ITBI DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO E
POLÍTICAS TRIBUTÁRIAS MUNICIPAIS1 ............................... 185
Hugo Thamir Rodrigues
Leandro Dani
Capítulo 12
A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM
FACE DOS DISCURSOS RACISTAS NA INTERNET .............. 203
Rosane Leal da Silva
Luíza Quadros da Silveira Bolzan
Capítulo 13
O ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE CRIMES NO
MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ DO SUL: UM ESTUDO À
LUZ DOS CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DA PAZ ................. 225
Rosane Teresinha Carvalho Porto
Rodrigo Cristiano Diehl
Fabiano Rodrigo Dupont
Capítulo 14
FUNÇÕES E INSTITUIÇÕES DE GARANTIAS NO NOVO
CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO ................. 241
Sergio Urquhart de Cademartori
Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori
André Viana Custódio
Pós-Doutor em Direito na Universidade de
Sevilla/Espanha, Doutor em Direito pela
Universidade Federal de Santa Catarina
(2006), Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina (2002). Professor
permanente nos Programas de Mestrado e
Doutorado em Direito da Universidade de
Santa Cruz do Sul – RS. Coordenador do
Curso de Direito da Faculdade Avantis. Pesquisador do Núcleo de Estudos Jurídicos e
Sociais da Criança e do Adolescente
(NEJUSCA/UFSC). Pesquisador do Grupo
Políticas Públicas de Inclusão Social (UNISC) e
Coordenador do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e
Jovens (GRUPECA/UNISC). Coordenador
Executivo do Instituto Ócio Criativo, Fellow
da Ashoka Empreendedores Sociais, Consultor do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento e do Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome.
Coordenador do projeto de pesquisa “A
violência intrafamiliar contra crianças e
adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do
combate às violações aos direitos infantojuvenis”. Contato: [email protected]
Felipe da Veiga Dias
Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Especialista em Direitos Fundamentais e
Constitucionalização do Direito – PUCRS.
Santa Maria, Rio Grande do Sul. Professor da
Faculdade Metodista de Santa Maria
(FAMES), Santa Maria – RS. Integrante dos
Grupos de Estudos em Direitos Humanos de
Crianças, Adolescentes e Jovens do Núcleo
de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão
Social (GRUPECA/UNISC). Participante do
projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar
contra crianças e adolescentes e as políticas
públicas: a imperiosa análise do problema
para o estabelecimento de parâmetros de
reestruturação do combate às violações aos
direitos infanto-juvenis” (CNPQ). Advogado.
Contato: [email protected]
Capítulo 1
O DIREITO
FUNDAMENTAL À
INFORMAÇÃO PARA
CRIANÇAS E
ADOLESCENTES NA
INTERNET: ANTIGOS
CONFLITOS NO NOVO
AMBIENTE VIRTUAL
10
André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A atualidade apresenta um contexto informativo de velocidade nunca antes vista, a aptidão humana na disseminação de informações tornou-se capaz de feitos inimagináveis, vencendo barreiras
no espaço e tempo, transcendendo as possibilidades de interação e
comunicação entre pessoas. Ante tal representação da realidade
contemporânea, o direito à informação assumiu papel de maior destaque nos últimos anos; apesar de seu resguardo vir se repetindo
com o passar dos séculos, a função hoje detida por ele é imprescindível à chamada sociedade da informação.
As novas ferramentas tecnológicas são responsáveis por parte
desse processo de expansão e efetivação desse direito fundamental,
haja vista funcionarem como facilitadoras do processo comunicativo. Dentre as possibilidades ofertadas por esses novos mecanismos,
encontra-se a internet, a qual operacionaliza de forma célere a difusão e compartilhamento de informações ao redor do globo, sem a
necessidade de grandes encargos financeiros ou barreiras sociais.
No entanto, a rede mundial de computadores nada mais é do
que uma extensão da realidade conflituosa entre seres humanos,
portanto, há necessidade de zelar por determinados indivíduos de
natureza mais vulnerável nesse ambiente, fato este que leva ao encontro do problema a ser enfrentado, ou seja, como efetivar um direito fundamental tão relevante, por meio de um mecanismo tecnológico novo como a internet, sem desguarnecer a proteção de crianças e adolescentes. A situação se agrava na medida em que crianças e adolescentes, como sujeitos em condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento, igualmente devem ser incluídos no processo
informativo e democrático, a fim de exercerem seus direitos, mas
não podendo significar um processo contraproducente na retenção
de material na rede, o que acaba por representar um nicho que merece atenção, inicialmente, neste breve estudo.
1
SUBSTRATO HISTÓRICO E TEÓRICO DO DIREITO À
INFORMAÇÃO
A fim de traçar limites à pesquisa proposta, delimita-se o espectro interpretativo a partir do Direito nacional, apesar da compreensão de que existe o aspecto global, já que o mundo virtual não
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
11
reconhece fronteiras; ainda assim, como a finalidade é o debate
acerca de determinados direitos fundamentais, bem como a sua
relação com pessoas especificas, deve-se ater a uma base jurídica,
no caso, a brasileira. Com fulcro nesse ideal, conjuga-se do pensamento constitucional hodierno, o qual se estabeleceu a partir do
Estado Democrático de Direito, com o objetivo de irradiar (SILVA,
2005, p. 41-43) seus efeitos para toda a sociedade, não estando restrito ao mundo jurídico.
Nesse sentido, a finalidade traçada pelo texto constitucional
tem a conjugação de elementos éticos e jurídicos, buscando estabelecer um novo marco social, inexistindo, a partir de seu advento,
campo jurídico apartado de seus poderes, seja ele público ou privado. A representação da combinação supramencionada vislumbra-se
claramente no principal elemento desse fenômeno irradiador, o
princípio da dignidade humana, o qual, além de fundamento da
República (CANOTILHO, 2004, p. 225), alterou diversos panoramas do Direito pátrio, colocando a pessoa como centro do ordenamento jurídico e impedindo qualquer tratamento que reduza o ser
humano a um estigma de objeto (matriz de pensamento kantiano)
(SARLET, 2008, p. 37).
O novo poder adquirido pela Constituição oportunizou a renovação da ótica dada acerca de sua efetivação e, igualmente, dos
direitos fundamentais por ela trazidos, dentre os quais se encontra
o direito à informação, o qual guarda sua conexão com a matriz da
dignidade humana. Iniciando-se o tracejar desse direito, é inegável
a sua conexão originária com a liberdade de expressão (e mais anteriormente com a dignidade humana), a qual vem, durante os últimos séculos, encarregando-se da defesa das manifestações humanas, opiniões, críticas, dentre outras expressões humanas, sem ser
com isso restringida previamente. Apesar de ser um direito amplo,
hoje se apresenta com algumas nuanças restritivas, como, por
exemplo, a vedação ao discurso de ódio e a manifestações que preguem a violência ou a apologia ao crime (KOATZ, 2011), justificando-se tais limitações pela progressão conjunta entre o modelo estatal e o direito, bem como por inexistir direito absoluto, necessitando
a harmonização com os demais mandamentos constitucionais
(KOATZ, 2011, p. 401).
Percebido o elo que conecta a núcleo constitucional ao direito
em tela, passa-se a delinear os traços do direito à informação, o
12
André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias
qual tem como uma de suas balizas internacionais a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (artigo XIX). No dispositivo em questão, consta sobre a proteção da liberdade de expressão
e, por conseguinte, a de informação, no sentido de buscar, “receber
e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras” (DONNINI; DONNINI, 2002, p. 33).
Quanto ao Direito brasileiro, também existe o resguardo desse direito no artigo 5º da Constituição, preservando o direito de acesso à
informação por todos os cidadãos.
Antes de apresentar os contornos pontuais que diferenciam o
direito em estudo da liberdade de expressão, cita-se a noção acerca
do direito de informação trazida na obra de Carlos Roberto Siqueira
Castro.
O direito a informação, que compreende de modo amplo o direito a ser informado e a ter acesso às informações necessárias
ou desejadas para formação do conhecimento, constitui por
certo, juntamente com o direito à vida, a mais fundamental
das prerrogativas humanas, na medida em que o saber determina o entendimento e as opções da consciência, o que distingue os seres inteligentes de todas as demais espécies que
exercitam o dom da vida. Trata-se, também, do pré-requisito
mais essencial ao regime democrático, sabido que os indivíduos e sobretudo um povo desinformado e destituído da capacidade de crítica para avaliar o processo social e político
acham-se proscritos das condições da cidadania que dão impulso aos destinos das nações. (CASTRO, 2010, p. 437)
Depois de disposta a importância desse direito fundamental,
pode-se abordar a diferenciação feita em diversas obras acerca do
direito à informação e da liberdade de expressão, afirmando-se que
a primeira seria composta por uma perspectiva individual, o direito
de informar, aliada ao direito difuso de ser informado, diferindo,
portanto, da liberdade de expressão, a qual seria mais ampla ao
proteger o ato de manifestar opiniões, sem que dela seja exigida
veracidade (BARROSO, 2005, p. 317-318; SABAU, 2002, p. 15).
A diferenciação acima aponta para dois enfoques distintos, o
primeiro quanto à necessidade intrínseca de que o conteúdo informativo carregue consigo o pressuposto da veracidade, mesmo que
de maneira subjetiva (LANER, 2004, p. 31; LIMBERGER, 2007, p.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
13
134). A segunda constatação inclina-se no sentido de que o direito à
informação, subentendido a partir da liberdade de expressão, tem
em sua estrutura uma série de minúcias, em outras palavras, há
subdivisões nesse direito fundamental que devem ser comentadas.
A mais comum dentre as subdivisões foi brevemente citada
anteriormente, tratando de uma duplicidade no direito à informação, na qual uma delas encontrar-se-ia na defesa da prestação de
informações (direito de informar), essas mesmas vinculadas a certos
requisitos como clareza e veracidade1, de forma que se consegue
vislumbrá-la mais associada aos meios de comunicação e consequentemente à liberdade de imprensa. O aspecto restante tocaria à
busca de informações ou acesso, significando que o indivíduo deve
ter o direito a alcançar as informações por ele julgadas como preciosas ao seu conhecimento, sem, contudo, legitimar invasões a direitos fundamentais alheios (SOUZA, 2008a, p. 102).
Embora existam autores que abordem uma pluralidade maior
de classificações dentro do direito à informação (MIRAGEM, 2009,
p. 25), adiciona-se apenas uma delas, por parecer a mais relevante,
tratando do direito de ser informado. Tal faculdade não foi prevista,
constitucionalmente, junto a nenhuma instituição privada, todavia,
quanto a informações atinentes a ações dos poderes públicos, existe
um dever dessa prestação, ou seja, é imperioso que a população
tenha as informações acerca de tais fatos (DONNINI; DONNINI,
2002, p. 41).
A proteção e efetivação do direito à informação fornece suporte à livre manifestação do pensamento crítico da sociedade contemporânea (KOATZ, 2011), ao mesmo tempo que reforça o conteúdo
intelectivo do cidadão, o qual detém pluralidade de materiais informativos a formarem o seu juízo, estando dessa forma melhor habilitado a participar dos assuntos debatidos na atualidade. Ademais,
o papel democrático desempenhado pela proteção desses direitos é
1
Apresenta a prestação das informações verdadeiras como um dever inerente ao
exercício da liberdade dos meios de comunicação a autora SCHMITT (2000, p.
219): “[…] entendemos existir, efetivamente, no texto constitucional, a obrigação de fornecer informação que deve ser correta, verdadeira, consoante se depreende do contido no inciso XIV do art. 5º da CF, quando assegura a todos o
acesso à informação, vedando a notícia falsa, punida através do direito de resposta e a indenização por dano material e /ou moral à violação da intimidade,
honra e imagem das pessoas, assegurados nos incisos V e X do art. 5º da CF”.
14
André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias
inerente ao modelo estatal adotado, bem como o incentivo por parte
do Estado em fornecer à maior quantidade de pessoas a facilitação
do acesso aos novos meios de comunicação; no caso da internet,
possibilita-se não somente o aprofundamento informativo, mas o
fortalecimento democrático da variedade de opções, proporcionando o crescimento comunicativo e argumentativo de todos.
Dito isso, é relevante saber se as novas ferramentas da sociedade da informação desempenham seu papel inclusivo (com funções imperiosas ao progresso democrático e social), efetivando direitos fundamentais no campo digital, sem, contudo, deixar crianças e adolescentes em um campo completamente desprotegido e à
mercê de violações aos seus direitos fundamentais.
2
A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E A INTERNET: NOVOS
ESPAÇOS DE CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Estabelecidos os elementos basilares que integram os alicerces constitucionais nacionais e, especialmente, o direito à informação, torna-se possível especificar um pouco mais os contornos da
temática a ser debatida. Neste ponto, cumpre a apreciação dos traços sociais contemporâneos, os quais combinam fortemente a proteção de direitos fundamentais, como os analisados alhures, com a
especificidade da internet como canal da comunicação moderna.
Ante o exposto, faz jus a definição do atual perfil social, denominado como a sociedade da informação. Esse modelo social tem sua
origem teórica em autores – americanos e europeus – das décadas de
1970 e 1980, os quais observavam diversas modificações (econômicas, políticas, etc.) conjuntamente a um aumento na importância valorativa da informação, atraindo e intensificando o consumo desse
interesse humano (GERMAN, 2000, p. 115; CASTELLS, 1999, p. 46).
A comprovação fática das conjecturas destes pensadores é
plenamente observável no contexto social atual, já que a vasta gama de inovações tecnológicas que inundam esta nova realidade traz
consigo suportes diferenciados para facilitar e acelerar o processo
comunicativo entre as pessoas, recrudescendo a produção e difusão
acelerada de informações, bem como o desejo das pessoas em adquiri-las. Somam-se a esse panorama social os fundamentos constitucionalizadores do Direito (efetivação dos direitos fundamentais) e
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
15
a própria noção de democracia (FERRARI, 2000, p. 164), esta última, por sinal, facilitada a partir do incremento informativo pluralizado, que gera também decisões melhor fundadas, participação
cidadã adequadamente informada e o consequente aumento do
conteúdo cultural da população. Colacionam-se aqui as palavras de
Ferrari (2000, p. 165-166), a fim de corroborar a noção contributiva
da informação para o desenvolvimento humano democrático.
Se democracia significa liberdade e igualdade no gozo de direitos e de oportunidades, parece claro que a informação livre,
como acentuado no início, dela constitui fundamento um fundamento essencial […] Compreende-se assim ‘informação’
não é somente ‘o ato de informar’ como diz o vocabulário, mas
em geral é parte essencial do processo de formação de conhecimentos, de opiniões e, portanto, da própria personalidade do
indivíduo: a parte que age mediante a interação do sujeito
com o mundo externo. A falta de informação bloqueia o desenvolvimento da personalidade, tornando-a asfixiada. Outrossim, uma informação unilateral, advinda de uma só fonte,
mesmo que quantitativamente rica e qualitativamente sofisticada, direciona a personalidade para canais preestabelecidos,
limitando objetivamente a oportunidade de escolha e a capacidade crítica do indivíduo, prejudicando desta forma a sua
participação nos processo democráticos. […] A relação entre
democracia e informação é, portanto, biunívoca, de coessencialidade, no sentido de que uma não pode existir sem a outra e o
conceito de uma comporta o conceito da outra.
Dentro de tal concepção social informativa, pluralizada, democrática e constitucional, que parte do incremento da noção valorativa da informação, podem-se enfocar mecanismos que facilitam o
processo interlocutório entre seres humanos, recebendo igualmente
destaque neste novo contexto. Dessa forma, aponta-se, neste capítulo, especialmente a internet (CORRÊA, 2010, p. 26) como uma
tecnologia inovadora, que oferece uma concepção de inovação tecnológica e introduz novidades ou aperfeiçoa processos produtivos
ou sociais, os quais resultam em novos produtos, serviços ou sistemas, contribuindo ao processo comunicativo, o qual é reconhecido
como extremamente relevante em organizações sociais democráticas e ao próprio compartilhamento de conhecimento humano.
16
André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias
A internet, como meio de comunicação, altera panoramas
clássicos das inter-relações humanas, pois, antes, todas essas relações eram concebidas somente no mundo real, entretanto, após a
criação desse mecanismo, muitas passam a ser realizadas em outro
campo, em outras palavras, constituindo-se, assim, o mundo virtual.
Este passa a integrar parcela considerável da vida cotidiana das
pessoas, tendo como característica a pluralidade de informações
contidas em seu ambiente aberto e a intensa velocidade de propagação desses conteúdos pela rede a qualquer parte do planeta
(KRETSCHMANN, 2008, p. 136). Significa que a internet é uma
ferramenta de comunicação ágil, inovadora e muito promissora no
seu futuro desenvolvimento.
Apesar da visão aparentemente positiva desse meio de comunicação na atualidade, durante certo período, devido a interesses
econômicos, individuais ou políticos, foram impostas diversas tentativas de conter a evolução dessa nova tecnologia, embora, com o
tempo, estas tenham se mostrado em vão no processo de proliferação
do conhecimento. Destarte, a conduta adotada posteriormente, no
sentido de adaptação a este novo paradigma da comunicação, mostrou-se com mais benefícios, progredindo, inclusive, para associações
entre meios diferenciados, como televisão, rádio, computadores, internet, chamado de convergência de mídias (OLIVEIRA, 2006, p. 7475). Por conseguinte, em relação à internet, passou-se então a ter um
tratamento dentro da normalidade das conexões entre seres humanos, havendo tão somente a troca de ambiente do real para o digital.
Essa afirmativa leva à desconsideração de um aspecto inicialmente tido como dogma da internet, mais precisamente a falsa
noção de que esta seria uma terra sem lei; na verdade, trata-se apenas de outro ambiente no qual se efetivam relações entre pessoas,
podendo, deste modo, ocorrerem infrações e lesões aos seres humanos, bem como a correspondente responsabilização. Nesse sentido, aduz Santos (2009, p. 111):
Quando essa pergunta é feita, as pessoas querem saber se no
meio virtual tudo pode. A resposta é não. A Internet não é um
faroeste norte-americano, uma terra de ninguém. Uma evidência disso é que muitos autores usam a expressão “direito
cibernético”, que nada mais é do que o próprio direito aplicado e adaptado às novas condições do meio digital. Assim, há
crimes digitais, há responsabilidade civil decorrente de situa-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
17
ções ocorridas no meio virtual, as regras do Código de Defesa
do Consumidor também se aplicam aos contratos eletrônicos e
há até mesmo questões tributárias, como incidência de ICMS
e ISS aos provedores de acesso. Essa última questão tem tido
diferentes deslindes e foge ao tema de nosso estudo nesse
momento. Por favorecer o anonimato, a Internet também se
mostra o terreno propício para fraudes eletrônicas e lavagem
eletrônica de dinheiro.
Em síntese, embora a restrição do acesso à internet tenha se
mostrado um procedimento pouco eficaz, em contrapartida, isso não
significa que os direitos fundamentais podem ser violados sem responsabilização, tendo como único escopo a utilização de uma ferramenta virtual, podendo promover violência (CORRÊA, 2010, p. 6364) e ofender interesses personalíssimos de outros seres humanos.
Alguns desses embates ocorridos virtualmente se dão no exercício
(por vezes abusivo) de liberdades comunicativas, como imprensa e
informação, tendo em vista a expansão digital dos instrumentos de
comunicação de massa, juntamente a blogs, twitters, redes sociais e
outros instrumentos utilizados por comunicadores em geral.
Com fulcro nos parâmetros supramencionados, percebe-se
que a internet é um espaço virtual e, ao mesmo tempo, jurídico de
compartilhamento de opiniões, críticas, informações, capaz de facilitar o recrudescimento dos direitos fundamentais, principalmente
aqueles que tangem questões de liberdade comunicativa (fortalecendo também uma sociedade plural e democrática), sem, contudo,
significar a permissão para infligir danos a outros interesses constitucionais relevantes. Dito isto, na etapa final deste estudo, procurar-se-á questionar os limites nesse processo de expansão, quando
este é capaz de atingir crianças e adolescentes em pleno processo
de desenvolvimento.
3
O COMPLEXO PARALELO ENTRE A LIBERDADE INFORMATIVA
NA REDE E OS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
O debate envolvendo a liberdade informativa e a violação dos
direitos fundamentais de proteção de crianças e adolescentes na internet, aparentemente contemporâneo, é algo que vem sendo relegado a uma condição secundária há algum tempo, visto que existem
opiniões no sentido de que a falta de uma legislação sobre a rede no
18
André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias
país geraria diversos prejuízos (LEMOS, 2005, p. 93). A verdade é
que, entendendo deste modo (mais positivista, vinculado a lei) ou de
maneira diversa (sob o viés hermenêutico constitucional), as discussões sobre o tema são ainda limitadas no país. Todavia, devem-se
compreender alguns traços da proteção da criança e adolescente no
Brasil, para clarificar o silêncio em relação ao tema proposto.
Quando se levanta a discussão sobre assuntos envolvendo crianças e adolescentes, é impossível evitar a reprodução de mitos e
práticas culturais muitas vezes preconceituosas e vinculadas aos antigos dogmas ultrapassados, especialmente porque muitos deles estiveram sob o aval da fundamentação anterior à Constituição Federal
de 1988, a chamada doutrina menorista. A superação desses antigos
resquícios do passado somente vem sendo combatida a partir do período de redemocratização iniciado na década de 1980, ou seja, a
luta de movimentos sociais, aliados a novos panoramas internacionais e a Constituição, abriram portas para a transição da doutrina
menorista para proteção integral (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p.
105-106).
Assim, há um divisor teórico profundo no marco constitucional para o direito da criança e do adolescente, que não se reduz
apenas ao abandono da expressão menor (CUSTÓDIO, 2009, p.
28), apesar de ser importante frisar que o termo “menor” “foi extirpado de nosso vocabulário jurídico para dar lugar à criança e ao
adolescente, indicados pela Lei n. 8.069/90, tratamento esse mais
humanizado em relação à legislação anterior” (LAMENZA, 2011, p.
11). Permanece dessa forma o desafio de alcançar a efetivação da
teoria da proteção integral inspiradora do conjunto de princípios e
regras do Direito da Criança e do Adolescente.
A citada teoria da proteção integral merece destaque, mesmo
que de forma breve, haja vista sua capacidade de alteração não
apenas no pensamento jurídico, mas também nas práticas relacionadas ao campo da infância, implicando múltipla responsabilidade
por parte dos entes sociais (COSTA, 2011, p. 857-858). Não obstante, soma-se a tal perspectiva a gama principiológica de orientação
desta ramificação do Direito, a partir de ditames como o princípio
da prioridade absoluta, o qual deixa evidente a intenção legislativa
de fortalecimento dos mecanismos socioprotetivos da infância no
Brasil (COSTA, 2011, p. 862-863).
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
19
Sabe-se que o Direito da Criança e do Adolescente não é um
ramo jurídico avançado porque garante muitos direitos, mas sim
porque teve a capacidade de articular o reconhecimento de direitos
fundamentais com um sistema de garantias de políticas públicas de
proteção, atendimento e justiça que permite controlar os níveis de
efetivação de direitos e promover a correção diante da ameaça ou
violação de direitos por meio de estratégias de gestão pública.
As políticas públicas de atendimento, proteção e justiça para
crianças e adolescentes exigem, assim, a coparticipação da família
e da comunidade na deliberação e promoção de uma sociedade que
seja mais inclusiva e democrática. Portanto, “o trinômio famíliasociedade-Estado” deve combinar-se de modo inerente pautando-se
no princípio da cooperação (LAMENZA, 2011, p. 14), a fim de dar
maior efetividade aos direitos e garantias de crianças e adolescentes.
Assim, a proteção de crianças e adolescentes contra possíveis
abusos nos meios de comunicação e nas novas tecnologias exige
ações articuladas e integradas. A insistência nas falaciosas estratégias de controle, repressão e vigilância sobre o corpo infantil, amparada no velho discurso moral das gerações precedentes, não se
demonstra como mecanismo eficaz para a garantia da proteção contra qualquer tipo de abuso, inclusive nos meios virtuais.
Por outro lado, o reconhecimento de crianças e adolescentes
como protagonistas de sua própria trajetória histórica e que devem
estar preparados para enfrentar uma sociedade da informação materializada em inúmeros riscos virtuais e reais pode oferecer uma
alternativa mais efetiva de proteção na medida em que crianças e
adolescentes aprendem a enfrentar e evitar os próprios riscos.
Destarte, os riscos contidos na rede mundial de computadores
não podem servir de pretexto para exclusão digital infanto-juvenil,
haja vista que isto representaria o claro cerceamento do direito à
informação. Em síntese, o entendimento ora defendido é de que,
apesar da existência de perigos, não se legitima a simples restrição
paternalista em termos absolutos. Mesmo que esta espécie de proteção seja legítima (FEINBERG, 1986, p. 5), o prejuízo no sentido
educativo é muito superior à representação de risco.
Contudo, partindo do ponto de vista de que existe uma duplicidade de interesses envolvidos, tanto no sentido informativo de
todos, inclusive das crianças e adolescentes, quanto no de que estes
20
André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias
últimos devem ser protegidos, em seus direitos e garantias fundamentais, a forma mais adequada de solução pauta-se pela promoção do protagonismo infantojuvenil no domínio e controle da informação. Assim, reconhece-se que o investimento na educação para
crianças e adolescentes usuários do mundo virtual tem um caráter
mais alinhado ao pensamento da proteção integral, já que, ao mesmo tempo que serão orientados sobre as armadilhas contidas nesse
espaço, também poderão usufruir das informações e facilidades de
aprendizagem ofertados pela internet.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No curso desta breve investigação, procurou-se atentar para as
principais nuances do direito à informação, a fim de alicerçar fundações seguras à abordagem de conflitos envolvendo esse direito fundamental, alinhavado nos marcos da dignidade humana, como matriz não somente deste, mas de todo um processo constitucionalizador, e da liberdade de expressão, como a origem de onde se deduz as
liberdades comunicativas. O respaldo constitucional (e internacional)
somado ao aprofundamento teórico sustenta um caminho basilar para
o desempenho satisfatório do direito à informação.
A concentração na seara jurídica não significa o afastamento
das questões sociais e democráticas inerentes ao raciocínio, conforme condiz o próprio modelo estatal, ou ainda o contexto da sociedade da informação. Estabelecidos estes parâmetros, de natureza
jurídica e social, focou-se o campo de análise do debate, mais precisamente o ambiente digital.
O estudo centrado na internet denota a preocupação com a
utilização das novas tecnologias, neste caso, em especial, por esta
encontrar-se como um dos novos eixos comunicativos da modernidade, como bem demonstra o seu crescimento e suas muitas facilidades na superação de barreiras espaço-temporais. No entanto, as
afetações de seu uso foram centradas em sujeitos específicos nesta
pesquisa, ou seja, as crianças e adolescentes, porém algumas questões careciam de clarificação para o melhor entendimento dos direitos da infância e sua conexão com o processo comunicativo digital.
A história brasileira recente converge para a Constituição de
1988, que, ao mesmo tempo, resguarda o direito à informação, tão
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
21
comentado e pauta do mundo virtual, e traz nova ótica ao direito da
criança e do adolescente, passando este a ter uma avançada legislação, alicerçada pela teoria da proteção integral e institucionalizada pelo Direito da Criança e do Adolescente como um ramo jurídico
autônomo integrado por um conjunto de princípios e regras. Trilhando este novo caminho de proteção integral ao desenvolvimento
humano de crianças e adolescentes é que se procurou questionar
qual a melhor alternativa frente ao problema da inclusão digital
(direito à informação) e os riscos sofridos na rede (violação de direitos fundamentais).
Desta forma, o entendimento compactuado aqui indica como
caminho mais correto, ante os perigos propiciados pela internet, a
promoção do protagonismo de crianças e adolescentes no uso desta
ferramenta comunicativa, tendo em vista que a sua restrição pura e
simples acarretaria mais prejuízos do que benefícios, sendo, portanto, uma possibilidade completamente desarrazoada, demonstrando
assim que a orientação educativa pode proporcionar, além da inclusão informativa virtual, um processo cívico de vivenciar o direito de
liberdade de maneira adequada, sem com isso significar a ausência
de proteção aos seus direitos fundamentais.
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Ademar Antunes da Costa
Advogado e Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Professor em
Direito Civil e Introdução ao Estudo do Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC. Integrante do grupo de pesquisas
Direito, Cidadania e Políticas Públicas do
Programa de Pós-graduação em Direito –
Mestrado e Doutorado da Unisc.
Contato: [email protected]
Quelen Brondani de Aquino
Mestranda em Direito, com Bolsa Capes, pela Universidade de Santa Cruz
do Sul. Especialista em Políticas Públicas e Desenvolvimento Local pelo Instituto Federal Farroupilha. Bacharel em
Direito pela Universidade de Santa
Cruz do Sul – Unisc. Integrante do
grupo de pesquisas Direito, Cidadania
e Políticas Públicas do Programa de
Pós-graduação em Direito – Mestrado e
Doutorado da Unisc.
Contato:
[email protected]
Capítulo 2
A NECESSÁRIA
REFORMA DA
ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA:
UMA ABORDAGEM
SOBRE A SEGURANÇA
PÚBLICA, COM
ÊNFASE PARA A
FORMAÇÃO POLICIAL
MILITAR
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No cenário atual, a segurança pública ocupa uma das principais demandas da sociedade. Para tanto, com o fim do sombrio período de Ditadura Militar, iniciou-se um longo e desafiador debate
sobre a reforma do sistema de segurança pública, que foi sacramentado com a Constituição Federal de 1988. Diante do protagonismo
das forças policiais no período de exceção, torna-se relevante a quitação da dívida social do Estado brasileiro com os cidadãos que
sofreram, direta e indiretamente, as consequências desse momento
histórico. Desse modo, tornou-se consenso a necessidade de se
promover mudanças substanciais do atual sistema de segurança
pública.
26
Ademar Antunes da Costa & Quelen Brondani de Aquino
Nessa perspectiva, o Governo Federal, a fim de dar uma resposta eficaz para a sociedade, resolveu instituir um Plano Nacional
de Segurança Pública com Cidadania, o qual tem por finalidade
promover o enfrentamento à violência e à criminalidade, bem como
a preservação da ordem pública e a promoção da paz social. Desenvolvido pelo Ministério da Justiça, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) marca uma iniciativa inovadora no processo de reformulação dos órgãos de segurança pública. O projeto articula políticas públicas que priorizem um trabalho de prevenção mediante uma gestão pública compartilhada e de
articulação política de segurança com ações sociais. Um dos eixos
fundamentais do Pronasci é justamente a formação e a valorização
dos profissionais de segurança, não se restringindo apenas ao processo inicial de formação dos agentes policiais, mas partindo para
uma formação qualificada e de reforma das diretrizes do processoaprendizagem dos policiais, baseados nos conceitos de Direitos
Humanos e Fundamentais.
Nesse contexto, o presente capítulo tem por objetivo realizar
breves apontamentos sobre o sistema de segurança pública no Brasil,
a partir dos conceitos de justiça transicional e da necessária reforma
da administração pública, com a ruptura do sistema autoritário.
Portanto, realizar-se-á uma pequena abordagem sobre os aspectos históricos da segurança pública no Brasil e os resquícios da
Ditadura Militar, ainda presentes no contexto atual. Em seguida,
passar-se-á a estudar os conceitos e fundamentos da justiça de transição e a necessária reforma administrativa do Estado no âmbito da
segurança pública. Por fim, analisar-se-ão as principais políticas de
reforma já adotadas pelo Estado, dentre as quais se destaca o Programa Nacional de Segurança com Cidadania, instituído pelo Governo Federal no século XXI, a fim de adequar todo o sistema de
segurança pública com o novo Estado Democrático de Direito, dando ênfase ao processo de formação policial.
1
A SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL E OS RESQUÍCIOS DA
DITADURA MILITAR
A segurança, mais que direito constitucional, tem se tornado
necessidade básica para o efetivo exercício da cidadania. Ocorre
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
27
que, no contexto atual, a gestão da política de segurança pública
ainda traz resquícios do período ditatorial, quando barbáries foram
cometidas em nome do Estado e da ordem pública.
De acordo com os ensinamentos de Gorczevski (2009), o Movimento Revolucionário de 1964 e a Constituição de 1967 fizeram
com que o Brasil mergulhasse no período mais trágico da história.
Para o autor:
A Constituição de 1967 revelou-se a mais autoritária de todas
as constituições. Entretanto, o pior estava por vir, com a publicação do Ato Institucional nº 5, que serviu de base jurídica para um maior endurecimento do autoritarismo, permitiu as
maiores atrocidades até então perpetradas sobre os brasileiros.
A repressão política e a violação dos direitos não tinha qualquer limite. (GORCZEVSKI, 2009, p. 2.735)
Tem-se, nesse contexto, uma enorme violação de direitos. Prisões ilegais, violência policial, condições precárias de cárceres e
instituições de repressão tomaram lugar após a primeira experiência democrática do país. Os abusos, a tortura, a corrupção assumiram espaço muito além da percepção democrática, e em nome da
Soberania do Estado e da honra nacional “foram criadas emendas,
atos institucionais e Decretos-leis que configuraram real violação
aos Direitos Humanos” (GORCZEVSKI, 2009, p. 2.735).
Relatos dão conta de que mais de doze mil pessoas foram expulsas do Brasil, cerca de cinco mil perderam seus direitos políticos
e um número ainda desconhecido de pessoas foram torturadas e
violentadas até a morte. Ocorre que, ainda que as críticas ao sistema e a ideologia da segurança nacional tenham aumentado gradativamente, o regime de terror imperou até o ano de 1978, momento
em que as penas de morte e de prisão perpétua foram gradativamente suprimidas (GORCZEVSKI, 2009).
Por oportuno, destacam-se os ensinamentos de Gorczevski
(2009, p. 2.736):
No âmbito internacional, denúncias de desrespeito e violação
aos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas colocou em pauta a apuração dessas questões ocorridas no Brasil.
Entretanto, o caso foi encerrado, após concluírem que real-
28
Ademar Antunes da Costa & Quelen Brondani de Aquino
mente ocorriam sérias violações aos Direitos Humanos no Brasil, mas entenderam que o país alcançava significativos progressos e que o governo dispunha de meios legais e judiciais
para prevenir e punir a violação aos Direitos Humanos, sendo
desnecessária qualquer outra ação.
Nesse contexto, corroborando as ideias do autor acima referido, Leal (2012) destaca que essas violações ocorridas no período de
exceção não se tratam de problema exclusivamente nacional, mas
sim de caráter internacional, em razão dos tratados, convenções e
pactos internacionais que dão conta da temática e foram ratificados
pelo Brasil. Assim, há de se aferir a responsabilidade do Estado brasileiro em face dos atos de crueldade e tortura cometidos contra
centenas de pessoas, durante a ditadura militar, e, desse modo,
buscar mecanismos adequados para a reparação dos danos causados, não apenas às vítimas, mas a toda nação.
O período de exceção deixou resquícios que influenciam, sobremaneira, a sociedade moderna. Especialmente quando se referem àqueles órgãos que protagonizaram os acontecimentos da época, como é o caso das forças armadas e policiais, e que trazem, nos
seus atos, características marcantes daquele momento histórico.
Por essas razões, para que se possa compreender melhor os
resquícios e a influência que o período da ditadura exerce, ainda
hoje, nas forças armadas, especialmente nas Polícias Militares, é
necessário que se realize um estudo sobre o processo de redemocratização do Brasil, iniciado em 1985, e que só se consolidou com
a promulgação da Constituição Federal, em 1988, a promissora
Constituição Cidadã, que, por sua vez, inovou em garantias e
abrangeu uma série de direitos civis, políticos e sociais.
Trouxe, nesse diapasão, em seu artigo 5º, caput, a Segurança
como uma das garantias fundamentais do Estado, tornando-se a
segurança pública dever do Estado, a fim de manter a ordem pública e a paz social a todos os seus cidadãos, bem como ratificou sua
inserção no rol do artigo 6º do mesmo diploma legal, classificandoa como um direito social, ou seja, direito de segunda dimensão.
Esse momento de democratização acabou impulsionando
enorme quantidade de trabalhos que uniam esforços no exame de
políticas setoriais, para, além de entendê-las, propor novas alterna-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
29
tivas para o desenho institucional. Iniciava-se, concomitante à nova
Constituição Brasileira, uma necessidade de “reforma estatal”, no
sentido de garantir o acesso a serviços e à participação política, isto
tudo como estratégia institucional para promover “o enfrentamento
da então chamada “dívida social” do Estado brasileiro para com
seus cidadãos” (HOCHMAN; ARRETCHE; MARQUES, 2007, p. 14).
Mas, como bem observou Soares (2003), nesse período de
transição democrática, embora todas as instituições públicas tenham passado por uma revisão e reajuste ao novo modelo, discutindo propostas e disputando a liderança de cada processo de reforma, uma dessas instituições acabou sendo esquecida: a polícia.
Neste cenário, exceto raríssimas opiniões individuais, não apresentou a opinião pública qualquer projeto que redesenhasse a polícia
remanescente do período ditatorial para a então democracia ora
instituída.
Nesse mesmo período, verifica-se que o negligenciamento
com a polícia contribuiu para o modelo de dominação social defendido por setores mais conservadores, que se utilizavam dessa falha
como estratégia para manter a “elite” afastada das mazelas sociais.
Nessa conjuntura, antes de se adentrar na análise da necessária transformação do sistema de segurança pública, alguns pontos
sobre a justiça transicional precisam ser esclarecidos, conforme se
passará a desenrolar.
2
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E A REFORMA ADMINISTRATIVA DO
ESTADO NO SETOR DE SEGURANÇA PÚBLICA
Ao se analisar, no Brasil, o período de transição do autoritarismo para um Estado democrático, visualiza-se ser este um processo inacabado e em constante construção e transformação. Por conta
disso, é dever do Estado e da sociedade implementar políticas públicas que tenham por finalidade a reestruturação do Estado em
razão de regime de exceção vivenciados nas duas décadas que antecederam a Constituição Federal de 1988.
Assim, de acordo com Ramos (2012, p. 310), “uma das formas
de abordagem do debate sobre as violações de direitos humanos e
fundamentais decorrentes dos regimes de exceção é o da Justiça de
Transição”. Há que se buscar a justiça dos fatos ocorridos nos perío-
30
Ademar Antunes da Costa & Quelen Brondani de Aquino
dos políticos e, desse modo, buscar a investigação, documentação e
divulgação pública das violações cometidas, a fim de se esclarecer a
verdade e promover a pacificação e reconciliação.
Entretanto, antes de se adentrar na seara das políticas públicas, há que se compreender essa modalidade de reparação dos danos causados, denominada “justiça de transição”. De maneira geral, compreende-se que esta é caracterizada pelo conjunto de processos e mecanismos de responsabilização dos agentes que praticaram violações aos direitos humanos durante o período de exceção,
buscando, assim, alternativa de reconciliação com a efetivação da
justiça (SCHWINN; KONRAD, 2012).
No mesmo sentido, aludem Abrão et al. (2009, p. 12) que a
Justiça de Transição, dentre outras coisas, tem por finalidade:
Verificar quais processos de Justiça foram levados a cabo pelo
conjunto dos poderes dos Estados nacionais, pela sociedade
civil e por organismos internacionais para que, após o Estado
de Exceção, a normalidade democrática pudesse se consolidar. Mais importante, porém, é a dimensão prospectiva desses
estudos, cuja aplicação em políticas públicas de educação e
justiça serve para trabalhar socialmente os valores democráticos, com vistas à incorporação pedagógica da experiência de
rompimento da ordem constitucional legítima de forma positiva na cultura nacional, transformando o sofrimento do período
autoritário em um aprendizado para a não repetição.
O desenvolvimento de uma “Justiça de Transição” iniciou-se
logo após a Primeira Guerra Mundial, momento em que a comunidade internacional despertou para a necessidade de se buscar a
Justiça na raiz do conflito. Nas palavras de Ramos (2012, p. 310),
“após a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional criou
as principais instituições da Justiça de Transição”. Nesse aspecto, a
autora destaca o “Tribunal Penal Internacional em Nuremberg e
Tóquio e o apoio relacionado com a acusação de crimes de guerra
em âmbito nacional na Europa e Ásia”.
Nesse cenário, a justiça transicional é uma modalidade nova
de se buscar mecanismos auxiliares na promoção da justiça. Para
tanto, ensina Leal (2012, p. 188) que ela consiste:
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
31
a) na revelação da verdade, mediante a abertura de arquivos
do período e a criação de comissões da verdade imparciais;
b) na responsabilização pessoal dos perpetrados de graves
violações de direitos humanos, entendendo que a situação de
impunidade é fator de inspiração e dá confiança a quem adota
práticas violadoras de direitos; c) na reparação patrimonial
dos danos às vítimas, através de indenizações financeiras;
d) na reforma institucional dos serviços de segurança, expurgando de seus quadros quem propagava a teoria do período;
e) na instituição de espaços de memória, para que as gerações
futuras saibam que, no país, se praticou o terror em nome do
Estado.
Leal (2012, p. 189) ainda destaca que a justiça de transição
tem se estruturado em cinco grandes estratégias de ação, quais
sejam:
a) justiça reparatória cível (envolvendo danos materiais e imateriais); b) justiça criminal; c) formatação de Comissões da
Verdade e Memória; d) justiça administrativa (com a revisão
formativa dos quadros e setores públicos envolvidos com os
temas da segurança e dos Direitos Fundamentais); e, e) justiça constitucional de transição (integrada e compromissada
nacional e internacionalmente com as diretrizes jurisdicionais
protetivas de Direitos Humanos e Fundamentais). (Grifo nosso)
Ainda assim, considera-se que o processo transicional não
rompeu definitivamente com o legado negativo deixado pelos governos ditatoriais em diversas áreas do País. Segundo Schwinn e
Konrad (2012, p. 235), “O Brasil ainda convive com estruturas autoritárias, com um Judiciário conservador, com a morosidade do serviço público, a corrupção, com a tortura e a violência”. Isso tudo fez
com que os crimes cometidos contra a humanidade pelos agentes
do Estado não tenham sido punidos e, na maioria das vezes, sequer
foram investigados.
Salati (2012), ao utilizar-se dos ensinamentos de Teles, aponta
três aspectos que colaboraram para o exercício de uma transição
consensual, quais sejam: a criação da Lei da Anistia, em 1979; a
passagem de um governo ditatorial para um governo civil por um
Colégio Eleitoral, que elegeu, de forma indireta, o presidente da
república; e a Constituição Federal de 1988, que não contemplou a
32
Ademar Antunes da Costa & Quelen Brondani de Aquino
punição aos crimes do regime militar. Visualiza-se, assim, elementos impeditivos para a construção de uma democracia participativa.
É preciso, pois, para entender o presente, observar as raízes dos
conflitos vivenciados no passado.
Utilizando-se dos ensinamentos de Teitel (2003), Ramos (2012,
p. 310-311) esclarece que a Justiça de Transição, no âmbito internacional, está estruturada em três fases. A primeira caracteriza-se
com o pós-guerra, a partir de 1945, que marcou as “condições políticas excepcionais do período pós-guerra, e está associado à cooperação entre os Estados, com processos de crimes de guerra e com
sanções, que culminou pouco depois do fim da guerra”. A segunda
fase é marcada pela tentativa de uma acelerada democratização e
fragmentação política. Para a autora, naquele momento, buscou-se
fixar “metas para esclarecer, ao Estado de Direito, imposições e
responsabilidades para com o objetivo de preservar a paz”. O principal objetivo da Justiça de Transição, naquela época, foi “construir
uma história alternativa dos abusos do passado”. Por sua vez, na
terceira fase, a Justiça de Transição refere-se à implementação de
um sistema humanitário, em que se visualiza um grande apelo para
uma “linguagem universal da moralidade no discurso legal”.
Nos dias atuais, entende-se que a Justiça Transicional vai muito além da “reparação e punição dos responsáveis pelos atos de tortura, sequestro, desaparecimento e mortes” de milhares de pessoas,
buscando, além disso, “a verdade e resgata a memória, gerando políticas públicas com a necessária opinião pública, visto que está relacionada com perdão e reconciliação” (RAMOS, 2012, p. 311).
Desse modo, a Justiça de Transição passa a desenhar uma
história alternativa dos abusos que ocorreram no passado. Cita-se,
como exemplo disso, a criação das Comissões da Verdade, criadas
oficialmente com o objetivo de “investigar, documentar e tornar
público abusos de direitos humanos” em determinado país, durante
períodos específicos (RAMOS, 2012, p. 312).
Foram formadas Comissões da verdade em diversos países,
todos com apoio internacional, na busca em conhecer as causas das violências ocorridas nos períodos de ditadura, identificando os conflitos e os casos de violação dos direitos humanos. Um dos países que implementou a Comissão da Verdade
foi a Argentina. Sua Comissão da Verdade foi batizada de
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
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Comissão Nacional para a Investigação sobre o desaparecimento de Pessoas (CONADEP), que tinha como objetivo investigar as violações ocorridas no período de 1976 a 1983. A
comissão criou o documento ‘Nunca Más’, e com as informações geradas por esta comissão a população argentina passou
a conhecer a história das ocorrências do período militar.
(RAMOS, 2012, p. 313)
No Brasil, a necessidade de implementação de uma Comissão
da Verdade surgiu de uma sugestão da Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Assim, em 18 de novembro de 2011, foi sancionada a Lei 12.528, que cria a Comissão Nacional da Verdade. Destaca-se, por oportuno, que movimentos sociais já davam alguns
passos para a investigação dos casos de tortura no período de exceção vivenciado pelo país, citando-se a criação da Comissão da Anistia e da Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos
(RAMOS, 2012).
De acordo com os ensinamentos de Leal (2012), a Corte Interamericana de Direitos Humanos também reconheceu que o Estado
brasileiro é responsável pelo desaparecimento forçado, tortura e
graves violações de direitos humanos, e, assim, atribuiu uma série
de obrigações concretas ao Estado, reconhecendo a natureza reparatória do seu ato.
Dessa maneira, dentre outras recomendações, a Corte determinou que o Estado deve “implementar, em um prazo razoável, um
programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas”.
Além disso, no que se refere a esse aspecto, esclarece Leal (2012, p.
190) que devem ser implementadas “ações de reforma do sistema
de segurança, procurando transformar democraticamente os microssistemas de polícia militar e da polícia civil relacionados com a
repressão e corrupção, a partir de políticas de melhorias destes serviços públicos”.
Destaca-se, por oportuno, que, historicamente, a Polícia Militar esteve subordinada ao Exército. Sobre o assunto, Schwinn e
Konrad (2012, p. 236), ao utilizarem-se dos ensinamentos de Matos
e Nolasco (2011), resumem que:
A Constituição de 1946 a denominou força auxiliar do Exército e, em 1964, a ascensão do regime militar seguiu-se da ex-
34
Ademar Antunes da Costa & Quelen Brondani de Aquino
pedição de Atos Institucionais com objetivo de fortalecer as
instâncias militares e centralizar o poder federativo, retirando
a autonomia dos estados. Em 1967, foi criado o Instituto Geral
de Polícias Militares (IGPM), órgão fiscalizatório do Exército,
e o Ato Complementar de nº 40, que determinava que os policiais militares não poderiam receber salários iguais aos dos
militares de posto e graduação equivalente. ‘Portanto, a identidade policial militar definia-se à sombra dos padrões estruturais e procedimentais das Forças Armadas’.
Ocorre que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 144,
§ 6º, manteve as polícias militares como forças auxiliares do Exército, reproduzindo e mantendo o poder de permanecer a “ordem pública” nas mãos das forças militares. O aparelho repressivo permaneceu intacto, e práticas autoritárias, de desrespeito e violência,
ainda são evidentes nos dias atuais nas corporações militares.
Nesse cenário, conforme assevera Rolim (2010), há de se fomentar mudanças estruturais nas instituições de segurança pública,
além de mudanças políticas e culturais das polícias. Assim, o país
necessita de políticas de reforma dos órgãos de segurança pública,
a fim de terminar com estruturas antidemocráticas e autoritárias.
Diante do exposto, resta evidente que a justiça de transição
não se restringe apenas às medidas jurisdicionais, mas vai além,
pela implementação de uma série de programas de ações, com a
finalidade de promover a reparação dos danos causados. Inclui-se
aí, objeto de estudo deste trabalho, a necessária reforma dos organismos estatais, especificamente dos órgãos policiais militares, conforme se passará a explorar.
3
POLÍTICAS DE REFORMA: COM ÊNFASE PARA A FORMAÇÃO
POLICIAL
Foi em conjunto com o processo de redemocratização do Brasil que se iniciaram os estudos sobre políticas públicas. Com o advento da Constituição de 1988, realizaram-se trabalhos sobre políticas setoriais, na busca de um novo modelo institucional.
No decorrer da década de 90, a análise das políticas públicas no
Brasil passou a ser examinada a partir de suas relações com as instituições políticas e, com isso, aferindo-se a capacidade de afetar as
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
35
estratégias dos atores e as tomadas de decisões. Conforme Schmidt
(2008), em razão do aumento da intervenção estatal e da complexidade de gestão governamental, as políticas públicas têm sido tema
de estudos e discussões de diferentes grupos. Depreende-se daí que
o estabelecimento de políticas públicas vai além do interesse dos
agentes públicos, vinculando-se, sistematicamente, à participação
cidadã, cada vez mais preocupados com as demandas de seu meio
social. Com isso, a partir de uma união de esforços, dos entes públicos e privados, é possível a transformação cultural e política, bem
como a efetivação de direitos e garantias fundamentais.
Ao encontro de tais assertivas, Costa (2011, p. 198) ensina que
“as políticas públicas devem orientar as ações do Estado, a fim de
combater problemas decorrentes de um regime em processo de democratização e continuamente interrompido pela renovação periódica de governantes”.
Schmidt (2008) ensina que, referente às políticas públicas,
quando analisadas do ponto de vista prático, é possível uma ação
mais qualificada e potente. Do mesmo modo, assevera o autor:
Para o cidadão, é relevante que conheça e entenda o que está
previsto nas políticas que o afetam, quem a estabeleceu, de
que modo foram estabelecidas, como estão sendo implementadas, quais são os interesses que estão em jogo, quais são as
principais forças envolvidas, quais são os espaços de participação existentes, os possíveis aliados e os adversários, entre
outros elementos. (SCHMIDT, 2008, p. 453)
Nesse contexto, em função da transição de um Estado Autoritário para um Estado Democrático, as políticas de segurança passaram a ser alvo de discussões, debates e propostas, consequentemente, no mesmo momento que ocorria a explosão da violência e,
principalmente, o aumento de sua percepção pública. Em que pese
a Constituição Cidadã tenha surgido para garantir a segurança dos
cidadãos por meio dos órgãos policiais, melhorando a qualidade na
prestação desses serviços, o cenário que se desenhou, por enquanto, não foi o desejado.
Enfim, em poucas palavras, constata-se que no mundo moderno as noções de manutenção da ordem pública e garantia da
segurança aos cidadãos são genéricas e, muitas vezes, envoltas de
36
Ademar Antunes da Costa & Quelen Brondani de Aquino
indefinições. Em princípio, verifica-se que os órgãos policiais são os
principais responsáveis pela manutenção da sociedade, no que tange à violência e à criminalidade.
Para enfrentar essa situação hostil, a Carta Magna, em seu artigo 144, define como missão policial a “preservação da ordem pública”, entretanto, de acordo com Macaulay (2005), “ordem pública” e “paz social” constituem-se interesses do Estado. Nas palavras
da autora:
Aqui, o bem a ser protegido ainda é o interesse do Estado e
das autoridades públicas, embora muitas vezes em âmbito estritamente local. Os que dispõem de poder suficiente para se
apossar da esfera pública e de seus recursos são os mesmos
para quem é fácil ter acesso aos instrumentos de manutenção
da lei e da ordem. No entanto, aqueles que estão excluídos em
virtude de sua classe social permanecem, por definição, desprotegidos. (MACAULAY, 2005, p. 152)
Diante disso, visualizam-se, sobremaneira, resquícios do período ditatorial, em que o interesse do Estado se salientava em detrimento de outros interesses. Portanto, há de se pensar na reforma do
sistema de segurança, adotando um modelo que volte suas atenções
para o cidadão, a fim de se buscar a redução e o controle da violência e da criminalidade, bem como a promoção da paz social. Nesse
mesmo sentido, Soares (2008, p. 11) destaca que o restabelecimento
da paz social só será possível quando todos compreenderem que a
restauração da segurança deve ser para todos, pois todos devem ser
beneficiados, já que, nas palavras do autor, “não há como estabilizar
expectativas positivas à margem do espaço público e sem que elas se
universalizem, ainda que com ênfases e significados distintos”.
Nessa perspectiva, é oportuno afirmar que a Constituição Federal de 1988, ao incluir aos direitos de segunda geração, a segurança individual e coletiva, acabou assumindo um compromisso
com a sociedade. Entretanto, o que se tem observado é que as políticas de segurança no Brasil “têm servido apenas de paliativo a situações emergenciais, sendo deslocadas da realidade social, desprovidas de perenidade, consistência e articulação horizontal e setorial” (SOARES, 2008, p. 11).
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
37
Nas últimas décadas, as políticas de segurança resumem-se a
uma série de intervenções governamentais reativas, voltadas para a
solução imediata de crimes e ações violentas que já aconteceram,
ou seja, a atuação do Estado restringe-se apenas a atuar quando a
situação já está caótica. Dessa forma, a possibilidade de os resultados serem eficientes e eficazes, do ponto de vista de monitoramento
e avaliação das políticas públicas, é improvável.
É por isso que, diante do atual cenário, é latente a reforma da
segurança pública, especialmente no que se refere à formação e
qualificação dos agentes de segurança pública. Do mesmo modo,
um conjunto de ações comunitárias deve assegurar a proteção do
indivíduo e da coletividade, bem como a ampliação da justiça de
recuperação e, principalmente, tratamento daqueles que violam as
leis. Dessa maneira, alcançar-se-á a garantia de direitos e cidadania para todos, como preceitua a Carta Magna de nosso Estado
Democrático de Direito.
Schwinn e Konrad (2012) ao citar Cóbar (2007) afirmam que:
A reforma da segurança pública dentro de um processo da pacificação nas sociedades submetidas a um período de conflito,
está direcionada para a formação de instituições que sejam
capazes de gerir novos tipos de conflitos em seus respectivos
contextos.
Nesse desiderato, tem-se que as mudanças propostas devem
incluir processos de reforma policial, seja por meio da criação de
novas instituições ou de transformação das já existentes.
Diante do exposto, ressalta-se que somente uma década depois da promulgação da “Constituição Cidadã”, a política de segurança pública iniciou, efetivamente, seu processo de reformulação e
adequação de uma sociedade democrática, pautada no respeito aos
direitos humanos, adotando medidas que promovessem o enfrentamento da criminalidade, considerando a sua complexidade em
diferentes aspectos.
Para, então, buscar a transformação dessa realidade, com o
objetivo de reorganizar a gestão da segurança pública, o Governo
Federal criou, em 1995, a Secretaria de Planejamento de Ações Nacionais de Segurança Pública (Seplanseg), transformando-a, no ano
38
Ademar Antunes da Costa & Quelen Brondani de Aquino
de 1998, em Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), a
fim de atuar de maneira articulada com os entes federados para
implementar a política nacional de segurança pública. A criação da
Senasp, enquanto órgão executivo, veio a corroborar a “estruturação de mecanismos de gestão capazes de modificar o arranjo institucional da organização administrativa da segurança pública no
âmbito governamental federal” (CARVALHO; SILVA, 2011, p. 62).
Surgiu, então, o Plano Nacional de Segurança Pública
(PNSP), elaborado com o fim de aperfeiçoar as ações dos órgãos de
segurança. Salienta-se que, pela primeira vez após o início do processo de democratização, surgiu a possibilidade de se colocar a
questão da segurança pública como política prioritária do governo.
Entretanto, sem a definição de recursos específicos, sem delineamento de metas e processos de avaliação e monitoramento, o Plano
Nacional de Segurança Pública fracassou em seus principais objetivos, antes mesmo de suas ações serem colocadas em prática
(CARVALHO; SILVA, 2011, p. 63).
No ano de 2007, por meio da Medida Provisória 384, foi criado um novo Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, com a finalidade de reunir “ações de prevenção, controle e
repressão da violência com atuação focada nas raízes sócio-culturais do crime”, bem como promover a articulação de “programas de segurança pública com políticas sociais já desenvolvidas
pelo governo federal, sem abrir mão das estratégias de controle e
repressão qualificada à criminalidade”. Desse modo, as suas estratégias contemplam um amplo rol de ações voltadas para sete eixos,
quais sejam: a gestão do conhecimento, a reorganização institucional, a formação e valorização profissional, a prevenção, a estruturação da perícia, o controle externo e participação social, e os programas de redução da violência (BRASIL, Ministério da Justiça).
Nesse contexto, com a elaboração do Pronasci, vislumbra-se
principalmente a criação de uma política pública de segurança,
aplicada em toda a esfera nacional, com ênfase para a Cidadania,
ou seja, vislumbra-se no Programa a tentativa de se inserir no contexto brasileiro uma Segurança Cidadã. Entende-se esta como uma
segurança pública integral, promotora dos direitos humanos, com a
participação efetiva de toda a sociedade, que priorize o planejamento, a prevenção e a repressão à criminalidade, estimulando a
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
39
“resolução pacífica dos conflitos, o fortalecimento da família, a proteção às mulheres, aos idosos e às minorias” (BRASIL, Ministério
da Justiça, p. 14).
Assim, de acordo com o Relatório de Atividades (2007, p. 35),
publicado em 2007, o Pronasci, como estratégia de planejamento,
prevê, dentre outras coisas, um “sistema integrado de formação e
valorização profissional”, que vai muito além da simples formação
inicial dos agentes policiais e da reforma das diretrizes do processoaprendizagem dos policiais, nos cursos de formação policiais, alcançando, inclusive, um processo continuado de qualificação profissional, por meio da disponibilização de cursos de aperfeiçoamento e investimento em treinamento anual de todos os servidores da
segurança;
Diante de tudo o que foi exposto, compreende-se que o Pronasci de fato trouxe nova forma de olhar a segurança pública, surgindo, pela primeira vez, a democratização da segurança pública,
com a efetiva possibilidade do exercício da cidadania por parte da
sociedade.
Ao citar Freire, Carvalho e Silva (2011, p. 64) ratificam que
“trata-se de uma mudança complexa no paradigma da segurança,
entretanto necessária ao fortalecimento da democracia, pois, [...] na
perspectiva de Segurança Cidadã, o foco é o cidadão e, nesse sentido, a violência é percebida como os fatores que ameaçam o gozo
pleno de sua cidadania”.
Em termos de políticas públicas de segurança, é fundamental
que se reconheça e potencialize as ações que já estão sendo desenvolvidas pelos Estados e as próprias corporações, que, paulatinamente, buscam a transformação do seu papel social, no caso das
polícias militares, especificamente, cada vez mais voltadas para os
fundamentos de polícia comunitária e cidadã. Esta, segundo Rolim
(2010, p. 26), “aposta no estabelecimento de laços de confiança com
as comunidades”.
Nessa perspectiva, o Pronasci, de maneira geral, representa
uma iniciativa inovadora para o enfrentamento da violência e da
criminalidade, uma vez que busca desenvolver suas ações de maneira integrada, incluindo ações sociais que alcancem, principalmente, as classes predominantemente estigmatizadas e desprovidas
de recursos econômicos, carentes de direitos e do mínimo de garan-
40
Ademar Antunes da Costa & Quelen Brondani de Aquino
tias fundamentais, promovendo, dessa maneira, a inclusão e a paz
social.
Do mesmo modo, vai ao encontro dos fundamentos da Justiça
de Transição, buscando a qualificação dos agentes de segurança
pública, cada vez mais pautada nos conceitos de Direitos Humanos
e na efetivação dos direitos e garantias fundamentais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se estudar o processo de transição do regime militar para
um Estado Democrático de Direito, compreende-se o importante
papel das políticas públicas no sentido de garantir a efetivação desses objetivos nas práticas sociais. Desse modo, o Estado, mediante
seus órgãos e instituições, deve despir-se de qualquer resquício do
autoritarismo e do período de exceção, mesmo que, na maioria das
vezes, isto represente uma enorme transformação e reformulação
das instituições.
As instituições públicas devem se tornar as grandes promotoras de um Estado Democrático de Direito, só assim será possível
uma efetiva transição cada vez mais democrática. Nesse sentido,
um dos maiores desafios está na transformação cultural e política
dos órgãos de segurança pública, especialmente as polícias militares, que, em função de suas bases institucionais – a hierarquia e a
disciplina –, ainda trazem em suas estruturações internas as marcas
de um período autoritário e ditatorial.
Diante desse cenário, o Programa Nacional de Segurança com
Cidadania é uma das maiores conquistas da sociedade, pois é o
Estado organizado, buscando a reformulação das instituições de
segurança, que estão cada vez mais preocupadas com o restabelecimento da paz social, por meio de ações preventivas de violência e
criminalidade. Da mesma forma, procura-se a qualificação dos
agentes policiais, de modo a exercer as suas atividades baseadas
nos conceitos de Direitos Humanos, o que vai ao encontro dos objetivos da Justiça de Transição, que tem por finalidade, acima de tudo, promover o pagamento da chamada dívida social do Estado brasileiro com seus cidadãos.
Por fim, os esforços desprendidos até então para se alcançar a
reforma da segurança pública, deve respaldar a participação da
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
41
sociedade para a construção conjunta dos princípios e diretrizes norteadores da política de segurança pública, com o intuito de consolidar uma política de Estado que entenda o tema como questão transversal e multifacetada. Nesse sentido, o Pronasci vem atingindo os
fins a que se propôs, transformando uma cultura enrijecida pelo sistema por outra promotora dos direitos e garantias fundamentais.
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Mônia Clarissa Henning Leal
Pós-Doutora em Direito pela Ruprecht-Karls
Universität Heidelberg, Alemanha. Doutora
em Direito pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos – Unisinos, com pesquisa realizada
junto à Ruprecht-Karls Universität Heidelberg, na Alemanha. Professora do Programa
de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e
Doutorado da Universidade de Santa Cruz do
Sul – Unisc. Coordenadora do Grupo de
Pesquisa “Controle jurisdicional de Políticas
Públicas: análise da atuação do Supremo
Tribunal Federal no controle de políticas
públicas de inclusão social e a relevância da
atuação do amicus curiae como instrumento
de legitimação dessas decisões no Brasil”,
vinculado e financiado pelo CNPq. Bolsista de
produtividade em pesquisa do CNPq.
Contato: [email protected]
Civana Silveira Ribeiro
Mestranda do Programa de Pós-Graduação
stricto sensu em Direitos Sociais e Políticas
Públicas da Universidade de Santa Cruz do
Sul - Unisc. Membro do Grupo de Pesquisa:
“Controle jurisdicional de Políticas Públicas:
análise da atuação do Supremo Tribunal
Federal no controle de políticas públicas de
inclusão social e a relevância da atuação do
amicus curiae como instrumento de legitimação dessas decisões no Brasil”, vinculado
e financiado pelo CNPq e coordenado pela
professora Pós-Dra. Mônia Clarissa Hennig
Leal. Professora do Curso de Graduação em
Direito da Universidade da Região da Campanha. Advogada.
Contato: [email protected]
Capítulo 3
O CONTROLE
JURISDICIONAL DE
POLÍTICAS
PÚBLICAS, A
JUDICIALIZAÇÃO DA
POLÍTICA, O
ATIVISMO JUDICIAL
E A PEC/33: UMA
ANÁLISE CRÍTICA
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
É inegável que, após a promulgação da Constituição Federal
de 1988, o Poder Judiciário passou a ter papel de destaque na sociedade brasileira com a importante missão de ser o guardião dos valores constantes no texto constitucional. Para assegurar o cumprimento das garantias constitucionais, principalmente os direitos
fundamentais, os Tribunais, notadamente o Supremo Tribunal Federal, tem que se valer, não raras vezes, dos princípios constitucio-
44
Mônia Clarissa Hennig Leal & Civana Silveira Ribeiro
nais e das denominadas cláusulas abertas, sendo chamado a se
pronunciar sobre determinadas matérias que caberiam ao Legislativo regulamentar. Neste contexto, surge o Ativismo Judicial, já controvertido desde a sua origem e que tem despertado pesadas críticas ao Poder Judiciário, por violar, na visão de alguns, a separação
de poderes.
O debate ganhou mais espaço a partir do dia 24 de abril de
2013, com a aprovação da admissibilidade do Projeto de Emenda a
Constituição nº 33, junto à Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania (CCJC), apresentada pelo Deputado Nazareno Fonteles
(PT–PI).
Devido à grande relevância do tema e à ampla divulgação da
mídia, entende-se necessária, para que não se chegue a conclusões
precipitadas, uma análise detalhada do texto da Emenda e sua justificativa, inserindo-as no contexto da jurisdição constitucional. Para tanto, inicia-se o estudo traçando algumas considerações sobre a
judicialização e o ativismo judicial, destacando os seus principais
aspectos e, na sequência, apresenta-se o teor da PEC 33/2011, comentários sobre a sua justificativa, a aprovação de sua admissibilidade e de suas consequências, mediante a divulgação das opiniões
de parlamentares, ministros, membros do Executivo e jornalistas
pelos meios de comunicação.
1
A JUDICIALIZAÇÃO E O ATIVISMO JUDICIAL
A judicialização é um fenômeno bastante complexo que ganha força, no Brasil, a partir da Constituição de 1988, quando a política passou a se confundir com o direito diante da amplitude de
conteúdos abrangidos pela Carta Magna, alargando, também, as
margens interpretativas da jurisdição constitucional. Ocorre quando
“questões sociais de cunho político são levadas ao Judiciário, para
que ele dirima conflitos e mantenha a paz, por meio do exercício da
jurisdição” (CARVALHO FILHO, 2010, p. 2).
Assim, pode-se afirmar que, na judicialização da política, há
certa transferência de decisão dos poderes Executivo e Legislativo
para o poder Judiciário, conforme destaca Barroso (2008, p. 2):
Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política social estão sendo decididas por Órgãos do
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
45
Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais:
o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito
se encontram o Presidente da república, seus ministérios e a
administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno
tem causas múltiplas. Alguma delas expressam uma tendência
mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo
institucional brasileiro […].
O fenômeno, que se caracteriza por uma transferência de poder para juízes e tribunais, tem várias causas, e para se consolidar
depende de um sistema político democrático; da separação dos poderes; do exercício dos direitos políticos; do uso dos tribunais pelos
grupos de interesse; do uso dos tribunais pela oposição e da inefetividade das instituições majoritárias (VALLE, 2009, p. 32-33).
A promulgação da Constituição de 1988, ponto central da redemocratização do País, com a inserção de matérias novas no seu
âmbito, que antes eram reservadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária, e a grande abrangência do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade são fatores que
justificam a judicialização no Brasil (BARROSO, 2008, p. 2-3).
Outro conceito igualmente importante para a compreensão do
grande destaque do Poder Judiciário, notadamente do Supremo
Tribunal Federal, nos dias atuais, é o de ativismo judicial.
Embora o fenômeno da judicialização tenha muitos aspectos
em comum com o ativismo, eles não devem ser confundidos. Com
efeito, Barroso (2008, p. 6) assim se refere:
A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não
têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro,
é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário
decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se
uma norma constitucional permite que dela se deduza uma
pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer,
decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a
46
Mônia Clarissa Hennig Leal & Civana Silveira Ribeiro
escolha de um modo específico e proativo de interpretar a
Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais.
A judicialização no Brasil é um fato, e não um exercício deliberado de vontade política; é uma consequência que deriva do modelo
constitucional adotado. Diante da inércia legislativa, a única alternativa do Judiciário é agir. Já o ativismo é uma atitude (BARROSO,
2008, p. 5).
O termo ativismo é empregado no âmbito da Ciência do Direito para designar que o Poder Judiciário está agindo além dos poderes que lhe são conferidos pela ordem jurídica. Já vem sendo tratado com olhares diferentes há muito tempo, mas em termos de conceito mais genérico, pode ser associado à ideia de transformação
“normativa e social pela via de solução de casos concretos pelo Judiciário” (LEAL, R. G., 2011, p. 1).
A primeira notícia sobre o seu emprego ocorreu em 1947, em
uma revista americana destinada a leigos, chamada “Fortunes”,
ocasião em que o jornalista Arthur Schlesinger Jr. classificou os
juízes da Suprema Corte Americana como ativistas judiciais. A partir dessa data, a expressão passou a ser utilizada por constitucionalistas dos Estados Unidos para identificar um comportamento judicial que não seguisse a opinião jurisprudencial dominante (VALLE,
2009, p. 20).
Não obstante, verifica-se que não existe um consenso em relação às origens deste fenômeno que se caracteriza por uma participação mais destacada do Judiciário na concretização dos preceitos constitucionais, interferindo na esfera de atuação dos demais
poderes e manifestando-se pelas diferentes práticas, tais como: a
aplicação direta da Constituição a situações não previstas expressamente em seu texto e independentemente de manifestação do
legislador ordinário; a declaração de inconstitucionalidade de atos
normativos emanados do poder Legislativo baseada em critérios
mais flexíveis de violação da Constituição; a determinação de com-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
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portamentos ou de abstenções ao Poder Público (BARROSO, 2008,
p. 5).
No panorama atual, verificam-se “tribunais que interferem e
decidem, dentre outras coisas, sobre políticas públicas e sobre quais
direitos devem prevalecer sobre outros em casos de conflitos, o que
conduz ao que se convencionou chamar de ‘ativismo judicial”
(LEAL, M.C.H., 2011, p. 240).
Na doutrina, podemos verificar a percepção do fenômeno ativista por Cittadino (2002, p. 17), no trecho a seguir transcrito:
A ampliação do controle normativo do Poder Judiciário no
âmbito das democracias contemporâneas é tema central de
muitas das discussões que hoje se processam na ciência política, na sociologia jurídica e na filosofia do direito. O protagonismo recente dos tribunais constitucionais e cortes supremas
não apenas transforma em questões problemáticas os princípios da separação dos poderes e da neutralidade política do
Poder Judiciário, como inaugura um tipo inédito de espaço
público, desvinculado das clássicas instituições políticorepresentativas.
Essa posição dinâmica na apreciação de temas de alta repercussão por parte do Judiciário surge como uma necessidade para a
proteção aos direitos fundamentais. Atualmente, a Corte é composta
por onze ministros, com ampla liberdade para a interpretação das
leis e para agir ante as lacunas e omissões legislativas existentes.
O próprio ambiente democrático despertou a cidadania, permitindo a conscientização da população acerca de seus direitos e
facilitando o acesso à Justiça na busca da concretização de seus
interesses.
Desta forma, o Judiciário está muitas vezes exercendo o papel
do Poder Legislativo que não atendeu às demandas sociais, às vezes até mesmo por medo de se comprometer com uma posição.
Nesse sentido, Monteiro (2010, p. 168) enfatiza: “Fato é que o sistema político-brasileiro requer, nos termos do artigo 2º da Constituição, os três poderes afinados entre si, independentes e harmônicos. Portanto, se um dos três poderes não exerce o seu papel, compete aos outros suprir sua falta”.
Na verdade, não se caracteriza uma invasão, pois não se admite mais aquele modelo de separação defendido pela doutrina
48
Mônia Clarissa Hennig Leal & Civana Silveira Ribeiro
liberal do século XIX que sustentava a rígida tripartição e que não
serve para os tempos modernos, frente aos novos valores sociais.
A legislação infraconstitucional também deixa muito a desejar, possui muitas falhas e omissões e, diante disto, o Supremo Tribunal Federal tem que se pronunciar.
Assim, o ativismo em tempos atuais é um instrumento necessário para a sociedade moderna. Sua função pretende desde permitir a concretização dos direitos fundamentais até distribuir justiça
social. Na lição de Monteiro (2010, p. 169-170),
[…] o ativismo fornece: a) a consciência de um Estado Democrático de Direito; b) consagra uma nova importância ao constitucionalismo; c) realça os reais valores da Constituição; d)
garante acesso ao judiciário; e) preserva e oportuniza o exercício dos direitos e garantias fundamentais; f) amplia as conquistas sociais via determinação judicial; g) maximiza os direitos em geral; h) efetiva o sistema de freios e contrapesos,
entre outros.
Apesar de todos os pontos positivos do ativismo, faz-se necessária a prudência e deve-se analisar também, com cautela, as críticas existentes.
A primeira crítica diz respeito aos riscos para a legitimidade
democrática e reporta-se ao fato de os membros do Poder Judiciário
não serem agentes públicos eleitos. Não obstante, realizam um poder político, invalidando decisões dos outros poderes, o que é considerado, na teoria constitucional, dificuldade contramajoritária
(BARROSO, 2008, p. 8).
Contramajoritarismo, então, é a atuação do Poder Judiciário
atuando ora como legislador negativo, ao invalidar atos e leis dos
poderes legislativos ou executivos democraticamente eleitos, ora
como legislador positivo, ao interpretar as normas e princípios e
lhes atribuírem juízo de valor.
Na visão de Almeida (2011, p. 2):
[…] os juízes e Tribunais, incluindo os Tribunais Constitucionais, não teriam legitimidade democrática para, em suas decisões, insurgirem-se contra atos legalmente instituídos pelos
poderes eleitos pelo povo. Surge, então, o denominado con-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
49
tramajoritarismo, que é a atuação do poder judiciário atuando
ora como legislador negativo, ao invalidar atos e leis dos poderes legislativos ou executivos democraticamente eleitos, ora
como legislador positivo – ao interpretar as normas e princípios e lhes atribuírem juízo de valor. Os críticos argumentam
também que há intromissão do poder judiciário nos demais
poderes da república, ferindo de morte o princípio da separação e harmonia entre os poderes, bem como o estado democrático de direito e a democracia.
Outra crítica refere-se ao risco de politização da Justiça, tendo
em vista a estreita relação existente entre Direito e Política, o que
facilitaria escolhas tendenciosas ou partidarizadas. Os Magistrados,
amparados pelo “controle difuso” de constitucionalidade, passam a
efetuar juízos eminentemente políticos. Rosa Júnior (2008, p. 1)
assim se posiciona sobre o assunto:
Na verdade, um magistrado só apresenta uma legitimidade
legal e burocrática, não possuindo qualquer legitimidade política, para impor ao caso concreto sua opção político-ideológica
particular na eleição de um meio de efetivação de um direito
fundamental. Sucede que, em nosso sistema, os magistrados
não são eleitos, mas sua acessibilidade ao cargo dá-se por
meio de concursos públicos, o que lhes priva de qualquer representatividade política para efetuar juízos desta magnitude.
Ademais, por sua própria formação técnica e atuação no foro,
é evidente que os magistrados são incapazes de conhecer as
peculiaridades concretas que envolvem a execução de políticas públicas que visam a realizar concretamente direitos fundamentais pela Administração Pública.
A terceira crítica é a capacidade institucional do Judiciário e
seus limites, tendo em vista o seu amplo poder de decisão, podendo
ocorrer a legitimação da arrogância judicial, mesmo que não seja o
órgão mais preparado para proferir a melhor decisão em determinada matéria. O juiz deve avaliar criteriosamente a situação e verificar se realmente é o órgão capaz de produzir a melhor avaliação e
decisão naquela matéria (BARROSO, 2012, p. 8).
Destaca-se, ainda, por oportuno, a crítica da atuação do Judiciário como superego da sociedade, desenvolvida por Ingeborg
Maus e que possui como tema principal a preocupação de uma “infantilização” da sociedade, receptiva às decisões judiciais determi-
50
Mônia Clarissa Hennig Leal & Civana Silveira Ribeiro
nadas por um “pai estatal”. Teme a autora que, quando a justiça
eleva-se à condição de mais alta instância moral da sociedade, ela
passa a ficar isenta de qualquer mecanismo de controle social, sendo este salutar a qualquer órgão ou instituição inserido numa democracia (MAUS, 2000, p. 185).
Desta forma, acredita-se que a melhor solução seja alcançar
um ponto de equilíbrio. O uso do instituto de forma exacerbada traz
sim riscos de se criar um Estado Jurisdicional, em que o Judiciário
seja considerado um superpoder, comprometendo o Estado de Direito.
Por outro lado, não se pode ignorar a Constituição sob a alegação de que as questões políticas não podem ser enfrentadas pela
jurisdição constitucional, pois vivemos em um Estado de Direito,
com supremacia de uma Constituição que vincula todos os cidadãos
e todos os poderes.
Trata-se de utilizar o próprio texto constitucional como ponto
de referência para a atividade hermenêutica, ou seja, o aplicador do
direito não pode contradizer os enunciados da própria Constituição.
Os princípios, nesse sentido, são fundamentais na atividade
interpretativa e assumem papel de crescente relevância. Segundo
Alexy (2008, p. 90),
Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização,
que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus
variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação
não depende somente das possibilidades fáticas, mas também
das possibilidades jurídicas.
Há, porém, princípios normatizados e princípios constitucionais implícitos que podem ser deduzidos das normas Constitucionais e considerados pelo julgador. E é exatamente esta valoração
pessoal que pode ser perigosa para o Estado de Direito e menosprezar a atividade Legislativa, ou seja, uma carga subjetiva ligada
às condições particulares de cada juiz (COSTA, 2010, p. 56-57).
Neste aspecto, é fundamental que os juízes tenham o maior
número de informações possíveis para formar o convencimento, não
ficando, assim, limitados a sua convicção pessoal.
Felizmente, é exatamente isto que vem acontecendo no Supremo Tribunal Federal, que tem adotado, por influência do Minis-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
51
tro Gilmar Mendes, a contribuição da doutrina de Peter Häberle,
um dos maiores constitucionalistas contemporâneos, que busca
promover a abertura e a legitimação democrática da interpretação
constitucional, instigando juristas, doutrinadores e magistrados
(HABERLE, 1997, p. 13).
As ideias haberlianas referem-se a uma sociedade aberta de
intérpretes da Constituição, segundo a qual o círculo de intérpretes
da Lei Fundamental deve ser alargado para abarcar não apenas as
autoridades públicas e as partes formais nos processos de controle de
constitucionalidade, mas todos os cidadãos e grupos sociais que,
de uma forma ou de outra, vivenciam a realidade constitucional.
Para tanto, “utilizando-se de um instrumento privilegiado de viabilização da participação social no processo, a figura ‘Amicus Curiae’”
(LEAL, 2011, p. 84).
Assim, a crescente participação do Judiciário, notadamente do
Supremo Tribunal Federal, apreciando temas de grande relevância
e repercussão social, é uma realidade que não pode ser desconsiderada, embora receba muitas críticas relacionadas à interferência
indevida na esfera dos outros poderes e à prática de um “ativismo
exagerado”. Neste grupo, insere-se o Deputado Nazareno Fonteles,
autor do Projeto de Emenda Constitucional 33/2011.
2
O TEOR DA PEC 33/2011, SUA JUSTIFICAÇÃO E UMA
ABORDAGEM SOBRE SUAS CONSEQUÊNCIAS
No dia 24 de abril de 2013, conforme amplamente noticiado
pelos órgãos da imprensa, em votação simbólica, 211 deputados
aprovaram, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ),
a Emenda Constitucional 33/2011, de autoria do Deputado Nazareno
Fonteles, cujo artigo 1º altera o artigo 97 da Constituição Federal,
ampliando de seis para nove o número de votos necessários para
que o STF declare a inconstitucionalidade de leis e atos normativos
do poder público.
O artigo 2º altera o artigo 103-A da Constituição, determinando
que o STF poderá de ofício ou por provocação, com a aprovação de
1
A Revista IstoÉ, edição n. 2.267, de 01/05/2013, divulgou que 20 Deputados
votaram.
52
Mônia Clarissa Hennig Leal & Civana Silveira Ribeiro
nove dos onze ministros, após reiteradas decisões sobre matéria
constitucional, propor súmula que, após a aprovação pelo Congresso Nacional, terá efeito vinculante. Após a decisão do Supremo, o
Congresso terá o prazo de noventa dias, contados da data do recebimento do processo, para deliberar, em sessão conjunta, por maioria absoluta, sobre o efeito vinculante da súmula.
O artigo 3º acresce os parágrafos 2º-A, B e C, que determinam
que, uma vez declarada a inconstitucionalidade material de uma
emenda à Constituição, o Congresso poderá, num prazo de 30 dias,
rever o ato do Supremo. Para decidir sobre a questão, terá que fazer
uma sessão conjunta e a manifestação precisará do apoio de três
quintos dos parlamentares, e, em caso de discordância, a questão
será decidida em plebiscito popular. A proposta também veda a
suspensão de eficácia da emenda à Constituição por meio de medida cautelar pelo STF.
Em sua justificação, o Deputado Nazareno Fonteles enfatiza o
protagonismo judicial, notadamente do Supremo Tribunal Federal,
que tem se manifestado por meio da judicialização das relações
sociais e do ativismo judicial, que, embora possuam características
comuns, devem ser distinguidos.
Entende que a judicialização é um fenômeno natural, fruto do
modelo constitucional adotado no Brasil, sendo plausível que as
pessoas procurem o Judiciário para resolver os seus conflitos. O
ativismo, no entanto, entende como “exacerbado”, e cita alguns
exemplos para justificar tal alegação: o caso da fidelidade partidária, apreciado pelo STF; a extensão da vedação do nepotismo ao
Poder Executivo e Legislativo, por meio de súmula vinculante, após
o julgamento de um único caso; a controversa verticalização das
coligações partidárias, estabelecida por Resolução do TSE; os casos
de redução de vagas de vereadores, da súmula das algemas, entre
outros.
Salienta que reconhece as deficiências do Poder Legislativo,
“que tem passado por várias crises de credibilidade”, o que não é
suficiente para justificar a postura do Supremo, como se houvesse
um “vazio político”. Isto só traz prejuízos à democracia, deslocando
debates de questões relevantes do Legislativo para o Judiciário,
como ocorreu com a questão das ações afirmativas baseadas em
cotas raciais, a questão das células-tronco e tantas outras.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
53
Nazareno (BRASIL, PEC 33/2011, p. 5) diz que o STF passou
a ser um legislador positivo e sem legitimidade eleitoral,
[…] é bastante comum ouvirmos a afirmação de que à Suprema Corte cabe a última palavra sobre a Constituição. […] Precisamos, pois, o resgatar o valor da representação política, da
soberania popular e da dignidade da lei aprovada pelos representantes legítimos do povo, ameaçados pela postura ativista
do Judiciário. Restabelecer o equilíbrio entre os Poderes é,
pois, o objetivo central da presente Proposição.
Acredita ser viável o aumento da maioria qualificada para declarar a inconstitucionalidade de lei aprovada pelo Legislativo, pois
o entendimento de apenas seis juízes não pode se sobrepor à soberania popular, será preciso o voto de nove ministros, no caso do
Supremo, para que seja decretada a inconstitucionalidade.
Em relação à súmula vinculante, sustenta que o seu uso não
está de acordo com o texto constitucional e, portanto, deve ser modificado. A proposta exige a concordância de nove ministros para
que se aprove uma súmula (atualmente são 8), o efeito vinculante
somente existirá após a aprovação da súmula, por maioria absoluta,
em sessão conjunta do Congresso Nacional, que levará em consideração os precedentes reiteradamente decididos e os eventuais “excessos
legislativos” e, no caso de existirem dúvidas entre a posição dos juízes e dos legisladores, caberia ao próprio povo a última palavra.
Continua sua justificativa, afirmando que um dos motivos do
distanciamento entre o Poder Legislativo e a Constituição é o fenômeno da “mutação constitucional”, que consiste num processo de
mudança de alcance de dispositivos constitucionais, por meio da
hermenêutica, criado, unilateralmente, pelo Judiciário.
Refere que não podemos simplesmente copiar modelos utilizados por outros países que, impedidos de modificar suas Constituições, adotaram medidas alternativas e criativas para que suas
Constituições não ficassem “paradas” no tempo.
Tece críticas acerca do controle de constitucionalidade brasileiro e do ativismo judicial praticado pelo Supremo, que não busca
a efetividade dos direitos fundamentais, e sim a afirmação e ampliação da competência normativa da corte.
54
Mônia Clarissa Hennig Leal & Civana Silveira Ribeiro
Por fim, afirma que o Poder Judiciário tem utilizado interpretações pós-positivistas, valendo-se de princípios constitucionais de
forma imoderada, apresentando “decisões ativistas, que representam grave violação ao regime democrático e aos princípios constitucionais da soberania popular e da separação de poderes, os quais
constam expressamente na Constituição Federal” (BRASIL, PEC
33/2011, p. 13).
Vale lembrar que a aprovação da medida foi feita pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, que tem o
dever de exercer o controle preventivo de constitucionalidade dos
atos normativos. Parece que a missão do CCJ não foi bem desempenhada neste caso, pois se trata de questão muito séria relativa ao
equilíbrio entre os poderes e a proposta foi votada sem nenhuma
discussão anterior, quando exigiria um debate qualificado no Parlamento.
O Deputado Vieira da Cunha (PDT–RS) declarou que “houve
um claro atropelo para que essa emenda fosse aprovada” e, por
conta disso, chegou a apresentar voto separado, com o objetivo de
que o projeto fosse retirado de pauta, mas mesmo ausente na reunião,
diferentemente do que ocorre normalmente, seus colegas prosseguiram com a votação (REVISTA VEJA, 2013, p. 44).
Depois da aprovação, o Presidente da Câmara, Henrique
Eduardo Alves (PMDB–RN), manifestou-se dizendo que “a aprovação da CCJ foi inusitada. Surpreendeu a todos e pode abalar a
harmonia entre o Legislativo e o Judiciário”, e, no dia 25 de abril de
2013, para evitar que a proposta avançasse, decidiu não instalar
uma comissão especial que deveria ser a instância imediatamente
seguinte à da Constituição e Justiça, para o trâmite da Emenda
(REVISTA VEJA, 2013, p. 45).
O PSDB impetrou um Mandado de Segurança junto ao Supremo, argumentando que a PEC afronta a independência da mais
alta corte judicial do País, que é a única instância com autonomia,
isenção e imparcialidade para julgar as causas referentes à constitucionalidade da legislação. E mesmo diante do compromisso da
presidência da Câmara de não instalar a comissão especial para
analisar a PEC enquanto não for concluído o levantamento sobre o
aspecto jurídico da proposta, o líder do PSDB, deputado Carlos
Sampaio (SP), incluiu no mandado de segurança um pedido de liminar para a suspensão imediata da tramitação da PEC e enfatiza
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
55
que “ela ofende uma cláusula pétrea, uma cláusula imutável da
Constituição Federal, que é a tripartição dos poderes e a autonomia
desses Poderes” (PORTAL DA CÂMARA/NOTÍCIAS, p. 1).
No Congresso, a PEC também foi censurada pela oposição,
tendo Roberto Freire (JORNAL ZERO HORA, 26/04/2013) a qualificado como “uma aberração jurídica”, que leva a uma total inversão
de valores.
Num primeiro momento, parece que houve uma reação ao
julgamento da Ação Penal 470 (PROCESSO DO MENSALÃO), já
que a comissão é integrada por dois deputados condenados, José
Genoino e João Paulo Cunha. O jornalista Paulo Santana comentou
em sua coluna (JORNAL ZERO HORA, 26/04/2013) que, “com todas as evidências de revanche, tramita no Congresso Nacional um
projeto que visa dotar o Legislativo de prerrogativa de reformar sentenças do Supremo que decidem sobre questão constitucional, por
sinal o fulcro de utilidade do Supremo”.
No Judiciário, a decisão foi encarada como um afronta. O Ministro Marco Aurélio (JORNAL ZERO HORA, 25/04/2013) também
afirmou que a proposta é “perniciosa” e consiste numa retaliação,
ou seja, uma resposta a julgamentos que desagradaram parlamentares. Disse ainda: “não creio que para a sociedade brasileira, para
o almejado avanço cultural, essa submissão dos atos do Supremo
seja boa. Ao contrário, é perniciosa. E envolve, eles [os deputados]
têm que estar alertas quanto a isso, uma cláusula pétrea da República brasileira” (PORTAL DA CÂMARA/NOTÍCIAS, p. 1).
Gilmar Mendes declarou que “se isso vier a ser aprovado, é
melhor que se feche o Supremo” (REVISTA ISTO É, 19/05/2013).
Afirmou, também,
[…] que o tema “evoca coisas tenebrosas” e lembrou o precedente da Constituição de 1937, chamada Polaca, que autorizava o presidente da República a cassar decisões do Supremo
e confirmar a constitucionalidade de leis declaradas inconstitucionais. “Acredito que não é um bom precedente, e a Câmara vai acabar rejeitando isso”. (PORTAL DA CÂMARA/
NOTÍCIAS, p. 1)
O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, acrescentou que ainda precisa analisar melhor a proposta, mas argumentou
56
Mônia Clarissa Hennig Leal & Civana Silveira Ribeiro
que, em princípio, ela causa “perplexidade”: “Eu diria que a primeira impressão é de uma perplexidade. Porque, na verdade, aí se
está vendo algo que não parece casar muito bem com a harmonia e
independência entre os poderes” (PORTAL DA CÂMARA /NOTÍCIAS, p. 1).
A maioria das referências sustenta que a proposta afronta
cláusulas pétreas da Constituição e, assim como a tentativa do Senado de tirar poderes de investigação de procuradores e promotores, constitui-se numa grande ameaça à democracia. O Supremo
Tribunal Federal não terá mais a “guarda da Constituição”, missão
que lhe é atribuída pelo artigo 102 da Constituição Federal.
Em caso de sucesso da medida, que condiciona a aprovação
das súmulas vinculantes e a declaração de inconstitucionalidade de
lei ou ato normativo do poder público ao qualificado fórum de quatro quintos, haverá uma dificuldade do exercício do poder contramajoritário, atribuído à jurisdição constitucional.
Além disso, a PEC pretende, ainda, submeter as decisões do
Supremo, nas ações diretas de inconstitucionalidade que declarem
a inconstitucionalidade material de emendas à Constituição, à
aprovação do parlamento, que, manifestando-se contrariamente à
decisão, deverá submeter a controvérsia à consulta popular.
Estamos diante de uma situação muito interessante, uma vez
que se pretenda conferir ao Congresso Nacional o poder de desaprovação de ato normativo produzido por ele mesmo, e caso isto
ocorra, de que forma aconteceria essa consulta popular?
Percebe-se que a medida foi apreciada com cautela por um
grupo expressivo de parlamentares, entre os quais o próprio presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, que se apressou em
alertar que é preciso buscar o diálogo com o Judiciário. Para que o
texto entre em vigor, precisa passar pelos plenários da Câmara e o
do Senado e receber o voto de pelo menos 60% dos parlamentares,
o que se acredita ser muito difícil de ocorrer.
Neste cenário preocupante para as relações entre os Poderes,
parece que a crise está ganhando contornos mais suaves, notadamente a partir do momento que o Vice-Presidente da República
Michel Temer, a pedido da Presidente Dilma Rousseff, assumiu a
missão de mediador dos conflitos. A interferência tem sido muito
oportuna, na medida em que Temer enfatizou que cada um dos en-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
57
volvidos deveria utilizar argumentos jurídicos para sustentar seus
pontos de vista e a necessidade de deixarem claro que não concordam com atitudes extremistas, pois a troca de críticas públicas só
iria prejudicar a harmonia entre os Poderes. Informou, ainda, que
existem falhas jurídicas na aprovação da PEC, o que pode ser utilizado para que o Presidente Henrique Eduardo Alves anule a proposta (REVISTA ISTO É, 08/05/2013, p. 51).
Assim, a polêmica que se estabeleceu depois da aprovação
da admissibilidade da PEC 33/2011, na Comissão de Constituição
e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara, é um assunto que
merece toda a atenção. Diferentemente do que foi anunciado em
nota da Presidência da Comissão (CÂMARA), não se trata de
“uma tempestade em copo d’água”, que o debate entre os três poderes é absolutamente normal e que a matéria não fere cláusulas
pétreas da Constituição.
Sabe-se, perfeitamente, que o Estado Contemporâneo não
permite mais que se fique preso à teoria clássica de separação dos
poderes, as funções não são mais exercidas de forma isolada umas
das outras, pois a harmonia só será alcançada neste “consórcio”,
nesta “complementaridade” que oportuniza recorrer a outras instâncias para discutir questões relevantes para a sociedade, nos casos em que um poder ou outro não cumpre totalmente com suas
funções (LEAL, 2007, p. 93-94).
Nesse sentido, o debate é salutar, mas, na verdade, o foco da
proposta não é ampliar o debate entre os poderes, e sim restringir a
esfera da jurisdição constitucional prestada pelo STF, “criando entraves e comprometendo a celeridade e a eficácia das suas decisões” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2013, p. 2).
O poder popular conferiu ao Supremo Tribunal Federal a
missão de guardião da Constituição, portanto, a legitimidade de
jurisdição do STF não tem nada a ver com a democracia política,
ligada à representação, pois não deriva da vontade da maioria. O
seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. E, todavia, é uma legitimação democrática, que os juízes recebem de sua função de garantia dos direitos fundamentais,
sob os quais se baseia aquilo a que chamamos democracia substancial (FERRAJOLI, 1997, p. 101-102).
Assim, o momento exige muita cautela e, acima de tudo, são
necessários muitos esclarecimentos sobre todas as consequências
58
Mônia Clarissa Hennig Leal & Civana Silveira Ribeiro
da aprovação da medida, que fragiliza o sistema de cláusulas pétreas instituídas pela Constituição de 1988, na medida em que passa a última palavra ao Congresso Nacional, consistindo em um retrocesso à conquista do Estado Democrático de Direito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fenômeno do ativismo judicial, como já referido, existe há
muitos anos no Brasil, mas somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a discussão sobre judicialização da
política, passou a ser abordado de forma mais recorrente.
Entre as críticas feitas ao ativismo, a que diz respeito à interferência do Judiciário em relação à esfera de atuação do Poder Legislativo é a que mais prospera, gerando intermináveis debates sobre a questão de sua legitimidade. A aprovação da admissibilidade
do Projeto de Emenda à Constituição nº 33/2011, apresentada pelo
Deputado Nazareno Fonteles, com o “intuito de restabelecer o equilíbrio entre os Poderes, ameaçado pela postura ativista do Judiciário”, fomentou ainda mais a discussão, pois a proposta está diretamente vinculada a este assunto.
Procurou-se, neste trabalho, fazer uma análise racional, baseada no texto da PEC, evidenciando-se que o seu principal objetivo,
sem dúvida, é restringir a atuação do Supremo Tribunal Federal, ou
seja, trazer inovações no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, trazendo entraves à celeridade e à eficácia das decisões do órgão de cúpula da Justiça brasileira, que serve de referência na América Latina.
A notícia da aprovação de sua admissibilidade causou grande
repercussão em todo o país e, mesmo que existam simpatizantes da
medida, verifica-se que um grande número de parlamentares, juristas de destacada atuação, representantes de instituições, jornalistas,
etc. mostra-se contrário e, acima de tudo, muito preocupado com a
situação.
Finalmente, acredita-se que não ocorrerá a aprovação da
PEC/33, tendo em vista o grande número de críticas que a proposta
tem recebido, por ferir cláusulas pétreas da nossa Constituição. Se
prosperar, estaremos dando início ao processo de “desconstrução”
do Estado Democrático de Direito, que foi uma conquista alcançada
por nossa sociedade ao longo de um processo histórico.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
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Capítulo 4
Cleize Carmelinda Kohls
Mestranda em Direito, na linha de pesquisa
de Constitucionalismo Contemporâneo, pela
Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Contato: [email protected]
Adilson Hirsch
Bacharel em Direito pela Universidade de
Santa Cruz do Sul.
Contato: [email protected]
DECISÕES DO
SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL SOBRE A
MORALIDADE
ADMINISTRATIVA:
UMA ANÁLISE NA
PERSPECTIVA DO
CONTROLE
JURISDICIONAL DE
POLÍTICAS
PÚBLICAS1
1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Um dos problemas enfrentados pelo Brasil na atualidade é a
má utilização das funções e verbas públicas. Consequentemente, tal
problema remete à análise de que a Administração Pública deve
agir com vistas ao interesse público, e não ao interesse privado.
Quando assim não o faz, o Judiciário é chamado a se manifestar.
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Este texto é resultante das atividades desenvolvidas junto ao projeto de pesquisa “Controle jurisdicional de Políticas Públicas: análise da atuação do Supremo
Tribunal Federal no controle de políticas públicas de inclusão social e a relevância da atuação do amicus curiae como instrumento de legitimação dessas
decisões no Brasil”, vinculado ao grupo de pesquisa “Jurisdição Constitucional
aberta” e financiado pelo CNPq.
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Contudo, muito se discute na doutrina, na jurisprudência e no
mundo acadêmico sobre a possibilidade e os casos em que pode
ocorrer a atuação judicial, quando se tratar de Administração Pública, em razão da existência de previsão expressa na Constituição
Federal sobre a separação dos poderes (art. 2º). Nessa perspectiva,
o presente capítulo busca apresentar esta difícil discussão, especialmente relacionada com questões que envolvem a moralidade administrativa.
A moralidade é princípio orientador da Administração Pública,
previsto no texto constitucional – artigo 37 – juntamente aos demais
princípios: legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. E
no atual contexto político e social brasileiro, este princípio assume
especial destaque, em razão dos diversos casos levados ao conhecimento do Poder Judiciário e dos prejuízos que sua inobservância
pode causar à sociedade.
Assim, analisa-se a atuação do Poder Judiciário, em especial
do Supremo Tribunal Federal (STF), como forma de garantir o
atendimento do interesse público, da observância da moralidade
administrativa e como forma indispensável de controle no Estado
Democrático de Direito.
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BREVES NOÇÕES E CONSIDERAÇÕES SOBRE A MORAL
No dicionário Aurélio (2013), encontra-se o significado de moral como algo que seja “de acordo com os bons costumes. Que é
próprio para favorecer os bons costumes”. Da mesma forma, no dicionário Michaelis (2013), tem-se que a moral seria “Relativo à moralidade, aos bons costumes. Que procede conforme à honestidade
e à justiça, que tem bons costumes”.
Sabe-se que a moral é carregada de subjetividade, podendo
ter diferentes conceituações e acepções. Cada povo, com a sua cultura, possui a suas regras morais e, consequentemente, a estipulação de condutas imorais.
Nessa linha, surge a discussão de quando e como poderia haver a atuação do Poder Judiciário em casos que envolvam questões
morais. Esta preocupação não é recente. Ela já foi analisada por
importantes pensadores do Direito.
Richard Posner (2012, p. 144), ao abordar a questão da Jusfilosofia e da teoria moral, refere que cada teórico proclama princí-
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pios que considera aplicáveis a qualquer ordenamento jurídico,
mencionando que a melhor maneira de compreender cada sistema
teórico é considerá-lo descrição de determinado ordenamento jurídico nacional.
Nesse sentido, para o referido autor (2012, p. 145), Hart conceitua direito como um sistema de normas. Já para Dworkin, o direito não compreenderia somente as normas estabelecidas por assembleias legislativas e outras autoridades promulgadoras de normas jurídicas formais, mas também os princípios, com destaque
para princípios morais, a que os legisladores ou juízes podem fazer
referência quando criam normas novas.
Ainda, conforme Richard Posner (2012, p. 136), para Dworkin,
o consenso comunitário sobre moralidade subjaz à descriminação
daquilo que as pessoas de fato, em determinada hora e sob determinado estado de humor, pensam ou sentem.
É importante também atentar que os conceitos de moral são
flexíveis, porém, conforme Rogério Gesta Leal (2013, p. 6), existem
fundamentos mínimos que são inerentes à condição humana e à
sua dignidade:
Claro que é difícil sustentar a existência de códigos morais de
comportamentos individuais e sociais rígidos e inflexíveis, até
pelo fato do reconhecimento à diferença e à tolerância como
Direito Fundamental de cada qual no convívio com seus semelhantes, mas também isto não significa dizer ser possível
aceitar-se qualquer coisa em termos de hábitos ou condutas
sob o mesmo fundamento, isto porque há mínimos existenciais
conquistados pela Civilização Contemporânea que colocam a
natureza humana como protegida de violações – notadamente
em face da ampliação de prerrogativas, princípios e regras (internacionais, constitucionais e infraconstitucionais) asseguradoras de sua dignidade.
Para o referido autor (LEAL, 2013, p. 6), o problema que se coloca é saber em que medida é defensável a existência de uma moralidade pública e outra privada, capazes de auxiliar na orientação
(porque não são suficientes) das possibilidades de controle e tratamento curativo e preventivo de atos corruptivos.
E menciona ainda que, nesta linha de raciocínio, a modernidade trouxe os conceitos de moralidade e virtude aristotélicos para
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seus dias, no sentido de a virtude ser compreendida como disposição firme da vontade de agir segundo a regra/norma pela qual é
definido o BEM.
Nesse contexto, passaremos a analisar esta atuação, especialmente quando estiver caracterizada a presença de atos contrários à
moralidade na Administração Pública.
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MORALIDADE ADMINISTRATIVA E IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA NO SISTEMA NORMATIVO BRASILEIRO
Um dos grandes problemas da Administração Pública na atualidade é a supressão do interesse público em prol de interesses pessoais. Nessa linha, refere Rita Tourinho (2009, p. 141): “[…] É comum no nosso país a utilização da função pública para alcance de
fins repudiados pelo Direito”.
José Afonso da Silva (2011, p. 670) afirma que, para compreender a moralidade administrativa, é preciso atentar que:
Deve-se partir da ideia de que moralidade administrativa não
é moralidade comum, mas moralidade jurídica. Essa consideração não significa necessariamente que o ato legal seja honesto. Significa, como disse Hauriou, que a moralidade administrativa consiste no “conjunto de regras de condutas tiradas
da disciplina interior da administração”.
Para o autor, a moralidade administrativa deve ser analisada
tendo como base as regras do interior da administração. Complementado este raciocínio, Hely Lopes Meirelles (2011, p. 91) refere
que:
O certo é que a moralidade do ato administrativo juntamente
com sua legalidade e finalidade, além da sua adequação aos
demais princípios, constituem pressupostos de validade sem
os quais toda atividade pública será ilegítima.
Nesse contexto, a moralidade está intimamente ligada a princípios como o da legalidade, finalidade, impessoalidade, entre outros. Porém, destaca-se, em razão de conter um conteúdo subjetivo,
que analisa a honestidade e a boa-fé.
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Um bom administrador não deve observar apenas a lei, mas
também os princípios que conduzem uma conduta moral. Pallieri
(1969, p. 14) menciona que “[…] não há ação do homem, por mais
insignificante que seja, que espace a regra moral e a respeito da
qual a moral não se pronuncie, impondo-a ou proibindo-a, […]”.
A moralidade é uma preocupação antiga, tendo sido objeto de
proteção de vários diplomas legais anteriores à Constituição Federal de 1988, mas apenas nesta é que ela foi positivada como princípio norteador da administração pública. O artigo 37 estabelece que:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]
Além disso, também no mesmo artigo, o constituinte trouxe a
previsão de sanções para atos ímprobos, dispondo em seu parágrafo
quarto que:
Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Assim, constatamos a preocupação constitucional com a moralidade e a improbidade administrativa, eis que merecedoras de positivação, e consequentemente de observância por todos. E em razão dessa diferente positivação, surgiu o debate sobre a possível
diferença entre moralidade e probidade.
Rita Tourinho (2009, p. 146) discorre sobre duas correntes
doutrinárias existentes sobre o tema, ressalta que parte da doutrina
não se refere à probidade como princípio, mas como dever que decorre do princípio da moralidade:
Assim, para aqueles que consideram a probidade administrativa uma espécie do gênero moralidade administrativa, aquela
consiste no dever do agente público de servir à Administração
com honestidade, boa-fé e observância de regras que assegu-
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Cleize Carmelinda Kohls & Adilson Hirsch
rem a boa administração. A Improbidade, por sua vez, consistiria exatamente a quebra desses deveres.
Especialmente sobre a improbidade administrativa, existem
elementos a serem observados para sua caracterização, que, conforme Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2009, p. 813), são:
a) sujeito passivo: uma das entidades mencionadas no artigo
1º da Lei nº 8.429;
b) sujeito ativo: o agente público ou terceiro que induza ou
concorra à prática de ato de improbidade ou dele se beneficie
sob qualquer forma direta ou indireta (Arts. 1º e 3º);
c) ocorrência de ato danoso descrito em lei, causador de enriquecimento ilícito para o sujeito ativo, prejuízo para o erário
ou atentado contra os princípios da Administração Pública; o
enquadramento do ato pode dar-se isoladamente, em uma das
três hipóteses, ou, cumulativamente, em duas ou nas três;
d) elemento subjetivo: dolo ou culpa.
A abordagem feita pela autora demonstra que a improbidade
administrativa diferencia-se de ilegalidade, bem como da má gestão, pois, para que seja caracterizada a conduta ímproba, é necessária a presença de elemento subjetivo, ou seja, dolo ou culpa.
Nesse ínterim, a improbidade administrativa pode ser coibida
de maneira preventiva ou repressiva. Na primeira hipótese, é necessário o desenvolvimento de valores éticos, bem como de políticas
públicas voltadas à educação e conscientização da população. Já na
segunda hipótese, é necessária a aplicação efetiva das legislações
existentes.
Ademais, para regulamentar o texto constitucional, foi criada
a Lei 8.429/92, que tem o propósito de dispor sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos que praticam atos de improbidade administrativa no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na
administração pública direta, indireta ou fundacional.
Assim, são atos de improbidade administrativa, de acordo com
a Lei 8.429/92, aqueles que importem enriquecimento ilícito (art. 9º),
causem prejuízo ao erário (art. 10) ou atentem contra os princípios
da Administração Pública (art. 11).
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A mencionada lei traz ainda, em seu artigo 12, as sanções
aplicáveis aos agentes ímprobos, quais sejam: a possibilidade de
perdas de bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio,
ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão
dos direitos políticos, pagamento de multa civil e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário.
Para cada categoria de ato de improbidade, ou seja, se traz
enriquecimento ilícito, se causa prejuízo ao erário ou se fere os
princípios da administração pública, há a correspondente dosimetria das sanções, elencadas respectivamente nos incisos I, II e III do
artigo 12 da Lei 8.429/92.
Finalmente, Rogério Gesta Leal (2012, p. 14), citando Montesquieu, menciona que a corrupção de cada governo começa quase sempre pela corrupção dos princípios. Ou seja, mais um motivo
que se apresenta para a observância do princípio da moralidade
administrativa.
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF) E O CONTROLE DA
MORALIDADE ADMINISTRATIVA
A questão emblemática surge no contexto atual brasileiro,
pois a Constituição Federal estabelece, em seu artigo 2º, que: “São
Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. E também estabelece, em seu artigo 5º, inciso XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Sobre o papel da função jurisdicional da decisão judicial,
Edinilson Donisete Machado (2012, p. 77) diz que:
Enquanto instituição política, a principal competência da função jurisdicional é controlar a constitucionalidade das leis e
dos atos normativos produzidos pelo Legislativo ou pelo Executivo. Como guardiã da Constituição espera-se que controle
o exercício do poder pelas instâncias do Estado, de forma a
assegurar a vontade do Poder Constituinte.
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José Afonso da Silva (2011, p. 45) afirma que a Constituição
se coloca no vértice do sistema jurídico do País, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em
que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos.
Ademais, refere que “nossa Constituição é rígida. Em consequência, é a lei fundamental e suprema do Estado Brasileiro. Toda
a autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere poderes
e competências governamentais” (p. 46).
A estrutura organizacional dos poderes no Brasil tem como
característica o depósito do poder de criação, gerenciamento e aplicação de políticas públicas ao Estado, nele compreendida a administração pública direta e indireta.
Nesse sentido, compete ao Poder Executivo a adoção de políticas públicas com a finalidade de concretizar os direitos fundamentais e sociais previstos na Constituição Federal. Porém, não raro,
presenciamos e acompanhamos as reivindicações da população
sobre a ausência ou má gerência dessas políticas públicas, bem como por não concordarem com as condutas dos administradores,
especialmente por não respeitarem o princípio da moralidade administrativa. E, por isso, inevitavelmente, essas demandas acabam
sendo levadas para apreciação do Poder Judiciário.
O artigo 102 da Constituição Federal de 1998 estabeleceu
que: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a
guarda da Constituição”. Nesse contexto, este tribunal assume, em
razão de sua função primordial, um importante papel para o Estado
Democrático de Direito.
Essa importante atuação pode ser percebida nos seguinte caso
(sem grifos no original):
[…] configurada a prática de nepotismo cruzado, tendo em
vista que a assessora nomeada pelo impetrante para exercer
cargo em comissão no TRT 17ª Região, sediado em Vitória/ES,
é nora do magistrado que nomeou a esposa do impetrante para cargo em comissão no TRT 1ª Região, sediado no Rio de
Janeiro/RJ. A nomeação para o cargo de assessor do impetrante é ato formalmente lícito. Contudo, no momento em que é
apurada a finalidade contrária ao interesse público, qual seja, uma troca de favores entre membros do Judiciário, o ato
deve ser invalidado, por violação ao princípio da moralidade
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
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administrativa e por estar caracterizada a sua ilegalidade,
por desvio de finalidade. (MS 24.020 Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 06.03.2012, Segunda Turma, DJE de
13.06.2012)
No referido caso, que trata da prática de nepotismo, mencionou-se que a contratação de parentes violaria o princípio da moralidade administrativa. Na referida decisão, foi levantado o argumento da “troca de favores”, comumente denominado “nepotismo
cruzado”, que objetiva a burla da vedação legal de nomeação de
parentes para cargos públicos, sendo que tais atitudes seriam contrárias ao interesse público.
Essa prática não é tida pela maioria da sociedade como moral
aceitável. Percebe-se, pois, importante atuação da Corte Constitucional por zelar pelo interesse público, que torna legítima sua atuação,
especialmente para invalidar atos administrativos imorais.
Em outro julgamento, ADI 2.661MC, de relatoria do Ministro
Celso de Mello, referiu-se que:
A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional
de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do
Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta
de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do
Estado. O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público
que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais.
Assim, a corte fez importantes considerações sobre a moralidade administrativa, como um postulado fundamental que rege o
Poder Público, e reforça a necessidade de observância de valores
éticos pelos agentes que atuam em seu nome. E, por essa razão,
entendeu que:
A ratio subjacente à cláusula de depósito compulsório, em instituições financeiras oficiais, das disponibilidades de caixa do
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Cleize Carmelinda Kohls & Adilson Hirsch
Poder Público em geral (CF, art. 164, § 3º) reflete, na concreção do seu alcance, uma exigência fundada no valor essencial
da moralidade administrativa, que representa verdadeiro
pressuposto de legitimação constitucional dos atos emanados
do Estado.
Nessa decisão, o Tribunal entendeu que a exigência de depósito das disponibilidades financeiras é reflexo do princípio da moralidade administrativa. E, efetivamente, parece que o zelo pelo dinheiro público é sim uma necessária preocupação da Administração
Pública.
Além disso, na referida decisão, mencionou-se que, em razão
desse princípio constitucional de moralidade administrativa, ao impor limitações ao poder estatal, legitima o controle jurisdicional de
todos os atos do poder público que transgridam os valores éticos
que devem pautar os comportamentos dos órgãos e dos agentes
governamentais.
Ainda, em outra decisão (MS 27.165), o Tribunal entendeu
que afrontava o princípio da moralidade, a alteração do edital no
curso do processo de seleção de um concurso público:
Concurso para a Magistratura do Estado do Piauí. Critérios de
convocação para as provas orais. Alteração do edital no curso
do processo de seleção. Impossibilidade. Ordem denegada. O
Conselho Nacional de Justiça tem legitimidade para fiscalizar,
inclusive de ofício, os atos administrativos praticados por órgãos do Poder Judiciário (MS 26.163, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJE de 4-9-2008). Após a publicação do edital e no curso
do certame, só se admite a alteração das regras do concurso se
houver modificação na legislação que disciplina a respectiva
carreira. Precedentes. (RE 318.106, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ
de 18-11-2005). No caso, a alteração das regras do concurso
teria sido motivada por suposta ambiguidade de norma do
edital acerca de critérios de classificação para a prova oral. Ficou evidenciado, contudo, que o critério de escolha dos candidatos que deveriam ser convocados para as provas orais do
concurso para a Magistratura do Estado do Piauí já estava claramente delimitado quando da publicação do Edital 1/2007. A
pretensão de alteração das regras do edital é medida que
afronta o princípio da moralidade e da impessoalidade, pois
não se pode permitir que haja, no curso de determinado pro-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
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cesso de seleção, ainda que de forma velada, escolha direcionada dos candidatos habilitados às provas orais, especialmente quando já concluída a fase das provas escritas subjetivas e
divulgadas as notas provisórias de todos os candidatos. (MS
27.165, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. em 18.12.2008, Plenário, DJE de 06.03.2009.)
Neste caso, o que parece justificar a atuação, refere-se à desaprovação social dessa conduta. E da necessidade de observância
pela Administração Pública do concurso público, com respeito a
todas as regras do edital. Ademais, percebe-se que os princípios da
isonomia e da moralidade estão entrelaçados, de maneira que a
mudança de regras de concursos afeta diretamente a concorrência,
e, consequentemente, ofende a moralidade.
Por fim, na decisão abaixo, o Supremo Tribunal Federal também correlaciona o princípio da isonomia com a moralidade administrativa:
CONSTITUCIONAL. PENSÃO ESPECIAL A VIÚVA DE
PREFEITO. LEI MUNICIPAL DE EFEITOS CONCRETOS.
VALIDADE. ISONOMIA E PRINCÍPIO DA MORALIDADE
(CF, ART. 37). IMUNIDADE MATERIAL DE VEREADORES
(CF, ART. 29, VIII). EXTENSÃO QUANTO À RESPONSABILIDADE CIVIL. 1. Não há empecilho constitucional à edição de leis sem caráter geral e abstrato, providas apenas de
efeitos concretos e individualizados. Há matérias a cujo respeito a disciplina não pode ser conferida por ato administrativo, demandando a edição de lei, ainda que em sentido meramente formal. É o caso da concessão de pensões especiais.
2. O tratamento privilegiado a certas pessoas somente pode
ser considerado ofensivo ao princípio da igualdade ou da moralidade quando não decorrer de uma causa razoavelmente
justificada. 3. A moralidade, como princípio da Administração
Pública (art. 37) e como requisito de validade dos atos administrativos (art. 5º, LXXIII), tem a sua fonte por excelência no
sistema de direito, sobretudo no ordenamento jurídico-constitucional, sendo certo que os valores humanos que inspiram e
subjazem a esse ordenamento constituem, em muitos casos, a
concretização normativa de valores retirados da pauta dos direitos naturais, ou do patrimônio ético e moral consagrado pelo senso comum da sociedade. A quebra da moralidade administrativa se caracteriza pela desarmonia entre a expressão
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Cleize Carmelinda Kohls & Adilson Hirsch
formal (= a aparência) do ato e a sua expressão real (= a sua
substância), criada e derivada de impulsos subjetivos viciados
quanto aos motivos, ou à causa, ou à finalidade da atuação
administrativa. 4. No caso, tanto a petição inicial, quanto os
atos decisórios das instâncias ordinárias, se limitaram a considerar “imoral” a lei que concedeu pensão especial a viúva de
prefeito falecido no exercício do cargo por ter ela conferido
tratamento privilegiado a uma pessoa, sem, contudo, fazer juízo algum, por mínimo que fosse, sobre a razoabilidade ou não,
em face das circunstâncias de fato e de direito, da concessão
do privilégio. 5. Com maior razão se mostrava indispensável
um juízo sobre o elemento subjetivo da conduta, para fins de
atribuir responsabilidade civil, relativamente aos demandados
que exerciam o cargo de vereador, investidos, constitucionalmente, da proteção de imunidade material (=inviolabilidade)
pelos votos proferidos no exercício do mandato (CF, art. 29,
VIII). Se é certo que tal imunidade, inclusive para efeitos civis, é assegurada até mesmo em caso de cometimento de crime, não se há de afastá-la em casos como o da espécie, que de
crime não se trata e em que sequer a intenção dolosa foi aventada. 6. Recursos extraordinários providos. (RE 405.386, Relator(a): Min. Ellen Gracie, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Teori
Zavascki, Segunda Turma, julgado em 26.02.2013, DJe-057
Divulg 25.03.2013 Public 26.03.2013 Ement Vol-02685-01 PP00001)
Aqui, os ministros firmaram entendimento de que a moralidade é requisito de validade dos atos administrativos, e expressam a
concretização normativa de valores retirados da pauta dos direitos
naturais, ou do patrimônio ético e moral consagrado pelo senso comum da sociedade.
Importante também o posicionamento de que a quebra da moralidade administrativa se caracteriza pela desarmonia entre a aparência e a substância do ato, e que, em razão disso, pode haver vícios
nos motivos e nas finalidades da atuação da administração pública.
Tratam-se, os casos supramencionados, de exemplos de atuação do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição,
de maneira a zelar, fiscalizar e reprimir os atos que atentem contra
a moralidade administrativa. Evidencia-se com estes casos o quão
importante e fundamental é esta atuação na busca pela preservação
do interesse público.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
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DEMOCRACIA E CONTROLE JUDICIAL DA MORALIDADE
ADMINISTRATIVA
Nessa perspectiva, o exercício da cidadania, com a utilização
dos meios disponíveis de participação popular, torna-se uma forma
extremamente válida para buscar a responsabilização daqueles que
desrespeitarem o princípio da moralidade administrativa.
Para Gisela Maria Bester (2005, p. 283), o Estado Democrático
de Direito é um princípio que permite ao povo uma efetiva participação no processo de formação da vontade pública, sendo a marca
principal deste tipo de Estado a origem democrática do poder e das
normas.
Há de se ressaltar que o poder emana do povo e somente será
legitimo se tiver uma base moral, ou seja, se tiver uma justificação
ética e coerente com o pensamento do povo. Sobre essa legitimação
moral, ensina Norbert Bobbio (1987, p. 88):
A recorrente consideração segundo a qual o supremo poder,
que é o poder político, deva também ter uma justificação ética
(ou, o que é o mesmo, um fundamento jurídico), deu lugar a
vária formulação de princípios de legitimidade, isto é, dos vários modos com os quais se procurou dar, a quem detém o poder, uma razão de comandar, e a quem suporta o poder, uma
razão de obedecer: aquilo que Gaetano Mosca chamou com
uma expressão muito feliz de “formula política”, explicando
que “em todas as sociedades discretamente numerosas e que
apenas chegam a um certo grau de cultura, aconteceu que a
classe política não justifica exclusivamente o seu poder somente com a posse de fato, mas procura dar a ele uma base
moral e também legal, fazendo-o derivar como consequência
de doutrina e crenças geralmente reconhecidas e aceitas na
sociedade que ele dirige [1896, Ed. 1923 p. 108].”.
E continua:
Mosca reconhecia exclusivamente duas fórmulas políticas, a
que faz derivar o poder da autoridade de Deus e a que o faz
derivar da autoridade do povo. Embora as considerasse meras
ficções, acreditava que correspondessem a uma necessidade
real, à necessidade de governar e de sentir-se governado “não
apenas à base da força material e intelectual, mas também à
base de um princípio moral [IB, p. 110].”.
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Cleize Carmelinda Kohls & Adilson Hirsch
Percebe-se que, citando Gaetano Mosca, Bobbio sustenta a
necessidade política de uma base em princípio moral, pois somente
assim o provo sentir-se-ia legitimamente governado.
Assim, a Constituição expressa o poder do povo, e sua observância é que legitimará o agente que atua em nome dele. Quando
desrespeitados estes preceitos, acabam afetando valores relevantes
da própria República e Estado Democrático de Direito. Significa
dizer que, como o poder emana do povo, em seu benefício deve ser
exercido.
Da mesma forma, a atuação do Poder Judiciário, dentro da
sua legitimidade, pode fiscalizar o respeito à Constituição Federal.
Ou seja, o controle externo dos atos da Administração Pública é
essencial ao Estado Democrático de Direito, pois garante que esses
atos possam ser apreciados e, caso desrespeitem o Direito, invalidados (DI PIETRO, 2007, p. 189).
Montesquieu, em “O espírito das Leis” (2000, p. 166), menciona que:
É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que
quer; mas a liberdade política não consiste em se fazer o que
se quer. Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem
leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer. Deve-se ter em mente o que é a independência e o que é a liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo
o que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que
elas proíbem, ele já não teria liberdade, porque os outros também teriam este poder.
Nesta linha de raciocínio, como vivemos em uma sociedade
regida por leis, a liberdade está diretamente relacionada com a
permissão e/ou não proibição. Assim, enquanto o povo pode fazer
tudo o que a lei não proíbe, o governo só pode fazer aquilo que a lei
permite. Logo, no caso da moralidade administrativa, temos uma
previsão expressa na Constituição Federal sobre o dever de observar, de maneira que os atos que forem em sentido contrário atentam
contra o referido sistema.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
No contexto do presente capítulo, as condutas que estiverem
em desacordo com aquilo que a sociedade tem como correto, ético e
de interesse público podem ser consideradas imorais, e, por tal razão, podem ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário. Isto porque ofendem o texto constitucional, que prevê os princípios da moralidade e da probidade administrativa.
Além disso, diante da análise proposta, percebe-se que é fundamental e imprescindível a atuação do Poder Judiciário como garantidor e repressor de condutas que atentem contra a moralidade
administrativa. Sendo que, pela análise proposta dos julgamentos
do Supremo Tribunal Federal, verifica-se a importância da sua atuação como guardião da constituição.
Assim, não parece ser essa atuação uma ofensa à separação
dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), pois é atrelada ao
próprio Estado Democrático de Direito, por constituir um direito do
povo de ter uma administração honesta e de poder rever atos que
sejam contrários a ela.
Almeja-se que tais demandas efetivamente não sejam apreciadas pelo Poder Judiciário, não por uma vedação legal ou por outra
imposição, mas sim por inexistirem atos praticados em desacordo
com a moralidade. Esta sim seria uma demonstração de respeito e
responsabilidade com o interesse público.
REFERÊNCIAS
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política.10 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p 88.
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Brasil, DF: Senado Federal, 1988.
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<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portu
gues-portugues&palavra=moral>. Acesso em: 19 maio 2013.
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www.dicionariodoaurelio.com/Moral.html> Acesso em: 19 maio 2013.
76
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
LEAL, Rogério Gesta. Os descaminhos da corrupção e seus impactos sociais
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Sul, 2013.
MACHADO, Edinilson Donisete. Ativismo Judicial. 2. ed. São Paulo: Letras Jurídicas, 2012.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 38. ed. São
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PALLIERI, Giorgio Balladore. A Doutrina do Estado. Coimbra: Coimbra,
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TORINHO, Rita. Discricionariedade Administrativa: Ação de Improbidade
e Controle Principiológico. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2009.
Capítulo 5
Guilherme Augusto Dornelles
de Souza
Pesquisador integrante do Grupo de
Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança
e Administração da Justiça Penal – GPESC e
do Instituto de Estudos Comparados em
Administração Institucional de Conflitos –
INCT-InEAC. Mestrando em Ciências
Criminais pela PUCRS. Bolsista CAPES.
Analista do MPU no Ministério Público
Federal.
Contato: [email protected]
1
ALÉM DA PRISÃO:
UMA PROPOSTA DE
ANÁLISE DAS
ALTERNATIVAS À
PRISÃO NO BRASIL
EM SEU
FUNCIONAMENTO
BIOPOLÍTICO
“ACONTECIMENTALIZAR” AS ALTERNATIVAS À PRISÃO
Este capítulo tem por objetivo propor uma reflexão sobre como, num contexto de aumento da demanda punitiva na sociedade
brasileira contemporânea, as chamadas penas alternativas são propostas, defendidas e sustentadas. Compreendendo as ações e reações existentes na área da justiça criminal e da segurança pública
em relação às condutas qualificadas como crimes enquanto práticas, pensamos a implementação das penas alternativas no Brasil
enquanto um acontecimento.
O que isto significa?
Não se trata apenas da assertiva de que os crimes somente
são crimes porque previstos na lei penal como tais. Trata-se de
compreender que a construção da noção do que são esses crimes,
de quem são as pessoas que os cometem, de como se deve lidar
78
Guilherme Augusto Dornelles de Souza
com elas, e o que esses crimes representam para um “restante da
sociedade” é produzida não só pelas previsões legais, mas por todas
as práticas presentes no campo de controle do crime. Não há, assim, parafraseando Veyne (1998), “o criminoso através da história”,
enquanto um objeto natural, que seria alvo de variadas práticas na
busca de uma “solução” para a questão da criminalidade. Trata-se,
enfim, de compreender aquilo que Veyne (1998, p. 257) identifica
como a tese central de Foucault: “o que é feito, o objeto, se explica
pelo que foi o fazer em cada momento da história”.
A partir dessa perspectiva de analisar o encarceramento e as
penas alternativas como práticas, busca-se abordar as condições
que num dado momento as tornam aceitáveis e tem-se o entendimento de que essas práticas têm, em certa medida, sua própria regularidade, sua própria lógica. Assim, entendemos que uma prática, qualquer que seja, não é racional (ou irracional) “em si”, mas o
pode ser em relação a um determinado regime de racionalidade
perante o qual se coloca e que atravessa tantas outras práticas num
determinado campo (FOUCAULT, 2003a).
Procuramos, ainda, pensar a implementação de penas alternativas no Brasil como um acontecimento.
O que isto implica?
Quando fala sobre os acontecimentos discursivos, Foucault
(2003b) afirma que chama de acontecimento a função que se pode
atribuir a algo dito por alguém num determinado momento e não
em outro. Quando fala em “acontecimentalização”, Foucault
(2003a, p. 339) nos diz que se trata de provocar uma ruptura das
evidências sobre as quais se apoiam os saberes e as práticas, fazer
surgir uma singularidade, mostrar que aquilo que foi e é poderia
ser de outra maneira, que não era tão necessário quanto se pensa,
se diz, se faz.
Além disso, a “acontecimentalização” consiste reencontrar as
conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de
força, as estratégias etc., que, em um dado momento, formaram o que, em seguida, funcionará como evidência, universalidade, necessidade. (FOUCAULT, 2003a, p. 339)
Assim, ao pensar a implementação das penas alternativas no
Brasil como um acontecimento, rompe-se com alguns pressupostos
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
79
eventualmente colocados quando se trata desse tema. Em primeiro
lugar, trata-se de pensá-las não como “a” resposta para o problema
do cárcere na justiça criminal, qualquer que seja a forma como ele é
colocado – falência do ideal ressocializador/recuperador/corrécionalista, superlotação dos presídios, fator “criminógeno” do cárcere,
mecanismo de violação de direitos – mas sim de que, dentre as várias respostas disponíveis, essa foi a adotada num determinado
momento, e que essa adoção não era algo evidente, tampouco necessária, mas a sua articulação em determinados jogos de força a
tornam “a” resposta possível. Em segundo lugar, tal postura implica
entender que a adoção das penas alternativas num determinado
momento e não em outro representa que essa implementação exercia uma função estratégica nas relações de poder e saber que atravessavam as práticas existentes na justiça criminal e na segurança
pública naquele momento.
De certa forma, propomos fazer aqui um pouco do que Foucault (2003c) propõe: trata-se de perguntar o que, nas críticas à prisão e nas propostas de sua substituição pelas penas alternativas,
permitiu a permanência da prisão, o que continua a justificá-la, o
que a faz hoje ser necessariamente necessária. Pensar a coexistência da pena de prisão e das penas alternativas, pensar a não substituição efetiva da primeira pela segunda, não em termos de um erro
teórico ou erro de implementação, mas em termos positivos: a que
serve, que funcionamento garante, a quais estratégias se integram
as penas alternativas?
Finalmente, trata-se de perguntar: quais são as condições de
possibilidade que permitem a emergência das penas alternativas
em pleno contexto de aumento da demanda punitiva na sociedade
brasileira contemporânea? Nos estritos (e estreitos) limites deste
trabalho, não se tem por objetivo responder a essa pergunta, mas
formulá-la.
2
TENDÊNCIAS DE POLÍTICA CRIMINAL NO BRASIL APÓS 1984
Salo de Carvalho (2010) afirma que a atividade legislativa
brasileira durante a década de 90 ampliou as hipóteses de criminalização e agravou o modo de execução das penas. A criminalização
de diversas condutas antes não previstas como crimes e as altera-
80
Guilherme Augusto Dornelles de Souza
ções nas modalidades de cumprimento das sanções penais se traduzem, de acordo com esse autor, numa “dilatação do input e no
estreitamento do output do sistema, fato que provocou aumento
vertiginoso nos índices de encarceramento” (CARVALHO, 2010, p.
153).
Uma das tendências apontadas por Rodrigo Ghiringhelli de
Azevedo (2010a) nas reformas penais ocorridas no Brasil e na Argentina nessa mesma década é a utilização do remédio penal como
resposta para conflitos e problemas sociais, indicando uma utilização simbólica do direito penal pelo Estado como recurso público de
gestão de condutas frente às demandas de segurança e penalização
expressas pela mídia. Para Azevedo (2010b), os principais veículos
de comunicação, em momentos de comoção pública em razão de
algum delito violento e, no mais das vezes, tendo por vítima alguém
das camadas médias ou altas da sociedade, trazem para a pauta de
discussão questões como a redução da maioridade penal, o aumento das penas e a sua utilização como mecanismo de contenção, a
supressão de garantias e direitos em nome do combate ao crime.
Além dessa tendência de expansão do Direito Penal, Azevedo
(2004) identifica ainda a produção, por um lado, de um processo
penal de emergência, com a supressão de algumas garantias processuais durante o julgamento de determinados crimes, como na
Lei dos Crimes Hediondos, e, por outro, a informalização ou simplificação do processo penal, caracterizada no Brasil principalmente a
partir da implementação dos Juizados Especiais Criminais para os
crimes cuja pena não ultrapassa dois anos, ditos de menor potencial
ofensivo.
A revisão das pesquisas sobre a produção legislativa na área
da segurança pública e da justiça criminal no Brasil, feita por Marcelo Campos (2010), confirma e relativiza alguns dos apontamentos
acima. Na pesquisa feita por Laura Frade (apud CAMPOS, 2010)
constatou que, das 646 propostas apresentadas por parlamentares
no período de 2003 a 2007 no Congresso Nacional, apenas 20 tinham por objeto tornar mais branda a criminalização de algum ato.
No trabalho de Teixeira (apud CAMPOS, 2010) sustenta-se que
durante a década de 90, por meio de sucessivos projetos propostos
em regime de urgência, privilegiou-se o uso massivo da prisão em
contraposição ao caráter liberal identificado na legislação de 1984.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
81
Nalayne Mendonça (apud CAMPOS, 2010), por sua vez, aponta
que a análise da legislação penal aprovada de 1984 a 2004 aponta
para duas direções: de um lado, o recrudescimento das hipóteses de
crimes já existentes, bem como a criminalização de novas condutas;
de outro, a introdução de medidas despenalizadoras aplicadas a
crimes considerados de menor potencial ofensivo.
Campos (2010), na análise que fez da política criminal aprovada de 1989 a 2006, aponta para três direções: recrudescimento
das previsões das condutas já qualificadas como crimes, criminalização de condutas antes não previstas como crimes e leis que visaram a medidas alternativas e a ampliação dos direitos dos acusados
e, em alguns casos, leis que combinariam essas tendências. Para o
autor, as “contradições” aparentes da legislação, ao apontarem ora
iniciativas reativas, ora iniciativas legais garantistas e/ou preventivas, devem ser entendidas mais como um movimento combinatório,
no qual tais tendências se complementam e coexistem, sem serem
opostas, do que como políticas contraditórias. Em face das teses de
recrudescimento penal, Campos (2010) aponta que a legislação
brasileira também é atravessada por outros modelos e concepções
além da concepção penal-repressiva, produzindo, em alguns casos,
uma combinação desses modelos nas leis aprovadas.
3
AS PENAS ALTERNATIVAS NO BRASIL
A introdução das penas alternativas no Brasil, formalmente
designadas penas restritivas de direitos, se dá por meio da Lei
7.209, de 11 de julho de 1984, que reformou a parte geral do Código
Penal de 1940. Na Exposição de Motivos1 dessa lei, assim se manifestou o então Ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel:
26. Uma política criminal orientada no sentido de proteger a
sociedade terá de restringir a pena privativa da liberdade aos
casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere. Esta filosofia importa obviamente na busca de sanções outras para
1
Texto que acompanha projetos de lei, de iniciativa do Presidente da República,
onde os autores ou autor do projeto, em regra um Ministro de Estado, esclarece
os posicionamentos teóricos e práticos que orientaram a elaboração das normas
da nova legislação proposta.
82
Guilherme Augusto Dornelles de Souza
delinqüentes sem periculosidade ou crimes menos graves.
[…]
27. As críticas que em todos os países se tem feito à pena privativa da liberdade fundamentam-se em fatos de crescente
importância social, tais como o tipo de tratamento penal freqüentemente inadequado e quase sempre pernicioso, a inutilidade dos métodos até agora empregados no tratamento de
delinqüentes habituais e multirreincidentes, os elevados custos da construção e manutenção dos estabelecimentos penais,
as conseqüências maléficas para os infratores primários,
ocasionais ou responsáveis por delitos de pequena significação, sujeitos, na intimidade do cárcere, a sevícias, corrupção e
perda paulatina da aptidão para o trabalho.
[…]
29. Com o ambivalente propósito de aperfeiçoar a pena de
prisão, quando necessária, e de substituí-la, quando aconselhável, por formas diversas de sanção criminal, dotadas de
eficiente poder corretivo, adotou o Projeto novo elenco de penas. […] [grifos nossos]
Os artigos 43 e 44 do Código Penal passaram então a vigorar
com a seguinte redação:
Art. 43. As penas restritivas de direitos são:
I – prestação de serviços a comunidade;
II – interdição temporária de direitos;
III – limitação de fim de semana.
Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I – aplicada pena privativa de liberdade inferior a um ano ou
se o crime for culposo;
II – o réu não for reincidente;
III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a
personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
Parágrafo único. Nos crimes culposos, a pena privativa de liberdade aplicada, igual ou superior a um ano, pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas
penas restritivas de direitos, exequíveis simultaneamente.
A Lei 7.209/84, em seu artigo 3º, estipulou que a União, os Estados e o Distrito Federal teriam o prazo de um ano, a contar da
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
83
vigência da nova parte geral do Código Penal (13.01.1985), para
tomar as providências necessárias para a efetiva execução das penas restritivas de direitos. Azevedo (2010c) afirma que, apesar disso, a primeira notícia que se tem acerca da uma experiência de efetiva execução de uma pena restritiva de direito data de 7 de agosto
de 1987, quando assinado, em Porto Alegre, o convênio para implantação do “sistema para aplicação da prestação de serviço à comunidade”. Em 1988, a nova Constituição Federal incluía em seu
artigo 5º, inciso XLVI, as penas restritivas de direitos no rol das
penas aplicáveis.
Em 1996, é elaborado o Projeto de Lei 2.684/96, que, posteriormente, em 1998, se transformou na Lei 9.714/98, a qual ampliou o rol
de penas restritivas de direitos, bem como as possibilidades de aplicação (AZEVEDO, 2010c). Foram acrescidas como possibilidades de
penas alternativas a prestação pecuniária e a perda de bens e valores. Ainda, as penas restritivas de direitos se tornaram possíveis
quando aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro
anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à
pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo,
pela nova redação do artigo 44, inciso I, do Código Penal.
No entanto, alguns artigos previstos na forma como aprovada
a Lei 9.714/98 pelo Congresso foram vetados pelo então Presidente
da República. Dentre os dispositivos vetados, encontra-se a previsão de recolhimento domiciliar como hipótese de pena alternativa,
bem como a previsão das penas de advertência, compromisso de
frequência a curso ou submissão a tratamento para os casos de penas aplicadas inferiores a seis meses. Na Mensagem de Veto nº
1.447/98, o veto em relação ao recolhimento domiciliar foi assim
justificado:
A figura do “recolhimento domiciliar”, conforme a concebe o
Projeto, não contém, na essência, o mínimo necessário de
força punitiva, afigurando-se totalmente desprovida da capacidade de prevenir nova prática delituosa. Por isto, carente do
indispensável substrato coercitivo, reputou-se contrária ao interesse público a norma do Projeto que a institui como pena
alternativa. [grifo nosso]
Ainda, em relação às penas de advertência, compromisso de
frequência a curso ou submissão a tratamento,
84
Guilherme Augusto Dornelles de Souza
Em paralelismo com o recolhimento domiciliar, e pelas mesmas razões, o § 1º do art. 44, que permite a substituição de
condenação a pena privativa de liberdade inferior a seis meses por advertência, também institui norma contrária ao interesse público, porque a admoestação verbal, por sua singeleza, igualmente carece do indispensável substrato coercitivo,
necessário para operar, no grau mínimo exigido pela jurisdição penal, como sanção alternativa à pena objeto da condenação. [grifo nosso]
É interessante notar que, posteriormente, quando da edição
da Lei 11.343/06, que deu novo tratamento na questão penal em
relação às drogas consideradas ilícitas, as penas para as condutas
do usuário passaram a ser, conforme o artigo 28 da lei referida, a
“advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à
comunidade” e a “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional2, a
partir de 1995, o número de pessoas submetidas a penas de prisão e
a penas alternativas compõe o seguinte quadro:
Ano
1995
2002
2006
2007
2008
2009
Número de
Cumpridores de Penas
Restritivas de Direitos
Medidas
Penas
alternativas alternativas
78672
1692
80843
21560
237945
63457
333685
88837
457811
101019
544795
126273
Número de
PMA
acumulado
Número de
Presos
80364
102403
301402
422522
558830
671078
148760
248685
401236
423373
446764
473626
Os dados acima deixam clara a crescente adoção das penas
alternativas e, se consideradas as chamadas medidas alternativas
(aplicáveis aos atos qualificados como crimes de menor potencial
ofensivo), a submissão de mais pessoas a penas alternativas que a
2
Disponíveis em: <http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ47E6462CITEMID3862
2B1FFD6142648AD402215F6598F2PTBRNN.htm>. Acesso em: 20 jul. /2011.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
85
penas de prisão a partir de 2008. Essa superação se deu num curtíssimo espaço de tempo. No entanto, os dados acima também deixam
explícito que a adoção das penas e medidas alternativas não implicou diminuição da quantidade de pessoas presas.
Se, como expomos inicialmente, temos um contexto de aumento da demanda punitiva, como entender essa adoção crescente
das penas e medidas alternativas? No curto espaço deste trabalho,
lançamos uma hipótese.
4
BIOPODER E RACISMO DE ESTADO
Se, na teoria clássica da soberania, o soberano aparece como
aquele que pode fazer morrer ou deixar viver, Foucault (2005) assinala uma transformação no direito político durante o século XIX em
que se dá uma complementação, uma penetração desse direito de
soberania por um poder de fazer viver e de deixar morrer. Durante
a segunda metade do século XVIII, surge outra tecnologia de poder, diversa daquela disciplinar que se instalara no final do século
XVII e no decorrer do século XVIII. Essa nova tecnologia de poder
não vem substituir a técnica disciplinar, mas a ela se integra, atuando
num nível diferente, com outra superfície de suporte e auxiliada por
outros instrumentos. Sua aplicação se dirige ao homem vivo, ao
homem ser vivo, ao “homem-espécie” (FOUCAULT, 2005, p. 289), à
multiplicidade dos homens enquanto massa global afetada por processos que são próprios da vida, como o nascimento, a morte, a doença. Se constitui o que esse autor chama de “biopolítica” da espécie humana (ibidem), cujos primeiros objetos de saber e alvos de
controle serão esses processos de natalidade, de mortalidade, de
longevidade, associados a outros problemas econômicos e políticos.
No funcionamento dessa tecnologia de poder, produz-se um
novo elemento, que não é o indivíduo ou a sociedade compreendidos pela teoria do direito e nem o corpo do indivíduo objeto das
disciplinas, mas um corpo múltiplo: a noção de população. Os fenômenos que serão levados em consideração por essa biopolítica
são aqueles coletivos, cujos efeitos se tornam pertinentes somente
no nível da massa, que analisados isoladamente se mostram aleatórios e imprevisíveis, mas que no plano coletivo apresentam constan-
86
Guilherme Augusto Dornelles de Souza
tes possíveis de serem estabelecidas. Além disso, os mecanismos
implantados pela biopolítica buscarão intervir nesses fenômenos
naquilo que eles têm de global – buscar-se-á diminuir a morbidade,
estimular a natalidade, aumentar a longevidade – de modo a que,
numa dada população, possa estabelecer certo equilíbrio, otimizando um “estado de vida” (FOUCAULT, 2005, p. 294). Mecanismos
que, assim como os disciplinares, mas por outras vias, buscarão
maximizar forças e extraí-las, assegurando sobre os processos biológicos do homem enquanto espécie certa regulamentação. Enquanto a soberania fazia morrer e deixava viver, aparece aí um poder que Foucault (2005) chama de regulamentação e que consiste
em fazer viver e deixar morrer.
Foucault (2005) coloca a questão de como, nessa tecnologia
de poder cujo objeto e objetivo são a vida, poder-se-á exercer o direito de matar; como um poder que busca aumentar a vida, prolongá-la, multiplicar suas possibilidades pode deixar morrer? Para o
autor em questão, intervém aí a noção de racismo.
O racismo já existia há muito tempo, mas, segundo Foucault
(2005), se insere nos mecanismos de Estado a partir da emergência
do biopoder. O racismo, para o autor, em primeiro lugar, é um meio
de produzir um corte nesse domínio da vida de que se ocupou o
poder, produzindo uma distinção entre o que deve viver e o que
deve morrer. O aparecimento das raças, a qualificação de algumas
delas como inferiores e de outras como superiores são uma maneira
de fragmentar a população de que o poder se ocupa, tratando-a
como uma mistura de raças, e de dentro dela destacar alguns grupos em relação a outros.
Em segundo lugar, o racismo permite estabelecer entre a vida
de um sujeito e a morte de outro uma relação que não é a de enfrentamento, mas sim do tipo biológico. Quanto mais subgrupos
inferiores, sujeitos anormais, forem eliminados, menos degenerados
haverá em relação à espécie, mas os demais sujeitos, não enquanto
indivíduos, mas enquanto espécie, poderão viver. A morte da raça
ruim, do degenerado, do anormal é o que vai deixar a vida em geral
mais sadia e mais pura. Os inimigos que devem ser suprimidos não
são os adversários em seu sentido político, mas os perigos, os riscos,
externos e internos, em relação à população e para a população
(FOUCAULT, 2005).
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
87
Em outras palavras, tirar a vida, o imperativo da morte, só é
admissível, no sistema de biopoder, se tende não à vitória sobre os adversários políticos, mas a eliminação do perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou raça. A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização. […] A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder,
pelo racismo. (FOUCAULT, 2005, p. 306)
Como esclarece Foucault (2005), tirar a vida aqui não significa somente matar diretamente, mas também expor à morte, aumentar o risco de morte para alguns, produzir a morte política, a expulsão, a rejeição, etc. O racismo irrompe num determinado número de
pontos privilegiados em que justamente a produção de morte é necessária – a colonização (no genocídio colonizador), a guerra (quando não só se matam adversários, mas se expõe à morte toda a população que se deveria fazer viver). De igual maneira, quando a criminalidade é pensada a partir do racismo é porque, naquele momento, era preciso possibilitar a condenação à morte ou o isolamento de um criminoso num Estado que operava a partir do biopoder.
5
AS ALTERNATIVAS À PENA DE PRISÃO
Toma-se aqui o Estado brasileiro como atravessado por e operando através de mecanismos de biopoder, em que a vida e a produção da vida é refletida em inúmeras políticas públicas. Como,
neste Estado, que opera numa lógica de biopoder, sabendo-se de
todos os riscos e perigos para a vida produzidos pelo encarceramento, se justifica a permanência da prisão, mesmo havendo alternativas concretas a ela? Na hipótese deste trabalho, a partir do jogo
inscrito em todos Estados modernos entre o direito soberano de matar e os mecanismos de biopoder (FOUCAULT, 2005) e da lógica do
racismo de Estado.
Em um discurso que defende a aplicação das penas e medidas
alternativas, afirma-se a falência da prisão como resposta ao delito,
no sentido de sua incapacidade em evitar ou mesmo diminuir a
ocorrência de atos qualificados como crimes. Afirma-se não só a sua
incapacidade de produzir os resultados explicitamente esperados
88
Guilherme Augusto Dornelles de Souza
de diminuição dos delitos, mas igualmente o seu papel no incremento da reincidência quando comparada com outras formas de
responder ao delito. Ainda assim, as penas e medidas alternativas,
quando presentes na política criminal do Estado, não o são enquanto um substitutivo da prisão para todos, mas para aqueles sujeitos a
quem o encarceramento provocaria mais males do que benefícios.
Males e benefícios a quem? Ao sujeito que deixou de ser encarcerado? Sim, mas também ao restante da população, que o receberia
após ter cumprido “seu” tempo de cárcere.
Afirma-se que o indivíduo deixa de ser encarcerado porque,
se o fosse, sairia da prisão representando mais risco, mais perigo ao
restante da população da qual participa quando em liberdade, afirmativa associada a uma “carreira criminosa” que o sujeito aperfeiçoaria durante o tempo que permaneceria na prisão. Incentiva-se
também a aplicação das penas e medidas alternativas a partir do
argumento da diminuição da reincidência que, no final das contas,
é uma medida da proporção de indivíduos que voltam a produzir
um dano à população – diminuindo-se a reincidência, diminui-se
um dos fatores de risco (a delinquência) para a existência do restante da população.
Se as penas alternativas não são para todos, como definir para
quem são? Conforme o artigo 43, inciso III, do Código Penal, para
aqueles cuja “culpabilidade”, “antecedentes”, “conduta social” e
“personalidade”, bem como “os motivos e as circunstâncias”, indicam que a substituição da pena de prisão pelas penas restritivas de
direitos seja “suficiente”. A atualização dessas categorias se dará na
decisão do juiz sobre o caso concreto, mas já na Exposição de Motivos da Lei 7.209/84, como vimos acima, podemos encontrar um indício de quem são eles: os “delinquentes sem periculosidade”. As
penas alternativas foram propostas para os “delinquentes sem periculosidade” para que a prisão ficasse restrita aos “casos de reconhecida necessidade” de forma a “impedir a ação criminógena cada
vez maior do cárcere”, bem como as “consequências maléficas para
os infratores primários, ocasionais ou responsáveis por delitos de
pequena significação”3.
3
Todas as expressões acima foram destacadas do trecho da Exposição de Motivos da Lei 7.209/84 citada supra.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
89
A reforma do Código Penal que introduziu a possibilidade de
aplicação das penas alternativas também eliminou o sistema de
penas e medidas de segurança conhecido como “duplo binário”
(SANTOS, 2007, p. 510), no qual a um mesmo agente, em razão da
prática de uma conduta definida como crime, poderia ser aplicada
uma pena, em regra privativa de liberdade, com fundamento na
culpabilidade desse agente, cumulada com uma “medida de segurança”4, analisada em virtude da periculosidade desse agente, e
que seria aplicada após o cumprimento da pena privativa de liberdade aplicada. Com a reforma realizada pela Lei 7.209/84, ou o
agente é considerado “imputável”, ou seja, capaz de compreender a
ilicitude da sua conduta e determinar-se segundo essa compreensão, e recebe uma pena, ou então é considerado “inimputável”,
sendo aplicada uma medida segurança que será ou internação em
hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou sujeição a tratamento ambulatorial.
Nesse sistema do duplo binário, a periculosidade do agente
poderia ser presumida nas hipóteses definidas pela lei5 ou então
avaliada pelo juiz na sentença ou durante a execução da pena. Nas
situações em que a periculosidade não era presumida, deveria “[…]
ser reconhecido perigoso o indivíduo, se a sua personalidade e antecedentes, bem como os motivos e circunstâncias do crime autorizam a suposição de que venha ou torne a delinquir” (BRASIL,
1940), conforme então determinado pelo artigo 77 do Código Penal.
Comparando essa formulação para avaliação da periculosidade do
sujeito com aquela utilizada para avaliar se seria adequada a substituição da pena privativa de liberdade por uma pena alternativa,
vemos uma semelhança considerável – tanto a referência quanto
aos antecedentes e à personalidade do agente, quanto aos motivos
4
5
O artigo 88 do Código Penal antes da reforma realizada pela Lei 7.209/84 definia como medidas de segurança passíveis de aplicação: a internação em manicômio judiciário, a internação em casa de custódia e tratamento, a internação
em colônia agrícola ou em instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino
profissional, a liberdade vigiada, a proibição de frequentar determinados lugares e o exílio local.
Alguns “presumidamente perigosos” previstos no Código Penal, antes da reforma de 84, no artigo 70: “os condenados por crime cometido em estado de
embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, se habitual a embriaguez”; “os reincidentes em crime doloso”; “os condenados por crime que hajam cometido como filiados a associação, bando ou quadrilha de malfeitores”.
90
Guilherme Augusto Dornelles de Souza
e circunstâncias do crime estão presentes em ambas. No caso da
formulação utilizada para avaliar a possibilidade de aplicação das
penas alternativas, foi agregada ainda uma análise da conduta social do sujeito infrator, o que, de certo modo, aponta que a avaliação que o juiz deve fazer foi aprofundada e refinada.
Algumas inquietações: ao afirmar a existência de delinquentes sem periculosidade, afirma-se a existência de “delinquentes
perigosos”. Se aos delinquentes sem periculosidade aplicam-se as
penas alternativas, aqueles que estão na prisão são desses “delinquentes perigosos”, caracterizando casos em que a prisão não é só
imposta, mas trata-se de uma “reconhecida necessidade”. A esses
“delinquentes sem periculosidade”, o cárcere representa um fator
“criminógeno” com “consequências maléficas”. Aos “delinquentes
perigosos” não?
Nossa hipótese, assim, é a de que as penas alternativas operam a partir de cisões, em primeiro lugar, entre “delinquentes” e
“não delinquentes” e, posteriormente, entre “delinquentes perigosos” e “delinquentes sem periculosidade”, numa tentativa de responder aos danos reconhecidamente provocados pelas políticas até
então adotadas. De forma a aumentar a população dos “não delinquentes” e diminuir os riscos provocados a ela pelos “delinquentes”, busca-se estabelecer dentre estes últimos quais os mais aptos
a participar daquela outra população (a partir da análise, conforme
determinado em lei, de sua “culpabilidade”, “antecedentes”, “conduta social” e “personalidade”, bem como “os motivos e as circunstâncias”) reservando-se aos demais a morte simbólica (e em muitos
casos real) mediante o cárcere. A prisão, contudo, com suas “consequências maléficas” e sua “ação criminógena” permanece justificada em relação aos “delinquentes perigosos”, pois constituem casos
de “reconhecida necessidade” e, aparentemente, num jogo de palavras, sem direito a alternativas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na criação do Programa Nacional de Apoio e Acompanhamento das Penas e Medidas Alternativas, em 2002, considerou-se
“a necessidade do encarceramento principalmente para criminosos
de maior potencial ofensivo” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2002).
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
91
Em 2010, o Conselho Nacional de Justiça lançou a campanha “A
solução não é punir menos, é punir melhor”, para promover a aplicação da pena de prestação de serviços à comunidade, campanha
também adotada no VII Congresso Nacional de Alternativas Penais,
realizado em 2011, pelo Ministério da Justiça. Um dos fundamentos
afirmados para a criação da Estratégia Nacional de Alternativas
Penais, em 2011, foi “a necessidade de estabelecer a máxima eficácia de resposta ao conflito social provocado pela prática de infrações penais” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011). No “Manual de
Monitoramento das Penas e Medidas Alternativas”, lançado pela
Central Nacional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas
Alternativas, em 2002, há referência à complementaridade de dois
campos de linguagem, em que o saber técnico-jurídico constrói a
complementaridade de conceitos fundamentais no “mundo jurídico” e no “mundo psicossocial”: conduta/comportamento, fiscalização/acompanhamento, cumprimento da pena/reinserção social
(SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA; CENTRAL NACIONAL
DE APOIO E ACOMPANHAMENTO ÀS PENAS E MEDIDAS
ALTERNATIVAS, 2002).
“Casos de reconhecida necessidade”, “delinquentes sem periculosidade”, “integração social”, “mínimo necessário de força punitiva”, “criminosos de maior potencial ofensivo”, “máxima eficácia”,
“punir melhor”, “reinserção social”: apesar de enunciada como
“uma” política nacional a partir de 2000 (BARRETO, 2010), aparentemente diferentes formas de falar sobre o crime, a punição, e seus
sujeitos, circulam na construção das alternativas penais à prisão.
No entanto, talvez justamente por estarem todas articuladas em
torno de algo que se constitui enquanto “uma” política nacional,
tais diferenças ficam invisibilizadas.
Se a instituição de alternativas penais à pena de prisão pode
se dar a partir de diferentes perspectivas, então podem ser igualmente diferentes as formas como tais alternativas se articulam em
relação às penas privativas de liberdade. Da mesma forma, diferentes maneiras de compreender as condutas e os sujeitos criminalizados poderão ser legitimadas em torno de algo que aparentemente é
uma mesma política. Assim, para além dos números de pessoas
submetidas a alternativas penais, de instituições conveniadas, Varas especializadas e Centrais de acompanhamento, torna-se neces-
92
Guilherme Augusto Dornelles de Souza
sário examinar aquilo que esses números talvez ocultem – os modos
como diferentes discursos sobre o crime, a punição, e seus sujeitos,
bem como sobre as relações entre a prisão e suas alternativas, foram
investidos na construção das políticas de alternativas penais à pena
de prisão no Brasil, para que se possa pensar nos possíveis efeitos
desses discursos naquilo que representam esses e outros tantos números que compõem as estatísticas da política criminal brasileira.
A criação da Estratégia Nacional de Alternativas Penais –
ENAPE, pelo Ministério da Justiça, em 2011, aponta a relevância e
atualidade dessa discussão. A ENAPE representou não só a continuação da política de penas e medidas alternativas em nível nacional, mas a sua ampliação para abranger também a conciliação, a
mediação, programas de justiça restaurativa realizados por meio
dos órgãos do sistema de justiça e por outros mecanismos extrajudiciais de intervenção, medidas cautelares pessoais diversas da prisão
e medidas protetivas de urgência. Sendo este um momento de mudança nessa política, a reflexão sobre as diferentes perspectivas
sobre o crime e a punição implicadas nas alternativas penais à prisão no Brasil, bem como acerca de suas condições de emergência,
possibilita melhor compreensão do contexto em que essa mudança
ocorre e que posicionamentos são possíveis para aqueles que buscam alternativas à prisão e não alternativas além da prisão. Não se
trata de fazer a crítica das alternativas a partir daquilo que elas não
são ou do que elas não foram, mas da necessidade de se pensar as
alternativas para pensarmos em alternativas.
Assim, pensando com base em Foucault (1981/2010a), as formas de conceber o crime e as práticas investidas no seu controle,
enquanto modos de governo dos homens pelos homens, supõem
certa forma de racionalidade, e os que buscam resistir contra uma
forma de poder nelas presente não podem contentar-se em denunciar a violência das agências policiais ou em criticar uma instituição
como a prisão. É preciso colocar em questão a própria forma de racionalidade presente nessas agências e instituições voltadas ao
crime e seu controle, perguntar-se como são racionalizadas as relações de poder existentes em seus modos de funcionamento. Colocar
essa racionalidade em evidência é o único modo de evitar que outras instituições, que, apesar de serem colocadas como contraponto,
articulam-se em torno dos mesmos objetivos e produzem os mesmos
efeitos, tomem o seu lugar.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
93
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AZEVEDO, Rodrigo. Sociologia e Justiça Penal: Teoria e Prática da Pesquisa Sociocriminológica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010a.
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94
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Capítulo 6
Josiane Petry Faria
Doutoranda em Direito pela Universidade de
Santa Cruz do Sul, professora da Faculdade
de Direito da Universidade de Passo Fundo.
Contato: [email protected]
Renato Fioreze
Mestrando em Direito pela Universidade de
Santa Cruz do Sul, professor da Faculdade de
Direito da Universidade de Passo Fundo.
Contato: [email protected]
RELAÇÕES DE
PODER,
RACIONALIDADE E
DESENVOLVIMENTO:
UMA ANÁLISE DO
MARCO
REGULATÓRIO DAS
INOVAÇÕES
TECNOLÓGICAS E A
BUSCA DA
SUSTENTABILIDADE
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O estudo, apesar da brevidade, tem por objetivo apresentar e
descrever os marcos regulatórios legais pertinentes à inovação tecnológica e propriedade intelectual. Visa, também, discutir a adequação e necessidade de tais normativas face ao incremento e ao
risco proporcionado pela bioenergia visando ao desenvolvimento
sustentável.
Parte do pressuposto que, na contemporaneidade, o conhecimento concretizado na inovação tecnológica é identificado como
poder e, como tal, pode ser interpretado como problema ou como
oportunidade de inclusão social e otimização da participação sociopolítica para concretização dos direitos sociais e, consequentemente,
do Estado Democrático de Direito.
96
Josiane Petry Faria & Renato Fioreze
No intuito de apresentar as bases teóricas e o contexto apropriado para o desenvolvimento da problemática, delimitou-se a
abordagem na exposição sobre o poder na passagem da modernidade para a pós-modernidade; o conhecimento, a inovação tecnológica e os marcos regulatórios e ainda as questões atinentes ao desenvolvimento sustentável e a necessidade de regulação.
A problemática se mostra atual e oportuna, considerando o
Estado Democrático de Direito e a necessidade de cogestão pública
para efetivação dos direitos sociais, a fim de democratizar as oportunidades oferecidas pela inovação tecnológica, sobretudo com relação à bioenergia e ao desenvolvimento sustentável, observados os
valores constitucionais.
1
A PASSAGEM DA MODERNIDADE PARA A PÓS-MODERNIDADE:
RACIONALIDADE E PODER
Em retrospectiva histórica, o mundo ocidental pode ser descrito em duas grandes fases. Na primeira, a centralidade está na
figura divina, a qual detém o poder sobre os homens, meros governados; na segunda, a divindade é questionada e os homens passam
a tomar decisões e assumem responsabilidade sobre os acontecimentos sociais. A primeira fase jamais retomou sua onipresença,
porém permanece vívida na criação dos mitos que atuam quando a
razão carece de argumentos. Os modernos o adotaram para explicar
a passagem do estado de natureza para a sociedade civil, mito esse
que legitimou a organização política construída pela burguesia dos
séculos XVII ao XIX (LAPIERRE, 2003, p. 32-35).
A razão erigida à categoria de novo paradigma inaugurou e
representou a modernidade, rompendo com a matriz anterior baseada na ordem metafísica do inexplicável fora dos padrões divinos. A
nova perspectiva fez do Direito instrumento da razão. Os reformadores utilizavam a legislação como instrumento para a concretização de seus objetivos e, portanto, se opunham a todas as fontes que
poderiam trazer problemas para a realização dos planos modernos,
como o costume e a jurisprudência. A ideia de um direito nacional e
uniforme, além de promover a nação, proporcionava a possibilidade
de controle sobre o desenvolvimento jurídico. “A secularização do
direito, sua emancipação da autoridade da teologia e do direito di-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
97
vino, foi um objetivo amplamente alcançado pelo Iluminismo”
(CAENEGEM, 1999, p. 197).
Contraditoriamente, a modernidade vinculada à racionalidade
busca apoio em mitos, ou seja, aspectos impossíveis de serem comprovados pela aplicação das regras e dos métodos da ciência. Dessa
forma, as bases da modernidade são frágeis. Na pós-modernidade,
o mito de origem não existe, abrindo espaço para a construção e
entendimento da realidade como fonte e construção da história.
A partir do século XIX, a modernidade é associada à industrialização, ao progresso e às formas lineares de organização social e
estatal, bem como de potencialização e afirmação do individualismo.
A valorização do ser humano na sua individualidade transformou o
imaginário social e potencializou o individualismo em oposição aos
interesses coletivos. A racionalidade burguesa, além de não cumprir as promessas e expectativas de redenção no futuro, provocou e
sustentou duas grandes guerras mundiais, a fome, a crise e derrocada do mundo socialista eivado de contradições desde o início, as
guerras religiosas e a intolerância, levando a brutalidade ao extremo com repressões, extermínios e exclusões.
Essa desilusão deságua na crise da modernidade e “situa-se
numa geografia peculiar, entre as revoluções das expectativas crescentes e otimistas projetadas no futuro e as revoluções das expectativas frustradas do presente” (DIEHL, 1997, p. 12). Desfez-se a
ideia de progresso constante, de eterna superação positiva do homem por meio da racionalidade.
A crise originada da consciência acerca dos limites da razão
moderna leva à Pós-modernidade, que, com características ainda não
totalmente definidas, se opõe a conceitos dogmáticos estáticos. A
inovação tecnológica inaugura oportunidades e problemas até então
desconhecidos. A participação da comunidade nessa nova teia de
conhecimento e informação é cada vez maior e na mesma proporção
crescem as incertezas. As inter-relações se veem ameaçadas pelo
risco da despersonalização e da retomada do individualismo.
A Pós-modernidade representa uma insatisfação com os valores modernos, um chamamento para o tempo presente como objeto
de estudo, análise e reflexão, respeitando a história passada e construindo o futuro concomitantemente.
98
Josiane Petry Faria & Renato Fioreze
Para Warat, as concepções modernas sobre o mundo se modificaram, o paradigma da modernidade se quebrou e, com isso, a
cidadania emergiu no século XXI com outra personalidade, ou seja,
a cidadania complexa voltada para a circunstancialização dos fenômenos e afastada do objetivo de progresso pelo progresso. Não
admite mais a compreensão de cidadão como aquele que se resume
à participação indireta na criação das normas jurídicas.
En nombre de la ciudadanía y de los Derechos Humanos, dos
expresiones que reputo equivalentes, el siglo XX mancho de
sangre, nos inundó de genocidas e genocidios alternativamente. En nombre de estas dos expresiones no se consiguió más
que las formas tragicómicas de la emancipación o de la autonomía del hombre comienza a insinuarse una nueva refundación de la visión de mundo que puede acompañar, con sus delires, el siglo que terminamos de inaugurar. A especie está
buscando reinventar la visión de mundo y los vínculos con el
otro pensamos repensar expresiones como ciudadanía y derechos humanos desde un asustador abismo de sentidos.
(WARAT, 2005, p. 12)
Na pós-modernidade, tem-se a persistência de elementos da
modernidade, fazendo com que se questione: qual o sentido das
leis e do poder político? A resposta precisa ser construída ao longo
das práticas da cidadania complexa, todavia, certo é que “indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os
indiferentes. A indiferença é peso morto da história. […] Odeio os
indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias
de eternos inocentes” (GRAMSCI, 2005, p. 45).
As teses pós-modernas podem ser interpretadas como problemas ou oportunidades. Acena-se um horizonte de inclusão social,
mas para se atingi-lo é imprescindível partir-se da crise de sentido
e reforçar-se à ideia da cidadania complexa sempre contextualizada
e possuindo como base a sustentabilidade do futuro fundada nos
princípios e valores constitucionais expostos e garantidos na legislação, utilizando-se das normas como mecanismos de proteção e
inclusão social.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
2
99
MARCOS REGULATÓRIOS E PROTEÇÃO VOLTADOS AO
CONHECIMENTO, À INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E À
PROPRIEDADE INTELECTUAL
O conhecimento é um processo evolutivo, resultando da “comunhão do processo empírico com o científico”, sendo composto
pela conjugação de diversas iniciativas de criação e inovação. Na
era do conhecimento, “as inovações científicas e tecnológicas” são
a “mola propulsora do desenvolvimento” (BOFF, 2009, p. 86). Desse
modo, a propriedade da tecnologia determina a superioridade econômica, sendo fundamental para a manutenção das hegemonias,
ampliação de dependência e de exclusão, “o capital intelectual passou a ser o principal ativo de empresas e instituições, impulsionadas por essa nova realidade” (BOFF, 2009, p. 44), tendo em tal monopólio, mesmo que temporário, seu valor.
A proteção jurídica das inovações possibilita segurança para a
proteção de processos, invenções e criações científicas, visando
coibir a concorrência desleal, domínios industriais e científicos, no
que se denomina ‘propriedade intelectual’, que regula o exercício, o
uso, aquisição dos direitos e, também, os ditames acerca da utilização por terceiros dos resultados de suas criações sobre a propriedade intelectual. Tais normas possuem caráter internacional1 que,
além de consolidar maior proteção à propriedade intelectual e ao
desenvolvimento tecnológico, determinaram a adaptação das legislações dos países signatários em relação às regras e disciplinas estabelecidas, também estabelecendo princípios de proteção e norteando as políticas públicas em tal sentido, traçando, ainda, os objetivos do desenvolvimento e da tecnologia2.
1
2
Existem tratados internacionais como as Convenções União de Paris e de Berna, ainda do século XIX, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual
(OMPI) e o Acordo sobre Aspectos do Direito de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs).
“O TRIPs está fundado nos seguintes princípios: da proteção mínima; do tratamento nacional; da nação mais favorecida; da promoção e da inovação, da
transferência e difusão tecnológica; da compatibilidade com outros tratados; do
princípio de cooperação; da transparência, publicidade das normas e tutela jurídica e do esgotamento.” (BOFF, 2009, p. 35)
100
Josiane Petry Faria & Renato Fioreze
No Brasil, a propriedade intelectual é tratada pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, incisos XXVII3, XXVIII4,
XXIX5, e também pelas Leis 9.610/98, 9.609/98, 9.279/96, 9.456/97,
10.603/02 e 11.484/07, protegendo vários aspectos do direito do autor, das invenções, das tecnologias, das inovações, com o objetivo
instrumentalizar o desenvolvimento e os princípios da atividade
econômica (CF/88, arts. 170 a 181). Além dessas regulamentações,
existe uma diversidade de atos administrativos que tratam da propriedade intelectual.
A inovação, nutrida com a proteção jurídica, se consolida como fator apto a garantir o progresso, a competitividade, a rentabilidade, essencial para a sobrevivência das empresas na economia
globalizada, também é apta a implementar o potencial criativo de
forma organizada “através de redes, convênios, buscando somar
esforços e ampliar a gestão das criações” (BOFF, 2009, p. 89).
Assim, esperam-se de um contexto inovador “propostas focadas em promover solução a problemas […] relacionados ao desenvolvimento local, a geração de trabalho e renda, a alimentação, a
saúde, a energia, a moradia e a agricultura familiar, abrangendo
outros temas como a ecologia, a promoção e a efetivação dos direitos humanos […]” (BOFF; BOFF, 2011, p. 25).
Assim, a presença de marcos regulatórios demonstra a necessidade de utilização do potencial normativo do Direito na perspectiva de conceituação, caracterização e proteção. Devido à recente
história brasileira de afastamento dos valores e princípios democrático, não é possível prescindir da legislação em matéria tão significativa na contemporaneidade. Todavia, esses marcos precisam estar
conectados com as políticas públicas contextualizadas pela ordem
democrática e inspiradas no desenvolvimento sustentável.
3
4
5
“Aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar.”
“São assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais
em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico
das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e
às respectivas representações sindicais e associativas.”
“A lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para
sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das
marcas, os nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o
interesse social e o desenvolvimento tecnológico do país.”
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
3
101
A PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PELA TECNOLOGIA E
REGULAÇÃO
No tocante aos reclames da sustentabilidade, o desenvolvimento das tecnologias necessita aliar-se à busca por qualidade de
vida para as gerações presentes e futuras, conforme dispõe o artigo
170, inciso VI, da Constituição Federal6. Para que tenhamos padrões sustentáveis de produção e consumo, devem haver ciclos
“imitando os processos da natureza e da vida. Mas para atingir esses padrões, faz-se necessário um replanejamento das atividades
comerciais e da visão econômica” (CADORI, 2009, p. 114).
Assim, o desenvolvimento é composto de elementos econômicos, sociais, culturais, envolvendo aspectos jurídicos e também políticos acessíveis e voltados a todos, como forma de emancipação e a
inovação acaba por tornar-se um processo que combina esses aspectos, na busca de uma “boa sociedade”, na qual os indivíduos se
constituam fins em si mesmos, não como meros instrumentos para a
consecução de objetivos utilitários e materiais (ETZIONI, 2001, p.
114).
Em uma sociedade marcada pela desigualdade social, remetendo à pobreza dos indivíduos, situação de origem complexa, vinculada não só à renda, mas também ao fato de que indivíduo considerado pobre está “privado dos recursos e meios que possibilitam o
exercício efetivo da liberdade e de uma situação de bem-estar”, o
desenvolvimento marcado pela inclusão tecnológica, com acesso
dos indivíduos às inovações, é imperiosa contra “mecanismos que
criam, preservam ou mesmo agravam a pobreza” (SCHMIDT, 2006,
p. 1.758).
Portanto, não é somente o crescimento econômico e o mercado que são aptos a enfrentar a pobreza e a exclusão social. É necessária a possibilidade de que os indivíduos e os povos possam ser e
6
Propõe Juarez Freitas (2011, p. 41) como conceito para o princípio da sustentabilidade “[…] princípio constitucional que determina, independentemente da
regulamentação legal, com eficácia direta e imediata a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e
imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo,
inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo
preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar físico,
psíquico e espiritual, em consonância homeostática com o bem estar de todos.”.
102
Josiane Petry Faria & Renato Fioreze
ter parte no processo de desenvolvimento inclusivo no avanço tecnológico e ao acesso ao produto das inovações, o que se constitui
em ferramenta estratégica distante da concepção ideológica da globalização, trazendo alternativas ao desenvolvimento.
No tocante ao comércio, Zibetti (2006, p. 174) afirma que se a
tecnologia pode ser protegida pelos direitos de propriedade intelectual, “ela pode ser objeto de normatização ou regulamentação técnica
para sua produção ou comercialização no mercado”, sendo o marco
regulatório “responsável pela criação de um ambiente que concilie a
saúde econômico-financeira das empresas com as exigências e as
expectativas do mercado consumidor” (WOLFENBUTTEL, 2012).
O marco regulatório, assim, tem inicialmente a função de desenvolver standards (padrões tecnológicos) às tecnologias “que estão em constante aperfeiçoamento e que […] são objetos de proteção por meio de propriedade intelectual. Somado ao aumento do
padrão de proteção dos direitos de propriedade intelectual”
(ZIBETTI, 2006, p. 202), que determina “padrões técnicos em relação a certa tecnologia, que pode relacionar-se a padrões de produto
ou processo” (ZIBETTI, 2006, p. 175), que determinam especificidades técnicas.
Essas especificidades técnicas são privadas, quando dizem
respeito à propriedade da iniciativa privada, na qual a especificação
técnica fica atrelada aos ditames do mercado, inserindo-se em tal
classificação os standards determinados por organizações não governamentais, que tem vistas ao aspecto coletivo (ZIBETTI, 2006, p.
177).
Elas são afirmadas como públicas quando estabelecidas por
uma lei interna, destacando-se que “muitos standards públicos,
adotados pelos governos, são baseados em especificações técnicas e
iniciativas de organizações privadas” (ZIBETTI, 2006, 177), sendo
definidos como mandatórios ou compulsórios por objetivarem o interesse público.
Os standards, ainda, são classificados em “proprietários e não
proprietários”, em que os primeiros são “criados sob a direção de
uma ou mais empresas privadas”, possuindo acesso restrito e os não
proprietários são abertos, isto é, “são desenvolvidos […] e mantidos
por meio de um processo conduzido de forma colaborativa e consensual” e “usados para facilitar a interoperabilidade e troca de
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
103
dados entre distintos produtos e serviços, tendo como propósito
uma adoção generalizada”. O standard fechado “tende a restringir
o número de licenças de uso da tecnologia […] como é o caso da
Apple Computer e do Ipod” (ZIBETTI, 2006, p. 179). Observe-se:
[…] as discussões sobre standards abertos voltam-se para esquemas de royalties, considerando-se a pluralidade de direitos
de propriedade envolvidos. Neste contexto, observa-se que as
idéias de livre acesso não se confundem com acesso gratuito,
ou seja, um standard aberto pode incluir compensação monetária. (ZIBETTI, 2006, p. 180)
O que dever ser pontuado é que, independentemente dos
conceitos trazidos, o estabelecimento de standards diversamente da
propriedade intelectual, que determina um direito privado de exclusividade, remetem à coletivização (ZIBETTI, 2006, p. 181), estimulando o comércio, o desenvolvimento e o acesso a tecnologia.
Destaca Denis Borges Babosa (2012, p. 8) que: “tanto a regulação específica da Propriedade Industrial quanto os demais dispositivos que, na Carta de 1988, referentes à tecnologia, são acordes
ao eleger como princípio constitucional o favorecimento do desenvolvimento tecnológico do País”, o que, frente aos reclames de sustentabilidade, demanda uma abordagem sistêmica.
Assim, impõe-se um “Estado regulador das atividades econômicas, capaz de dirigi-las e ajustá-las aos valores e princípios constitucionais, objetivando o desenvolvimento humano e social de forma ambientalmente sustentável”. Na busca da sustentabilidade, há
o confronto com “o direito de propriedade privada e a livre iniciativa”, estabelecidos no artigo 170, caput e inciso II, da Constituição
Federal, o que determina uma leitura do capitalismo liberal em “à
luz dos valores e princípios constitucionais socioambientais”. Tal
situação determina a emergência do “capitalismo socioambiental
[…] capaz de compatibilizar a livre iniciativa, a autonomia privada
e a propriedade privada com proteção ambiental e as justiças ambiental e social”, o que acarreta a “a proteção e promoção de uma
vida humana digna e saudável” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2010,
p. 22), a toda a sociedade.
A utilização de energia solar, eólica, biocombustíveis e biomassa, novas matrizes de energia baseadas em novas tecnologias,
104
Josiane Petry Faria & Renato Fioreze
fazem parte da política energética do Estado7 e do processo e do
planejamento do desenvolvimento sustentável para enfrentar desafios e criar oportunidades futuras. Ainda, verifica-se também uma
busca de soberania na produção de energia com a opção por tecnologias que evitem a dependência externa, em que se verificam
agentes privados que realizam atividades de utilidade pública.
4
OS MARCOS REGULATÓRIOS REFERENTES À BIOENERGIA E
SEU PAPEL ANTE O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
O marco regulatório no Brasil apresenta-se como um arcabouço de normas e orientações para atividade desses setores e tem origem na Constituição Federal (art. 174).
O artigo 22 da Constituição Federal determina a competência
privativa da União para legislar sobre energia, estabelecendo, em
seu parágrafo único, que a “Lei complementar poderá autorizar os
Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”, estabelecendo o regime de competências legislativas, o que se verifica também em relação à proteção do meio
ambiente (art. 23, inc. VI e art. 24, inc. VI e § 1º a 4º).
De tais mandamentos, verifica-se contemplado o princípio do
desenvolvimento sustentável, compatível com o desenvolvimento
7
Conforme a Lei 9.478, de 06 de agosto de 1997, em seu artigo 1º: “As políticas
nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia visarão aos seguintes objetivos: I – preservar o interesse nacional; II – promover o desenvolvimento, ampliar o mercado de trabalho e valorizar os recursos energéticos; III
– proteger os interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos
produtos; IV – proteger o meio ambiente e promover a conservação de energia;
[…] VII – identificar as soluções mais adequadas para o suprimento de energia
elétrica nas diversas regiões do País; VIII – utilizar fontes alternativas de energia, mediante o aproveitamento econômico dos insumos disponíveis e das tecnologias aplicáveis; IX – promover a livre concorrência; X – atrair investimentos na produção de energia XI – ampliar a competitividade do País no mercado
internacional; XII – incrementar, em bases econômicas, sociais e ambientais, a
participação dos biocombustíveis na matriz energética nacional; XIII – garantir
o fornecimento de biocombustíveis em todo o território nacional; XIV – incentivar a geração de energia elétrica a partir da biomassa e de subprodutos da produção de biocombustíveis, em razão do seu caráter limpo, renovável e complementar à fonte hidráulica; XV – promover a competitividade do País no mercado internacional de biocombustíveis; […] XVII – fomentar a pesquisa e o desenvolvimento relacionados à energia renovável; XVIII – mitigar as emissões
de gases causadores de efeito estufa e de poluentes nos setores de energia e de
transportes, inclusive com o uso de biocombustíveis.”
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
105
econômico e social, “atendendo o espírito constitucional de reconhecer através de mecanismos operativos as práticas de estabelecimento no Brasil de novas fontes energéticas com baixo grau de
poluição em detrimento das mais poluentes” (HUMLER, 2011, p.
31). Destacando-se, ainda, que o “princípio do poluidor-pagador”
está estabelecido no artigo 225, § 3º, da Constituição Federal, o
qual fornece um padrão prático de incentivos “à introdução e desenvolvimento de tecnologias energéticas menos poluentes na matriz energética […] financiadas pelas que tenham maior grau poluidor” (HUMLER, 2011, p. 31).
O Ministério das Minas e Energia é competente para tratar
dos recursos energéticos do País, e tem vinculadas à sua estrutura
organizacional, estabelecida pelo Decreto 5.267, de 09 de novembro
de 2004, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP),
criadas na forma de autarquias8.
Em relação ao setor elétrico, a Lei 9.991/00 criou a MP 144/03,
a qual regulamentou o Programa de Pesquisa e Desenvolvimento
com vistas a incentivar a busca constante por inovações e fazer
frente aos desafios tecnológicos do setor, no qual “as empresas concessionárias, permissionárias ou autorizadas de distribuição, transmissão e geração de energia elétrica devem aplicar anualmente um
percentual mínimo de sua receita operacional líquida no Programa
de Pesquisa e Desenvolvimento do Setor de Energia Elétrica”, isentando de tal obrigação as pequenas centrais hidrelétricas, biomassa,
cogeração qualificada, usinas eólicas ou solares, tendo a Aneel a
incumbência de “regulamentar o investimento no programa, acompanhar a execução dos projetos e avaliar seus resultados”, destacando-se que, “diferentemente da pesquisa acadêmica pura, que se
caracteriza pela liberdade de investigação, os programas de P&D no
setor de energia elétrica deverão ter metas e resultados bem definidos” (ANEEL, 2012).
8
As agências reguladoras “foram criadas para fiscalizar a prestação de serviços
públicos praticados pela iniciativa privada. Além de controlar a qualidade na
prestação do serviço” e “estabelecem regras para o setor”, não ficando adstritas
à fiscalização, situação que “não compromete a autonomia e a existência de
competências próprias das autoridades competentes. Assim, cabe às agências
reguladoras a execução autônoma e técnico-burocrática das políticas ditadas
pela administração central”. (VELHO, 2009, p. 15)
106
Josiane Petry Faria & Renato Fioreze
O Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia
Elétrica (Proinfa) – Decreto 5.025, de 30 de março de 2004 –, também administrado pelo Ministério das Minas e Energia e instrumentalizado pela Eletrobrás, tem como objetivo, conforme o artigo
5º, “aumentar a participação da energia elétrica produzida por empreendimentos de Produtores Independentes Autônomos, concebidos com base em fontes eólica, pequenas centrais hidrelétricas e
biomassa, no Sistema Interligado Nacional […]. Destacando-se em
seu parágrafo único que “visa reduzir a emissão de gases de efeito
estufa, nos termos do Protocolo de Quioto à Convenção-Quadro das
Nações Unidas sobre Mudança do Clima, […], contribuindo para o
desenvolvimento sustentável”.
O Decreto 5.163, de 30 de julho de 2004, que regulamentou a
comercialização de energia elétrica9, em seu artigo 11, permitiu a
aquisição entre agentes vendedores e agentes de distribuição, por
meio de leilões de energia elétrica proveniente de empreendimentos de geração existentes e novos empreendimentos de geração,
que incrementam a participação de novas fontes de energia renovável na matriz energética do país, também incentivando investimentos, pesquisas e a introdução de inovações buscando energias
mais limpas. Tais leilões, promovidos pela Aneel e com subsídios
técnicos da Empresa de Pesquisa Energética10, têm tido como objeto, além de energia hidrelétrica, a energia eólica e a advinda da
biomassa, todavia, ainda não tem a energia eólica incluída na matriz energética, frente ao seu custo.
9
10
O artigo 2º da Lei 10.848, de 15 de março de 2004, estabeleceu que: “As concessionárias, as permissionárias e as autorizadas de serviço público de distribuição de energia elétrica do Sistema Interligado Nacional – SIN deverão garantir o atendimento à totalidade de seu mercado por meio de licitação, conforme regulamento o qual, observadas as diretrizes estabelecidas nos parágrafos deste artigo, disporá sobre: […] § 5º Os processos licitatórios necessários
para o atendimento ao disposto neste artigo deverão contemplar, dentre outros,
tratamento para: I – energia elétrica proveniente de empreendimentos de geração existentes; II – energia proveniente de novos empreendimentos de geração;
e III – fontes alternativas […]”.
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE), também vinculada ao Ministério de
Minas e Energia, conforme o artigo 2º, da Lei 10.847, de 15 de março de 2004,
tem como objetivo a prestação de serviços “na área de estudos e pesquisas destinadas a subsidiar o planejamento do setor energético” como a “energia elétrica, petróleo e gás natural e seus derivados, carvão mineral, fontes energéticas
renováveis e eficiência energética, dentre outras.”
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
107
O biocombustível, introduzido como matriz energética conforme artigo 6º, inciso XXIV, da Lei 9.478, de 6 de agosto de 1997,
é definido como
[...] substância derivada de biomassa renovável, tal como biodiesel, etanol e outras substâncias estabelecidas em regulamento da ANP, que pode ser empregada diretamente ou mediante alterações em motores a combustão interna ou para outro tipo de geração de energia, podendo substituir parcial ou
totalmente combustíveis de origem fóssil.
O biodiesel é entendido, conforme o mesmo artigo, inciso
XXV, como “biocombustível derivado de biomassa renovável para
uso em motores a combustão interna com ignição por compressão
ou, conforme regulamento, para geração de outro tipo de energia”.
Está estabelecido no artigo 2º da Lei 11.097, de 13 de janeiro de
2005, que deve ser “fixado em 5% (cinco por cento), em volume, o
percentual mínimo obrigatório de adição de biodiesel ao óleo diesel
comercializado ao consumidor final, em qualquer parte do território
nacional”.
A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), criada pela Lei 11.097, de 13 de janeiro de 2005, também vinculada ao Ministério das Minas e Energia, tem como missão, conforme o artigo 8º, promover “a regulação, a contratação e a
fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do
petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis”, para tanto verificando-se atribuições para implementar, “a política nacional de […]
biocombustíveis, contida na política energética nacional’ (inc. I) e,
também, elaborando editais e a promoção das “licitações para a
concessão de exploração, desenvolvimento e produção, celebrando
os contratos delas decorrentes e fiscalizando a sua execução” (inc.
IV); ainda “fiscalizar diretamente e de forma concorrente […], ou
mediante convênios com órgãos dos Estados e do Distrito Federal
as atividades integrantes da indústria […] dos biocombustíveis”,
ainda lhe sendo franqueada a possibilidade de “aplicar as sanções
administrativas e pecuniárias previstas em lei, regulamento ou contrato” (inc. VII).
Também tem a atribuição de “fazer cumprir as boas práticas
de conservação e uso racional do petróleo, gás natural, seus deriva-
108
Josiane Petry Faria & Renato Fioreze
dos e biocombustíveis e de preservação do meio ambiente” (inc.
IX), além de “estimular a pesquisa e a adoção de novas tecnologias
na exploração, produção, transporte, refino e processamento” (inc.
X), “organizar e manter o acervo das informações e dados técnicos
relativos às atividades reguladas da indústria do petróleo, do gás
natural e dos biocombustíveis” (inc. XI), regular e autorizar as atividades relacionadas com o abastecimento nacional de combustíveis (inc. XV), regular e autorizar as atividades relacionadas à produção, à importação, à exportação, à armazenagem, à estocagem,
ao transporte, à transferência, à distribuição, à revenda e à comercialização de biocombustíveis, assim como avaliação de conformidade e certificação de sua qualidade, fiscalizando-as diretamente
ou mediante convênios com outros órgãos da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios (inc. XVI) e “especificar a qualidade
dos derivados de petróleo, gás natural e seus derivados e dos biocombustíveis” (inc. XVIII).
Além de estabelecer os marcos regulatórios no tocante à realização de investimentos em pesquisa e desenvolvimento pelos concessionários (Resolução ANP 33/2005), também estabelece os critérios para o credenciamento das instituições de pesquisa e desenvolvimento aptas a participarem de projetos financiados com recursos
de investimentos em pesquisa e desenvolvimento (Resolução ANP
34/2005), que são exemplos de medidas de incentivo à inovação e à
pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, visando a
capacitação e busca da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento industrial do País (art. 1º), conforme a Lei 10.973, de 02 de dezembro de 2004 (Lei da Inovação), bem como ao disposto no Decreto 4.925, de 19 de dezembro de 2003, que estabelece o “Programa
de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural –
PROMINP, que visa fomentar a participação da indústria nacional
de bens e serviços, de forma competitiva e sustentável, na implantação de projetos de petróleo e gás no Brasil e no exterior” (art. 1º).
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que dentre
suas atribuições está a de estabelecer políticas nacionais de pesquisa científica e tecnológica e de incentivo à inovação, também planeja, coordena, supervisiona e controla as atividades de ciência, tecnologia e inovação. Detém, assim, como função estratégica fundamental, o desenvolvimento de “pesquisas e estudos que se tradu-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
109
zem em geração de conhecimento e de novas tecnologias, bem como a criação de produtos, processos, gestão e patentes nacionais”
(MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA, 2012).
Para o desenvolvimento de suas atividades, vale-se das estipulações como as constantes na Lei da Inovação e na Lei do Bem
(Lei 11.196, de 21 de novembro de 2005), implementadas pelo Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional (PACTI), que tem como objetivo consolidar o Sistema Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação, “com ênfase na
inovação tecnológica de empresas” (BRASIL, 2012, p. 11).
Também disponibiliza fontes de financiamento, que são mecanismos indispensáveis para políticas nacionais de pesquisa científica e tecnológica e de incentivo à inovação. Destaca-se a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), com Estatuto aprovado pelo
Decreto 1.808, de 07 de fevereiro de 1996, empresa pública vinculada ao Ministério da Ciência Tecnologia e Informação, que tem
como objetivo a promoção e o financiamento da inovação e a pesquisa de ciência e tecnologia “em empresas, universidades, institutos tecnológicos, centros de pesquisa e outras instituições públicas
ou privadas, mobilizando recursos financeiros e integrando instrumentos para o desenvolvimento econômico e social” (MINISTÉRIO
DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA, 2012).
Ainda, há o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (FNDCT) que, conforme a Lei 11.540, de 12 de novembro de 2007, em seu artigo 11, destina seus recursos ao suporte de
[…] programas, projetos e atividades de Ciência, Tecnologia e
Inovação – C,T&I, compreendendo a pesquisa básica ou aplicada, a inovação, a transferência de tecnologia e o desenvolvimento de novas tecnologias de produtos e processos, de
bens e de serviços, bem como a capacitação de recursos humanos, intercâmbio científico e tecnológico e a implementação, manutenção e recuperação de infraestrutura de pesquisa
de C,T&I.
Os recursos podem ser reembolsáveis ou não, sendo também
permitido o aporte de capital (art. 12). O FNDCT aplica seus recursos em fundos setoriais em ciência e tecnologia e em subvenções
econômicas para a inovação, como biotecnologia e energia.
110
Josiane Petry Faria & Renato Fioreze
Verifica-se, ainda, o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), criado pela Lei 1.310, de 15 de
janeiro de 1951, agência de fomento à pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, cuja competência, entre
outras, é promover, por meio de programas, o fomento à inovação
tecnológica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história ocidental pode ser contada pela ótica de paradigmas, sendo o primeiro deles fundado na ordem metafísica e na presença de um poder divino e inexplicável, responsável por todos os
atos e fatos sociais. Em um segundo momento, o homem se apropria da sua própria história e ocupa o espaço de protagonista social,
inclusive de redator da história da humanidade.
Na intenção de romper com a ordem do poder obscuro, assume a racionalidade como marco fundamental do novo tempo, identificado como modernidade. Nesse período, observou-se a alteração
do culto e do poder, que deixa de ser voltado para o divino e voltase para a figura humana em sua materialidade. Apesar da intenção
de fugir do ocultismo, a modernidade permaneceu no caminho do
culto ao homem e suas criações. A razão atingiu o patamar de intocável e a legislação se converteu em instrumento de consolidação e
concretização do poder dominante. Entretanto, o culto ao homem e
ao individualismo produziu fragmentação e exclusão social; o progresso pelo progresso e o desenvolvimento como expressão de crescimento econômico levaram à crise da modernidade e alavancaram
a Pós-modernidade.
O processo em curso da Pós-modernidade confere novas nuances ao poder, que reside em maior escala na apropriação do conhecimento e da inovação tecnológica. Nesse cenário, não se admite mais a repetição dos males da Modernidade, e urge a necessidade de manuseio do potencial normativo em favor do cidadão e da
inclusão social, no sentido do empoderamento do cidadão e democratização da tecnologia. Impõe-se nova definição de desenvolvimento que contemple aspectos econômicos, políticos, culturais, sociais e de sustentabilidade, que tem em conta a plena existência e o
bem-estar do ser humano.
O marco regulatório no Brasil, nesse sentido, apresenta-se
como um arcabouço de normas e orientações para atividade desses
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
111
setores e tem origem na Constituição Federal, mas faz-se necessária sua ressignificação voltada para a criação de um ambiente que
concilie inovação tecnológica, inclusão social e desenvolvimento
sustentável.
A presença de marcos regulatórios demonstra a necessidade
de utilização do potencial normativo do direito na perspectiva de
conceituação, caracterização e proteção. Devido à recente história
brasileira de afastamento dos valores e princípios democráticos, não
é possível prescindir da legislação em matéria, tão significativa na
contemporaneidade. Todavia, esses marcos precisam estar conectados com as políticas públicas, contextualizadas pela ordem democrática e inspiradas no desenvolvimento sustentável.
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Letícia Bodanese Rodegheri
Mestranda em Direito pela Universidade
Federal de Santa Maria – Linha de Pesquisa
Direitos da Sociedade em Rede. Graduada
em Direito pela Universidade Federal de
Santa Maria. Integrante do Núcleo de Direito
Informacional (NUDI) da UFSM.
Contato: [email protected]
Rafael Santos de Oliveira
Doutor em Direito pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC). Professor Adjunto
no Departamento de Direito da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM).
Contato: [email protected]
Capítulo 7
PARTICIPAÇÃO
CIDADÃ NA ADOÇÃO
DE POLÍTICAS
PÚBLICAS: ANÁLISE
DO PORTAL
GABINETE DIGITAL
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O momento que se vive atualmente revela-se favorável à prática da cidadania em rede diante da crescente utilização da internet. As pessoas não utilizam mais o ciberespaço apenas com o objetivo de trocar informações, realizar compras online e acessar redes
sociais, mas também para debater assuntos relacionados ao exercício da cidadania.
Os governos, percebendo as potencialidades da internet no incremento do diálogo com a população, têm manifestado interesse em
ouvir as demandas da sociedade, ao criarem novos espaços em que
haja a possibilidade de maior interatividade entre eles e sociedade.
Nesse contexto, questiona-se se a internet detém a capacidade de auxiliar na adoção de políticas públicas mais adequadas aos
anseios sociais e, portanto, favorecer o exercício da cidadania. Para
114
Letícia Bodanese Rodegheri & Rafael Santos de Oliveira
tanto, o presente capítulo, utilizando-se do método de abordagem
dedutivo, partiu das facilidades de utilização da internet para, em
um segundo momento, analisar o site Gabinete Digital do Estado do
Rio Grande do Sul, com o objetivo de verificar se há, efetivamente,
a possibilidade de interatividade sociedade-governo na efetivação
de políticas públicas. A análise do Portal deu-se pela participação
direta, sistemática e não participativa, com a finalidade de verificar
a estrutura do site em questão.
O capítulo foi dividido em dois tópicos centrais. No primeiro,
abordaram-se as principais características da Rede que indicam a
possibilidade de fortalecimento da participação cidadã por meio da
utilização desse meio de comunicação. No segundo, o objeto centrou-se na análise do portal do Gabinete Digital do Estado do Rio
Grande do Sul. Demonstraram-se as formas de contato e de questionamentos feitos pelos cidadãos e respondidos pelos governantes,
com a finalidade de oitiva da população para a concretização de
políticas públicas centradas nas necessidades demandadas.
1
A UTILIZAÇÃO DA INTERNET COMO MEIO PROPULSOR DA
PARTICIPAÇÃO CIDADÃ
Criada em 1º de setembro de 1969, a internet foi, inicialmente,
utilizada como consequência de “uma fusão singular de estratégia
militar, grande cooperação científica, iniciativa tecnológica e inovação contracultural” (CASTELLS, 1999, p. 82). Desenvolvida pela
Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA) do Departamento de Defesa dos Estados Unidos e chamada de “ARPANET”, objetivava a criação de um sistema de comunicação que não fosse atingido pelos ataques nucleares, em meio à Guerra Fria.
Utilizada, primeiramente pelos Estados Unidos, com finalidade bélica, a internet passou de meio de transmissão de informações
à condição de local de encontro, debate e engajamento da defesa de
movimentos sociais e políticos. Chegou a este status devido, em
grande parte, às facilidades oferecidas, dentre as quais se destacam
a velocidade na transmissão de dados, o baixo custo e a facilidade
de uso.
A utilização da internet, devido a esse forte crescimento de
acesso, passou a difundir-se e a ganhar outras perspectivas inicial-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
115
mente não previstas, pois cada vez mais os cibernautas agem ativamente no processo de produção e consumo de informações. Muitos internautas organizam-se em um ambiente, como blog, site ou
rede social, com o intuito de propagar ideias na forma de uma militância ativa e atuante na web. Trata-se de uma forma de ação política organizada que utiliza as NTICs (Novas Tecnologias de Informação e Comunicação), nomeadamente a internet, como veículo de
propagação de ideologias ou informações, buscando a transformação da realidade: “alteram os processos de comunicação, de produção, de criação e de circulação de bens e serviços neste início do
século XXI, trazendo uma nova configuração social, cultural, comunicacional e, consequentemente, política” (LEMOS; LEVY, 2010,
p. 45).
O advento dessa nova configuração, que abrange praticamente
todos os setores da sociedade1, é propulsionado pelas características
que diferenciam a internet dos demais meios de comunicação, como
a informação, que não se manifesta mais de forma unidirecional, ou
seja, do emissor para o receptor, porém de forma multilateral. Com
isto, qualquer pessoa pode, em tese, a qualquer tempo e de qualquer lugar do planeta, desde que com acesso à Rede, exprimir suas
opiniões, as quais serão imediatamente acessadas e conhecidas por
pessoas de todos os locais do mundo.
1
O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) realizou, no ano de 2011, a 7ª
edição da pesquisa TIC Domicílios – Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias da
Informação e da Comunicação no Brasil. Foi desenhada uma amostra principal
com 25.000 domicílios, cuja coleta de dados ocorreu entre os meses de novembro de 2011 e janeiro de 2012, em trezentos e dezessete municípios brasileiros.
A observação utilizou-se do seguinte critério para definição de usuário: aquele
indivíduo que fez uso destas tecnologias nos últimos três meses. Consequentemente, não é usuário aquele que não fez uso do computador e da Internet ou
que o fez pela última vez há mais de três meses. A pesquisa revelou crescimento no número de acessos ao computador, pois a proporção de domicílios com
este equipamento era, em 2010, de 35% e, passou em 2011, para 45%. Na área
urbana, a presença é significativamente maior (51%) do que na área rural
(16%). Também, cerca de quatro em cada dez municípios brasileiros possuem
acesso à internet, o que representa 38% - é expressivo o crescimento, pois este
percentual, no ano de 2010, era de 27%. A penetração da internet nos domicílios brasileiros é maior na região Sudeste (49%) e menor na região Nordeste
(21%). De acordo com dados fornecidos pela União Internacional de Telecomunicações, a proporção de 38% (de penetração da internet nos domicílios brasileiros) está abaixo das Américas (50%), porém acima dos Estados Árabes (26%),
da Ásia e Pacífico (25%) e África (6%). A Europa, por sua vez, apresenta contínuo crescimento desde 2005, registrando 34 pontos acima da média brasileira
(CGI.BR, 2013).
116
Letícia Bodanese Rodegheri & Rafael Santos de Oliveira
O ambiente propiciado pela internet cria formas de liberdade
de expressão e de comunicação jamais vivenciadas na sociedade
contemporânea, pois o conteúdo ali alocado (em regra) não passa
por prévios filtros de censura, como ocorre na mídia tradicional, a
exemplo da televisão e do jornal. Favorece-se a prática do governo
eletrônico ou e-Gov2 (e-Government), que se constitui no uso das
NTICs para fornecer aos cidadãos e às companhias acesso às informações e serviços da Administração do Estado, a fim de melhorar a
qualidade dos serviços mediante o aumento da velocidade, da integridade e da eficácia dos processos (GALINDO; MARCO; CALLEJA,
2009, p. 28-29).
Em verdade, o governo eletrônico pode ser tratado como uma
exigência da sociedade moderna e informatizada que procura obter
informações e dados atualizados do Estado, como também que prima pela eficiência e simplificação dos processos, tais como o fornecimento de serviços eletrônicos e de um número cada vez mais
crescente de dados, disponíveis em qualquer tempo e local, de forma transparente e aberta. Assim, o cidadão que precisa, por exemplo, retirar determinado documento, já não mais precisa dirigir-se
ao local, enfrentar filas e, quiçá, aguardar por dias a emissão do
referido documento. Com o advento da internet, é permitido que,
com a simples digitação de dados pessoais, seja gerado um documento online, com certificação eletrônica, de forma muito mais rápida e fácil.
O governo eletrônico inclui, também, a discussão e deliberação de políticas públicas3, o voto eletrônico4 e a participação online
2
3
4
“Na prática, a ideia do governo eletrônico se baseia no pressuposto de que o
governo se torne efetivamente um serviço público, isto é, aquilo que na realidade deveria ser, ainda que os vários governos jamais se considerem como tais
e tendam a pôr o público a seu serviço. O futuro da política se orientará cada
vez mais na direção da função administrativa enquanto, salvo situações de crise, os governos de partido ideológico não forem indispensáveis e implicarem
custos notáveis. A difusão do e-government no mundo inicia no momento em
que os países percebem que os seus governos lhes custam mais dinheiro do
que os benefícios que procuram.” (KERCKHOVE, 2008, p. 133-134)
A título exemplificativo citam-se os orçamentos participativos que são: “[…]
uma ferramenta de inclusão e participação, é um exercício de cidadania onde,
por meio do debate e da deliberação sobre um percentual do orçamento municipal, se exerce a democracia participativa” (BEST, 2013).
“O e-Voting – voto eletrônico –, se apresenta como importante ferramenta a ser
utilizada para aumentar a participação do povo em processos eleitorais e em
determinadas convocações de cunho legislativo, como no caso do plebiscito e
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
117
dos cidadãos. Esta participação, por sua vez, é conhecida como
“democracia eletrônica”, “e-democracia”, “democracia virtual” ou
“ciberdemocracia”5. Provém da conjugação da globalização da economia com a comunicação, de forma a empregar todos os recursos
do ciberespaço, utilizando-se das novas formas de organização política flexíveis e descentralizadas (LÉVY, 2010, p. 367).
O uso contínuo e cada vez mais inclusivo da internet será capaz de transformar não apenas as relações sociais, como também as
políticas. Com isso, será possível a construção de uma verdadeira
“sociedade em rede”, consolidando-se o livre fluxo de informação e,
assim, uma crescente participação popular. O exercício cotidiano da
cidadania poderá, cada vez mais, ser exercido com o uso das novas
tecnologias informacionais, proporcionando a tomada de decisões
com a transposição da barreira de espaço e de tempo, e por maior
transparência pela acessibilidade instantânea das informações.
Não é, entretanto, suficiente a mera adoção de um sistema
democrático, devendo-se, inclusive, dinamizar a democracia por
meio de mecanismos que atraiam a participação popular e consigam engajar o maior número possível de cidadãos. A web assume
um papel importante como ferramenta de debate e conscientização
sobre assuntos que antes estavam esquecidos pelas mídias tradicionais (LÉVY, 2010, p. 367).
A nova esfera pública proporcionada pela internet atua como
canal de construção e aprimoramento do debate que já ocorre na
sociedade, de forma presencial (off-line), a exemplo da sistemática
de eleições diretas, plebiscitos, entre outros. Cabe frisar que essa
5
do referendo. O voto eletrônico além de ser rápido e econômico, pode ampliar
significativamente a participação popular em processos eleitorais, entretanto,
essa modalidade de voto não supre em hipótese alguma a necessidade de discussão política prévia, a qual é só possível de ocorrer livremente dentro de determinados espaços públicos e políticos. […] O voto eletrônico é uma importante ferramenta, porém sem as condições necessárias de substituir o pensar crítico, a inteligência, a vontade e a autonomia de seu operador.” (MEZZAROBA,
2013, p. 50)
De acordo com Pierre Lévy, consiste na possibilidade de encorajar, por meio
das possibilidades de comunicação interativa e coletiva proporcionadas pelo
ciberespaço, “[…] a expressão e a elaboração dos problemas da cidade pelos
próprios cidadãos, a auto-organização das comunidades locais, a participação
nas deliberações por parte dos grupos diretamente afetados pelas decisões, a
transparência das políticas públicas e sua avaliação pelos cidadãos” (LÉVY,
1999, p. 22).
118
Letícia Bodanese Rodegheri & Rafael Santos de Oliveira
nova esfera pública virtual não visa competir ou diminuir a importância da atual forma de exercício da democracia. Porém, almeja
criar condições para que mais pessoas participem, pensem criticamente e auxiliem do fortalecimento da democracia, de forma mais
ágil, rápida e interativa, como observa Drica Guzzi (2010, p. 68-69):
“O acesso à esfera pública pode se tornar mais franco e aberto, oferecendo aos consumidores maior liberdade de expressão e de seleção em suas navegações”.
O exercício da cidadania virtual não limita os espaços da democracia tradicional, porque possibilita o encontro de diferentes
vozes e olhares sobre o mesmo tema, ao trazer para o debate público gerações diferentes, porém com semelhante objetivo: fortalecer o
processo democrático. Paulo Bonavides (2002, p. 23-26) afirma que
a internet é, inclusive, capaz de trazer à tona uma participação popular direta: “[…] não é fantasia nem sonho de utopia antever o
grande momento de libertação imanente com a instauração de um
sistema de democracia direta. Ele consagrará a plenitude da legitimidade na expressão de nossa vontade política”.
Invoca-se novamente a posição de emissor do cidadão, a fim
de ponderar a existência de uma horizontalidade nas relações, uma
vez que pelos mecanismos online não há prévio controle acerca da
temática a ser publicada nem direcionamento de opinião, deixando
ao cibernauta a opção de livremente navegar entre os mais variados
espaços para, então, debater e chegar às suas próprias conclusões.
Permite-se a criação de fluxos de informação, dinamicidade nas
discussões e, consequentemente, a ampliação dos objetos debatidos, porque com o aumento do número de emissores de opiniões,
expande-se também o leque de alternativas e de soluções para os
problemas até então discutidos.
Dalmo de Abreu Dallari afirma que no final do século XX
emergiu a possibilidade de participação direta da população – chamada de “democracia participativa” –, por meio de manifestações
coletivas visando à aprovação de proposições para a adoção de políticas públicas. O autor salienta que a participação popular é limitada, não podendo abranger todas as decisões do governo, mas que,
ao mesmo tempo, “é evidente que a participação popular é benéfica
para a sociedade, sendo mais uma forma de democracia direta, que
pode orientar os governos e os próprios representantes eleitos
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
119
quanto ao pensamento do povo sobre questões de interesse comum” (DALLARI, 2010, p. 156).
A nova esfera pública necessita transformar o cidadão bem informado, produtor de informação e constantemente conectado à
internet em um cibercidadão ativista, engajado nas ações pela
transformação dos antigos espaços em locais públicos de memórias
ativas e de vínculos comunitários (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 60).
Conforme salienta Manuel Castells (1999, p. 439-440), a grande
capacidade da Rede é atrair a diversidade de mensagens e de participantes, de modo a aumentar a massa crítica e o valor das opiniões
dos cibernautas, formando, assim, agrupamentos de pessoas físicas
e organizações, para que possam interagir com expressividade, no
que se tornou “[…] uma Teia de Alcance Mundial para comunicação individualizada, interativa”.
Por isso, em uma sociedade informacional, destaca-se, cada
vez mais, a atuação dos cidadãos de forma a pressionar e a direcionar determinadas opções políticas, produzindo resultados concretos
que irão beneficiar a comunidade como um todo.
Individualmente ou por meio de grupos e associações, torna-se
cada vez mais necessário o fomento de discussões e da tentativa de
aproximação da população com os Estados. Em um mundo globalizado, torna-se imperioso a oitiva dos cidadãos e o conhecimento
das demandas locais para que as políticas sejam empregadas com
maior efetividade.
A participação popular articulada em rede pode contribuir para a adoção de medidas que atuem diretamente nas carências da
sociedade. Assim, as políticas implementadas pelos governos terão
maior eficácia e, consequentemente, atenderão às necessidades da
população que, a seu turno, sentirá maior confiança tanto no Estado, como na própria utilização da internet.
Cabe, neste ponto, salientar que, para Francisco Paulo Jamil
Almeida Marques, a internet não detém a capacidade de, isoladamente, resolver todos os problemas que circundam a atuação estatal, porque reunir a população para debater determinado assunto
não significa que todos os indivíduos estão interessados na temática, nem que a discussão alcançará as esferas representativas que
implantarão os projetos públicos. Assim, a “[…] internet não viria
no sentido de prejudicar a democracia, mas também não seria res-
120
Letícia Bodanese Rodegheri & Rafael Santos de Oliveira
ponsável por uma revolução em termos de compreensão desta forma de governo” (MARQUES, 2006, p. 182).
O que o autor que dizer, é que devem ser feitas ressalvas à internet enquanto esfera pública, porque, ao mesmo tempo em que
não se pode negar que muitos debates só ocorrem em razão da existência desta modalidade de comunicação, também não se pode
desconsiderar que o ambiente digital está cercado de empresas que
buscam apenas o lucro, não havendo qualidade no debate ou, então, que as discussões não serão levadas a sério pelas esferas do
sistema político, justamente por essa falta de comprometimento
com as questões públicas.
Desse posicionamento do autor, pode-se afirmar que, em muitos casos, os mecanismos disponibilizados na internet servem muito
mais à deliberação, à discussão e à formação crítica dos cidadãos do
que, efetivamente, a decisões que serão repassadas aos poderes
competentes e, assim, implementadas.
Todavia, como se trata de uma temática relativamente nova e
que ainda depende de maior discussão, não podem ser desconsideradas as alternativas que buscam aproximar os cidadãos do poder
público e, assim, tentar atender às suas demandas, expectativas e
necessidades, a exemplo do que será abordado no próximo tópico.
2
A PARTICIPAÇÃO CIDADÃ POR INTERMÉDIO DO SITE
GABINETE DIGITAL
As noções de controle social – como o direito público subjetivo
de controlar a execução das decisões políticas – e participação social
estão diretamente interligadas, uma vez que é por meio da participação do cidadão na gestão pública que estes podem orientar a
Administração Pública à adoção de medidas que atendam, efetivamente, aos interesses da população e, ao mesmo tempo, fiscalizar
os atos dos Estados, exigindo a prestação de contas, por exemplo
(PORTAL DA TRANSPARÊNCIA, 2013).
Por meio desse controle e cobrança do Estado, objetiva-se reforçar a própria noção de cidadania, porque os cidadãos não apenas
se dirigem, de quatro em quatro anos, às urnas para a escolha dos
representantes, como também se sentem ainda mais integrantes do
processo democrático ao indicar as necessidades, carências e de-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
121
mandas da localidade em que residem. Neste sentido, a internet
revela-se como um canal que, cada vez mais, permite o diálogo entre os cidadãos e os representantes.
Dentre as ações já implementadas e que vêm apresentando
resultados positivos, destaca-se o Portal da Transparência, uma iniciativa da Controladoria-Geral da União que, desde 2004, visa controlar a correta aplicação dos recursos públicos. O objetivo primordial constitui-se em assegurar a transparência na gestão pública,
permitindo que o cidadão acompanhe como estão sendo efetuados
os gastos públicos e, portanto, possa fiscalizar a atuação estatal
(PORTAL DA TRANSPARÊNCIA, 2013).
Criado também pela ação estatal, o Gabinete Digital – uma
iniciativa do governo do estado do Rio Grande do Sul – objetiva que
os cidadãos manifestem-se, diretamente, acerca das necessidades
que devem ser incorporadas por políticas públicas do governo.
Conforme a própria descrição contida no site, o Gabinete Digital constitui-se em um “canal de participação e diálogo entre governo e sociedade” (GABINETE DIGITAL, 2013a). O Portal, que
está vinculado à Secretaria Geral do Governo, tem como principal
objetivo incorporar novas ferramentas de participação, proporcionando aos cidadãos influenciar na gestão pública e exercer maior
controle sobre a atuação do Estado.
O site foi criado em maio 2011 e atualmente conta com as seguintes formas de interatividade: “Governador Responde”, “Governador Escuta”, “Governador Pergunta” e “Agenda Colaborativa”.
Tais mecanismos detêm o condão de facilitar o acesso à informação
pública e, consequentemente, um contato quase que direto com o
governador do Estado.
No item “Governador Responde”6, o cibernauta pode enviar
um questionamento diretamente ao Governador do Estado que,
6
Na página inicial deste item há a menção de que: “Em 9 edições do Governador Responde, mais de 90 questões foram respondidas em vídeo pelo governador e mais de 25 mil votos foram recebidos. Agora a ferramenta entra em uma
nova fase, passará por uma reestruturação técnica e metodológica. Durante esse período, todas as respostas enviadas até o momento serão respondidas gradualmente em texto. O recebimento de perguntas será retomado em 2013. Você
pode continuar participando através das demais ferramentas. Exerça sua cidadania. Dúvidas ou sugestões podem ser enviadas para <gabinetedigital@
sgg.rs. gov.br>” (GABINETE DIGITAL, 2013b).
122
Letícia Bodanese Rodegheri & Rafael Santos de Oliveira
posteriormente à votação no site pelos próprios internautas, são
eleitas as perguntas em que há maior interesse na resposta do Governador. Estas detêm frequência mensal e, podem ser respondidos,
também, outros questionamentos que não necessariamente os mais
votados, a critério do Governador (GABINETE DIGITAL, 2013b).
Saliente-se que as perguntas devem ser efetuadas a partir das
temáticas sugeridas no site, quais sejam, acessibilidade, agricultura, combate à miséria, cultura, educação, energia, enfrentamento às
calamidades climáticas, enfrentamento ao crack e às drogas, esporte, estradas, habitação, juventude, meio ambiente e saneamento,
mulheres, petróleo, gás natural e polo naval, saúde, segurança pública, segurança no trânsito, tecnologia da informação e outros temas. Depois de escolhido o tema, o internauta pode elaborar as
perguntas a partir do que já foi sugerido por outros internautas ou,
então, formular um novo questionamento. Destaca-se que no próprio site são sugeridas dicas quanto ao questionamento: “Escolhe o
tema que mais se encaixa no questionamento que você deseja fazer
e elabore uma pergunta direta e objetiva, explicando um pouco o
contexto envolvido no seu questionamento. Assim que você enviar
sua pergunta, inicie uma campanha para que ela tenha muitos votos.” (GABINETE DIGITAL, 2013b).
Quanto à possibilidade de realização de uma campanha sobre
o questionamento, pode-se compartilhar pelas redes sócias ou via email. Para enviar o questionamento, é necessário um prévio cadastro no site, o qual deve conter um login e senha. A pergunta, após
enviada, será analisada por uma equipe do Gabinete Digital que, se
estiver de acordo com a Política de Contribuição7 e os Termos de
Uso8 do site, será aprovada.
7
8
“Todas as contribuições enviadas para o Gabinete Digital passarão por mediação. As ferramentas Governador Pergunta e Governador Responde não permitem identificação do usuário. A metodologia privilegia o conteúdo da contribuição para que não haja desvios. Fica resguardado o direito de edição de mensagens encaminhadas contendo nome, apelido ou qualquer outra forma de identificação.” (GABINETE DIGITAL, 2013c)
“Este documento descreve os termos de uso do site Gabinete Digital, cuja aceitação plena e integral é requisito para todos os seus participantes. Ele inclui,
além dos termos gerais, termos de limitação de responsabilidade, a política de
privacidade e confidencialidade, a licença de livre uso do conteúdo e as informações de como reportar violações.” (GABINETE DIGITAL, 2013d)
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
123
Interessa referir que, nesse item (“Governador Responde”), o
objetivo central não é apenas escolher o questionamento mais votado e respondê-lo, como também “pautar o assunto internamente e
oferecer um retorno, seja na criação de uma política pública, no
encaminhamento do debate a um departamento específico ou no
esclarecimento aos cidadãos sobre o que vem sendo feito em determinada área”, conforme afirmação de Vinicius Wu, secretáriogeral do Governo e coordenador-geral do Gabinete Digital, em artigo explicativo do Portal (WU, 2013, p. 13).
No item “Governador Escuta”, há a possibilidade de realização
de audiências públicas, a serem transmitidas ao vivo, abertas à participação online do cidadão (cujas perguntas são respondidas imediatamente, durante as audiências) e que contam com a presença de
especialistas. Por exemplo, “Plano Estadual da Cultura”, “Novo modelo de pedágios”, “Lançamento consulta pública sobre trânsito”,
“Copa do Mundo 2014”, entre outros (GABINETE DIGITAL, 2013e).
Quanto ao item “Governador Pergunta”, incluído em recente
reformulação do site, trata-se de um espaço em que o próprio Governador do Estado solicita a colaboração dos internautas para a
discussão de temas de interesse público, buscando subsídios para o
desenvolvimento de políticas públicas do Estado. O primeiro questionamento tratou sobre a saúde pública, qual seja, “O que podemos fazer para melhorar o atendimento da saúde pública?”. Atualmente, o assunto que está sendo debatido refere-se ao trânsito:
“Como governo e sociedade podem, juntos, promover a paz no trânsito?”. Com mais de 240 mil votos é, segundo descrição contida no
texto, “a maior consulta pública realizada na Internet no Brasil”9
(GABINETE DIGITAL, 2013f).
Ainda de acordo com o descrito no Portal, essa edição do “Governador Pergunta” foi iniciada em 9 de outubro de 2012 e encerrada em 16 de novembro de 2012, quando foi submetida à consulta
popular o Plano Estadual de Segurança no Trânsito para a década
2011-202010. A população teve trinta dias para enviar e votar em
9
10
“De 9 de outubro a 16 de novembro, a consulta pública sobre Segurança no
Trânsito recebeu 240.516 votos, superando os 122 mil votos recebidos na 1ª
edição do Governador Pergunta, em 2011, sobre Saúde Pública. Os números
recordes de participação reafirmam o interesse da população em participar ativamente nas decisões do Estado.” (GABINETE DIGITAL, 2013f)
No Portal também consta explicação sobre as razões da escolha do tema: “A
Organização das Nações Unidas (ONU) declarou o período de 2011 a 2020
124
Letícia Bodanese Rodegheri & Rafael Santos de Oliveira
suas próprias ideias sobre o tema e, também, para votar nas ações
previstas no referido plano (GABINETE DIGITAL, 2013f).
Depois de recebidas as contribuições, muitos internautas podem se questionar sobre o destino desta colaboração. Novamente, de
acordo com o site, afirma-se que dez propostas escolhidas na votação, sendo duas de cada área (educação, segurança viária, comunicação, legislação e saúde), foram adotadas como prioridade pelo Governo do Estado até o ano de 2014 (GABINETE DIGITAL, 2013f).
Neste ponto, salienta-se novamente a importância da participação dos cidadãos, mas que não deve encerrar-se com a votação e
escolha de temáticas de importância, como também fiscalizar as
ações do governo com a finalidade de verificar se as demandas estão sendo atendidas ou se, no entanto, trata-se de um recurso sem
utilidade prática.
Ademais, a consulta pública não se deu apenas via internet,
uma vez que também foram realizadas consultas locais, palestras e
outras atividades que tiveram direto contato com a população mais
vulnerável e que não possui acesso à Rede:
Além do acesso direto em computadores, tablets ou smartphones, duas Vans equipadas com tablets e acesso à internet, circularam por espaços públicos da capital, região metropolitana
e interior para multiplicar o alcance do debate e levar a consulta aos cidadãos de todo o estado.
Ao todo foram mais de 1,5 mil quilômetros percorridos e 22
cidades visitadas: Osório, Tramandaí, Palmeira das Missões,
Cruz Alta, Itaqui, Uruguaiana, Santa Maria, Caçapava do Sul,
Bagé, Pelotas, Rio Grande, São Lourenço do Sul, Caxias do
Sul, Bento Gonçalves, Passo Fundo, São Miguel das Missões,
Porto Alegre, Canoas, Esteio, Novo Hamburgo, Sapucaia, São
Leopoldo.
Além das Vans, mais de 150 pontos fixos de participação foram espalhados pelo Rio Grande do Sul em Batalhões da Brigada Militar, Centros de Formação de Condutores (CFCs) e
órgãos de governo. Veja a lista completa.
como a Década Mundial de Ações de Segurança no Trânsito, com o objetivo de
reduzir pela metade as mortes no trânsito. Em junho de 2011 foi instituído o
Comitê Estadual de Mobilização pela Segurança no Trânsito responsável pela
criação do Plano Estadual de Segurança no Trânsito para a década 2011–
2020.” (GABINETE DIGITAL, 2013f)
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
125
O debate também chegou às salas de aulas: em diversos municípios estudantes se organizaram para realizar suas próprias
atividades de mobilização. Foi o caso de Cruz Alta, Santo Ângelo, Quaraí e outras cidades.
As equipes do Gabinete Digital e do Comitê Estadual de Trânsito também visitaram e palestraram em diversas entidades,
grupos, escolas e associações (grifos no original) (GABINETE
DIGITAL, 2013f).
Isto demonstra que, por mais que haja um significativo aumento no número de usuários e acessos à internet, ainda se faz necessário o contato pessoal e direto com os cidadãos, bem como a
utilização dos meios de comunicação tradicionais (televisão, rádio,
jornal) para a difusão destas possibilidades de participação online.
Por sua vez, o item “Agenda Colaborativa” constitui-se na
transferência, durante um dia do mês, do Governo do Estado para
uma cidade do interior do Estado, com o objetivo de aproximação
das comunidades e maior conhecimento das demandas específicas
de cada localidade. Por meio da ferramenta, a própria população
também pode indicar temáticas a serem discutidas no evento. Atualmente, conforme informação constante no próprio site, o recurso
está suspenso (GABINETE DIGITAL, 2013g).
Neste item, pode-se verificar a nítida relação entre o ambiente
físico e o digital, porque a primeira etapa do processo é constituída
por ações online, em que os cidadãos enviam as contribuições, as
quais são organizadas e atualizadas pelo Portal. Em um segundo
momento, realiza-se a ação presencial, com o deslocamento do Governador do Estado ao município, em uma tentativa de visualização
das carências da localidade.
Recentemente foi lançado (em junho de 2013) o item “De olho
nas obras” – “O Governo faz, eu fiscalizo”11. No site, há a indicação
11
“O Gabinete Digital é uma das experiências mais exitosas de governo aberto da
América Latina, segundo a Red Gobierno Abierto, da Argentina. A iniciativa recebeu o Premio Gobierno Abierto Puntogov Asaec, em cerimônia no Senado de
La Nación, em Buenos Aires, nesta quinta-feira, 6. No total, 55 iniciativas das
Américas se inscreveram para concorrer ao prêmio, das quais oito foram selecionadas. As experiências ganhadoras foram incluídas em um e-book de distribuição gratuita para compartilhar práticas e conhecimento sobre governo aberto. […] A ferramenta de monitoramento de obras públicas que está sendo desenvolvida e que será lançada pelo Gabinete Digital, ainda em junho, chamou
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de sete obras que vêm sendo executadas pelo governo Estadual,
das quais o cibernauta pode escolher uma para acompanhamento,
informando-se sobre o seu andamento por meio de imagens, cronograma de entrega, dentre outros. O cidadão cadastra-se para receber as atualizações referentes às obras (por e-mail, contas no Facebook e Twitter) e, também, para fiscalizar esse andamento, enviando
fotos, comentários, dúvidas ou críticas. A cada trinta dias (semelhante, portanto, ao item “Governador responde”), o governador do
Estado manifesta-se, via vídeo, sobre as obras mais acessadas e
fiscalizadas (GABINETE DIGITAL, 2013i).
Ao clicar nas obras, abre-se uma descrição com informações
básicas que incluem uma síntese do projeto, o andamento da obra
(em porcentagem), a empresa executora, a data de início e previsão
de término, valor total e imagens atuais (GABINETE DIGITAL,
2013i).
Ademais, diante das manifestações que vêm ocorrendo no
Brasil sobre a necessidade se fazer uma reforma política, o governo
inaugurou, no site do Gabinete Digital (no dia 3 de julho de 2013),
uma consulta popular sobre o tema, que ocorrerá até o dia 17 de
julho do mesmo ano. A consulta está constituída por duas perguntas, em que na primeira o cidadão tem a opção de escolher se a reforma política deve ser feita pelo Congresso Nacional ou se deve
ser instaurada uma Câmara Constituinte exclusiva. Já o segundo
questionamento busca identificar as prioridades de mudanças que
devem ocorrer no sistema político (GABINETE DIGITAL, 2013j).
Isto demonstra que, por mais que a internet revele-se em um
ambiente que permite uma infinidade de possibilidades de reinvenção e de atividades a serem realizadas, possibilitando dinamicidade
nas ações e, assim, maior atração dos cidadãos, ainda se faz necessário o contato físico, uma vez que o acesso à internet no Brasil ainda não alcança a população brasileira como um todo.
a atenção. Para o presidente da Fundación Sociedades Digitales, Fabricio Vagliente, a iniciativa de abrir os dados de setor tão delicado do orçamento demonstra o efetivo interesse do Governo em promover a transparência.”
(GABINETE DIGITAL, 2013h)
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O site Gabinete Digital data de 2011, porém, por mais incipientes que sejam a iniciativa e a sucinta análise deste trabalho, percebe-se que há o interesse por parte dos governos em ouvir as necessidades e demandas da população. Isto demonstra que a internet, meio de comunicação dinâmico, de fácil acesso, tem sido largamente difundida, permitindo formas de comunicação simplificadas, que contam com a inserção de áudio, vídeo e outras ferramentas para atrair a atenção do público.
Por tais razões, percebe-se que a internet detém a capacidade
de auxiliar na adoção de políticas públicas, atendendo diretamente
às necessidades da população. Ainda que o objeto da pesquisa não
tenha sido a abordagem dos questionamentos feitos pelos cidadãos
ou das respostas dos governantes, pode-se perceber que há significativa participação da população – se contarmos a ainda restrita
parcela que detém acesso à Rede, conforme os dados coletados pelo
Comitê Gestor da Internet no Brasil –, bem como a preocupação por
parte dos governos em tornar prioridade aquilo que foi demandado
pelos internautas.
No entanto, como se pode perceber pela análise do Portal, há
a complementação do que é discutido no site por ações presenciais
(a chamada “Agenda Colaborativa”), em que há o deslocamento do
Governador para determinado município. Isto demonstra que, no
atual estágio de utilização e difusão da internet no Brasil, ainda se
faz necessário a presença física, utilizando-se dos demais meios de
comunicação, para que as ações realizadas online alcancem, também, a população que não detém acesso à Rede.
Tais iniciativas ainda são relativamente novas e demandam
maior estudo e atenção, seja pela população, para verificar se as
demandas efetivamente estão tornando-se prioridades na adoção de
políticas públicas, seja pela academia, a fim de verificar se tais empreendimentos não detêm apenas cunho eleitoreiro e que efetivamente “funcionam” apenas em períodos eleitorais, em que se busca
maior contato com a população.
128
Letícia Bodanese Rodegheri & Rafael Santos de Oliveira
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Maurício Pinto da Silva
Bacharel em Administração; Especialista em
Gestão de Projetos de Investimentos em
Saúde/Fiocruz; Especialista em
Administração Hospitalar; Mestre em Política
Social/Território e Inovação Social;
Doutorando em Desenvolvimento
Regional/UNISC. Professor da Universidade
Federal de Pelotas/Centro de Integração do
Mercosul/Núcleo de Estudos Fronteiriços.
Contato: [email protected]
Mateus Lopes da Silva
Bacharel em Direito; Especialista em Direito
Processual Civil; Mestre em Direito
Ambiental pela Universidade de Caxias do
Sul. Ex-secretário municipal de qualidade
ambiental da Prefeitura Municipal de Pelotas
(2008-2011). Professor de Legislação
Ambiental e Certificações, Direito Processual
Civil, prática jurídica na Universidade Federal
de Pelotas e advogado. Tem experiência na
área de Direito Público, com ênfase em
Direito Ambiental, Direito Administrativo e
Direito Processual Civil.
Contato: [email protected]
Capítulo 8
O DIREITO À SAÚDE
NA FRONTEIRA
MERCOSUL:
DESAFIOS DA
COOPERAÇÃO
BRASIL/URUGUAI
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O processo de integração econômica que culminou com a
formação de um bloco econômico na América Latina teve seu início
em junho de 1986, quando Brasil e Argentina assinam a Ata Bilateral que institui o Programa de Integração e Cooperação Econômica
– PICE. Naquele momento, o ato tinha como objetivo criar um espaço econômico comum, que possibilitasse a abertura seletiva dos
respectivos mercados e o estimulo à complementação de setores
específicos da economia dos dois países. Em 1988, Brasil e Argentina
assinam o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento,
com vistas à consolidação do processo de integração. Manifestavam
assim, o desejo de constituir um espaço econômico comum por
meio da liberalização comercial.
132
Maurício Pinto da Silva & Mateus Lopes da Silva
Ao esforço de integração inicialmente empreendido por Argentina e Brasil, uniram-se Paraguai e Uruguai. Juntos, os quatro
países formularam o projeto de criação do Mercado Comum do Sul,
o Mercosul, culminando na assinatura do Tratado de Assunção, em
26 de março de 1991. Naquela data, Argentina, Brasil, Paraguai e
Uruguai acordavam a ampliação das dimensões dos seus mercados
nacionais, com base na premissa de que a integração constitui condição fundamental para acelerar o processo de desenvolvimento
econômico e social de seus povos. Estabeleceram, no preâmbulo do
Tratado de Assunção, que a constituição do mercado comum deveria pautar-se pelo aproveitamento mais eficaz dos recursos disponíveis, pela preservação do meio ambiente, pela melhora das interconexões físicas e pela coordenação de políticas macroeconômicas de
complementação dos diferentes setores da economia. Entretanto,
este Tratado, à época, implicava somente a livre circulação de mercadorias, serviços, fatores de produção, eliminação de direitos alfandegários e restrições não tarifarias à circulação de mercadorias.
Recentemente, no processo de integração entre os países membros,
uma nova agenda de integração social vem sendo construída,
acompanhando a regulamentação da livre circulação de pessoas,
mercadorias, serviços e capital, em que as questões sociais e aspectos de cooperação no campo da saúde, progressivamente têm sido
incorporados à agenda política dos governantes da região
(GIOVANELLA, 2007).
O artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos
proclamada na Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948, solenemente dispôs que “1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive […] cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito […] à segurança em caso de doença,
invalidez […]”. Após essa declaração, restou incontroversa a existência de um direito humano específico à saúde e bem-estar, bem
como um direito à assistência aos enfermos. Neste passo, sempre
que uma soberania não oferece meios para a promoção da saúde
este direito humano fica potencialmente em perigo de violação.
Visando evitar tal violação de direitos humanos, os Estados soberanos passam a ter dever de criar e implantar legislação e administração pública, voltados para a defesa da saúde humana. Desde a pro-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
133
clamação desta Declaração, várias Constituições vêm reconhecendo
estes direitos como fundamentais, garantindo-os dentro de sua órbita nacional e, como decorrência deste reconhecimento, criando deveres e tarefas para o Estado. A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, se assume como premissa para
realização plena do sobreprincípio da dignidade da pessoa humana,
que tem como principal dimensão a saúde. Vê-se a CRFB/1988:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:
[…]
III – a dignidade da pessoa humana;
Neste passo, é uma soberania que declarou na sua mais alta
carta o compromisso de respeitar e promover a saúde humana no
seu território, porque a tem como fim a ser perseguido para concretização de outros direitos sociais visando à promoção da dignidade
humana. Tratando da relação com outras ordens internacionais, o
Brasil declarou em sua carta magna pautar-se por princípios de
cooperação para promoção da humanidade, especialmente quando
tratar-se de povos latino-americanos. Veja-se a CRFB/1988:
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
[…]
IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a
integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Diante do reconhecimento do direito humano à saúde, seguido do reconhecimento do mesmo como um direito fundamental no
Brasil, o que impõe uma tarefa pública constante à sua burocracia
estatal (SUS), bem como da declaração do dever de cooperação com
os povos latino-americanos, questiona-se: quais são as dificuldades
134
Maurício Pinto da Silva & Mateus Lopes da Silva
concretas encontradas na fronteira Brasil-Uruguai para concretização do direito fundamental à saúde no território brasileiro e no território uruguaio para brasileiros?
Ao investigarmos uma região sob qualquer aspecto, leva-nos
ao desafio de localizá-la em um quadro geral da realidade, principalmente quando se trata da saúde. Torna-se mais complexo ainda
quando se trata de uma região de fronteira entre dois países. As
peculiaridades e complexidades nas regiões de fronteira adquirem
especial atenção em razão de anteciparem possíveis efeitos dos processos de integração regional e, de acordo com Villa et al. (2001), é,
igualmente, um campo propício para experiências harmonizadoras
entre os países no campo das políticas sociais.
As fronteiras do Brasil com os países da América do Sul foram,
nas últimas décadas, associadas a uma agenda negativa de intervenção pública com o intuito quase exclusivo de garantir a segurança nacional por meio da imposição de restrições de toda ordem.
Em função disso, nessa região, observa-se, em geral, uma precária
base produtiva e de infraestrutura econômica e social que sejam
capazes de permitir um processo de desenvolvimento sustentável e
integrado. Como consequência, esse território se caracteriza por
condições sociais e de cidadania bastante adversas, salvo raras exceções sub-regionais. Nas fronteiras, convivem cotidianamente sistemas políticos, monetários, de segurança e de proteção social diferentes.
“A intensificação de fluxos de produtos, serviços e pessoas,
decorrentes da integração geram tensões e novos desafios para os
sistemas de saúde das cidades fronteiriças, exigindo políticas específicas direcionadas à garantia do direito universal à saúde nestas
regiões” (GUIMARÃES; GIOVANELLA1, apud SILVA; NOGUEIRA,
2009, p. 3). Uma das alternativas políticas são os pactos e acordos
bilaterais, realizados entre os governos dos países interessados.
Entretanto, são pactuações realizadas a níveis nacionais e nem
sempre chegam aonde deveriam ter vigência, ou seja, a fronteira.
Segundo Nogueira, Dal Prá e Fermino (2007, p. 102), “os acordos e
pactos bilaterais firmados entre os governos da Argentina e Brasil,
1
GUIMARÃES, Luisa; GIOVANELLA, Ligia. Municípios brasileiros fronteiriços
e Mercosul: características e iniciativas de cooperação em saúde. Revista Saúde
em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
135
Brasil e Uruguai, não têm tido repercussão, inclusive em alguns
casos com o desconhecimento completo acerca dos gestores e profissionais de saúde”.
Outro aspecto preocupante na região fronteiriça é a diversidade de atenção à saúde oferecida pelos municípios brasileiros aos
estrangeiros que demandam aos serviços públicos de saúde.
Nesse sentido, para Nogueira, Dal Prá e Fermino (2007, p.
102),
[…] a diversidade da atenção à saúde na linha de fronteira
MERCOSUL pode ser explicada pelo reduzido nível de institucionalidade dos sistemas municipais de saúde, especialmente nas cidades-gêmeas, onde se acentuam os processos de
exclusão social em saúde aos usuários não brasileiros.
O reconhecimento da existência e adoção efetiva de novos
instrumentos legais que venham garantir o acesso aos serviços sanitários e a proteção social na região de fronteira trazem a perspectiva da proposição, criação e o desenvolvimento de novas ações,
tanto por parte do Brasil, como dos demais países da América do
Sul. “Em uma perspectiva histórica, os países limítrofes da América
do Sul aplicaram regimes específicos para suas áreas de fronteira,
geralmente qualificadas como ‘zonas ou faixas de segurança’, cujos
critérios restritivos inibiram e restringiram a implementação de projetos de integração” (BRASIL, 2005, p. 174).
No Brasil, não foi diferente, a fronteira foi concebida como
área de segurança nacional a ser protegida de inimigos e invasões.
O marco jurídico-institucional2 que trata das áreas de fronteira do
Brasil vem sofrendo modificações e adaptações às novas realidades,
em parte por mudanças de orientação das políticas públicas. Os
principais instrumentos legais que definem e regulamentam a ocupação e o desenvolvimento da Faixa de Fronteira até hoje são a Lei
6.634, de 2 de maio de 1979, e o Decreto 85.064, de 26 de agosto de
1980, que consideram a Faixa de Fronteira como área indispensável
à Segurança Nacional. De acordo com o Ministério da Integração
Nacional (BRASIL, 2005, p. 9),
2
Lei 6.634, de 02.05.1979, regulamentada pelo Decreto-lei 85.064, de 26.08.1980.
136
Maurício Pinto da Silva & Mateus Lopes da Silva
[…] a preocupação com a segurança nacional, de onde emana
a criação de um território especial ao longo do limite internacional continental do país, embora legítima, não tem sido
acompanhada de uma política pública sistemática que atenda
às especificidades regionais, nem do ponto de vista econômico
nem da cidadania fronteiriça.
Ainda na Constituição Federal de 1988, a Faixa de Fronteira
aparece em quatro artigos, sem maiores alterações no estabelecido
pela Lei 6.634/1979, o que indica que esta lei foi recepcionada pela
carta magna. O artigo 20 reforça que as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras são bens da União. O artigo 21 mantém
como competência da União não só executar os serviços de polícia
de fronteira, como também a exploração direta ou mediante autorização, concessão ou permissão, dos serviços de transporte ferroviário e
aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais.
O artigo 91 delega ao Conselho de Defesa Nacional, órgão de
consulta do Presidente da República, a tarefa de “propor critérios e
condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do
território nacional; e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na
Faixa de Fronteira e nas relacionadas como a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo”. O artigo 176 estabelece condições específicas para a pesquisa e exploração dos recursos minerais do subsolo quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira e condiciona sua realização à autorização
ou concessão da União. Considerando a integração regional como
fator fundamental para a consolidação do Mercado Comum do Sul
– Mercosul, o presente trabalho converge para um estudo dos referenciais teóricos sobre direitos e garantias fundamentais, fronteira e
da articulação da diplomacia brasileira em relação à saúde na fronteira com a República Oriental do Uruguai. Ao analisar os processos de integração nacionais ou regionais, Nogueira (2008, p. 153)
afirma:
[…] não ocorrerem em espaços neutros ou vazios. Pelo contrario, condensam relações que se estabelecem entre classes e
segmentos de classe, entre instâncias de poder com vínculos
permanentes ou pontuais, divergentes ou consensuais, e entre
elites econômicas e políticas de diversos matizes. Há, ade-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
137
mais, uma história, valores e cultura partilhados, invariavelmente distintos entre os países ou regiões envolvidos no processo integrativo.
1
O DEBATE SOBRE FRONTEIRAS
O debate atual sobre fronteiras traz à discussão distintos significados e perspectivas em relação a este espaço territorial. Tradicionalmente, atribui-se à fronteira um sentido relacionado apenas à
demarcação do solo, do limite do território e sua apropriação pelo
homem. Em uma visão mais crítica, a fronteira é concebida não somente como fato geográfico ou representação cartográfica, mas um
fato histórico e social de relacionamentos sociais. Segundo Silva
(2006, p. 61),
[…] historicamente, verifica-se que diversas áreas do conhecimento vêm debatendo sobre a fronteira remetendo a ela significados distintos variando entre a perspectiva tradicional e a
crítica. A perspectiva tradicional atribui à fronteira um conceito ligado mais a demarcação do solo, território e a apropriação
desse espaço pelo homem. Já a visão crítica concebe a fronteira fundada numa visão de território enquanto espaço social
que, para além do uso desse espaço, incorpora a territorialidade.
Para Machado (1998, p. 41), o termo fronteira
[…] implica, historicamente, aquilo que sua etimologia sugere
– o que está na frente. A origem histórica da palavra mostra
que seu uso não está associado a nenhum conceito legal e que
não é um conceito essencialmente político ou intelectual.
Nasceu como um fenômeno da vida social espontânea, indicando a margem do mundo habitado.
A fronteira pode ser compreendida como meio de articulação
dos Estados de manter seus respectivos limites. Quanto à fixação de
limites fronteiriços, isto implica o desenvolvimento de uma espécie
de ciência de demarcação. Dessa forma, limites que separam as
unidades políticas soberanas, da mesma forma, separam fatores
físicos, geográficos, culturais e sociais. A fronteira pode ser enten-
138
Maurício Pinto da Silva & Mateus Lopes da Silva
dida também como um processo de formação social e histórico, neste caso, são simbolicamente produzidos, sendo na grande maioria
abertos e não acabados, portanto conduzidos a um processo de contínua transformação.
Segundo Bentancour (2002, p. 27-28),
[…] la Geografía define el espacio como objeto privilegiado de
su análisis y en este abarca la dimensión física (espacioterritorio-región) como socialmente producida y organizada,
para el bienestar y la calidad de vida del hombre. De esta forma el espacio geográfico no existe sin sociedad y ésta no lo
hace sin una base territorial que es su soporte y que la sociedad va transformada en su medio. El espacio es una suma de
la configuración del paisaje y la acción social, no se pueden
disociar y se tienen que enfocar integrados.
A fronteira também pode ser compreendida como uma zona
na qual dois Estados têm interesses em conjunto, um território onde
se registra um intercâmbio social e cultural. Para Melo (1997, p.
69), “as fronteiras estão presentes no imaginário social como limite,
aparecendo como naturalizadas. Entretanto, elas são mais do que
isso, pois ao mesmo tempo em que impede, permite a passagem”.
Nessa perspectiva, Silva (2006, p. 64)
[…] constata que a fronteira, está pautada numa visão de território que rompe com a abordagem tradicional, reduzindo esse
conceito a uma dimensão jurídico-administrativa de áreas geográficas delimitadas e controladas pelo Estado, para incorporar uma perspectiva de território enquanto um produto de
processos sociais de dominação e apropriação de espaços por
agentes não estatais.
Repensar um conceito ampliado de fronteira, de acordo com
as novas configurações da geopolítica geradas pelo fenômeno da
globalização, implica definir a fronteira a partir de uma visão um
pouco mais condizente com a realidade contemporânea. Nesse sentido, afirma Sarquis (1996, p. 60) serem fronteiras “amplas franjas
territoriais de um lado e de outro das linhas de demarcação geográficas políticas, na qual convivem populações com particularidades
próprias que as diferenciam de outras partes dos territórios nacio-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
139
nais”. Nesse contexto, os municípios de fronteira do Brasil têm tido
grande dificuldade em prover os seus munícipes de atenção integral à saúde. A falta de recursos humanos especializados, a insuficiência de equipamentos para realização de procedimentos de média e alta complexidade, e a distância entre os municípios e os centros de referência são os principais problemas encontrados. Ademais, as dificuldades de planejamento e provisão de políticas específicas em função da população flutuante que utiliza o sistema e
que, no caso brasileiro, não é contabilizada para os repasses financeiros do SUS, vêm gerando dificuldades diversas cuja principal
vítima é o cidadão fronteiriço.
Nessa perspectiva, afirmam Guimarães e Giovanella (2005, p.
249) que
[…] refletir sobre a situação de municípios fronteiriços, assim
como observar iniciativas de cooperação, contribui no
MERCOSUL para análises especificas de repercussões da integração nos sistemas de saúde, e pode influir na pauta de
acordos e programas voltados para regiões fronteiriças, apoiar
esforços de garantia de atenção integral e humanizada, e para
o fortalecimento das políticas nacionais de saúde.
As mesmas dificuldades são enfrentadas pelos países fronteiriços com o Brasil, gerando uma movimentação das populações ali
residentes em fluxos, ora num sentido ora em outro, na busca de
melhor oferta de ações e serviços de saúde. Essa mobilidade tem
gerado grandes dificuldades para os gestores de saúde dos municípios brasileiros, bem como para as autoridades dos países vizinhos,
além de previsíveis problemas diplomáticos e de saúde pública. A
diferenciação entre as estruturas sociais, política e econômica nestas localidades singulares possibilitam uma possível desigualdade
no acesso a bens e serviços de saúde, decorrentes das respostas
distintas oferecidas pelas políticas de saúde dos respectivos países,
como afirmam Guimarães e Giovanella: “a integração ocasiona nas
fronteiras aumento de fluxos, gerando tensões e desafios diversos
para os sistemas de saúde” (2005, p. 249). E, ainda, afirma Giovanella (2007, p. 39):
[…] os distintos desenhos dos sistemas e das políticas de saúde dos países membros do MERCOSUL, sejam nos aspectos
140
Maurício Pinto da Silva & Mateus Lopes da Silva
físicos, financeiros e humanos; aliados às estratégias individuais para garantia de acesso intensificam dificuldades já presentes nos sistemas de saúde nestes territórios tanto no campo
da vigilância em saúde como para o acesso aos serviços e conlevam [sic] à complexificação de impactos inesperados do
processo de integração regional nos serviços de saúde.
2
A POLÍTICA DE COOPERAÇÃO PARA A SAÚDE NA FRONTEIRA
BRASIL–URUGUAI
A fronteira entre a República Federativa do Brasil e a República Oriental do Uruguai foi definida, demarcada e caracterizada
ao longo da história por tratados, acordos, convenções e estatutos
jurídicos. O limite espacial jurídico-político da soberania estatal na
fronteira entre o Brasil e o Uruguai apresenta características próprias. Este espaço geográfico representa a mais extensa fronteira
internacional da República Oriental do Uruguai, com 1.086,1 quilômetros de extensão. O início dos trabalhos de demarcação da
fronteira brasileira com o país platino teve seu início com o Tratado
de Limites de 1851, passando a seguir pelo Tratado de Languna
Merim de 1909, e pela Convención del Arroyo San Miguel em
1913, este com um Ajuste Complementar de 1997 e pelas notas de
revisão sobre o Arroio Chuí, em 1972. Segundo Cammarata (2006),
[…] na fronteira os processos locais integram o regional com o
nacional, assim é necessário olhar o espaço de fronteira e
apreendê-lo no movimento histórico, tanto diacrônico (espaço)
quanto sincrônico (paisagem), a fim de reconhecer concomitantemente as distintas escalas de relação entre o local, o regional, o nacional, transfronteira e transnacional.
O debate sobre a situação da saúde nas fronteiras acontece há
muito tempo, porém, seja pela falta de ordenação das iniciativas ou
pela formulação de estratégias de caráter apenas pontual, a situação permaneceu praticamente inalterada. Dois foram e são os principais empecilhos ao processo de integração históricos das ações de
saúde nas fronteiras: o atrelamento das soluções ao desenvolvimento do processo de harmonização das políticas de saúde e a concentração do tema no controle do acesso aos serviços sanitários e compensação financeira.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
141
Assim, em 12 de junho de 1975, na cidade de Rivera, Uruguai,
é assinado entre a República Federativa do Brasil e a República
Oriental do Uruguai o Acordo Básico de Cooperação Científica e
Técnica (Tratado de Amizade). Este acordo vem ao encontro do reconhecimento, naquela época, das vantagens recíprocas que resultariam em uma cooperação mais estreita e mais ordenada em campos de interesse mútuo entre os dois países.
Em relação à saúde, em 09 de dezembro de 1981, é promulgado o Acordo de Cooperação Sanitária entre o Governo da República Federativa do Brasil e a República Oriental do Uruguai. As
normativas do Acordo de Cooperação Sanitária estão distribuídas
em oito artigos. Ao considerar a cooperação técnica na área da saúde de especial interesse para a República Federativa do Brasil e a
República Oriental do Uruguai, as partes acordam em 22 de novembro de 2006, na cidade de Montevidéu, no Uruguai, o Ajuste
Complementar ao Acordo Básico de Cooperação Científica e Técnica entre a República Federativa do Brasil e a República Oriental do
Uruguai para a Implantação do Projeto “Fortalecimento Institucional das Assessorias Internacionais dos Ministérios da Saúde do
Brasil e do Uruguai”.
Em seus onze artigos, destacamos o I, em que consta que o
Ajuste visa à implantação do Projeto “Fortalecimento Institucional
das Assessorias Internacionais dos Ministérios da Saúde do Brasil e
do Uruguai”, cuja finalidade é contribuir para o fortalecimento das
Assessorias de Cooperação Internacional dos Ministérios da Saúde
do Brasil e do Uruguai, promovendo, dessa forma, o intercâmbio de
informações visando a desenvolver novas formas de planejamento e
ações conjuntas.
Em continuidade à política de cooperação, integração e desenvolvimento da fronteira do Brasil com a República Oriental do
Uruguai, em 14 de junho de 2004 é promulgado o Acordo para
Permissão de Ingresso, Residência, Estudo e Trabalho, Previdência
Social e Concessão de Documento Especial de Fronteiriço a nacionais fronteiriços brasileiros e uruguaios, celebrado em 21 de agosto
de 2002 em Montevidéu, Uruguai. Entre os nove artigos, observam-se os artigos I e VI. O artigo primeiro trata sobre a permissão de
residência, estudo e trabalho. Aos nacionais de uma das Partes, residentes nas localidades fronteiriças listadas no Anexo de “Locali-
142
Maurício Pinto da Silva & Mateus Lopes da Silva
dades Vinculadas”, poderá ser concedida permissão para: a) residência na localidade vizinha, situada no território da outra Parte, à
qual fica vinculada na forma deste Acordo; b) exercício de trabalho,
ofício ou profissão, com as consequentes obrigações e direitos previdenciários deles decorrentes; c) frequência a estabelecimentos de
ensino públicos ou privados.
Segue ainda dizendo que os direitos estabelecidos neste artigo estendem-se aos aposentados e pensionistas. Ainda no artigo I é
dada referência quanto à qualidade de fronteiriço, em que consta
inicialmente sua outorga por cinco anos, prorrogável por igual período, findo o qual poderá ser concedida por prazo indeterminado, e
valerá, em qualquer caso, exclusivamente, nos limites da localidade
para a qual foi concedida. Conforme o artigo VI, as “LocalidadesVinculadas” são: Chuí, Santa Vitória do Palmar/Balneário do Hermenegildo e Barra do Chuí (Brasil) a Chuy, 18 de julho, Barra de
Chuy e La Coronilla (Uruguai); 2. Jaguarão (Brasil) a Rio Branco
(Uruguai); 3. Aceguá (Brasil) a Aceguá (Uruguai); 4. Santana do
Livramento (Brasil) a Rivera (Uruguai); 5. Quaraí (Brasil) a Artigas
(Uruguai); 6. Barra do Quaraí (Brasil) a Bella Unión (Uruguai). Estabelece ainda, este artigo, uma faixa de 20 km da fronteira para o
exercício da condição de fronteiriço. Quanto à saúde, em 31 de julho de 2003 é assinado em Montevidéu outro Ajuste Complementar
ao Acordo Básico Cooperação Cientifica e Técnica (Tratado de
Amizade) de 1975. O referido Ajuste considera a necessidade de
uma atenção especial à problemática particular da saúde na fronteira, além de criar e implementar a Comissão Binacional Assessora
de Saúde na fronteira Brasil-Uruguai. A Comissão tem entre seus
objetivos o fortalecimento das ações e a implementação dos Comitês de Fronteira na área da saúde, promover o levantamento situacional de saúde da população e propor mecanismos para agilizar a
troca de informações em saúde, bem como propor estratégias de
ação. Dentre as inúmeras atividades da Comissão Binacional Assessora de Saúde na fronteira Brasil-Uruguai, destacam-se as atividades realizadas entre os dias 11 e 12 de outubro de 2005 na cidade
de Rivera, Uruguai.
A 1ª Conferência de Saúde na Fronteira foi o marco inicial de
uma iniciativa binacional no enfrentamento da problemática da
saúde na fronteira entre Santana do Livramento, no Brasil e Rivera,
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
143
no Uruguai. A partir da 1ª Conferência de Saúde na Fronteira, é
criado o Comitê Binacional de Integração em Saúde, para elaboração de Políticas Públicas de Saúde integrando as comunidades de
Rivera/Uruguai e Santana do Livramento/Brasil. Nessa perspectiva,
segundo Guimarães e Giovanella (2005, p. 255),
[…] as iniciativas fronteiriças demonstram que acordos bilaterais em saúde podem ser considerados etapas preparatórias
para os entendimentos multilaterais e que dispor de recursos
financeiros e estratégicos para o planejamento conjunto na
fronteira incentiva a cooperação e a solidariedade. Além de
fortalecer os entes locais na gestão dos sistemas de saúde,
apoia programas e contrapõe mecanismos informais.
Nesse sentido, em 28 de novembro de 2008 é assinado, na cidade do Rio de Janeiro, mais um Ajuste Complementar ao Acordo
para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios. Trata-se de um ajuste visando à
troca de prestação de serviços de saúde nas localidades fronteiriças
discriminadas como “localidades vinculadas”. Em seus treze artigos, destaca-se o artigo I – Âmbito de Aplicação – em que estabelece a permissão à prestação de serviços de saúde humana por pessoas físicas ou jurídicas situadas nas “localidades Vinculadas” e estabelece que a pessoa física ou jurídica contratada somente admitirá
pacientes residentes nas zonas urbanas, suburbanas ou rurais de
uma das “localidades vinculadas”, mediante a apresentação da documentação que confirme sua identidade e domicílio, expedida por
autoridade policial correspondente ou outro documento comprobatório de residência, como o Documento Especial de Fronteiriço.
Destaca-se também o artigo II – Pessoas Habilitadas – no qual o
Ajuste Complementar permite às pessoas jurídicas brasileiras e
uruguaias contratarem serviços de saúde humana, em uma das localidades vinculadas, de acordo com os Sistemas de Saúde de cada
Parte. No item 2 do mesmo artigo, diz que a prestação de serviço
poderá ser feita tanto pelos respectivos sistemas públicos de saúde
quanto por meio de contratos celebrados entre pessoa jurídica como
contratante, de um lado, e pessoa física ou pessoa jurídica como
contratada, de outro, tanto de direito público quanto de direito privado. O artigo III ainda prevê em seu item 4 o objeto da prestação
144
Maurício Pinto da Silva & Mateus Lopes da Silva
de serviços de saúde humana: a) serviços de caráter preventivo; b)
serviços de diagnóstico; c) serviços clínicos, inclusive tratamento de
caráter continuado; d) serviços cirúrgicos, inclusive tratamento de
caráter continuado; e) internações clínicas e cirúrgicas; f) atenção
de urgência e emergência. O artigo V também merece um destaque, pois prevê a sistemática de um problema diário enfrentado
pelos municípios fronteiriços, qual seja: a utilização e a livre circulação em zonas urbanas, suburbanas e rurais das localidades vinculadas de veículos na prestação de serviços, tais como ambulâncias,
que deverão segundo o referido artigo respeitar as regulamentações
técnicas de ambas as Partes e estarem devidamente identificadas.
Nesse contexto, há cada vez mais demandas e problemas de
saúde nas áreas de fronteira entre países que carecem de indicação
e alternativas jurídico-administrativas aos gestores estaduais e municipais do Sistema Único de Saúde. Nesse cenário, os municípios
de fronteira do Brasil têm tido grandes dificuldades em prover seus
munícipes de atenção integral à saúde e, além disso, em alguns
casos, atender à demanda proveniente dos países vizinhos. A falta
de recursos humanos especializados, a insuficiência de equipamentos para realização de procedimentos e a distância entre os municípios e os centros de referência são os principais problemas encontrados. Segundo dados da pesquisa Saúde nas Fronteiras – Estudo
do acesso aos serviços de saúde nas cidades de fronteira com países
do MERCOSUL, realizada pelo grupo de pesquisas da Fiocruz entre
2005-2007, “na grande maioria (84%) dos municípios estudados
ocorrem algum tipo de fluxo e trânsito na fronteira. Os fluxos e
trânsitos na fronteira são mais intensos nas divisas com o Paraguai
e Uruguai do que com a Argentina” (GIOVANELLA, 2007).
A mesma pesquisa aponta que “entre os diversos fluxos e
trânsitos fronteiriços apontados pelos Secretários Municipais de
Saúde, os de maior intensidade são aqueles de pessoas com familiares residentes do outro lado da fronteira considerados frequente ou
muito frequente por 64% dos SMSs”. Ademais, as dificuldades de
planejamento e provisão de políticas específicas em função da população flutuante que utiliza o sistema e que, no caso brasileiro,
não é contabilizada para os repasses financeiros do SUS, vêm gerando dificuldades diversas cuja principal vítima é o cidadão fronteiriço (GADELHA, COSTA, 2007, p. 2).
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
145
Nesse sentido, Guimarães e Giovanella (2005, p. 249) afirmam:
[…] refletir sobre a situação de municípios fronteiriços, assim
como observar iniciativas de cooperação, contribui no
MERCOSUL para análises específicas de repercussões da integração nos sistemas de saúde, e pode influir na pauta de
acordos e programas voltados para regiões fronteiriças, apoiar
esforços de garantia de atenção integral e humanizada, e para
o fortalecimento das políticas nacionais de saúde.
As mesmas dificuldades são enfrentadas pelos países fronteiriços com o Brasil, gerando uma movimentação das populações ali
residentes em fluxos, ora num sentido ora em outro, na busca de
melhor oferta de ações e serviços de saúde. Nesse sentido, segundo
Rodrigues (2007, p. 7),
[…] o Ministério da Saúde institui o Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras – SIS Fronteiras, com o propósito de integrar as ações e os serviços de saúde nas regiões de fronteira.
O sistema busca contribuir para o fortalecimento e para a organização dos sistemas locais de saúde, com a finalidade de
verificar as demandas e a capacidade instalada, de identificar
os fluxos de assistência, de analisar o impacto das ações desenvolvidas sobre a cobertura e a qualidade assistencial, de
documentar os custos com a assistência aos cidadãos e de integrar recursos assistenciais.
Contudo, projetar avanços na política de saúde nas fronteiras
do Mercosul, a partir da perspectiva e experiências de cidades fronteiriças evidencia que a convivência com a diversidade, ao lado da
construção da integração, abre caminhos para iniciativas bilaterais.
A iniciativa de cooperação realizada nas localidades de Santana do
Livramento e Rivera podem oferecer elementos para a formulação
de estratégias para as políticas de saúde nas fronteiras, entre as
quais: monitoramento das condições de vida, aproximação de práticas sanitárias, oferta de capacitação de recursos humanos de forma
conjunta, intercâmbio de informações, iniciativas de apoio mútuo.
Assim, segundo uma série de acordos bilaterais, o Brasil vem
estabelecendo as bases jurídicas para o desenvolvimento e o aper-
146
Maurício Pinto da Silva & Mateus Lopes da Silva
feiçoamento das relações com os países vizinhos em sua zona de
fronteira. Entretanto, segundo o MIN (2005, p. 185), “os acordos
bilaterais mostram que a política governamental para as regiões de
fronteira tem privilegiado negociações com cada país, em lugar de
criar normas gerais que regulam as interações na Faixa de Fronteira como um todo”. Avançar na reflexão das repercussões da integração regional sobre os sistemas de serviços de saúde, a partir das
regiões de fronteiras, pode contribuir para antecipar questões na
plena vigência do Mercosul. Segundo Gadelha e Costa (2005) “a
realização e implementação de acordos específicos, como o acordo
bilateral Brasil–Uruguai além do fortalecimento de instituições supranacionais voltadas para a integração fronteiriça, são fundamentais para a promoção da cidadania da população fronteiriça”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao concluir, entendemos a faixa de fronteira entre a República
Federativa do Brasil e a República Oriental do Uruguai como um
imenso laboratório social, econômico e cultural de integração binacional. Apesar de a sua formação histórica ter passado por momentos conturbados diante de sua ocupação territorial, as semelhanças
culturais e a intensa integração social ao longo dos anos possibilitaram a esta região enfrentar e solucionar seus problemas de toda
ordem. Contudo, o desenvolvimento da Faixa de Fronteira apresenta ainda uma atuação fragmentada, sem qualquer planejamento ou
orientação programada. Ações neste sentido resultam na dispersão
dos escassos recursos públicos, sem terem impactos na geração de
emprego, renda, organização da sociedade civil ou na estruturação
das atividades produtivas.
Para o desenvolvimento sustentado das áreas limítrofes é necessário um maior investimento em infraestrutura básica para o
desenvolvimento e modernização das suas potencialidades locais
de produção. Além disso, são necessários que se criem demandas
efetivas de produção e consumo dentro da região fronteiriça, bem
como a formação de uma estrutura social que tenha poder de decisão, capaz de sustentar o desenvolvimento regional e transfronteiriço.
Ao observar pelo histórico, o desenvolvimento socioeconômico
nesse tipo de região, bem como o padrão de intervenção por meio
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
147
das políticas públicas sempre ressentiram da falta de diretrizes de
uma política de Estado eficaz. Os resultados deste tipo de atitude
convergem para duplicação de iniciativas, competições predatórias,
falta de planejamento integrado do desenvolvimento territorial e
uma visão estratégica quanto à aplicação das potencialidades endógenas em nível local, regional e principalmente transfronteiriço.
Para se pensar o projeto de integração regional pretendido pelos países do bloco, torna-se cada vez mais necessário um estudo
sistemático do fenômeno da regionalização como constitutivo da
globalização que flexibiliza as fronteiras. Assim, as noções de espaço e tempo, fundamentais para todas as ciências sociais, estão sendo revolucionadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico
incorporado e dinamizado pelos movimentos da sociedade global.
Por outro lado, cada localidade, ao longo da fronteira entre
Brasil e o Uruguai, tem conformações distintas e características
próprias; de acordo com as suas especificidades é que se podem
conceber as redes de ocupação, de cooperação, de gestão e a dimensão dos processos sociais e culturais, de indivíduos e de grupos
sociais. É fato também que os processos de cooperação internacional e/ou de integração regional, bem como os processos de globalização, geram consequentemente um reordenamento do espaço geopolítico nas regiões de fronteira entre países.
Os distintos desenhos dos sistemas e das políticas de saúde
dos diferentes países, sejam eles físicos, financeiros ou de recursos
humanos, exibem os inúmeros obstáculos enfrentados pelas populações fronteiriças diante do acesso aos serviços sanitários. Em última análise, podemos considerar que a região de fronteira passa
por uma profunda e importante transformação (consolidação do
Tratado de Ouro Preto), deixando de ser uma região-problema, a
qual é ordenada uma série de restrições, para se transformar numa
região prioritária para o desenvolvimento local, regional e transfronteiriço, fortalecendo social e economicamente o bloco Mercosul.
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Acesso em: 11 mar. 2009.
Paula Helena Schmitt
Mestranda em Ciências Criminais na PUCRS,
bolsista do PROSUP/CAPES. Bacharela em
Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS.
Contato: [email protected]
Tiago Pires Fidelis da Luz
Advogado. Mestrando em Ciências Criminais
na PUCRS, beneficiário de auxílio (taxas
escolares) do PROSUP/CAPES. Bacharel em
Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS.
Contato: [email protected].
Capítulo 9
ESPAÇO E IDENTIDADE:
ESTIGMA, DISTINÇÃO,
SEGURANÇA
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Conceber o complexo processo de urbanismo como uma ciência destinada a organizar tecnicamente espaços habitáveis, a fim de
melhorar a vida dos indivíduos e das comunidades, pode se revelar
uma postura nefasta, porque ingênua e inerte, tendo em vista que
esse processo não pode ser encarado como mero conjunto de estratégias assépticas e politicamente isentas, empregadas na formação
da cidade. Há muito, diretrizes tecnicistas abissalmente distantes
da realidade social têm formulado o urbano de acordo com uma
ótica pretensamente neutra e puramente utilitária, resultando numa
verdadeira abstração urbana, já que a cidade é, dessa forma, estruturada à revelia de hábitos, necessidades, usos e práticas da sua
população, que não raro passa a habitar um espaço que não ajudou
a construir e que representa não seus anseios, mas a manutenção e
salvaguarda de paradigmas socioespaciais, capitaneados pelo mercado. Mais especificamente, estamos a falar de um mercado que,
pelos espaços (terrenos?) comercializados, coloca à venda estigma,
distinção e segurança.
152
Paula Helena Schmitt & Tiago Pires Fidelis da Luz
A ótica tecnicista do urbanismo submete-se funcionalmente à
negociação do solo e à circulação de mercadorias (inclusive automóveis). Nesse sentido, tem sido verificada sempre maior participação, no projeto das cidades, do protótipo do “operador especializado”, ou seja, do agente estatal que toma o urbanismo como objeto
(MARTINS, 2008, p. 60-61), e fundamenta suas ações em nome da
técnica e da eficácia, em detrimento da inexorável opção política
que está contida em cada deliberação urbana.
Entretanto, como há mais de meio século já salientava Jacobs
(2011, p. 18-19), essa técnica supostamente neutra que embasa o
urbanismo carece de contato com a realidade:
A pseudociência do planejamento urbano e sua companheira,
a arte de design urbano, ainda não romperam com o ilusório conforto de desejos, superstições habituais, simplificações e símbolos, e
ainda não se lançaram à aventura de experimentar o mundo real.
É nesse sentido que o presente capítulo se apresenta: trata-se
aqui de ir de encontro a essa visão tecnicista do urbanismo, retirando essa “pseudociência” de sua posição de centralidade no pensar a
urbe e tratando-a como apenas um dos elementos do complexo processo de produção do espaço urbano.
Para tanto, é necessário, inicialmente, explicitar o sentido em
que alguns conceitos serão utilizados neste trabalho. Isso porque ao
termo espaço e a outros relacionados à mesma ideia (por exemplo,
lugar, paisagem) podem ser atribuídos diversos significados, sendo
isso perceptível tanto nas variações entre disciplinas como em seus
usos na linguagem cotidiana. Nesse sentido, é fundamental para o
aprofundamento do estudo a estipulação mínima de alguns sentidos1.
O primeiro sentido a ser explicitado é exatamente o do termo
espaço. De acordo com Lefebvre (1991, p. 73), “o espaço (social)
não é uma coisa dentre outras coisas, nem um produto dentre outros produtos; antes, subsume coisas produzidas e envolve suas inter-relações em sua coexistência e simultaneidade – sua ordem (relativa) e/ou desordem (relativa)”. Estamos, portanto, utilizando o
termo espaço de uma forma abstrata, que abarca, ao mesmo tempo,
um determinado local e as relações sociais nele e com ele mantidas.
1
Abordaremos neste trabalho uma versão bastante simplificada da terminologia
utilizada por Lefebvre (1991). Para uma discussão mais elaborada, vide também
Harvey (2006, p. 119-148) e Santos (2008).
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
153
Para uma efetiva compreensão da abstração acima proposta,
Lefebvre (1991, p. 38-39) nos fornece uma tríade conceitual: a prática espacial (trata-se do espaço percebido: a prática espacial de uma
sociedade, ao mesmo tempo, expõe e pressupõe o espaço, o qual é
produzido de forma lenta, conforme a sociedade o domina e dele se
apropria), as representações do espaço (é o espaço concebido, o espaço conceitualizado, o espaço pensado por planejadores, urbanistas, engenheiros sociais etc.), e os espaços representacionais (o espaço vivido, o espaço de habitantes e de usuários: experimentado
passivamente, modificado e alterado pela imaginação, faz uso simbólico do espaço físico).
Harvey (2009, p. 13-14) demonstra a importância de se adotar
essa postura. Somente após a realização dessa abstração acima sugerida, é possível que “a questão ‘o que é o espaço?’ [seja] substituída pela questão ‘como diferentes práticas humanas criam e utilizam
diferentes conceptualizações do espaço?’”
Portanto, é importante frisar que, quando utilizarmos o termo
espaço, estaremos nos referindo a essa abstração que engloba as
práticas espaciais, as representações do espaço e os espaços representacionais, ou seja, o espaço percebido, o concebido e o vivido.
Outro conceito a ser trabalhado é o de identidade. Laclau
(1996, p. 37), utilizando as categorias formais desenvolvidas por
Saussure, argumenta
[…] que a linguagem (e, por extensão, todos os sistemas de
significação) é um sistema de diferenças, que identidades lingüísticas – valores – são puramente relacionais e que, como
resultado, a totalidade da linguagem está envolvida em cada
ato singular de significação. Nesse caso, é claro que a totalidade é essencialmente necessária – se as diferenças não constituíssem um sistema, nenhuma significação seria possível.
É a partir disso que a noção pós-estruturalista de “exterior
constitutivo” embasa a ideia de Mouffe (2005, p. 15) acerca do conceito de identidade:
[…] a criação de uma identidade infere o estabelecimento de
uma diferença, diferença que é geralmente construída com
base em uma hierarquia, por exemplo, entre forma e matéria,
154
Paula Helena Schmitt & Tiago Pires Fidelis da Luz
preto e branco, homem e mulher etc. […] toda identidade é relacional e a afirmação de uma diferença é uma pré-condição à
existência de qualquer identidade.
Portanto, a identidade de uma pessoa ou de um grupo social é
criada a partir de uma relação com algo que necessariamente deve
ser visto como exterior. A identidade própria é fundada na percepção de uma diferença.
Ainda, será utilizada neste artigo a noção de essencialismo,
que consiste em atribuir a alguém (a si ou a outrem) uma ontologia
imutável: presume-se que a pessoa, em função de algum traço distintivo – por exemplo, classe social, gênero, raça ou orientação sexual –, teria características essenciais fixas e imutáveis. A essencialização pode ser tanto de si mesmo como do outro. Quando se trata
de uma autoessencialização, os resultados são segurança ontológica2, absolvição de responsabilidades, justificativas para o inaceitável, afirmação de superioridade e possibilidade de alegação de unidade de interesses. Já a essencialização do outro, além de também
fornecer segurança ontológica, legitima privilégios e deferências,
permite que se culpe o outro e embasa a projeção (YOUNG, 1999,
p. 102-105).
Com esses conceitos em mente, será possível a partir de agora
iniciar a abordagem de uma teoria que auxilie a compreensão da
lógica de funcionamento do espaço, a partir das inter-relações entre
este e as identidades das pessoas nele situadas. Mas uma ressalva
preliminar é fundamental: apesar de abordarmos essas interrelações sob o enfoque a dois movimentos opostos, em nenhum
momento atribuímos às noções de produção a seguir um caráter
determinista. Pelo contrário, nosso argumento é exatamente no sentido de que a produção do espaço, funcionando como um circuito,
deve ser encarada como o resultado de disputas complexas e profundas, que envolvem tanto práticas internas quanto externas a
cada espaço.
2
A expressão segurança ontológica, cunhada por Giddens (1991, p. 104), referese à “crença que a maioria dos seres humanos tem na continuidade de sua autoidentidade e na constância dos ambientes de ação social e material circundantes”. É dizer, trata-se de um sentido de confiança na ordem e estabilidade
das experiências do indivíduo.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
1
155
IDENTIDADE PRODUZINDO O ESPAÇO
O lugar ocupado ganha os contornos do tipo de sociedade que
o produziu, mas, enquanto condição sine qua non da reprodução
social, ele também influencia os processos sociais subsequentes. É,
portanto, produto, meio e produtor das relações sociais.
No primeiro nível dessa projeção cíclica, nota-se a prevalência das representações do espaço, o qual é modificado em conformidade a concepções que buscam adequá-lo e a moldá-lo às identidades que nele se inserem de forma predominante. Nesta dimensão
da produção do espaço, podemos inferir que as práticas e usos do
espaço conferem-no, constantemente, ressignificações ligadas à
experiência individual de ocupá-lo (pelo signo da habitação, do
trabalho, do lazer, da moradia, etc.) e à memória coletiva construída
em torno dos processos históricos de reconhecimento subjetivo com
o lugar. A atribuição de sentidos, desse modo, está intimamente
ligada com a capacidade de se sentir representado espacialmente,
construindo-se, assim, uma identidade do espaço. As experiências
individuais e coletivas vividas em um lugar são a história que se
cria com ele, e operam como elementos que lhe proporcionam autonomia identitária. Nas palavras de Santos (2008, p. 59),
A história atribui funções diferentes ao mesmo lugar. O lugar
é um conjunto de objetos que têm autonomia de existência pelas coisas que o formam ruas, edifícios, canalizações, indústrias, empresas, restaurantes eletrificação, calçamentos -, mas
que não tem autonomia de significação, pois todos os dias novas funções substituem as antigas, novas funções se impõem e
se exercem.
A produção do espaço passa, assim, necessariamente, pela
construção social de espaços improdutivos do ponto de vista estritamente econômico, que servem à experiência de ocupar e viver
num lugar onde se ancora a história da sociedade. São espaços não
destinados prioritariamente a uso mercadológico, mas a relações
sociais e seus usos e práticas locais.
De outro lado, a construção da identidade de um espaço passa
também pelo viés econômico. Nessa linha, a partir do momento em
que a propriedade privada passa a orientar políticas globais de organização e uso dos espaços, a mundialização da economia atinge
156
Paula Helena Schmitt & Tiago Pires Fidelis da Luz
diretamente o acesso à ocupação dos lugares. No contexto, o próprio espaço assume a condição de mercadoria, e seu uso fica condicionado às relações de produção do capital. A identidade do lugar
passa então a perder os contornos de um espaço vivido historicamente para adquirir formas econômicas, que por sua vez reproduzirão outras experiências de vida calcadas na ótica do consumo do
espaço.
Existem diversos estudos que demonstram como identidades
produzem determinados tipos de espaço. Dentre esses, destaca-se
Cidade de Muros. De acordo com o estudo empreendido por Caldeira
(2011, p. 230-240) na cidade de São Paulo, há pouco mais de uma
década, a dinâmica de moradia urbana tende a se transformar ao
longo dos anos. A pesquisadora concluiu, por exemplo, que a partir
dos anos 1970, no período de abertura política, que culminaria na
redemocratização brasileira, muitos movimentos sociais foram engendrados pela população pobre das periferias, então sindicalizada
e politizada, a fim de exigir da administração municipal os serviços
e equipamentos necessários à urbanização da área. As melhorias
conquistadas, no entanto, tiveram o condão de valorizar os imóveis
e elevar o custo de vida no local. O amplo oferecimento de recursos
obtidos graças aos movimentos, como saneamento básico, iluminação pública, asfaltamento e linhas de ônibus, reverteram as tendências demográficas da periferia, porque a tornaram alvo da especulação imobiliária. A manutenção da moradia aos poucos se tornou,
para a população pobre local, inviável, porque o poder aquisitivo de
que dispunham não acompanhou a valorização da área.
Em outros termos, modificações na identidade dos moradores
(no caso, fundamentalmente o incremento do exercício de práticas
cidadãs possibilitado pelo processo de abertura da ditadura militar)
causaram alterações sensíveis no espaço em que residiam, o qual
foi adaptado para se adequar às novas exigências de seus moradores – as suas identidades –, mas acabou se constituindo como espaço
representativo de outra classe socioeconômica, reproduzindo, então,
novas identidades na medida em que as primeiras o produziam.
Nessa linha, vão, por exemplo, os processos de gentrificação3
de áreas consideradas degradadas (“eufemismo para uma forma
3
Vale esclarecer que o termo designa a transformação gradual de uma zona
popular ou “deteriorada” em região nobre, tratando-se de um processo de valorização imobiliária geralmente acompanhado do deslocamento dos antigos mo-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
157
moderna de limpeza urbana” [RUBINO, 2009, p. 35]), onde o valor
de uso que o lugar representa para seus habitantes e o valor de troca para os interessados em extrair dele algum benefício implicam
uma forte contradição (ARANTES, 2002, p. 65).
“As culturas são realidades vivas e mutáveis, e sua produção,
continuidade e mudança dependem de condições históricas e socioambientais específicas” (ARANTES NETO, 2009, p. 15), as quais
parecem agora refletir os contornos de uma sociedade de consumo.
Quando determinados espaços passam a ser concebidos segundo a
ótica do empreendimento, do negócio, do capital, passam também a
ser consumidos tal qual mercadoria, constituindo-se em instrumentos de introjeção da cultura do consumo nas identidades pessoais e
coletivas.
Outro exemplo importante de produção do espaço por determinadas identidades ocorre no caso das comunidades fechadas que
se apresentam, no mais das vezes, como sociedades paralelas e semiautônomas incrustadas no tecido urbano, que dispensam por opção a heterotropia da cidade para enclausurar-se em feudos de privatopia, que explicitamente excluem os pobres, os desfavorecidos e
os marginalizados na medida em que tais disparidades geográficas
de riqueza e poder se constituem em verdadeiros guetos de afluência (HARVEY, 2000, p. 148-150)4.
Além de acirrar as disparidades sociais pelo estabelecimento
de formas desiguais de apropriação do espaço, essas comunidades
tendem a afastar a diferença, já que são ocupadas por figuras socialmente homogêneas e criam barreiras físicas e simbólicas à interação e ao encontro, eliminando aquilo que Caiafa (2007, p. 39) de-
4
radores da região, em regra com baixo poder econômico (o que ocorre, não raro, de maneira não impositiva, mas através por um processo seletivo de habitação que se escamoteia sob a aparência de um resultado “natural” das relações
de mercado e de inter-relações pessoais). Geralmente, revitalização, enobrecimento e termos similares são utilizados eufemisticamente para se referir a políticas que promovem esse processo.
Caso bastante expressivo da colonização do espaço por identidades ligadas ao
capital é o dos “clubes de praia”: em função de uma mistura entre a cultura do
consumo, do glamour, e um hedonismo exacerbado, são criadas ilhas na areia,
as quais podem ser frequentadas “sem medo de usar seu relógio Rolex ou sua
bolsa Louis Vuitton”, e cujo contorno físico é bem delineado e o acesso absolutamente restrito e elitizado, seja pela privatização de um espaço (apropriação
essa ilegal, diga-se), seja pelos preços estratosféricos praticados nesses locais.
Nesse sentido, vide Neves (2013).
158
Paula Helena Schmitt & Tiago Pires Fidelis da Luz
nomina aventura própria das cidades, que é justamente a produção
de heterogeneidade e a dispersão dos focos de identidade e familiaridade.
Esse afastamento se manifesta na formação de enclaves urbanos: espaços monitorados e privatizados de consumo, lazer,
trabalho, residência, que oferecem segurança e garantem um
público selecionado, e embora possam se situar fisicamente
próximas de favelas ou áreas deterioradas, delas se separam
definitivamente através de muros e tecnologias de segurança.
Esses enclaves são vistos por muitos moradores da cidade como únicas alternativas de uso urbano, o que evidentemente
reduz a livre circulação de pessoas nas ruas e deteriora significativamente o uso de espaços públicos, que passam então a
ser considerados perigosos ou mal frequentados. (SCHMITT,
2012, p. 76)
A questão da segurança é, em geral, a maior justificativa do
isolamento das cidades. Nesse sentido, a razão do grande sucesso
dos condomínios fechados e shoppings centers é seu planejamento
arquitetonicamente voltado para a constituição de zonas de segurança, onde se possa desfrutar o conforto de um espaço que oferece
ao mesmo tempo a maioria das necessidades de consumo e a garantia de um forte aparato de segurança sempre pronto a inibir o confronto com o estranho, a diferença, o outro e, portanto, com o perigo
iminente. Nessa linha, a série de mudanças sociais observadas a
partir da segunda metade do século XX, unida ao
[…] pânico difundido pelos meios de comunicação de massa
criam no imaginário das elites a forte sensação que cada minuto vivido fora dos muros e das câmeras de segurança representa um risco iminente e fatal de ser vítima do crime violento. Assustada, a elite se esconde, vendo na clausura dos condomínios a mais fantasiosa manifestação de liberdade, e nos
shoppings centers o próprio retiro espiritual do consumo.
(SCHMITT, 2012, p. 80)
Nesse caso, percebemos que as modificações do espaço com
base em uma identidade local podem se dar pelo do poder aquisitivo
dos moradores ou usuários da área, mas não têm necessariamente
uma finalidade de distinção puramente econômica, podendo estar
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
159
caracterizadas primordialmente pelo estabelecimento de um cordon
sanitaire que tem por objetivo primário a retomada do controle dos
moradores sobre suas vizinhanças, em contraposição ao controle
por tráfico de drogas, gangues, prostituição etc. (HAYWARD, 2004,
p. 135).
E também o contrário é possível: de acordo com Souza (2008),
muitas favelas também podem implicar enclaves urbanos, igualmente constituídos pela vontade de segurança, embora de uma
forma reversa. Tais espaços, esquecidos pelo poder público assistencial, mas sempre lembrados pelo poder público militar, lançam
mão da natureza das construções desalinhadas, das vielas estreitas
e dos becos labirínticos para impedir o avanço de tropas policiais ou
de não moradores, que se tornam rapidamente reconhecidos como
tais e sobre os quais recai, de imediato, a suspeição. Essas áreas, tal
como os condomínios fechados, são capazes de estabelecer regras
de exclusão e inclusão, e de consolidar, da mesma forma, práticas
territoriais particulares e articulações internas de segurança privada (a exemplo do “toque de recolher”, ou da fixação de horários
para o funcionamento do comércio).
Por decorrência dessas constatações é de se observar que uma
série de dinâmicas sociais ligadas à identidade de um conjunto de
pessoas que ocupa determinadas áreas (reconhecimento ou familiaridade com o lugar, relações intersubjetivas dos sujeitos ali situados,
necessidades cotidianas ou ocasionais a respeito de bens e serviços
essenciais, etc.) tem o condão de criar e recriar o espaço na medida
em que atribui a ele, a todo momento, novas funções e significações.
2
O ESPAÇO PRODUZINDO IDENTIDADE
Num segundo momento, quando falamos no caráter produtor
do espaço, essa sua condição “aparece como prática e suporte da
realização das relações sociais, do uso e da reunião dos membros da
sociedade que, pela atividade real, vão constituindo a identidade na
prática e a partir de relações do homem com o outro, isto é, como
objetividade e subjetividades, como prática e realidade” (CARLOS,
2011, p. 78). Aqui, a ênfase está no espaço representacional. É dizer:
[…] uma cidade não é apenas um local em que se produzem
bens e onde esses bens são comercializados e consumidos, e
160
Paula Helena Schmitt & Tiago Pires Fidelis da Luz
onde pessoas trabalham; uma cidade é um local onde pessoas
se organizam e interagem com base em interesses e valores os
mais diversos, formando grupos de afinidades e de interesse,
menos ou mais bem definidos territorialmente com base na
identificação entre certos recursos cobiçados e o espaço, ou na
base de identidades territoriais que os indivíduos buscam
manter e preservar. (SOUZA, 2011, p. 28)
Nesse sentido, é possível dizer que o espaço, enquanto produto de relações circunscritas por determinadas sociedades ou grupos
sociais e enquanto locus de reprodução dessas relações, também as
produz, desenvolvendo identidades humanas. Para Santos (2007, p.
107),
Cada homem vale pelo lugar onde está: o seu valor como produtor, consumidor, cidadão depende de sua localização no
território. […] Enquanto um lugar vem a ser condição de sua
pobreza, um outro lugar poderia, no mesmo momento histórico, facilitar o acesso àqueles bens e serviços que lhe são teoricamente devidos, mas que, de fato, lhe faltam.
Todavia, o espaço é apropriado de forma diferenciada entre os
indivíduos, muito comumente de acordo com a posição que eles
ocupam no mundo da produção. Desse modo, nem todos os espaços
são acessíveis a todos os indivíduos. Pelo contrário: geralmente, o
que ocorre é quase um determinismo espacial da urbe, estando
muito claro que setores da sociedade ocupam e ocuparão cada dimensão territorial ou bairrista.
No Brasil, ao menos de forma direta, a variável renda é a principal definidora dessa diferenciação. O que não quer dizer,
contudo, que, indireta ou mediatamente, outros fatores, especialmente o fator étnico (“racial”), não estejam entrelaçados,
historicamente, como fatores de renda: a maioria dos moradores de favelas nas cidades do Sudeste, do Nordeste e do Centro-Oeste do Brasil é afrodescendente (negros e mulatos), […],
isso mostra muito eloquentemente, a força da inércia de uma
“liberdade” formalmente conquistada há mais de um século,
mas que não veio acompanhada de condições reais de acesso
à qualificação profissional, à educação e à moradia digna, do
que resultou uma reprodução, geração após geração, de um
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
161
quadro geral de pobreza e estigmatização. (SOUZA, 2011, p.
66)
Assim, o local de habitação, por exemplo, a depender de suas
condições estruturais de disposição de bens e serviços necessários
ao dia a dia do sujeito, pode atribuir a este uma série de significações. O clássico exemplo é o da estigmatização de moradores de
periferias ou favelas que, contrastando com os bairros privilegiados
da classe média e das elites podem acabar gerando uma série de
conflitos de convivência entre classes sociais diferentes e causar
sérios problemas de autoestima coletiva (SOUZA, 2011, p. 69). Dessa forma, a “relação entre o espaço e a desigualdade social deve ser
pensada conforme as possibilidades de acessarem-se bens socialmente valiosos ou então posições sociais de prestígio, diretamente
vinculados a relações intersubjetivas ou de poder” (RIPOLL;
SAAVEDRA, 2011, p. 182).
Do que se infere que não só o sentido material de se habitar
um lugar que produz identidades, mas também, e talvez principalmente, o sentido simbólico das relações de poder projetadas no território e os vetores culturais inscritos no espaço vivido (SOUZA,
2011, p. 99); é dizer, são as barreiras físicas e imaginárias que delimitam a identidade dos que têm acesso ou não a determinadas
áreas.
O espaço diz algo a respeito da pessoa que o ocupa: ele atribui um estilo de vida àquele que nele vive, compra, estuda ou se
diverte. Ele não vende só segurança ou distinção social, mas também identidade. Retornando a Lefebvre (1991, p. 80-84), é interessante ressaltar que o espaço, por ser um produto, também deve ser
encarado como algo que mente a respeito de si: assim como mercadorias, o espaço dissimula a quantidade de trabalho social nele contido, o trabalho produtivo que incorpora e, principalmente, as relações sociais de exploração e dominação em que se funda5. Nossa
5
Para além disso: “O espaço nunca é produzido no sentido em que um quilograma de açúcar ou uma jarda de tecido é produzida. Nem é um agregado dos
lugares ou localizações de produtos como açúcar, trigo ou tecido. Ele vem a ser
então algo à moda de uma superestrutura? Novamente, não. Seria mais acurado dizer que o espaço é simultaneamente uma pré-condição e um resultado de
superestruturas sociais. […] Apesar de ser um produto a ser usado, a ser consumido, é também um meio de produção; redes de troca e fluxos de matéria-
162
Paula Helena Schmitt & Tiago Pires Fidelis da Luz
argumentação é no sentido de que, ao realizar essas dissimulações,
o espaço contribui para a formação de identidades essencializadas:
a essencialização do outro é pelo menos facilitada, pois toda uma
gama de relações sociais que na verdade são externas ao outro (são
seu exterior constitutivo, não inerentes a ele) não são levadas em
conta durante a operação de essencialização. Em vez de se pensarem essas relações como algo externo ao outro e, portanto, influente
e até certo ponto justificante de sua identidade, recorre-se à essencialização, vendo-se o outro, então, como alguém com uma essência
distinta, em vez de alguém com uma história distinta. “Este sujeito
pressuposto não é outro ser humano com uma rica vida interior
cheia de histórias pessoais as quais são autonarradas a fim de se
adquirir uma significativa experiência de vida, uma vez que tal
pessoa não pode, em última análise, ser um inimigo” (ŽIŽEK, 2008,
loc. 656).
Não raro, a essencialização de um indivíduo ou de um grupo/classe de indivíduos pode estar ligada à sua condição espacial: o
sujeito está tomado até os ossos pelos significados sociais de seu
espaço, imbuído pessoalmente do que significa ocupá-lo, e não pode disso se desfazer. Ocupar um lugar é carregar o estigma ou distinção que isso representa, é ser representado ou identificado por
isso.
3
A LÓGICA CENTRÍPETA DA IDENTIDADE DO ESPAÇO E
PRÁTICAS SOCIAIS CENTRÍFUGAS
Do que já foi discutido, percebemos que o indivíduo se situa
no espaço e nele estabelece suas relações interpessoais, conferindolhe significações ligadas às funções que ele desempenha e aos sentimentos de pertença e familiaridade que guarda com ele, ao mesmo tempo em que é também identificado e significado por ele. A
localização territorial, as práticas e os usos dos citadinos nos espaços urbanos definem a relação que eles estabelecem para com a
cidade; é dizer, o valor do indivíduo é definido em relação ao espaço social que ocupa, já que o exercício pleno da cidadania está vinculado ao acesso a bens e serviços essenciais que ele oferece. De
-prima e energia moldam o espaço e são determinados por ele.” (LEFEBVRE,
1991, p. 85)
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
163
outro lado, também o acesso a determinados espaços é definido
pelo valor conferido ao indivíduo, na medida em que representa
mais que a superfície física sobre a qual vivemos, trabalhamos e
circulamos; e sim, acima de tudo, representa um caráter simbólico
(SANTOS, 2007, p. 82). Conforme Arantes Neto (2009, p. 15), os
espaços
[...] são realidades a um só tempo tangíveis e intangíveis, concretas e simbólicas, artefatos e sentidos resultantes da articulação entre sujeitos (identidades pessoais e sociais), práticas
(atividades cotidianas ou rituais) e referências espaços-temporais (memória e história).
Assim, o lugar ocupado pelo indivíduo, enquanto categoria
simbólica e material, é-lhe forte sede de referência cultural. Representa sua condição de existência e elemento de sua identidade pessoal. Nesse sentido, o espaço não é apenas produto de relações sociais – ele também as produz. Estabelece-se, então, um circuito sensível entre homem e território, no qual há influências mútuas na
produção de identidades.
O espaço se apresenta como produto do homem em função
das estratégias sociais contidas em cada momento da história, e
também é condição de reprodução da história do homem. Nessas
condições, não é difícil perceber a vigorosa alienação que pode significar a experiência de um espaço sujeito à força produtiva do capital e de suas estratégias globalizadas, um espaço que é produzido
à revelia do indivíduo, que lhe é estranho e exterior (CARLOS,
2011, p. 18).
De acordo com Carlos (2011, p. 64-65), quando isso ocorre, a
produção do próprio espaço se insere na lógica de produção capitalista, que o transforma em mercadoria cujo uso é redefinido pelo
seu valor de troca, valor esse que determina sua condição de apropriação pelos indivíduos, ou melhor, a condição que os indivíduos
devem ter para apropriar-se dele. É interessante notar que essa lógica coloniza mesmo as atividades humanas: o habitar, o reunir e o
encontrar passam a ter finalidade utilitária.
Com os elementos até agora abordados, é possível darmos
contornos àquilo que chamaremos lógica centrípeta de produção de
espaço e identidade. Se, por um lado, identidades individuais e co-
164
Paula Helena Schmitt & Tiago Pires Fidelis da Luz
letivas exercem papel determinante na construção de espaços, por
outro esses espaços também influenciam decisivamente a formação
das identidades neles inscritas. E, como demonstramos, isso se dá
de forma retroalimentante. Mais do que isso: essa retroalimentação
tende a provocar um fechamento cada vez maior do espaço em torno das identidades nele inseridas e vice-versa, movimento esse que
tende, por meio de operações cada vez mais essencializantes, a reduzir espaço e identidades a um ponto em comum mínimo, a uma
homogeneidade. O ciclo de produção do espaço por identidades
essencializadas tende a reduzir o espaço, ao mesmo tempo, a produto e produtor delas.
Em contraposição a essa lógica centrípeta de produção da
identidade do espaço, é possível notar algumas práticas sociais e
políticas públicas capazes de provocar rupturas nessa retroalimentação. Vale lembrar, aliás, que “no existen ideas políticas sin un
espacio al cual sean referibles, ni espacios o principios espaciales a
los que no correspondan ideas políticas” (CAVALLETTI, 2010, p. 7),
isto é, o espaço é sempre locus político, onde coexistem dimensões
sociais de capital, segurança, relações intersubjetivas e poder. Discutiremos agora, brevemente, o exemplo do largo Zumbi dos Palmares, em Porto Alegre.
Figura 1 – Largo Zumbi dos Palmares (uso como estacionamento)
Fonte: <http://portoimagem.wordpress.com/2012/08/13/largo-zumbi-dos-palmares-serarevitalizado-e-ganhara-telecentro/>. Acesso em: 16 maio 2013.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
165
O largo Zumbi dos Palmares, nos últimos anos, é “normalmente” utilizado como estacionamento (Fig. 1). Localizado em uma
das áreas mais frequentadas de Porto Alegre, o largo está localizado
no bairro Cidade Baixa, entre as ruas General Lima e Silva e João
Alfredo, tradicionais redutos boêmios e culturais da cidade. Após a
discussão que fizemos, não é difícil reconhecer na imagem uma
certa identidade do espaço: tem-se ali a representação da cultura
do automóvel, a qual denota a destinação cada vez maior de espaços urbanos a carros, tanto para circulação como para estacionamento.
Pode-se afirmar que essa utilização “normal” do largo constitui-se claramente em interdição a outros possíveis usos – culturais,
recreativos... – desse espaço, principalmente porque sua utilização
como estacionamento implica uma ocupação física univocacional
do espaço.
Ademais, a lógica retroalimentante acima referida é facilmente
visualizável: como o espaço é fisicamente ocupado por automóveis,
sua apropriação e utilização para outros fins é dificultada; a dificuldade de ocupação do espaço para atividades diversas constitui-se,
ao mesmo tempo, em desincentivo a tentativas de apropriação desse
espaço e em facilitador da continuidade do uso estabelecido: como
se sabe que esse espaço não é geralmente utilizado para outros fins,
acaba se tornando uma atrativa opção de estacionamento para motoristas que residem ou circulam nas imediações.
Mas existem práticas sociais que são capazes de causar fraturas nessa lógica. A primeira que abordaremos é a apropriação do
largo Zumbi dos Palmares pela Massa Crítica6. Na última sexta-feira de cada mês, é realizado por ciclistas um grande passeio pelas ruas da cidade, e a concentração dos integrantes ocorre no início da noite, no largo Zumbi dos Palmares (Fig. 2).
6
A Massa Crítica “acontece quando dezenas, centenas ou milhares de ciclistas
se reúnem para ocupar seu espaço nas ruas e criar um contraponto aos meios
mais estabelecidos de transporte urbano”. Esse coletivo apresenta-se como
“uma celebração para quebrar a monotonia, mecanicidade e agressividade do
trânsito urbano, levando alegria e outros elementos mais humanos – braços,
pernas e rostos – ao asfalto” (Sobre…, [201?]).
166
Paula Helena Schmitt & Tiago Pires Fidelis da Luz
Figura 2 – Largo Zumbi dos Palmares (massa crítica)
Fonte: <http://receitasparasalvaromundo.com/massa-critica-da-alegria-d/>. Acesso em: 16
maio 2013.
Nos dias de passeio da Massa Crítica, o espaço deixa de ser
utilizado como estacionamento, mesmo que por um curto período, e
passa a abrigar uma diversidade de relações interpessoais interditadas por seu uso habitual. Em outros termos, pode-se dizer que há
uma lugarização momentânea desse espaço que funcionava como
não lugar7.
Ainda, é necessário chamar a atenção, mesmo que de forma
superficial, ao simbolismo inserido nessa prática: a Massa Crítica
apresenta-se como um movimento eminentemente contraposto à
ocupação quase exclusiva da malha viária por veículos automotores
(a cultura do automóvel supramencionada). Não é de se estranhar
que essa postura seja reafirmada quando da escolha, como local de
7
O termo foi cunhado por Augé (2008, p. 63), e refere-se a espaços que não se
podem definir como relacionais, históricos ou preocupados com identidades.
São geralmente lugares de passagem, sem significado inerente.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
167
concentração (do qual o coletivo deverá se apropriar), de um espaço
normalmente destinado a essa cultura do automóvel.
Outra intervenção significativa sobre o largo Zumbi dos Palmares vem sendo promovida pelo Carnaval na Cidade Baixa, evento que tenta há sete anos manter a tradição de blocos carnavalescos
em Porto Alegre. Em 2013, a iniciativa passou a contar com apoio
institucional e comercial, o que possibilitou a ampliação das datas
(foram nove dias de folia, entre 20 de janeiro e 17 de março) e estimulou a maior participação da população. Dos nove blocos, cinco
utilizaram o largo (DUARTE, 2013).
Figura 3 – Largo Zumbi dos Palmares (carnaval de rua)
Fonte: Imagem produzida pelos autores a partir do vídeo “Folias na CB – CIDADE BAIXA EM
ALTA”. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=raNmiijSvVY>. Acesso em: 16
maio 2013.
A Figura 3 retrata o momento de concentração do bloco Turucutá, cujo desfile ocorreu no último dia do evento. Trata-se aqui,
mais uma vez, de apropriação do espaço para práticas culturais que
privilegiam a socialização, contrapondo-se à utilização do espaço
como estacionamento.
168
Paula Helena Schmitt & Tiago Pires Fidelis da Luz
Além das discussões realizadas em relação à ocupação do espaço pela Massa Crítica, que se aplicam também a esse caso, é interessante notar a presença de veículos estacionados no local (lado
direito da figura), em que pese o evento ter contado com apoio institucional da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Isto demonstra
bem que visões antagônicas acerca da produção do espaço urbano
são o substrato político que permeia diversas atividades culturais
que vêm sendo realizadas na cidade.
À guisa de conclusão, cabe repisar que o objetivo deste artigo
é auxiliar na compreensão do fato de que a produção do espaço é
realizada de maneira inter-relacional: identidades pessoais e coletivas se inscrevem no espaço ao mesmo tempo em que são por ele influenciadas, em uma complexa interação entre as representações do
espaço e espaços representacionais. Pudemos concluir, também, que
essa interação se dá de forma cíclica, retroalimentante: foi o que denominamos lógica centrípeta de produção de espaço e identidade.
Demonstramos, por fim, que algumas práticas sociais – apoiadas ou não por políticas públicas –, as práticas centrífugas, são capazes de provocar fraturas nesse ciclo. O presente capítulo, portanto, nos leva a formular, em seu encerramento, a seguinte questão:
quais são as variáveis capazes de influenciar a efetividade dessas
práticas? Em outros termos, quais os fatores relevantes para que
práticas sociais induzam, de forma duradoura, a produção realmente democrática do espaço, com a necessária redução do nível de
disparidade socioeconômica e étnico-racial na apropriação de espaços de lazer, trabalho e moradia?
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Capítulo 10
Rene José Keller
Mestrando em Direito na Universidade de
Caxias do Sul (UCS) e bolsista CAPES.
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Advogado.
Contato: [email protected]
A CORRUPÇÃO
ESTATAL BRASILEIRA
À LUZ DA RAIZ
HISTÓRICO-ANTROPOLÓGICA
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O processo investigativo do fenômeno da corrupção não pode
estar desvinculado do exame das relações sociais concretas, em que
determinados indivíduos concorrem objetivamente para extraírem
proveito pessoal de uma situação tal que deveria prevalecer os imperativos da lisura e transparência. A discussão, portanto, não pode
ser reduzida a um espectro deslocado das contingências históricas,
culturais, econômicas etc., que confluem e se condicionam mutuamente para a prática corruptiva.
Dentre o leque de variações que o termo corrupção enseja,
aqui o objeto será centrado na modalidade ocorrida entre o poder
estatal e a participação eventual de um particular. Tal escolha não é
procedida de maneira aleatória, senão atenta à forma que, estatisticamente, maior destaque alcança nos debates populares. A título
organizacional, a fim de entrelaçar o combate à corrupção com o
viés interdisciplinar, o trabalho foi divido em dois grupos. O primeiro deles aborda o fenômeno da corrupção no Estado brasileiro. Isto
é, busca resgatar as raízes antropológicas do corrompimento, exa-
172
Rene José Keller
minando as diversas formas de manifestação, findando por imprimir
um viés mais prático com a análise de dados objetivos.
Assim, este capítulo tem como intento verificar em que medida o fator histórico-cultural explica o fenômeno da corrupção. Ou
seja, se é possível afirmar que há uma multiplicidade de maneiras
corruptivas deslocadas do âmbito estatal que estão sedimentadas
nas práticas sociais. Atenta-se, por oportuno, que o estudo não se
restringe ao campo teórico. Os argumentos expostos levam em considerações fatos objetivos, tendo como estepe os dados estatísticos,
bem como o arrimo essencialmente teórico de cunho sociológico,
político etc. Os ensinamentos teóricos servem como esteio substantivo para que se possa realizar o manejo adequado dos dados estatísticos que, no mais das vezes, não são autoelucidativos e representativos de um panorama social bem delineado.
1
A NOÇÃO ANTROPOLÓGICA DA CORRUPÇÃO NO BRASIL
Embora a corrupção seja um fenômeno não limitado a abrangências territoriais, a sua particularização segue a ótica das peculiaridades locais, com ênfase à formação cultural. Há, por isso, uma
grande mescla de fatores que se interpenetram na formatação da
corrupção aos moldes brasileiros. Uma das questões basilares a ser
pensada é se a corrupção estatal pode ser compreendida como uma
mera transposição da lógica do favorecimento que existe em todas
as camadas sociais ou se é reflexo do próprio poder que concede
status e hierarquia social distinta. O enfrentamento dessa e de outras questões, não menos relevantes, somente pode ser perpetrado
considerando-se o modelo antropológico específico.
Partindo da premissa de que toda ética pressupõe um modelo
antropológico (DI LORENZO, 2010, p 2; 26), é preciso incursionar
nos fatores de ordem social, cultural, econômico etc., que são conformadores da antropologia brasileira. Evidentemente que a influência lusitana se faz presente, tendo em vista que foram os responsáveis pela consolidação do Estado brasileiro1, pesando sobre a
1
Aqui, é válida a ressalva do professor Cezar Saldanha, memorando João Camillo
Torres, ao ressaltar que o Brasil teve uma organização estatal antes mesmo de
possuir um povo e um território. Na divisão clássica da teoria do Estado dos
elementos constitutivos deste, ao contrário da formação social europeia de ou-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
173
formação social do Brasil. A consolidação de uma identidade nacional foi o resultado de um somatório de diversidades, que pende alguma investigação para revelar as especificidades da corrupção no
Brasil.
Os traços característicos identitários do brasileiro foram estudados profundamente, principalmente nos séculos XIX e XX, resultando em obras clássicas de antropologia e sociologia. Buscando
averiguar os movimentos iniciais da corrupção, não raro há a associação entre a corrupção e as práticas ocorridas no Império, sendo
este momento entendido como germe de tais ações. No entanto,
não parece ser prudente, para fins deste estudo que tem flagrante
limitação espacial, incursionar em tal período, sob pena de desvio
de foco demasiado.
Ainda assim, o que não pode ser menosprezado acerca do tema da corrupção são os traços característicos dos brasileiros que
podem ter, efetivamente, confluído para que a corrupção seja uma
prática rotineira. O antropólogo Roberto DaMatta, no clássico ensaio intitulado “O que faz o brasil, Brasil?”, constava que, ao contrário do ocorrido nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra, o
brasileiro não vê correspondência entre a prática social e o mundo
jurídico. O cumprimento das leis no Brasil é ocasional, tendo em
vista que elas são associadas a uma conduta de censura por parte
do Estado, que busca extrair os prazeres e desmanchar iniciativas
(DAMATTA, 2010, p. 97-99).
Ao menos parte da explicação para o desapego às leis jurídicas está na divisão existente no sistema social. Há, para Roberto
DaMatta, duas unidades sociais básicas: o indivíduo e a pessoa. O
primeiro deles é o que está sujeito às leis universais que visam
“modernizar” a sociedade, sendo que o segundo é o sujeito das relações sociais, o homem real2. Entre os dois é campo de atuação da
2
tros povos, a burocracia estatal antecedeu a consolidação do território, que
ocorreu somente em 1750 com o Tratado de Madrid e da própria identidade e
existência do povo, que foi sedimentada gradualmente com a mescla de raças e
culturas. Cf. SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. Constituições do Brasil. Porto
Alegre: Sagra Luzzatto, 2002, p. 11-18.
A questão que envolve a divisão entre indivíduo e pessoa, nos termos de DaMatta, corresponde à problemática aventada por Karl Marx à época da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789. Qual a diferença basilar
entre o homem o cidadão? A resposta parece circundar a dicotomia que estabeleceu DaMatta, ao passo que o “indivíduo” de DaMatta é o “cidadão” de Marx,
174
Rene José Keller
malandragem, do jeitinho e do antipático lema “sabe com quem
está falando?” (DAMATTA, 2010, p. 96).
Os exemplos sociais das condutas que não estão adequadas à
lei são variados e facilmente observados no cotidiano. DaMatta
questiona como brasileiro se porta diante de uma placa de proibido
estacionar ou proibido fumar, além disso mencionando a conduta
em uma fila quilométrica. São casos do cotidiano em que há a oscilação entre a pessoa e o indivíduo, que por vezes é movido pela
astúcia de buscar alguma facilitação diante de uma regra geral e
abstrata.
O “jeitinho” é um mecanismo social de unir o antilógico “poder” e “não poder” ao mesmo tempo. De um lado, há a legislação
clara no sentido de coibir certa prática, que pode ser suavizada pela
necessidade específica. Segundo Roberto DaMatta (2010, p. 99),
O “jeito” é um modo e um estilo de realizar. Mas que modo é
esse? É lógico que ele indica algo importante. É, sobretudo,
um modo simpático, desesperado ou humano de relacionar o
impessoal com o pessoal; nos casos – ou no caso – de permitir
juntar um problema pessoal (atraso, falta de dinheiro, ignorância das leis por falta de divulgação, confusão legal, ambiguidade do texto da lei, má vontade do agente da norma ou do
usuário, injustiça da própria lei, feita para uma dada situação,
mas aplicada universalmente etc.) com um problema impessoal. Em geral, o jeito é um modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas, provocando essa junção inteiramente casuística da lei com a pessoa que a está utilizando O
processo é simples e até mesmo tocante.
Ainda à guisa de definição, para Lívia Barbosa, o jeitinho é
uma forma diferenciada de resolver algum problema, uma situação
difícil ou proibida. É um mecanismo de burlar a uma norma preesenquanto a “pessoa” de DaMatta é o “homem” de Karl Marx. Quando houve o
reconhecimento formal do Estado da condição das pessoas como “cidadãs”,
chamada por Marx de “emancipação política”, houve o surgimento fático e espiritual entre o homem nas suas relações pessoais e o que agora devia respeito
ao Estado na qualidade de cidadão. O problema aventado por DaMatta aponta
para a não eliminação desta dicotomia, ao passo que o brasileiro busca através
do jeitinho e da malandragem a harmonização entre o “homem” e o “cidadão”
(para Marx) ou entre a “pessoa” e o “indivíduo” (para DaMatta). Cf. MARX,
Karl. Sobre a Questão Judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 47-54.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
175
tabelecida, utilizando-se da esperteza, da conciliação ou dada habilidade (BARBOSA, 1992, p. 32). Buscando um laço com a corrupção, a autora pondera que “Sabemos que o jeito se distingue das
outras categorias afins no universo social brasileiro como favor e
corrupção. Entretanto, o que distingue o jeito do favor ou da corrupção é difícil estabelecer” (BARBOSA, 1992, p. 33).
Na sequência, a autora sustenta que o jeitinho em demasia
descamba à corrupção, embora seja extremamente difícil precisar a
linha limítrofe entre ambos. O fator primordial, entrementes, está
na representação esboçada por Lívia Barbosa, ao defender que há
uma linha de continuidade que se estende de um polo a outro, sendo o negativo a corrupção:
Gráfico 1: Inominado
__(+)_____________(+) / (–)_____________(–)___
favor
jeito
corrupção
Fonte: Lívia Barbosa (1992)
O estudo empreendido por Lívia Barbosa, que envolveu ampla
pesquisa de campo, ajuda a elucidar como a corrupção é socialmente percebida. Conforme a autora, o que distingue o jeito da corrupção para a maioria é a existência ou não de alguma vantagem material advinda do caso. Não obstante, há alguns casos enxergados
como jeito e não corrupção envolvendo o tal ganho material. Seria,
por exemplo, a situação de pagar uma “cerveja” para o funcionário
do DETRAN que faz a vistoria do carro, dar um suborno ao guarda
para que não multe; situações em que não se envolve grandes
quantias, no entanto, é despendido muito “papo”.
Na percepção popular, que evidentemente aqui não se comunga, o diferencial entre o jeito e a corrupção estaria no montante
de dinheiro envolvido. Aos que são mais críticos ao discurso do jeitinho, a quantia em si não é um valor absoluto, ganhando relevo as
noções de transgressão normativa e do enfraquecimento da credibilidade institucional. O personagem central na formatação do jeitinho brasileiro é o “malandro”. A malandragem, conforme Roberto
DaMatta, é uma forma de navegação social, cujo ator principal – o
176
Rene José Keller
malandro – seria o profissional do jeitinho e da arte de sobreviver
em situações adversas. Utilizando-se de talentos criativos inatos,
histórias, expedientes etc., isto é, de artifícios pessoais, de modo a
extrair proveito de terminada situação (DAMATTA, 2010, p. 101102).
Flertando com a corrupção, DaMatta aponta que o malandro é
um personagem nacional e representa “um papel social que está à
nossa disposição para ser vivido no momento em que acharmos que
a lei pode ser esquecida ou até mesmo burlada com certa classe ou
jeito” (DAMATTA, 2010, p. 103). Em verdade, a malandragem não
é tão somente uma característica peculiar desmedida do brasileiro
ou uma manifestação de cinismo ou gosto por ser desonesto. Trata-se
de um jeito original do brasileiro de viver (e sobreviver) dentro de
um sistema em que a situação doméstica nem sempre se comunica
com a da rua e com a das leis.
Nas palavras de DaMatta (2010, p. 105),
Num mundo tão profundamente dividido, a malandragem e o
“jeitinho” promovem uma esperança de tudo juntar numa totalidade harmoniosa e concreta. Essa é a sua importância, esse é o seu aceno. Aí está a sua razão de existir como valor social. Antes de ser um acidente ou mero aspecto da vida social
brasileira, coisa sem consequência, a malandragem é um modo possível de ser. Algo muito sério, contendo suas regras, espaços e paradoxos…
Um fato histórico curioso que representa a malandragem como herança cultural remonta à carta de Pero Vaz de Caminha, datada de 1º de maio de 1500, ao contar ao rei as notícias da terra brasileira, quando o escritor pede “carona” à Alteza ao seu genro, que
se encontrava na Ilha de São Tomé (DAMATTA, 2010, p. 105).
DaMatta (2010) utiliza tal fato para demonstrar que a malandragem, o jeito, porta intrínseca conexão com a colonização do Brasil,
responsável pela consolidação de sua formação social.
Aliado a isso, não se pode olvidar a lendária descrição efetuada por Sérgio Buarque de Holanda, em que o brasileiro foi denominado de “homem cordial”. O desapego às formalidades, deixando
de lado a polidez, os ritos etc., são traços característicos da formação cultural do brasileiro. Chegou-se a afirmar que a contribuição
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
177
civilizacional do Brasil será a cordialidade, representada na hospitalidade, lhaneza no trato, generosidade etc. (HOLANDA, 2004, p.
146).
O lado adverso da cordialidade está justamente no trato com a
coisa pública. Sérgio Buarque de Holanda esclarece que, na formação do Estado moderno brasileiro, não era tarefa fácil aos detentores de cargos e funções públicas compreenderem a distinção entre
os domínios público e privado. Por isso, a denominação funcionário
“patrimonial”3, tendo em vista que a gestão política se mostra como
assunto de interesse particular, misturando as funções aos benefícios que aufere em razão da posição. Ademais, as benesses angariadas se relacionam aos “direitos pessoais” do funcionário e não a
interesses objetivos da administração pública, como há de ocorrer
no Estado burocrático4, em que deve prevalecer a especialização
das funções e o esforço para assegurar as garantias dos cidadãos
(HOLANDA, 2004, p. 145-146).
A própria escolha das pessoas que irão exercer dada função
pública é tomada tendo como critérios a confiança pessoal, deixando de lado as aptidões e qualificações. É o típico caso de ausência
de impessoalidade na máquina pública, cuja consequência é a facilitação de acesso à administração de acordo com critérios dispares e
desiguais, prevalecendo a informalidade e a pessoalidade. Para
Buarque de Holanda, no Brasil foi exceção um sistema administrativo dedicado a interesses objetivos do Estado, havendo a predominância das vontades particulares e círculos fechados e de difícil
acesso a uma ordenação impessoal (HOLANDA, 2004, p. 145).
Antonio Carlos Wolkmer (1990, p. 45), examinando o processo
de formação do Estado no Brasil, assim ponderou:
3
4
Para Marcos Gonçalves da Silva “O patrimonialismo é uma ampliação, para a
sociedade como um todo, da estrutura de dominação patriarcal […]. A dominação patrimonialista implica a incorporação de indivíduos da família do soberano e da corte na administração do domínio, da economia (tributos) e da guerra.
(SILVA, Marcos Gonçalves da. A Economia Política da Corrupção no Brasil. São
Paulo: Senac, 2001. p. 34).
Antonio Carlos Wolkmer, remetendo a Max Weber, enumerou certas características dos Estados burocráticos, dentre elas: a) atribuições dos funcionários decorrem de leis, disposições administrativas etc.; b) as funções são hierarquizadas, cujas autoridades superiores têm poder de mando sobre as inferiores; c) a
atividade administrativa tem registro escrito; d) o trabalho exige dedicação exclusiva ao cargo ocupado. (Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e
Direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 48).
178
Rene José Keller
[…] pode-se perfeitamente reconhecer, de um lado, a herança
colonial de uma estrutura patrimonialista, burocrática e autoritária; de outro, de uma estrutura que serviu e sempre foi utilizada, não em função de toda a Sociedade ou da maioria de
sua população, mas no interesse exclusivo dos “donos do poder”, dos grandes proprietários e das elites dirigentes, notoriamente egoístas e corruptas.
Assim, na formação social do Brasil, a corrupção não pode ser
entendida como um fenômeno abstrato e genérico como análogo ao
resto do mundo. Há peculiaridades na estrutura social, em pormenor no elemento cultural, fazendo com os contornos da corrupção
sejam derivados de uma prática social que muitas vezes sequer é
vista como prática corruptiva. Nessa senda, a investigação acerca
da corrupção não pode ser deslocada do hábito do jeitinho ou do
personagem do malandro que são, respectivamente, a conduta e o
agente da estrutura socioantropológica brasileira.
2
A HISTORICIDADE DO PROCESSO CORRUPTIVO ESTATAL
BRASILEIRO
A corrupção é um termo que porta intrinsecamente uma carga
valorativa ampla de significados, embora se possa afirmar que há
uma linha consoante entre eles. Corruptio, em latim, provém da
explosão do âmago de um fruto, em virtude da sua podridão interna
(FERREIRA FILHO, 2004, p. 17). Adicionada à organização estatal
e à política, o efeito é similar, tendo em vista que a corrupção gera a
decomposição, perversão, putrefação da ordem normativa e do Estado, partindo do seu interior (por meio dos seus agentes) e maculando a própria imagem institucional, que é desgastada perante a
coletividade.
A raiz antropológica da corrupção parece estar suficientemente
demonstrada, ainda assim, o fenômeno é cambiante. José Murilo de
Carvalho acentua essa historicidade fenomênica da corrupção. Incursionando uma leitura partindo dos acontecimentos pretéritos, o
autor assenta que os republicanos acusavam o sistema imperial de
ser despótico (além de corrupto). Na Revolução de 1930, os revolucionários imputaram à formação da primeira república e seus políticos a pecha de “carcomidos”. Mais tarde, após a derrocada de Ge-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
179
túlio Vargas, em 1954, fez-se a acusação de se ter criado um mar de
lama no Catete. O próprio golpe de 1964 tinha como um dos intentos livrar o Brasil da corrupção, sendo que quando a ditadura militar chegou ao fim, havia acusações de corrupção, despotismo etc.
Na restauração da democracia, quando Fernando Collor chegara ao poder, eleito diretamente pelo povo, ao invés de cumprir a
promessa de caça aos marajás, sofreu impeachment justamente por
praticar o que condenava. Durante os governos subsequentes também ocorreram diversos casos de corrupção, vinculadas ao poder
público em todos os âmbitos da federação. Mediante este quadro
histórico conciso, a questão que resta indagar é: a corrupção de hoje
é a mesma que sempre permeou a histórica do Brasil? O que aumentou foi a corrupção ou a percepção do fenômeno? (CARVALHO,
2008, p. 237).
Embora esteja fortemente enraizada na formação social do
Brasil – e a matriz antropológica elucida isto, não é possível sustentar que há uma continuidade histórica no fenômeno. José Murilo de
Carvalho (2008) defende que houve duas mudanças no fenômeno
corruptivo: a) semântica; b) dimensão. Quanto à primeira alteração,
o autor defende que no Império e na Primeira República as críticas
eram dirigidas aos sistemas e não às pessoas especificamente.
Questionava-se mais a legitimidade das instituições do que a autoridade dos membros do corpo diretivo público. A partir de 1945, no
entanto, houve a ruptura semântica, passando o termo a designar a
falta de moralidade das pessoas que geriam a máquina pública
(CARVALHO, 2008, p. 238).
Além disso, José Murilo de Carvalho defende que houve uma
transformação dimensional da corrupção política. Alguns fatores
confluem para que haja o incremento das práticas corruptivas. Dentre eles, crescimento da máquina estatal, o arbítrio dos governantes
(especialmente na ditadura militar), a própria construção de Brasília (que enfraquece o controle popular das ruas) e a impunidade,
decorrente da insuficiência de atuação do sistema policial e do judiciário (CARVALHO, 2008, p. 239-240).
A questão hoje parece circundar um duplo aspecto. Por um
lado, busca-se a punição exemplar de personagens específicos que
praticaram atos de corrupção; ou seja, agentes políticos ou pessoas
ligadas à administração pública que adquirem notoriedade em ra-
180
Rene José Keller
zão dos atos ilícitos que praticaram. Por outro lado, há uma grande
preocupação na preservação das instituições públicas e do próprio
regime democrático, que é enfraquecido mediante o locupletamento particular da máquina pública, rompendo com a impessoalidade.
Não se pode menosprezar que existe uma ingente dificuldade
em precisar a corrupção, justamente em razão das diversas perspectivas que permeiam o conceito. Há uma gama de definições que
provém das ciências sociais, dos agentes do mercado, dos juristas,
até mesmo da opinião pública, entre outros. Aqui, entrementes, para fins do presente estudo, apenas ganha relevância a corrupção
estatal ou política, desconsiderando-se as modalidades que têm
sede entre os particulares exclusivamente5.
Neste momento, mais importante do que afirmar as múltiplas
variações do termo em um plano ideal, a corrupção para ser apreendida dentro de um contexto específico deve ser enxergada metodologicamente sob a dualidade fenomenológica: partindo do fenômeno
para chegar até a essência. Esse caminho do abstrato ao concreto é
um mecanismo de apreender o objeto vinculado à situação real.
O fenômeno da corrupção política no Brasil aparece como inerente à administração pública, em razão de a máquina estatal burocrática e os seus agentes políticos estarem viciados à ótica tipicamente governamental. Pesquisa da organização “Transparency International” mediu o grau de percepção social da corrupção do setor público em diversos países do mundo, baseando-se em coleta de opiniões
acerca das condutas corruptivas dos funcionários públicos, propinas
em contratos públicos, desvio de recursos estatais etc. Os dados demonstram o Brasil ocupava a 73ª posição, em 2011, com a pontuação
de 3,8 em uma escala de 0 a 10, em um ranking cujo primeiro colocado era a Nova Zelândia, cuja nota foi 9,5 (TRANSPARENCY, 2011).
O índice de transparência internacional deve ser visto com
certas restrições, ao passo que: a) desconsideram conjunturas inter5
É oportuno destacar que a corrupção não pode ser compreendida apenas sob o
viés estatal. Exclusivamente entre particulares também é possível verificar práticas corruptivas, inclusive, com maior dificuldade de punição em alguns casos
por ausência de sanção específica. Nesse sentido, Luca Mezzetti pondera
acerca da corrupção nos países de União Europeia: “In taluni Stati membri le
sanzioni si applicano esclusivamente alla corruzione di pubblici ufficiali e non
al setore privato”. (Cf. MAZZETTI, Luca. Consolidamento Della Democrazia e
Ruolo Della Corruzione. Ibdem., p. 34)
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
181
nas no período de realização das pesquisas (superexposição de determinado escândalo, por exemplo); b) o índice ouve muitas pessoas
que estão envolvidas diretamente com a corrupção no setor público
(devendo ser duvidoso o próprio testemunho); c) o país bem avaliado
no plano interno pode ser gerador de corrupção no plano externo,
em outros países (BALLOUK FILHO, 2008, p. 35-36).
De toda forma, não obstante a pesquisa não veicule dados
concretos acerca da corrupção político-estatal, serve como termômetro balizador na medição da percepção social da corrupção no
Brasil. A pesquisa tem como proeza maior demonstrar que a corrupção estatal é socialmente notada e faz parte das preocupações
centrais da população.
A título de aproximação de uma definição do fenômeno corruptivo, em nível internacional, segundo John Gardiner, nos Estados Unidos o conceito mais utilizado é do cientista político de Harvard Joseph S. Nye. Para Nye, a corrupção é um comportamento
desviante das obrigações regulares do papel público, em razão da
extração de benefício próprio, seja ele pecuniário ou de ganho de
status. Esses comportamentos incluem a prática do recebimento de
suborno, o nepotismo, bem como a apropriação indébita (NYE apud
GARDINER, 2000, p. 26).
Mesmo frisando a complexidade conceitual de “corrupção estatal”, Mark Philip (2000) elenca critérios em que parece ser incontestável se tratar de práticas corruptivas: a) um agente público; b)
violando a confiança depositada nele pela coletividade; c) de um
modo que prejudica o interesse público; d) intencionalmente pratica conduta que explora da sua condição para obter vantagem privada contrariando as regras e padrões de conduta dos agentes públicos; e) assim como para beneficiar uma terceira pessoa provendo
acesso a serviços ou benefícios não disponíveis para outros.
Em termos dos agentes da corrupção, a Convenção das Nações Unidas (2007) contra a Corrupção assim define:
a) Por “funcionário público” se entenderá: i) toda pessoa que
ocupe um cargo legislativo, executivo, administrativo ou judicial de um Estado Parte, já designado ou empossado, permanente ou temporário, remunerado ou honorário, seja qual for o
tempo dessa pessoa no cargo; ii) toda pessoa que desempenhe
uma função pública, inclusive em um organismo público ou
182
Rene José Keller
numa empresa pública, ou que preste um serviço público, segundo definido na legislação interna do Estado Parte e se
aplique na esfera pertinente do ordenamento jurídico desse
Estado Parte; iii) toda pessoa definida como “funcionário público” na legislação interna de um Estado Parte. Não obstante,
aos efeitos de algumas medidas específicas incluídas no Capítulo II da presente Convenção, poderá entender-se por “funcionário público” toda pessoa que desempenhe uma função
pública ou preste um serviço público segundo definido na legislação interna do Estado Parte e se aplique na esfera pertinente do ordenamento jurídico desse Estado Parte.
Portanto, à guisa de projeção fenomênica da corrupção, as noções incipientes da historicidade ajudam a situar a corrupção como
consequência de um somatório de fatos pretéritos. Isso não significa
que não houve variação de forma ou conteúdo, pelo contrário, tanto
semântica como dimensionalmente alterou-se o fenômeno da corrupção. Mesmo diante da diversidade, alguns elementos gerais podem ser captados no que se refere à definição e aos agentes, auxiliando nesta tarefa os teóricos e as legislações regulamentadoras.
Uma vez diante dos dados que atestam a existência do fenômeno da corrupção, esta não pode ser verdadeiramente apreendida
apenas segundo sua forma fenomênica. Isto é, partindo da sua projeção social e da reprodução imediata no cérebro dos que realizam
determinada prática histórica ou como simples categoria do pensamento comum. O fenômeno da corrupção como é socialmente recebido é a sua forma aparente, como ele é imediatamente transmitido
e absorvido pelo indivíduo, cuja essência é somente em parte manifesta (KOSIK, 2001, p. 13-25).
O processo de absorção social da corrupção não ocorre de
modo em que o sujeito que percebe o fenômeno tem a capacidade
de introspecção sobre dado fato. A corrupção não é transmitida como um objeto que pende investigação acurada, uma postura científica precisa. Pelo contrário, o fenômeno da corrupção é absorvido
como é diretamente transmitido. No caso do Brasil, os dados apontam que o principal meio de informação dos fenômenos corruptivos
é por meio da mídia televisiva.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
183
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo teve como intento principal demonstrar que é preciso estar ciente de diversos elementos presentes na base social, tais
como a formação social, cultural, econômica etc. Atento a tais premissas metodológicas, o exame partiu justamente da vinculação
existente entre a corrupção e a sua raiz antropológica. Muito embora o fenômeno da corrupção seja histórico e global, há peculiaridades na formação brasileira que imprimem uma faceta particular.
Não se trata de um modelo genérico de corrupção, mas sim um que
tem as signas do jeitinho, da malandragem como pano de fundo
social. As marcas culturais gravam a corrupção não no seu fator
objetivo, quase inumano (o objeto em si), mas essencialmente no
aspecto subjetivo, na prática cultural de extrair vantagem, encontrar brechas, locupletar-se a partir da malandragem, do jeito.
O jeito por si não conduz à corrupção, todavia, age como instrumento facilitador e de harmonização entre uma prática pretendida e de uma norma jurídica explícita denegatória. É um mecanismo
de burla à legislação considerada essencialmente formal, que pode,
caso extremado, conduzir à corrupção. Assim, os conceitos de “jeitinho brasileiro” e “malandragem” são instrumentais teóricos antropológicos chaves à elucidação do fenômeno da corrupção no
Brasil, em virtude de portarem consonância com as práticas sociais
de facilitação e enfraquecimento normativo.
A raiz antropológica da corrupção explicita o fenômeno em
parte. O estudo teve a cautela de referir a corrupção sob um enfoque prático, isto é, colacionando pesquisas científicas que mostram
a percepção social da corrupção. Com isso, observou-se que a corrupção é tema de primeira ordem para o brasileiro, não obstante
esteja este influenciado sobremaneira com a visão parcial que lhe é
transmitida por meio das mídias de grande massa.
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outros. 8. ed. Rio de Janeiro: Campos, 1992.
184
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WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000.
Hugo Thamir Rodrigues
Doutor em Direito pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), professor do
PPGD/Doutorado e Mestrado da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), professor,
no curso de graduação em Direito da Unisc.
Líder do grupo de pesquisa, do PPGD da
Unisc, intitulado: “Direito Tributário e Políticas Públicas de Desenvolvimento e Inclusão
Social”. Contato: [email protected]
Leandro Dani
Advogado, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de
Santa Cruz do Sul (UNISC), na linha de Políticas Públicas de Inclusão Social. Participante
do grupo de pesquisa do PPGD da Unisc
intitulado: “Direito Tributário e Políticas
Públicas de Desenvolvimento e Inclusão
Social”. Contato: [email protected]
Capítulo 11
ITBI
DESENVOLVIMENTO
SOCIOECONÔMICO
E POLÍTICAS
TRIBUTÁRIAS
MUNICIPAIS1
1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo é dividido em três subseções (de forma extremamente acadêmica): a primeira tratando sobre desenvolvimento
social, neoliberalismo e políticas públicas de desenvolvimento e
inclusão social. A segunda trata da extrafiscalidade tributária, enquanto política de desenvolvimento e de inclusão social, tecendo-se
um contraste perante a Lei de Responsabilidade Fiscal. Trata, por
fim, a última subseção, sobre o ITBI e suas possibilidades de desenvolvimento e inclusão social. Valora-se, em tão pequeno espaço,
a questão municipal.
E, quanto ao método, optou-se pelo dedutivo, pois se procura
demonstrar a percepção de algo em que se acredita ser possível
1
Artigo vinculado ao projeto de pesquisa intitulado: “Tributação e mudança
social em âmbito municipal: possibilidades da utilização de normas tributárias
indutoras a partir de uma leitura sistemática da Constituição Federal”. Vinculação, também, ao grupo de pesquisa, pertencente ao PPGD da Unisc, intitulado:
“Direito Tributário e Políticas Públicas de Desenvolvimento e inclusão social”.
Órgão financiador: Unisc.
186
Hugo Thamir Rodrigues & Leandro Dani
(procura-se a demonstração) do mundo teórico, jurídico e empírico,
que permitem encontrar algo igual ou que conduza ao que se pensa
e que sequer alguns pensaram.
1
DESENVOLVIMENTO SOCIAL – NEOLIBERALISMO – POLÍTICAS
PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO E INCLUSÃO SOCIAL
Entende-se por desenvolvimento social o ganho na melhoria
de qualidade de vida do povo brasileiro (população, como já dito,
talvez seja o termo mais apropriado), nos termos expressos pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF), conforme segue.
O Preâmbulo (embora não seja norma, serve para demonstrar
a genética constitucional e, entre outras funções, como intérprete
do texto que a compõe) fala em igualdade.
Igualdade aqui vista não no seu sentido material, mas sim no
seu sentido republicano, ou seja: igualdade de oportunidades.
Oportunidades que apenas existirão no dia em que a moralidade
(também republicana) passar a viger em todos os segmentos sociais
etc.; oportunidades que apenas existirão no dia em que a educação
(com pré-natal e alimentação adequada) for fornecida, sem distinções de condições, a todos os bebês, crianças e adolescentes deste
país, preparando todos, por igual a procurar a continuação dos estudos ou o ingresso na vida profissional, sem esquecer-se de uma
sólida formação cidadã.
Daí, provavelmente, ou talvez, possa-se falar em meritocracia.
Impossível, por outro lado, é falar em assistencialismo até o pósfuneral.
Fala-se em sociedade fraterna, entendendo-se esta no sentido
emprestado por Greco (2005, p. 174):
Fraternidade e solidariedade não são sinônimos, mas conceitos que se completam, pois, enquanto a segunda se exprime
nos múltiplos modos de auxílio ao semelhante e de agir “junto
ao próximo”, a primeira abrange, além disso, a tolerância, o
amor e o respeito ao outro, bem como outras formas de agir
“em benefício do próximo”, o que inclui, por exemplo, a filantropia.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
187
E, segue a CF falando, em seu Preâmbulo, em harmonia social,
solução pacífica das controvérsias e “Deus”, tudo lembrando uma
ideia de justiça social, a qual aparece, de forma expressa no seu
artigo 3º, I, o qual fala ainda em sociedade livre (que apenas se dá
pela igualdade de condições) e solidariedade (vista aqui como mera
imposição constitucional/legal ou como simples elemento de interesse de atores sociais por meio de normatizações específicas).
Ainda há de ressaltar, quanto ao artigo 3º, seu inciso II, o qual
aponta para um federalismo cooperativo, pois o mesmo argui sobre
“desenvolvimento nacional”, o que desde já deixa a entender da
necessidade urgente de harmonização de políticas públicas tributárias neste país, o que é complementado pelo inciso IV: “promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação”.
Não é demais falar do inciso III do mesmo artigo, o qual não
titubeia e expõe de forma absolutamente clara: “erradicar a pobreza
e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Percebe-se, facilmente, o enunciado republicano de tal dispositivo,
dentro de um Estado, por consequência, federativo.
Trata-se da igualdade assente, não da material. Trata-se de
uma igualdade de condições, com o fim da pobreza e da marginalização, mas com a manutenção de classes sociais, as quais devem
ser aproximadas não pelo empobrecimento da (chamada) classe
média, mas por políticas públicas que não sejam meramente assistencialistas, e sim, inclusivas.
Incluir não é apenas dar comida, é dar condições de trabalho
digno, de salário, de vontade de crescer e de não depender das demais pessoas que formam o Estado. Incluir é possibilitar sonhos
para cada um e de cada um para com os seus. Sonhos sonhados;
sonhos tangíveis.
Segue o artigo 4º, IX, o qual, nas relações internacionais, para
que ocorra o progresso da humanidade, prevê a cooperação entre os
povos. Ora, como algo que é afirmado como bom para as relações
entre “países” não pode ser bom na organização interna?
O artigo 21, IX, diz ser competência da União a elaboração e
a execução de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico social, o qual deve ser lido
acompanhado do conteúdo do parágrafo único do artigo 23, o qual
afirma: “Leis complementares fixarão normas para a cooperação
188
Hugo Thamir Rodrigues & Leandro Dani
entre a União e os Estados, o Distrito o Federal e os Municípios,
tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em
âmbito nacional”.
Na mesma linha, explícito o § 1º do artigo 174: “A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento
nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos
nacionais e regionais de desenvolvimento”.
E concluindo as citações de dispositivos constitucionais: “Art.
241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de
cooperação entre os entes federados, […]”.
Bom, procurou-se demonstrar, de forma absolutamente breve,
que o federalismo brasileiro (como já dito) é cooperativo, restando,
então, a concorrência, a livre iniciativa, não havendo espaço constitucional para a guerra fiscal entre Municípios, relembrando a tese
denominada “Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um princípio constitucional geral, implícito, delimitador
das ações tendentes ao cumprimento da função social dos municípios” (RODRIGUES, 2003, [s.p.]).
Acontece, porém, que a globalização da economia (vista aqui
como a mundialização da economia, iniciada em 1450, somada aos
grandes avanços tecnológicos)2 e o “fenômeno” neoliberal3 voltaram
a unir o público ao privado, ou seja, privatizaram o Estado.
As regras de instalações espaciais de empresas passaram a virar moeda de barganha entre Estados e entre Municípios, não mais
apenas entre Nações (se é que existem).
O Estado (em sentido lato) passou a ser refém de empresas (e
não apenas transnacionais; nacionais também). A migração de postos de trabalho, mediante altos custos “estatais” é uma realidade
(não são apenas isenções tributárias; são benefícios fiscais, financeiros e econômicos de toda a ordem).
Alguns falam, após o advento da era Lula, em Pós-Neoliberalismo. Tal percepção parece muito fugidia da realidade. Percebe-se
2
3
Sobre tal assunto recomenda-se a leitura de: IANNI, Octavio. A sociedade
global. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
O neoliberalismo não é visto aqui no mesmo sentido emprestado pelo liberalismo, ao contrário: o neoliberalismo necessita do Estado e dele se apodera,
privatizando o mesmo.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
189
que, constitucionalmente, o Brasil continua capitalista, basta ver-se
(da CF): “Art. 1º […] IV – os valores sociais […] da livre iniciativa
[…]”; Art. 3º […] III – […] reduzir desigualdades […]”; “Art. 5º […]
XXII – é garantido o direito de propriedade […]”; “Art. 170. […] IV
– livre concorrência […]”; “Artigo 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica
pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da
segurança nacional ou a relevante interesse público, conforme definidos em lei […]”.
Cite-se, além do texto constitucional, que o mundo econômico
continua a determinar regras, basta perceber as renúncias fiscais
patrocinadas pela Presidenta bem como a continuidade da guerra
fiscal.
O Brasil não é um Estado Social, é um país capitalista que
possui, constitucionalmente, função social. Políticas públicas de
desenvolvimento e de inclusão social são urgentes.
Pode-se até concordar com Grau4, mas, pontualmente, não se
vê melhor saída, lembrando-se que as políticas públicas podem
ocorrer sem a guerra fratricida que corrói as entranhas financeiras
do país migrando empregos (já citado) e, pior, provavelmente aumentando o desemprego (financiado pelo Estado), uma vez que
cada empresa, ao se deslocar territorialmente, melhora sua planta
industrial, necessitando de menor mão de obra.
Políticas públicas (as queridas, bem dito) de índole apenas local (o local pode significar um conjunto de municípios, ou regiões
compostas por partes de municípios, mesmo de estados diversos).
E, para tal, nada melhor do que a utilização da extrafiscalidade tributária.
2
A EXTRAFISCALIDADE TRIBUTÁRIA, ENQUANTO POLÍTICA
PÚBLICA DE DESENVOLVIMENTO E DE INCLUSÃO SOCIAL,
FRENTE À LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL
Machado (2002, p. 68) se mostra absolutamente sucinto ao
afirmar que, quanto ao seu objetivo, o tributo pode ser: “a) Fiscal,
4
No desempenho do seu novo papel, o Estado, ao atuar como agente de implementação de políticas públicas, enriquece suas funções de integração, de modernização e de legitimação capitalista (GRAU, 2002, p. 28).
190
Hugo Thamir Rodrigues & Leandro Dani
quando seu principal objetivo é a arrecadação de recursos financeiros para o Estado. b) Extrafiscal quando seu objetivo principal é a
interferência no domínio econômico, buscando um efeito diverso da
simples arrecadação de recursos financeiros […]”.
Balthazar (1999, p. 52), ao falar da classificação dos impostos,
quanto à finalidade, dispõe:
Fiscais, os impostos cuja única finalidade seria a arrecadação
de receita para os cofres do Estado, visando a satisfação das
necessidades públicas. Extrafiscais, os impostos utilizados
com fins outros que não a mera obtenção de receita. O Estado
deles se serviria para intervir no domínio econômico ou social,
forçando o contribuinte a adotar um determinado comportamento. O objetivo a alcançar não seria tão somente o aumento
de receita, mas a realização de uma determinada política econômica ou social.
Amaro (1998, p. 87), no mesmo sentido:
Segundo o objetivo visado pela lei de incidência seja (a) prover de recursos a entidade arrecadadora ou (b) induzir comportamentos, diz-se que os tributos têm finalidade arrecadatória (ou fiscal) ou finalidade regulatória (ou extrafiscal). Assim,
se a instituição de um tributo visa, precipuamente, a abastecer
de recursos os cofres públicos (ou seja, a finalidade da lei é arrecadar), ele se identifica como tributo de finalidade arrecadatória. Se, com a imposição, não se deseja arrecadar, mas estimular ou desestimular certos comportamentos, por razões
econômicas, sociais, de saúde etc., diz-se que o tributo tem finalidades extrafiscais ou regulatórias. A extrafiscalidade, em
maior ou menor grau, pode estar presente nas várias figuras
impositivas.
Carvalho (2000, p. 228-229), também na mesma direção, diz
que a fiscalidade se opera quando o objetivo da tributação, sem
qualquer interesse social, político ou econômico, visa somente
abastecer os cofres públicos, perspectiva essa totalmente inversa
aos objetivos extrafiscais, os quais visam justamente prestigiar situações que social, política ou economicamente sejam consideradas
valiosas, e para as quais se dispensa tratamento mais confortável ou
menos gravoso. Exemplificativamente cita o tratamento mais gravoso,
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
191
pelo imposto territorial rural, para imóveis inexplorados ou de baixa
produtividade, os abatimentos permitidos no imposto de renda, e a
seletividade do imposto sobre produtos industrializados e do IPTU.
Campos (1995, p. 62), por último, ensina que a extrafiscalidade
É a utilização do tributo como instrumento de mudança social.
Além de simples meio de obtenção de receita utilizada para o
custeio de despesa pública, o tributo é, em muitos casos, utilizado para provocar modificações deliberadas nas estruturas
sociais, consistindo num fator indispensável na dinâmica sócio-estrutural.
A extrafiscalidade desenvolve-se não só por intermédio da
imposição tributária, que vai desestimular certas atividades do
setor privado, como por meio de isenções, imunidades e incentivos que vão, ao contrário, estimulá-las caso sejam de interesse público.
Percebe-se, nos autores acima, senão uma igualdade na forma
de expressar suas observações, pelo menos uma boa sintonia quanto
ao sentido das expressões ora em análise. Retirando-se elementos
dos mesmos, tem-se que a função fiscal visa tão somente arrecadar
recursos para os cofres públicos, ao passo que a função extrafiscal
se corporifica em verdadeira política pública de ingerência no meio
econômico ou social, tornando mais ou menos gravosos os tributos,
objetivando um fim determinado, fim esse que, levando-se em conta
a função do Estado, deve estar sintonizado com a realização do bem
comum, ou seja, com a busca da concretização dos direitos fundamentais do ser humano.
A liberdade quanto à utilização de políticas públicas que se
fundem na extrafiscalidade, entretanto, não é absoluta, encontrando suas amarras e freios principalmente na Lei de Responsabilidade
Fiscal.
Nota-se, inicialmente, pelo teor artigo 115 da referida Lei, a
preocupação, ou determinação, para que cada ente federado insti-
5
Art. 11. Constituem requisitos essenciais de responsabilidade na gestão fiscal a
instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos de competência
constitucional do ente da Federação. Parágrafo único. É vedada a realização de
transferências voluntárias para o ente que não observe o disposto no caput, no
que se refere aos impostos.
192
Hugo Thamir Rodrigues & Leandro Dani
tua e arrecade todos os tributos que são de sua competência, principalmente no tocante aos impostos.
E, coerente com tal determinação, na Seção II, intitulada Da
Renúncia de Receita, em seu artigo 14, traça as diretrizes que devem nortear a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de
natureza tributária da qual decorram renúncia de receita, determinando que a efetivação dessas necessariamente deverá ser acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no
exercício em que deve iniciar sua vigência e nos dois seguintes.
Prevê, ainda, que devem atender às disposições da Lei de Diretrizes
Orçamentárias e também, no mínimo, a uma das condições expressas em seus incisos I e II, quais sejam:
I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 126, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias.
II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado do caput, por meio de aumento de receita,
proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de
cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
Dispõe, no § 1º do mesmo artigo, de forma a que se conheça o
conteúdo do termo renúncia, que essa compreende a anistia, a remissão, o subsídio, o crédito presumido, a concessão de isenção em
caráter geral, a alteração de alíquota ou a modificação de base de
cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contri6
Art. 12. As previsões de receitas observarão as normas técnicas e legais, considerarão os efeitos das alterações da legislação, da variação do índice de preços,
do crescimento econômico ou de qualquer outro fator relevante e serão acompanhadas de demonstrativos de sua evolução nos últimos três anos, da projeção
para os dois seguinte àquele a que se referirem, e da metodologia de cálculo e
premissas utilizadas.
§ 1º Reestimativa de receita por parte do Poder Legislativo só será admitida se
comprovado erro ou omissão técnica ou legal. § 2º O montante previsto para as
receitas de operações de crédito não poderá ser superiores ao das despesas de
capital constantes do projeto de lei orçamentária. § 3º O Poder Executivo de
cada ente colocará à disposição dos demais Poderes e do Ministério Público, no
mínimo trinta dias antes do prazo final para o encaminhamento de suas propostas orçamentária, os estudos e as estimativas das receitas para o exercício subsequente, inclusive da corrente líquida, e as respectivas memórias de cálculos.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
193
buições e ainda outros benefícios que se traduzam em tratamento
diferenciado.
E, quanto ao inciso II, já transcrito, dispõe o § 2º que o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.
Nota-se, perfeitamente, o quase engessamento dos entes federados quanto à renúncia fiscal. Quase engessamento porque deixa
aberta a porta para a ocorrência de guerra fiscal entre esses entes
federados, uma vez que abrir mão de receita futura não implica, em
princípio, necessidade de compensação, conforme disciplina o inciso II, pois não se compensa o que não existe, sendo facilmente enquadrável no inciso I, além de em nada impactar negativamente a
entrada de receitas já existentes, podendo, isto sim, nos termos do
caput do artigo 14, demonstrar-se que futuramente o Município,
Estado-Membro, ou Distrito Federal, terá uma receita que hoje não
possui, tanto de forma direta, pelo fim, em algum momento, da renúncia fiscal, como de forma indireta, pela geração de empregos e
de rendas.
Então, retira-se do corpo da Lei de Responsabilidade Fiscal,
em primeiro lugar, que os entes federados devem instituir todos os
respectivos tributos, previstos constitucionalmente, principalmente
os impostos, cuja não implantação implica perder o direito às transferências voluntárias; em segundo, que os atos de renúncia fiscal
ficam totalmente atrelados a formalismos ou ações que impeçam
prejuízos orçamentários ou de arrecadação; em terceiro, que, tendose em vista o teor do caput e do inciso I, do artigo 14, a renúncia,
mesmo sem previsão de fonte alternativa de recursos, é possível; e,
por último, que a lei em questão não criou nenhum empecilho para,
via renúncia fiscal, evitar a migração interna de empresas.
Perceba-se, entretanto, que as limitações impostas pela Lei de
Responsabilidade Fiscal não implicam na vedação da extrafiscalidade, a qual pode ser implementada por políticas públicas que, valendo-se do princípio isonômico, tratem os diferentes como diferentes, ou seja, que se instrumentalizem pela seletividade e pela progressividade de alíquotas, atentando, quanto aos impostos, o disposto pelo artigo 145, § 1º, que determina que, sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte.
194
Hugo Thamir Rodrigues & Leandro Dani
E, para finalizar, cabe aqui anotar a concordância com os autores que entendem serem pessoais todos os impostos, sendo indispensável a progressividade, e também a seletividade, para buscarse cumprir o que determina o inciso III do artigo 3º da CF/88: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais.
3
O ITBI E SUAS POSSIBILIDADES DE DESENVOLVIMENTO E
INCLUSÃO SOCIAL (DIGNIFICAÇÃO DE INDIVÍDUOS COMO
SERES HUMANOS)
Inicia-se esta etapa com a afirmação de que a fiscalidade ou a
extrafiscalidade não são meras características de uma dada espécie
tributária, muito menos características implícitas de um dos treze
impostos criados pela CF.
A fiscalidade e a extrafiscalidade, tanto do ponto tributário
quanto do financeiro, são meras opções de gerenciamento governamental, ou seja, quaisquer espécies de tributos (percebendo-se
suas nuances e divisões) podem livremente ser utilizadas com fins
arrecadatórios ou não.
Basta ver o IPI, imposto federal cujas alíquotas variam ao sabor dos paladares de quem ocupa o Planalto. PIS e COFINS, nem
falar. E o IOF? Contribuições sociais, para fins de aposentadoria?
Como criar benefícios e diminuição de tempo de trabalho reduzindo-se fontes de custeio? Como isentar de ICMS e ISS os custos dos
campos de futebol para a próxima copa do mundo? E continuando a
falar em indagações: a redução tributária da cesta básica chegou
aos bolsos dos contribuintes? A redução ou eliminação da CIDE
sobre o combustível foi sentida pelos motoristas ou por quem paga
frete?
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
195
Bom, dirão os leitores: não estamos entendendo nada; afinal,
o uso da extrafiscalidade é bom ou ruim?
É ruim, responda-se de imediato, enquanto política de guerra
fiscal ou, pior, enquanto política paternalista/maniqueísta (meramente assistencialista) e garantidora da preservação do neoliberalismo pelo agrado ao grande capital e aos sindicatos que dele dependem, mantendo-se a subserviência do Estado aos grandes conglomerados econômicos (depositários de grandes e influentes sindicatos de trabalhadores).
É bom, por outro lado, quando, de forma republicana, busca-se
o efetivo desenvolvimento de um povo, de forma gradual e, portanto,
lenta.
Direitos fundamentais, tanto individuais como sociais, somente
podem ser alcançados, para grande parte dos brasileiros, por ações
estatais.
Políticas públicas de desenvolvimento e de inclusão social,
que se note, não são omissões, são ações estatais voltadas à comunidade, ao povo (população, caso prefiram), visando ao seu desenvolvimento e não à preservação de cargos políticos, quer sejam do
Executivo quer sejam do Legislativo.
Pergunta: você conhece alguém, das suas relações, que já recebeu algum benefício tributário ou financeiro?
3.1
O ITBI (suas nuances) e suas possibilidades fiscais e
extrafiscais de auxílio no desenvolvimento do sentimento
de pertença a uma comunidade que busca (cada membro,
por si e pelos seus) ser feliz (digna)
Divide-se a presente subseção em duas partes, tratando a
primeira do ITBI em si, enquanto espécie de imposto, e a segunda
culminando o artigo sobre as possibilidades de sua utilização como
instrumento de políticas públicas tributárias de desenvolvimento e
inclusão social.
3.1.1 O ITBI e suas nuances
O imposto sobre a transmissão inter vivos, a qualquer título,
por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e
196
Hugo Thamir Rodrigues & Leandro Dani
de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como
cessão de direitos a sua aquisição (ITBI) é previsto constitucionalmente no inciso II do artigo 156.
Quanto às exigências constantes da alínea “a”7 do inciso III
do artigo 146 da CF, especificamente sobre os fatos geradores, segue-se o posicionamento de Harada (2002, p. 401)8, para quem o
artigo 359 do Código Tributário Nacional (CTN) foi recepcionado.
Sua competência (falando-se em sujeito ativo) é municipal,
nos temos do inciso II10 do § 2º do artigo 156 da CF, embora possa
ser instituído e cobrado pela União e pelo Distrito Federal, nos termos do artigo 14711 da CF.
Já quanto à sujeição passiva, a situação é controversa. O artigo 4212 do CTN parece simples e óbvio13, porém o STF (RE
7
8
9
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11
12
13
Art. 146. Cabe à lei complementar: […] III – estabelecer normas gerais em
matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e
de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta
Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; […].
“O art. 35 do CTN, que define o fato gerador do imposto em questão, embora
referindo-se a imposto estadual, acha-se plenamente recepcionado pela Carta
Magna vigente.”
Art. 35. O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens
imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador: I – a transmissão, a
qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis, por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil; II – a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;
III – a cessão de direitos relativos às transmissões referidas nos incisos I e II.
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: […] § 2º O imposto
previsto no inciso II: […] II – compete ao Município da situação do bem.
Art.147. Competem à União, em Território Federal, os impostos estaduais e, se
o Território não for dividido em Municípios, cumulativamente, os impostos
municipais; ao Distrito Federal cabem os impostos municipais.
Art. 42. Contribuinte do imposto é qualquer das partes na operação tributada,
como dispuser a lei.
“O art. 42 do CTN deixou a critério de cada entidade política a eleição do contribuinte, que poderá ser qualquer uma das partes na operação tributada. A legislação paulistana, Lei 11.154, de 30.12.1991, considera como contribuinte do
imposto o adquirente em relação à transmissão de bens ou direitos, e o cedente
em relação à cessão de direitos decorrentes de compromissos de compra e venda. A maioria dos Municípios seguiu a mesma orientação […]” (RT, 2002/46, p.
161).
“O sujeito passivo do ITBI pode ser qualquer uma das partes da operação tributária de transmissão de bem imóvel, tanto o transmitente quanto o adquirente,
conforme se depreende do art. 42 do CTN […]” (SABBAG, 2012, p. 1.045).
“Deve-se entender que o legislador municipal tem autonomia para a definição
legal do contribuinte do ITBI, desde que a indicação recaia sobre uma das par-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
197
235.737/SP – São Paulo, em 13.11.2001) reconheceu a imunidade
genérica (art. 150, VI, c, CF) em favor do SENAC (adquirente). Percebe-se que os Municípios, ao optarem pelo adquirente, como contribuinte, necessariamente devem ter conhecimento das imunidades tributárias, o mesmo devendo ocorrer caso optem pelo vendedor, o que, de tão óbvio nem ulula mais.
Referindo-se à base de cálculo, segue-se a literalidade do artigo 3814 do CTN, lembrando que não interessa o valor cadastrado
no Município para fins de cálculo do imposto sobre a propriedade
predial e territorial urbana (IPTU), e também o valor declarado não
precisa ser aceito pelo Fisco municipal, podendo, então, este, de
ofício, lançar o valor real a ser pago pelo contribuinte. Necessário,
entretanto, lembrar que bens imóveis por acessão intelectual não
fazem parte da base de cálculo (ALEXANDRE, 2010, p. 638), assim
como a aquisição originária não gera a incidência do ITBI, restando
discussão quanto a imóveis adquiridos em Hasta Pública, pois, para
alguns, essa forma é aquisição originária e, para outros, deve haver
a incidência sobre o valor da arrematação.
Quando se fala em base-cálculo, questionar-se acerca de alíquotas é mera consequência. Deve-se lembrar, então, da autonomia
municipal (limitada pelo STF)15 para fixá-las, tendo o cuidado em
relação ao efeito confiscatório, quanto ao fato de seu lançamento
ocorrer por declaração, podendo também, caso seja necessário, como
é comum a todos os tributos, ocorrer de ofício. Cite-se ainda que exista quem pense que o lançamento pode ocorrer por homologação.
E quanto às imunidades específicas?
14
15
tes da operação tributada, pois, nos termos do art. 121, parágrafo único, I, do
CTN, o contribuinte deve possuir relação pessoal e direta com a situação que
constitua o fato gerador da obrigação.
Não obstante a autonomia, a regra tem sido que as leis municipais definam
como contribuinte o adquirente do bem ou direito […]” (ALEXANDRE, 2010, p.
638).
Art. 38. A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos
transmitidos.
Súmula STF 656. É inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas
para o imposto de transmissão inter vivos de bens imóveis – ITBI com base no
valor venal do imóvel.
198
Hugo Thamir Rodrigues & Leandro Dani
Principia-se pelo próprio artigo 156, da CF, que em seu § 2º,
I16, apresenta a primeira imunidade específica, a qual é seguida
pelo disposto no § 5º17 do artigo 184, também da CF.
Imunidades, em princípio, salvo quanto à questão do adquirente, não suscitam maiores dúvidas e, daí, para mirar o calcanhar
de Aquiles, buscando-se um pouco de controvérsia (já vencida),
nada melhor do que falar sobre o momento da incidência, o qual
está umbilicalmente ligado ao fato gerador (assunto já tratado).
Sabe-se que o usual é nem conseguir-se a escritura pública
sem o pagamento do ITBI. Ora, pergunta-se, contratos de promessa
de compra e venda ou escrituras públicas transmitem a propriedade, criam um direito real? A resposta é sabida: nesse sentido, rica é
a jurisprudência do STJ18.
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Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: […] § 2º O imposto
previsto no inciso II: I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão
ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens
imóveis ou arrendamento mercantil; […].
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de
preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do
segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. […] § 5º
São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária,.
No direito brasileiro, a transmissão da propriedade imobiliária ocorre mediante
o registro do título translativo no Registro de Imóveis, de forma que, antes do
registro, o alienante continua na condição de dono do imóvel (CC, art. 1.245 e
seu parágrafo único).
Apesar de a legislação da maioria dos Municípios brasileiros exigir o pagamento do tributo no momento do registro da escritura no momento do registro da
escritura no cartório de notas, antes, portanto, do registro no Cartório de Imóveis, é firme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido da impossibilidade da cobrança do tributo antes deste segundo registro. Nessa linha,
as contundentes palavras da Corte, proferidas no julgamento do RMS 10.6500/DF: “1. O fato gerador do imposto de transmissão de bens imóveis ocorre com
a transferência efetiva da propriedade ou do domínio útil, na conformidade da
lei civil, com o registro imobiliário. 2. A cobrança do ITBI sem obediência dessa
formalidade ofende o ordenamento jurídico em vigor” (STJ, 2ª T. RMS
10.650/DF. Rel. Min. Francisco \Peçanha Martins, j. 16.06.2000, DJ 04.09.2000,
p. 135).
O STJ tem aplicado a mesma linha de raciocínio no que concerne ao compromisso de compra e venda não registrado, não o considerando fato gerador do
ITBI (STJ, 1ª T., AgRg REsp 327.188/DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Bar-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
199
3.1.1 O ITBI e as possibilidades de sua utilização como
instrumento de políticas públicas tributárias de
desenvolvimento e inclusão social.
Em primeiro lugar, o STF deve mudar sua posição a respeito
da não possibilidade de alíquotas progressivas quanto ao ITBI.
A progressividade tributária é uma das poucas alternativas
tributárias que não fere a moralidade, a capacidade contributiva e o
não confisco (princípios republicanos) e que possibilita a busca do
já citado inciso III do artigo 3º da CF. Não se pode tratar desiguais
como iguais.
Possibilitaria, a progressividade, a isenção da cobrança de
ITBI para as pessoas de baixa renda, baseando-se no valor do imóvel objeto do negócio jurídico. Melhor seria uma Emenda Constitucional que obrigasse a progressividade de alíquotas.
Dirão alguns: o fato gerador não é pessoal, é real. Real é o valor do imóvel, o que indica a renda do adquirente (que é pessoal), e,
conforme o § 1º19 do artigo 145 da CF, a capacidade econômica do
contribuinte deve ser levada em conta. Quem possui salário de dois
mil reais não pode adquirir um apartamento de um milhão de reais.
Sobre real e pessoal, o próprio STF é dúbio, pois segue a regra
quanto ao IPTU (como imposto real), mas, veja-se bem, em súmula20
e jurisprudência21 que caracterizam tal imposto como pessoal.
Quanto a isenções, necessário lembrar que o direito à propriedade é um direito individual; direito social é o direito à moradia.
Lembradas as diferenças, deixa-se claro que inclusão social envolve
19
20
21
ros, j. em 07.05.2002, DJ 24.06.2002, p. 2.030 […]” (ALEXANDRE, 2010, p. 637638).
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: […] § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade
a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da
lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Súmula STF 539. É constitucional a lei do município que reduz o Imposto Predial Urbano sobre imóvel ocupado pela residência do proprietário, que não
possua outro.
“[…] II. – Princípio isonômico: a sua realização está no tratar iguais com igualdade e desiguais com desigualdade. No caso, o número de prestações do imposto teve por base beneficiar com prazo de pagamento mais dilatado os contribuintes menos favorecidos de recursos.” (STF, RE-154.027/SP/25.11.1997)
200
Hugo Thamir Rodrigues & Leandro Dani
os direitos individuais. Quantas pessoas possuem apenas contrato
“de gaveta”?
Você, que está lendo este artigo, possui noção do quanto custa
a transferência de um bem imóvel? Pois bem, os municípios, dentro
do que já foi dito, de forma absolutamente sucinta, sobre a Lei de
Responsabilidade Fiscal, poderiam isentar de ITBI as aquisições de
bens imóveis seguindo padrões de valores, localização e renda.
Possuir a cópia da matrícula do Registro de Imóveis, perceber-se como proprietário (dono), é algo que vai além do ter, é descobrir-se como ser; é realizar um objetivo de vida. É ser feliz. É ter
algo de dignidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando são insuficientes, ou precárias, as políticas públicas
federais e estaduais de inclusão e desenvolvimento de seres humanos em um mundo de dignidade (por mais que possa existir boa
vontade), resta aos municípios cumprir sua obrigação federativa e
republicana de buscar o bem-estar comum.
Não se sonha em magia e nem em milagres, não se sonha em
nenhum êxtase pós-traumático, apenas (e simplesmente) acredita-se em pequenos atos (executivos e legislativos) que não garantirão
a complexidade do que é ser digno, mas, como garoa em campo
seco, ajudarão as pessoas a serem mais pessoas, sentindo-se partícipes de uma coletividade, mediante uma simples folha de papel,
uma cópia de um registro imobiliário que diz ser sua a propriedade
que já era sua.
É tão simples…
REFERÊNCIAS
ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método, 2010.
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
1998.
BALTHAZAR, Ubaldo Cesar. Manual de Direito Tributário. Florianópolis:
Diploma Legal,1999.
BRASIL. Código Tributário Nacional. 41. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
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201
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 46. ed., São Paulo: Saraiva, 2012.
CAMPOS, Dejalma de. Direito Financeiro e Orçamentário. São Paulo:
Atlas, 1995.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7. ed.
São Paulo: Malheiros, 2002.
GRECO, Marco Aurélio. Solidariedade social e tributação. In: GRECO,
Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (Coords.). Solidariedade
social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005. p. 168-189.
HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 10. ed. São Paulo: Atlas,
2002.
IANNI, Octavio. A sociedade global. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1996.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo:
Malheiros, 2002.
REVISTA TRIBUTÁRIA E DE FINANÇAS PÚBLICAS. São Paulo: Revista
dos Tribunais, n. 46, set./out. 2002.
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um princípio constitucional geral, implícito, delimitador
das ações tendentes ao cumprimento da função social dos municípios.
2003. 275 f. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação
em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003.
SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Rosane Leal da Silva
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora
Adjunta do Curso de Direito da Universidade
Federal de Santa Maria, com atuação na
graduação e mestrado. Professora do Centro
Universitário Franciscano, ambos em Santa
Maria (RS). Líder do Grupo de Pesquisa Teoria Jurídica no Novo Milênio (UNIFRA) e
Núcleo de Direito Informacional (UFSM),
ambos certificados pelo CNPq. Coordenadora
do Projeto A exposição de crianças e adolescentes aos conteúdos prejudiciais e ilícitos
disponíveis na internet: tratamento social e
jurídico do tema.
Contato: [email protected]
Luíza Quadros da Silveira
Bolzan
Acadêmica do 8º Semestre do Curso de
Direito do Centro Universitário Franciscano.
Bolsista PROBIC/UNIFRA ano 2012.
Contato: [email protected]
Capítulo 12
A PROTEÇÃO DOS
DIREITOS
FUNDAMENTAIS
EM FACE DOS
DISCURSOS
RACISTAS NA
INTERNET
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os últimos anos têm registrado o acirramento do preconceito
e da violência contra determinados grupos em virtude da raça, origem, crenças religiosas ou até mesmo opção sexual de seus integrantes, fenômeno que tem sido facilitado e rapidamente propagado
pelo uso das tecnologias da informação e comunicação, em especial
a internet.
Embora se saiba que o racismo, a discriminação e o preconceito não são fenômenos novos ou contemporâneos ao surgimento
da internet, esta tecnologia da informação e comunicação maximiza
a violência. Com efeito, a possibilidade de produzir e livremente
divulgar informações, o grande potencial de armazenamento e disponibilização de fluxos informacionais, somados às facilidades de
instantânea comunicação planetária, fazem do ciberespaço um ambiente propício à rápida difusão de mensagens de ódio.
204
Rosane Leal da Silva & Luíza Quadros da Silveira Bolzan
As configurações da internet permitem que as informações facilmente migrem de um local para o outro, subtraindo-se da atuação dos Estados. Essa descentralização e porosidade do ambiente
virtual, onde os fluxos informacionais não se submetem aos filtros
ou crivos de uma autoridade central, servem de incentivo aos autores das mensagens de ódio, pois, além da dificuldade de sua identificação, o Estado ainda enfrenta problemas para aplicar o Direito
em virtude de conflitos de jurisdição.
Todos esses elementos contribuem para que ciberespaço seja
tão atrativo para a proliferação de conteúdos inadequados e ilegais,
difundindo-se entre muitos internautas a “cultura ciberlibertária”,
segundo a qual o ambiente virtual constitui “território sem lei” e
espaço de absoluta liberdade de expressão, a salvo de qualquer
mecanismo de regulação por parte do Estado. Esse sentimento muitas vezes inspira os autores desses discursos, contribuindo para a
propagação de mensagens racistas, conforme se verá ao longo do
texto, no qual ficará demonstrado que sites de redes sociais como o
Facebook e alguns ambientes como Fóruns são criados com o objetivo de enaltecer a raça branca ariana, em detrimento da dignidade
dos demais.
Tal fato leva a que se questionem os desafios da atuação estatal em defesa de direitos fundamentais e da dignidade humana em
tempos de internet, o que justifica a apresentação deste artigo. Para
enfrentar esse questionamento utilizou-se o método de abordagem
dedutivo, partindo-se da análise doutrinária das características do
discurso de ódio de caráter racista, ao que se seguiu a apresentação
das principais legislações que versam sobre o tema. Uma vez demonstrada a inequívoca tipificação dessas condutas, a última parte
do artigo apresentou alguns casos de discurso de ódio existentes na
internet, o que foi feito a partir do emprego da técnica de observação direta e não participativa em duas comunidades existentes no
Facebook e nos Fóruns observados.
1
DELINEAMENTOS DO DISCURSO DE ÓDIO: A VISÃO
DOUTRINÁRIA
Com o advento das novas tecnologias da comunicação e informação, em especial a internet, ampliaram-se significativamente
as possibilidades de interação e de comunicação entre pessoas, in-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
205
dependentemente da localização geográfica, o que promoveu o encurtamento nas distâncias, num fenômeno de constante interpenetração entre o local e o global.
Incentivadas pelas inéditas possibilidades que as tecnologias
oferecem, proliferaram no ambiente virtual uma infinidade de
blogs, páginas pessoais, sites pessoais e sites de redes sociais, ambientes que reúnem e disponibilizam grande diversidade de informações, permitindo que as pessoas manifestem livremente seus
pensamentos e convicções.
Da mesma forma como encurtam distâncias e favorecem o
acesso à informação, contribuindo para que as pessoas adquiram
conhecimentos capazes de produzir seu empoderamento social e
econômico, as novas tecnologias também revelam as diferenças
culturais e servem de canal para manifestação do acirramento das
intolerâncias. Como destacado por Wolton (2004), a maior mobilidade conferida pelo uso das novas tecnologias nem sempre significa mais respeito entre as culturas e embora desejável, mais informação não significa, por si só, a superação das incompreensões e
do choque cultural.
Enquanto a internet é utilizada para revelar as diferenças não
há maiores problemas. A questão assume outra dimensão quando
essa nova tecnologia viabiliza a propagação do ódio.
Para que se entenda, o tema o ódio será aqui adotado como o
não gostar, se opor a algo ou alguém de forma viril, radical, levando
todos os esforços possíveis a efeito para destruir ou afastar o objeto
de seu desgosto. O ódio como uma exacerbação da agressividade,
uma manifestação extremada de sentimentos de medo ou oposição
a algo ou alguém, contra pessoas ou costumes cujos interesses, hábitos, culturas ou costumes se chocam, conflitam com os do emissor
da mensagem. Partindo dessa rápida conceituação, pode-se dizer,
com amparo em Samantha Meyer-Pflug (2009, p. 97), o discurso de
ódio “[…] consiste na manifestação de ideias que incitam à discriminação racial, social, religiosa, econômica, de gênero, em relação
a determinados grupos, na maioria das vezes as minorias”. O conceito oferecido pela autora mostra a abrangência desse discurso,
que não se volta apenas à questão racial, mas desqualifica determinados grupos por entender que a condição dos seus integrantes de
alguma forma não reproduz o modelo hegemônico vigente.
206
Rosane Leal da Silva & Luíza Quadros da Silveira Bolzan
Ao abordar o mesmo tema, Sarmento (2009, p. 40) define essas mensagens como “[…] as manifestações de ódio, desprezo ou
intolerância contra determinados grupos, motivados por preconceitos ligados à etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e
orientação sexual, […]”.
Na mesma senda segue Andrade (2009, p. 1), para quem as
mensagens do discurso de ódio, “discriminariam pessoas ou grupos
de pessoas a partir de suas religiões, raças, cores, origens nacionais
e étnicas, bem como de orientações sexuais”.
O maior problema é que os discursos de ódio não se constituem somente no pleno exercício da liberdade de pensamento e de
expressão da pessoa, pois, para além de externar a opinião do emissor, o que por si só já inferioriza e discrimina o destinatário (seja
pessoa individual ou grupo), tais mensagens também incitam a violência, como já destacado por Silva et al. (2011, p. 3):
O discurso de ódio compõe-se de dois elementos básicos: discriminação e externalidade. É uma manifestação segregacionista, baseada na dicotomia superior (emissor) e inferior
(atingido) e, como manifestação que é, passa a existir quando
é dada a conhecer por outrem que não o próprio autor. […]
A discriminação revela-se pelo tratamento que nega os direitos e a própria condição de humanidade daquele a quem dirige a
mensagem. A comunicação objetiva a exclusão do outro, propagando
a ideia de que os destinatários das mensagens são seres inferiores,
culpados pelas mazelas sociais e que não merecem o mesmo tratamento destinado às demais pessoas.
Essa discriminação adota a forma de insultos e intimidações,
como destacado por Villanova (2012, p. 3):
[…] Conceitualmente, as expressões de ódio são palavras que
tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude
de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião,
ou que têm a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra membros desses grupos, individual ou coletivamente. A temática desta classe de expressões articula, pois,
conceitos fundados em traços arraigados no cerne da identidade dos indivíduos enquanto pessoas.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
207
Mas não basta que esses sentimentos perpassem a mente do
sujeito: eles precisam ser expressos, divulgados a terceiros no afã
de conquistar outros adeptos à causa. Nesse ponto se revela o seguindo elemento: a externalidade.
As divulgações odientas muitas vezes têm o objetivo de propagar o racismo, conceituado por Meyer-Pflug (2011, p. 113) como
a atribuição negativa conferida a um específico segmento social em
virtude de características comuns entre esse grupo, que detém um
traço identificador que ensejará o tratamento desigual, em clara
afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Quando essa mensagem é veiculada na internet ela pode assumir a forma explícita ou ser divulgado de maneira mais velada,
implícita. Enquanto o discurso feito de maneira explícita permite a
fácil identificação dos seus propósitos e da intenção de discriminar
determinado grupo de pessoas em virtude da raça, o que facilita a
atuação do Estado; as mensagens mais veladas são construídas com
maior requinte, sendo que o emissor escolhe as palavras e articula o
discurso de maneira ardilosa, o que dificulta a identificação da
mensagem de ódio como tal e, por conseguinte, também torna mais
complexa a atuação do próprio Estado.
Para elucidar essas estratégias de divulgação do racismo no
ambiente virtual vale a pena citar Meira (2011, p. 10), para quem
essas mensagens podem assumir a forma de:
[…] generalizações grosseiras, sem lhes ser reconhecida qualquer capacidade para poderem ser consideradas verdadeiramente ofensivos, outras circunstâncias há em que aquelas expressões dirigidas a determinados grupos tem uma intenção
clara, premeditada e definida de descriminar e estigmatizar
um determinado grupo social, incitando ao ódio e à violência
contra o mesmo.
Sendo estes discursos dirigidos contra um determinado grupo,
com a intenção de afetar o seu status no seio da sociedade,
não poderá deixar de se considerar que, na medida em que
provoca um dano no status desse grupo, tal discurso acabará
por afetar individualmente os indivíduos que dele fazem parte.
Ademais, para entender a função desenvolvida por essas expressões de ódio, Villanova (2012, p.14) destaca que elas consistiriam
em
208
Rosane Leal da Silva & Luíza Quadros da Silveira Bolzan
[…] manter presente na pauta social a discriminação fundada
na raça. Dessa forma, o dano ao grupo de destinatários estaria
assim consubstanciado no desprestígio da imagem coletiva, o
que atuaria de modo a mantê-los subordinados e oprimidos.
Ao valorizar uma raça em detrimento de outra, esse tipo de
mensagem “[…] interfere negativamente na vida dos indivíduos,
criando uma imagem distorcida da realidade, através de estereótipos e valores que dificultam o processo de formação da identidade.”, como bem destaca Oliveira (2012, p. 24).
Como se percebe, o discurso de ódio, ao contrário dos crimes
de injúria, tem uma irradiação que ultrapassa uma pessoa específica, como destacado por Samantha Ribeiro Meyer-Pflug (2009, p.
125). Para a autora, o conteúdo incitador e provocador do discurso
de ódio atinge não só a pessoa em si, mas também o grupo social,
étnico, religioso ou cultural ao qual pertence, produzindo uma espécie de vitimização difusa.
O alcance do discurso de ódio, portanto, é social, pois todas as
pessoas de uma mesma raça são atingidas, bem como são produzidos danos a pessoais incalculáveis, vez que atingida a dignidade
humana.
A importância que esse princípio violado tem para o homem é
imensurável, pois como destaca Bulos (2011, p. 502) a dignidade da
pessoa humana, consagrada na Constituição Federal brasileira de
1988, tem um valor constitucional supremo e é consagrada como
um imperativo da justiça social, pois ela reflete um conjunto de valores civilizatórios que são incorporados no patrimônio do homem,
ou seja, seu conteúdo jurídico interliga as liberdades públicas em
sentido amplo, abrangendo os aspectos individuais, coletivos, políticos e sociais do direito à vida.
Assim, como se percebe na sucinta exposição acima, os discursos de ódio já preocupam alguns pesquisadores, o que aponta
para o interesse em estudar de maneira mais aprofundada o tratamento jurídico conferido aos casos de mensagens odientas de cunho
racista, tema a ser abordado no próximo tópico.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
2
209
O TRATAMENTO JURÍDICO DO DISCURSO RACISTA NO BRASIL
Apresentado o delineamento teórico dos discursos de ódio,
cabe sistematizar o tratamento conferido ao tema no cenário internacional. Dentre os compromissos firmados é imprescindível referir
a Declaração Universal de Direitos Humanos (art. 19), documento
que explicita um claro compromisso dos Estados signatários com a
promoção e proteção dos direitos fundamentais.
Na esteira desse importante documento, muitos outros foram
assinados e dentre dos compromissos que merecem destaque pela
amplitude do seu escopo está a Convenção Internacional para Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, firmada ainda
na década de sessenta e promulgada no Brasil por meio do Decreto
65.810, de 08 de dezembro de 1969. Tal documento evidencia o compromisso expresso de os signatários adotarem posturas ativas no
combate à discriminação racial, como se depreende da leitura do artigo 4º, abaixo transcrito (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,
1968):
Art. 4º Os Estados-partes condenam toda propaganda e todas
as organizações que se inspirem em ideias ou teorias baseadas na superioridade de uma raça ou de um grupo de pessoas
de uma certa cor ou de uma certa origem étnica ou que pretendam justificar ou encorajar qualquer forma de ódio e de
discriminação raciais, e comprometem-se a adotar imediatamente medidas positivas destinadas a eliminar qualquer incitação a uma tal discriminação, ou quaisquer atos de discriminação com este objetivo, tendo em vista os princípios formulados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e os direitos expressamente enunciados no artigo V da presente
Convenção, inter alia:
a) a declarar como delitos puníveis por lei, qualquer difusão
de idéias baseadas na superioridade ou ódio raciais, qualquer
incitamento à discriminação racial, assim como quaisquer atos
de violência ou provocação a tais atos, dirigidos contra qualquer raça ou qualquer grupo de pessoas de outra cor ou de
outra origem étnica, como também qualquer assistência prestada a atividades racistas, inclusive seu financiamento;
b) a declarar ilegais e a proibir as organizações, assim como
as atividades de propaganda organizada e qualquer outro tipo
de atividade de propaganda que incitarem à discriminação ra-
210
Rosane Leal da Silva & Luíza Quadros da Silveira Bolzan
cial e que a encorajarem e a declarar delito punível por lei a
participação nestas organizações ou nestas atividades;
c) a não permitir às autoridades públicas nem às instituições
públicas, nacionais ou locais, o incitamento ou encorajamento
à discriminação racial.
Este compromisso internacional foi, seguido de outro, firmado
na década de sessenta e internalizado no ordenamento jurídico brasileiro no ano de 1992. Trata-se da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Pacto de são José da Costa Rica), incorporado
na ordem jurídica interna por meio do Decreto 679, de 06 de novembro de 1992. Como o objetivo do referido documento é firmar
uma verdadeira carta de direitos fundamentais da pessoa, a discriminação racial e a apologia ao ódio são expressamente proibidas,
como é possível observar no artigo 13, item 5, quando diz que “A lei
deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda
apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.
Quando o país se reconcilia com a ordem democrática, a Carta
Constitucional de 1988 naturalmente incorpora esses compromissos,
o que se evidencia nos princípios norteadores das relações do Brasil
no contexto internacional, com destaque para o artigo 4º, VIII, no
qual se vê o repúdio ao racismo e ao terrorismo. Ademais, quanto
ao racismo, a preocupação do legislador constituinte foi além, ao
tipificar essa prática como crime inafiançável e imprescritível (art. 5º,
XLII).
A inserção desses dispositivos na Carta Constitucional brasileira fez com que a ordem jurídica interna se alinhasse aos compromissos firmados anos antes no âmbito internacional, projetando
o Brasil junto aos demais Estados defensores de direitos da pessoa
humana.
No que tange ao racismo, o Brasil adota em seu ordenamento
jurídico uma postura que veda qualquer tipo de discurso discriminatório ou manifestação que discrimine pessoas em virtude da sua
raça, conforme se constata tanto pelo artigo 1º, III, quanto pelos
artigos 3º, IV; 4º, VIII; e 5º, XLII, todos da Constituição Federal de
1988.
No artigo 1º, III, encontra-se o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que, segundo Bulos (2011, p. 502), é um
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
211
conjunto de valores espirituais (liberdade de ser, pensar, criar etc.)
e materiais (renda mínima, saúde, alimentação, lazer, moradia,
educação etc.), ou seja, valores civilizatórios do homem. O cumprimento e respeito a esse princípio significa uma vitória contra a intolerância, a exclusão social, a opressão e, principalmente, um importante passo para a efetividade do princípio da dignidade humana.
Como bem lembra Ingo Sarlet (2006, p. 60),
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,
como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.
Por certo, não haverá tratamento digno se não for reconhecida
a igualdade de todas as pessoas, daí porque o artigo 3º, IV, elencou
o princípio da igualdade dentro os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, vedando o preconceito de origem, raça, sexo, idade, cor e quaisquer outras formas de discriminação.
Tal previsão não ocorreu ao acaso, pois, conforme destacado
por Sarmento (2009, p. 84),
O constituinte, portanto, não quis atribuir ao Estado o papel
de espectador neutro e imparcial dos conflitos travados na esfera social, Pelo contrário, partindo da premissa empírica de
que a sociedade brasileira é injusta e desigual, e de que nela
vicejam a intolerância e o preconceito, ele impôs aos três poderes do Estado tarefas ativas, ligadas à inclusão social e à
transformação de práticas opressivas voltadas contra grupos
estigmatizados.
Não tardou para que sobreviesse a legislação infraconstitucional para regulamentar a matéria e em 5 de janeiro de 1989 foi editada a Lei 7.716, que tipificou uma série de condutas consideradas
212
Rosane Leal da Silva & Luíza Quadros da Silveira Bolzan
crimes resultantes de preconceito de raça ou cor. Posteriormente,
essa legislação sofreu atualização pela Lei 9.459, de 13 de janeiro
de 1997, que ampliou os tipos de discriminações que são puníveis
por essa lei, acrescentando a discriminação ou preconceito de etnia,
religião ou procedência nacional. De igual forma, o artigo 20 passou a considerar crime punível com pena de reclusão de um a três
anos e multa o ato de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional,
situação típica dos discursos de ódio, em que o emissor conclama os
seus leitores para a prática do preconceito.
Não obstante a lei aumentar os tipos de discriminação puníveis, ela ainda não abrangia a ocorrência deles na internet, pois
essa lei não se referia a discursos de ódio no ambiente virtual. Essa
lacuna servia de motivo para preocupação e discussão entre doutrinadores e operadores do Direito, já que não havia previsão de punição quando a prática ocorresse no ambiente virtual.
A Lei 12.735, de 10 de novembro de 2012, alterou a Lei 7.716,
de 05 de janeiro de 1989, tipificando também as condutas praticadas mediante o uso sistema eletrônico, digital ou similares, o que
por certo amplia as possibilidades de persecução de quem propaga
o racismo e incita o preconceito e a violência.
Tal previsão é de suma importância, pois já ocorreu situação
em que o Poder Judiciário se viu diante da necessidade de julgar
casos de discursos de ódio publicados na internet. Um dos exemplos é a Apelação 20050110767016APR, julgada pela 2ª Turma
Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal em 2011, decorrente de interposição de recurso pelo Ministério Público, que se
insurgiu contra sentença que absolveu Marcelo Valle Silveira Mello
do crime de racismo praticado na internet. No caso em tela, o denunciado atacou o sistema de cotas para ingresso de afrodescendentes em Universidades e, ao se manifestar na rede social Orkut,
chamou as pessoas negras de “burros, macacos subdesenvolvidos,
ladrões, vagabundos, pobres”, entre outras denominações pejorativas. Em que pese a sentença de primeira instância ter absolvido o
réu, a decisão foi reformada em grau de recurso interposto pelo Ministério Público, condenando o autos da postagem na internet pelo
crime de discriminação da raça negra, com fulcro no artigo 20, § 2º,
da Lei 7.716/89.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
213
Embora a análise empreendida nesta seção não se pretenda
exaustiva e ainda não existam muitos julgamentos sobre o tema, os
discursos de ódio são recorrentes na internet, conforme será evidenciado na sequência.
3
CASOS DE DISCURSO DE ÓDIO CONTRA A RAÇA NA INTERNET
Apesar da tipificação legal severa, no ambiente virtual facilmente são encontrados exemplos de discurso do ódio elaborados
com o objetivo de propagar mais rapidamente e de maneira incontrolável a discriminação racial. Observa-se isso tanto em fóruns como em sites de redes sociais, pois nesses ambientes existe um
grande fluxo de troca de informações, que atinge não só os adultos,
mas também as crianças e os adolescentes que interagem constantemente no ciberespaço, conforme apontado pelo Comitê Gestor da
Internet no Brasil na pesquisa TIC KIDS, recentemente publicada.
Partindo dessa constatação, a investigação adotou a técnica de
observação direta e não participativa nas comunidades ANTINEGROS e PODER BRANCO, hospedadas no site da rede social
Facebook derivando, posteriormente, para os Fóruns STORMFRONT
e NUEVORDEN.NET, também frequentados pelos integrantes das
duas comunidades investigadas no âmbito do Facebook.
Para melhor compreensão do tema, é conveniente informar
que os ambientes observados são relativamente novos, assim como
a maioria dos espaços criados na web. A começar pelo Facebook,
site de rede social criado no ano de 2004 por Mark Zuckerberg, um
americano e estudante de Harvard na época. Este site foi lançado
na internet com o objetivo inicial de criar uma rede de contados
entre os estudantes daquela região, porque para participar dessa
rede tinha que ser membro de alguma instituição reconhecida. Como o Facebook tem o funcionamento por meio de comunidades e
perfil, do qual o usuário pode acrescentar quantos aplicativos quiser (jogos, ferramentas, etc.), ele foi posteriormente expandido pelo
mundo, e, assim, aberto a todas as pessoas que se cadastrarem e
criarem um perfil (RECUERO, 2009, p. 172).
A análise sobre o conteúdo publicado nas comunidades o
ANTINEGROS e o PODER BRANCO do Facebook permitem comprovar a prática de um discurso de ódio de corte racista que é di-
214
Rosane Leal da Silva & Luíza Quadros da Silveira Bolzan
vulgado de maneira explícita, num claro convite à discriminação
dos negros ou afrodescendentes por parte dos emissores da mensagem, que se consideram superiores por serem da “raça ariana”.
Observa-se isso quando na comunidade PODER BRANCO é
postado a Figura 1, que faz uma clara demonstração de racismo.
Esta comunidade começou suas atividades no Facebook em 21 de
fevereiro de 2012 e possui cerca de cento e dez pessoas que “curtem” as postagens, cujo caráter racista fica claramente evidenciado,
justificando até mesmo a denominação da comunidade, que reúne
pessoas que acreditam na supremacia dos brancos arianos (PODER
BRANCO, 2012).
Figura 1: Demonstração racista (comunidade PODER BRANCO)
Percebe-se que a Figura 1 utiliza a imagem extraída da National Geographic, na qual um menino negro aparece sendo cruelmente atacado por uma cobra. No entanto, a mensagem postada
junto à imagem, de caráter sarcástico e ofensivo, deixa claro o racismo, especialmente quando se acusa o menino negro de estar roubando a serpente.
Além dos escritos na figura, sua legenda apresenta a seguinte
afirmação: “PF NEGROS… ROUBAM DE TUDO HUE”. Como se
vê, tanto a figura como a sua legenda fazem um discurso que inferioriza e associa a raça negra à prática de ilícitos como roubo
(PODER BRANCO, 2012).
No exemplo acima, nota-se claramente o preenchimento dos
requisitos que caracterizam um discurso do ódio explícito, pois
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
215
existe a discriminação pejorativa a um determinado grupo de pessoas em virtude da sua raça, o que é feito pela associação de imagens e palavras, demonstrando que o emissor da mensagem expressa desprezo pelos negros e tenta colocar seus possíveis leitores
contra as pessoas da raça negra.
A análise das postagens e dos comentários feitos pelos integrantes desse grupo evidencia que a prática de racismo é justificada
pela necessidade de salvaguardar a “raça ariana” das miscigenações,
supervalorizando a raça branca, considerada superior a qualquer
outra em detrimento das demais. Para manter-se pura devem ser
combatidos os casamentos inter-raciais e o multiculturalismo.
Outro exemplo explícito de preconceito é encontrado na comunidade ANTINEGROS, que começou a fazer parte do Facebook
em 28 de janeiro de 2013. Embora criada recentemente, este ambiente já integra seis pessoas que se reúnem virtualmente com o objetivo de atacar e inferiorizar negros, conforme se verifica na Figura 2.
Figura 2: Prática racista (comunidade ANTINEGROS)
Na Figura 2, um pato cuja penugem tem colocação clara está
chamando, em espanhol, um grupo de patos da cor escura de “merda”, ou seja, a partir da alusão a simples patinhos o autor da postagem utiliza uma estratégia para insultar e inferiorizar todos aqueles
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Rosane Leal da Silva & Luíza Quadros da Silveira Bolzan
da raça negra, fazendo jus ao nome da própria comunidade, denominada ANTINEGROS (2013).
Os elementos essenciais do discurso do ódio estão presentes
nessa imagem, porque ela está discriminando um determinado
grupo, mensagem externalizada em rede social. Com a prática desse discurso, o dono da comunidade que postou essa imagem está
ferindo o artigo 5º, LXII, da Constituição Federal brasileira de 1988,
ou seja, ele está praticando um crime inafiançável e imprescindível,
o racismo.
No fórum STORMFRONT, também se observa uma conduta
que é totalmente avessa a qualquer grupo de pessoas que não sejam “brancas”. O preconceito racial desses grupos é tão grande
que, em seus discursos, chegam a alegar indiferença no caso de
morte das pessoas de cor diferente da deles. No trecho a seguir,
extraído da página do fórum, o internauta que se denomina Zerya
deixa claro isso quando afirma que (STORMFRONT, 2013):
[…] eu digo, pessoas nao-brancas pra mim nao valem NADA,
sou indiferente quanto a eles, se morrem de fome ou doenca
ou criancas tens problemas pra mim que se foda-se NAO SAO
BRANCOS
Falando mais cientificamente, como dizia um outro camarada,
isso vai ser apenas mais um impulso para os brancos “despertos” tomarem uma iniciativa, dai que acredito que entra a
“guerra santa”, eu sempre frisei que estavamos vivendo em
uma revolucao comunista, uma subversao onde o “chic” e ser
preto, favelado, bandido que vira milionario com um “posante” ferrari ou mercedes cheio de mulheres de tudo quanto
e tipo…
aff Uma vez li um texto de um preto ae “revolucionario” de
algum movimento racial nos EUA
Ele dizia o porque de preferir as brancas do que negras, segue
abaixo uma replica:
“quando eu abraco uma negra, e como se abracasse a escravidao, mas quando abraco uma branca… bem, e como abracar a
liberdade!” bom, talvez nao tenha causado o mesmo efeito
que causou em mim em alguns leitores, mas de fato e o suficiente para nos brancos entendermos o que se procede desse
“fenomeno” chamado MISCIGENACAO
Pretos sao bodes-espiatorios dos sionistas e ninguem me tira
isso da cabeca, eu nao caio nessa de negro intelectual Luther
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
217
Kinga… se ele conseguiu abrir o bico foi gracas ao branco que
deu condicoes a essa criatura [bobo que sao!] Mas nao os culpo, o homem branco e nobre, honroso e tem bom coracao, ao
contrario dos demais animais que vivem de subsistencia… pelo menos por enquanto… [mantida a grafia original]
Essas afirmações que qualificam o chamado “homem branco”
como um ser considerado bom, nobre e de grande superioridade
aos “negros” são claros exemplos de mensagens odientas, pois para
o emissor da mensagem e os demais integrantes do Fórum as pessoas negras são sempre qualificadas de forma pejorativa, como sendo seres tão inferiores que não teria importância se sofressem com
doenças ou chegassem a óbito.
Outra não é a realidade das postagens do site
NUEVORDEN.NET (2013), que congrega pessoas claramente contrárias à raça negra:
SOMOS NÓS, OS BRANCOS, SUPERIORES?
Como gaúcho sinto uma grande admiração pelo meu povo e
por sua cultura, e me encantaria de pensar que é a melhor do
mundo.
Felizmente tenho o suficiente sentido comum para não acreditar que é “a melhor”, mas que está à altura das melhores, ou
seja, que o povo gaúcho tem realizado um trabalho cultural e
histórico à altura dos demais povos arianos.
Se vemos a história da China ou do Japão é difícil para nós
não aceitar que tiveram um enorme valor e estamos orientados a pensar que também tem realizado sua contribuição a essa riqueza global da cultura e da variedade da Natureza.
Por outro lado é difícil ver a mesma contribuição entre os nativos australianos ou as nações pretas.
Isso poderia levar a um certo sentimento de superioridade,
que se reduz a uma mera “opinião ante a realidade” que
também não deve espantar ninguém. Mas se essa superioridade se tende a generalizar, a sentimentos de desprezo e, o
pior, a uma postura colonialista e dominante, converte o racismo em xenofobia e em “ódio às outras raças”.
Tão mal é “acreditar que é melhor” só por ser gaúcho (ou
catarinense), como acreditar que todos nós somos iguais, e
que a etnia não existe.
218
Rosane Leal da Silva & Luíza Quadros da Silveira Bolzan
Ao ler o conteúdo do site fica muito claro que seus autores repudiam a igualdade, prevista constitucionalmente, considerando
inconcebível conceder o mesmo tratamento e respeito a pessoas de
raças distintas. Reconhecem que os demais povos são detentores de
culturas e conhecimentos próprios, mas não lhes conferem o mesmo
status e a mesma dignidade destinada à cultura “dos brancos”, conforme se depreende da seguinte passagem (NUEVORDEN.NET,
2013):
[…] é evidente que a Raça preta em seus milhares de anos de
História não tem conseguido o mais mínimo indício de cultura
elevada, e que seu nível cultural, etc. tem sido mais bem inferior que ao do homem branco ou do Japonês ou Chinês.
Claro que os pretos tiveram todo o direito de seguir com seus
totens e suas pinturas rupestres, ninguém nega-lhes seu direito e seu valor, nem o respeito à sua forma de vida. Mas negar
a comparação é ridículo.
Talvez dentro de um milhão de anos a raça preta consiga um
desenvolvimento cultural e histórico superior ao branco? É
possível, pois ninguém garante o contrário. Mas enquanto o
fato é que os pretos não são muito considerados pelas demais
raças como exemplos de cultura e inteligência. [mantida a
grafia original]
Essas manifestações são recorrentes entre os utilizadores do
discurso de ódio e para se evadir da jurisdição brasileira e da aplicação das leis do país muitas vezes são utilizados provedores e sites
situados em outros países, o que dificulta a atuação das autoridades
brasileiras.
Além disso, percebe-se que é evidente a intenção de burlar as
leis brasileiras, pois, apesar de ter sido hospedado em servidor fora
do país, no próprio fórum existe um tópico intitulado “Brasil”, sendo
que a página e os comentários estão todos escritos em Língua Portuguesa e são de autoria de brasileiros.
Em outra postagem do Fórum STORMFRONT, é possível encontrar não só a utilização de palavras ofensivas e pejorativas dirigidas aos negros, como também insultos e menosprezo com relação
à África, conforme se observa das palavras do internauta Brash
(STORMFRONT, 2013):
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
219
É uma completa insanidade achar multiculturalismo e miscigenação algo bonito e louvável. O brasil tem tantos assassinos, assaltantes, traficantes e trombadinhas devido á miscigenação! As raças são diferentes umas das outras, tanto fisicamente quanto mentalmente. ja foi provado cientificamente!!!
É impossível a convivência delas juntas em um mesmo lugar!
A cultura negra esta corroendo e infectando a mente dos nossos jovens brancos! eles são incentivados á fazerem amizades
com negros e conviverem com eles, aprendendo seus costumes e comportamentos. Tudo para não serem racistas e mostrarem sua obediência ás ordens da mídia e do governo! A
convivência com negros é destrutiva, principalmente para jovens.
Toda nossa cultura, nossas tradições e nosso comportamento
podem estar em perigo. O governo esta agindo junto com a
mídia e os negros para que o brasil venha á ser um país totalmente miscigenado e moderno. Ou seja: uma áfrica, um nojo,
um caos. [mantida a grafia original]
A mensagem acima constitui flagrante caso de discurso de
ódio, pois, além de combater o multiculturalismo, associa a autoria
de assassinatos e tráfico de drogas a pessoas da raça negra que,
segundo o autor da mensagem, é responsável por estar “corroendo”
e “infectando” a mente dos jovens brancos. Dessa forma, a um só
tempo o emitente da mensagem inferioriza a raça a qual não pertence, humilhando as pessoas negras, bem como tenta incutir no
imaginário dos seus leitores que é dos negros a responsabilidade
pelas mazelas da sociedade brasileira, o que justifica o seu segregacionismo. Portanto, pelo teor da mensagem percebe-se claramente a incitação à violência, o que é feito por meio da eleição de um
inimigo comum que oferece “perigo” e que precisa ser combatido
pelos brancos.
O Fórum observado é rico em muitos outros exemplos de
mensagens odientas e de materiais que livremente são disponibilizados para incentivar o racismo e a discriminação. É importante
salientar que a dimensão de popularidade desse fórum é bastante
grande no meio virtual, pois é comum encontrar referências a ele
entre outros grupos de praticantes do racismo, conforme visto na
observação das comunidades do Facebook, onde os membros mencionavam esse Fórum.
220
Rosane Leal da Silva & Luíza Quadros da Silveira Bolzan
Nota-se que as trocas de informações no Fórum STORMFRONT ocorrem em diversos idiomas, como em inglês, espanhol,
português, o que permite a congregação de pessoas espalhadas por
várias partes do mundo, outra nota distintiva do discurso que é publicado na internet.
Outra peculiaridade desse ambiente virtual é a sua estrutura e
organização eficiente, pois possibilita ao internauta escolher em
qual país, língua e tópico de assunto deseja acessar. Constata-se,
portanto, a grande versatilidade que os praticantes desse discurso
têm em fazer novas comunidades, blogs e sites com a finalidade de
divulgar seus discursos livremente, sem serem identificados e perseguidos criminalmente pelo Estado. Essa sensação de liberdade e
impunidade encoraja os membros a desafiarem ainda mais os órgãos de controle da criminalidade, o que revela novos problemas à
comunidade jurídica e aos órgãos do Estado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme constatado pela observação direta e não participativa
realizada em comunidades do Facebook e nos fóruns investigados,
os discursos de ódio racistas existem e facilmente podem ser encontrados na internet.
Os seus autores manifestam claro desprezo pela raça negra,
atribuindo-lhes adjetivos e expressões pejorativas, bem como associando a raça à prática de atos ilícitos. Ao assim agir, transmitem
sentimentos negativos, incitando que outras pessoas também combatam as pessoas negras, perpetuando o preconceito e a violência,
historicamente presentes no Brasil. Aliado a isso, a disseminação
dessas mensagens e sua leitura acrítica por qualquer internauta
que tenha contato com seu conteúdo acaba contribuindo para a
banalização desse tipo de violência, o que leva muitos usuários da
internet a compartilharem postagens achando que se trata apenas
de uma “imagem ou charge divertida”, sem a necessária reflexão
para a violação de direitos fundamentais que está perpetrando.
Embora para muitos possa parecer mera brincadeira inofensiva, essas práticas devem ser denunciadas com veemência pela sociedade civil, rechaçando-se comportamentos cuja finalidade precípua seja humilhar e inferiorizar outro ser humano por questão de
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
221
gênero, raça, cor, opção religiosa ou sexual, condição social, econômica ou qualquer outra característica.
Quando o discurso de ódio configurar crime (como no caso de
racismo), o Estado terá que agir na persecução e punição do autor
do delito o que, todavia, nem sempre será tarefa simples dado ao
caráter transnacional da criminalidade na internet. Com efeito,
além da dificuldade de identificação dos verdadeiros emissores da
mensagem, ainda há outros obstáculos, como o fato de muitos sites
estarem hospedados fora do Brasil, o que suscita conflito de jurisdição e aponta para a necessidade de os Estados investirem na cooperação internacional. Aliado a isso, há a facilidade de os conteúdos
migrarem de um ambiente a outro, o que acontece toda a vez que
os integrantes de um determinado grupo virtual desconfiam que
são alvos de ação repressiva do Estado.
Diante da facilidade de os grupos se organizarem para realizar a dispersão de conteúdos racistas na internet, torna-se evidente
a necessidade de o Estado brasileiro melhor se estruturar para enfrentar esse complexo problema, cujo combate exige ações articuladas: da sociedade civil, em denunciar os casos de discurso de ódio
aos órgãos competentes, como Ministério Público; de os provedores
retirarem os conteúdos racistas e violadores de direitos fundamentais quando houver denúncia de sua existência; de o Estado agir
com rigor, perseguindo o punindo os autores desses discursos, o
que exigirá que sejam firmados acordos de cooperação internacional em face da configuração aberta e porosa do ambiente virtual.
Em que pese a análise não tenha tido a pretensão de ser exaustiva, entende-se comprovada a tese inicialmente delineada neste
trabalho de que a internet contribui e potencializa a difusão de
mensagens racistas, tornando mais difícil a atuação do Estado na
proteção dos direitos fundamentais na sociedade em rede. Portanto,
os operadores jurídicos devem permanecer atentos a essa nova realidade, pois só a partir da divulgação do tema e da discussão sobre
eventuais formas de enfrentamento é que se poderá alcançar maior
proteção a direitos fundamentais, cuja observância é requisito indispensável à dignidade humana.
222
Rosane Leal da Silva & Luíza Quadros da Silveira Bolzan
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13 maio 1997.
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2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, o Decreto-lei 1.001, de
21 de outubro de 1969 – Código Penal Militar, e a Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, para tipificar condutas realizadas mediante uso de sistema
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comprovados. Sentença reformada. Condenação imposta. Réu semiimputável. Continuidade delitiva. Pena privativa de liberdade substituída
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Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
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WOLTON, Dominique. La otra mundialización: los desafíos de la cohabitación cultural global. Barcelona: Gedisa, 2004.
Rosane Teresinha Carvalho
Porto
Doutoranda e Mestre em Direito, área de
concentração: Políticas Públicas de Inclusão
Social e Especialista em Direito Penal e
Processual Penal pela Universidade de Santa
Cruz do Sul – Unisc. Professora de
Criminologia e Estatuto da Criança e do
Adolescente do Curso de Direito da
Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc.
Integrante do Grupo de Pesquisa: Direito,
Cidadania e Políticas Públicas, coordenado
pela professora Pós-Drª Marli M. M. da
Costa.
Contato: [email protected]
Capítulo 13
Rodrigo Cristiano Diehl
Acadêmico do curso de Direito da
Universidade de Santa Cruz do Sul - Unisc.
Integrante dos grupos de pesquisa: Direito,
Cidadania e Políticas Públicas, coordenado
pela professora Pós-Dra. Marli Marlene
Moraes da Costa; Direitos Humanos,
coordenado pelo professor Pós-Dr. Clovis
Gorczevski e; Teorias do Direito, coordenado
pela professora Drª. Caroline Müller
Bitencourt, ambos do Programa de Pós-Graduação em Direito Mestrado e
Doutorado da Unisc. Atualmente é bolsista
de Iniciação Científica da FAPERGS (Edital
2013-2014), tendo como projeto de pesquisa
“O (re)estabelecimento da Comunicação
Entre os Atores Sociais da Comunidade Local
a Partir do Capital Social: Transpondo a
Alienação Social para a Implementação da
Justiça Restaurativa”, coordenado pela
professora Pós-Drª. Marli Marlene Moraes
da Costa.
Contato: [email protected]
Fabiano Rodrigo Dupont
Graduado em Direito pela Universidade de
Santa Cruz do Sul – Unisc. Integrante do
grupo de pesquisa Direito, Cidadania e
Políticas Públicas, coordenado pela
professora Pós-Drª. Marli Marlene Moraes
da Costa, vinculado ao Programa de PósGraduação em Direito: Mestrado e
Doutorado da Unisc. Contato:
[email protected]
O ATENDIMENTO ÀS
VÍTIMAS DE CRIMES
NO MUNICÍPIO DE
SANTA CRUZ DO SUL:
UM ESTUDO À LUZ
DOS CÍRCULOS DE
CONSTRUÇÃO DA PAZ
226
Rosane T. Carvalho Porto, Rodrigo C. Diehl & Fabiano R. Dupont
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Muito se tem debatido e pensado a respeito da justiça restaurativa enquanto outra via de enfrentamento de conflitos e perspectiva filosófica de se pensar de maneira diferente o conflito em que
as pessoas e até mesmo a comunidade estão envolvidas. A justiça
restaurativa tem sua gênese na área criminal, as suas maiores experiências têm sido com adolescentes e jovens autores de ato infracional. A definição mais cabal preceitua: o encontro da vítima, do
ofensor, de seus familiares e da sua comunidade em um espaço
extrajudicial para dialogarem sofre o fato determinado; representando esse momento o exercício da cidadania pela possibilidade de
empoderamento, o direito de escuta e a corresponsabilização aos
envolvidos pelo dano oriundo do crime.
Contudo, sabe-se que a justiça restaurativa vai além desse enfoque, servindo de suporte às mais diversas áreas do direito; o que
significa a cada caso concreto uma redescoberta e a reinvenção de
se pensar nas soluções que se buscam para os conflitos. Nesse viés,
a sua construção principiológica – respeito, direito de escuta, proporcionalidade, empoderamento, entre outros – tem servido de base
para a rede social e também para os operadores jurídicos que visam, acima de qualquer coisa, desjudicializar alguns conflitos e
empoderar a comunidade para que na lógica da cultura da paz consolide nos seus ideários sociais a pacificação social.
Dentro dessa lógica, tem-se aplicado os círculos de diálogo ou
construção de paz às famílias em situação de violência, diga-se
aqui: vítimas de roubo a domicílio em suas residências. O atendimento e o acompanhamento ao caso dão-se por uma equipe multidisciplinar (policiais militares, integrantes da comunidade e professores do curso de direito).
Por conseguinte, trabalhar-se-á em um primeiro momento
com a concepção de justiça restaurativa; em um segundo momento,
tratar-se-á sobre os círculos de construção da paz, e finalmente com
a conexão estabelecida com a comunidade por meio do projeto social do 23º Batalhão de Policiar Militar da Brigada Militar de Santa
Cruz do Sul intitulado “justiça restaurativa policial comunitária”,
que utiliza no atendimento às vítimas o método de círculos de construção da paz.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
1
227
APROXIMANDO AS LENTES: ENFOQUE SOBRE A JUSTIÇA
RESTAURATIVA
Diversas são as considerações e aproximações conceituais a
respeito da gênese da Justiça Restaurativa, mas algo é certo: sua
origem parte da justiça criminal. Porém, há de se ressaltar que, enquanto definição e aplicabilidade, não está pronta ou acabada, podendo ser possível experimentá-la nas mais variadas situações e
áreas sociojurídicas. Sendo assim, “o conceito de justiça restaurativa se extrai da relação que as práticas restaurativas estabelecem
com o sistema tradicional de justiça em cada contexto e enfoque”
(PALLAMOLLA, 2009, p. 14).
De inspiração anglo-saxônica, a Justiça Restaurativa tem origem nos modelos de organização social das comunidades comunais
pré-estatais, europeias e nas coletividades nativas, que privilegiavam as práticas de regulamentação social voltadas aos interesses
coletivos sobre os interesses individuais (JACCOUD, 2005). Dito de
outra maneira, a Justiça Restaurativa é implementada nas sociedades ocidentais, baseando-se nas tradições indígenas do Canadá,
dos Estados Unidos e da Nova Zelândia; além disso, destaca-se que
a Irlanda é um país pioneiro no emprego dos procedimentos restaurativos, especificadamente no que versa a resolução de conflitos
juvenis. De igual maneira está sendo implementada em outros países, como Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Peru, Austrália, Kuwait, Omán, Chile, Argentina, África do Sul, Costa Rica, Colômbia,
Nova Zelândia, Brasil e outros (LONDOÑO, [s/d]).
Nas sociedades contemporâneas ocidentais, o ressurgimento
da Justiça Restaurativa e dos processos que a ela estão ligados, como a mediação, sofreu influência dos movimentos de contestação
das instituições repressivas, da vitimologia e o papel da comunidade.
O primeiro movimento surgiu nas Universidades americanas, destacando a escola de Chicago e a criminologia radical. O segundo
movimento, que caracterizou a descoberta da vítima, na abordagem
pela criminologia sobre os fatores que contribuíam para o sujeito
tornar-se vítima, entretanto, a sensibilização dos críticos teóricos do
modelo retributivo, voltou-se para as necessidades e principalmente
para a ausência da vítima no processo penal. Por isso, no início do
século XX, a participação da vítima em cada um dos passos do pro-
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Rosane T. Carvalho Porto, Rodrigo C. Diehl & Fabiano R. Dupont
cesso judicial tornou-se fundamental para a recuperação e a responsabilização do infrator (JACCOUD, 2005).
O terceiro movimento ressalta a comunidade como o lugar
que deve ser valorizado, pois é nela que os conflitos são menos numerosos e podem ser melhor administrados, assim como o era nas
sociedades tradicionais (JACCOUD, 2005).
Nesse contexto, várias normativas internacionais, como a Recomendação número 87 do Conselho da Europa sobre as reações
sociais ante a delinquência juvenil, as Regras mínimas das Nações
Unidas para a Administração da Justiça de menores (regras de Beijing), inclusive a Convenção sobre os Direitos das crianças, estabelecem procedimentos judiciais apropriados para o tratamento das
crianças e dos adolescentes, chamando a comunidade para participar e dar aos infantes, propondo medidas e procedimentos de reconciliação entre os adolescentes autores de ato infracional e suas
vítimas, como a desjudicialização ou mediação, e sempre respeitando os direitos humanos e as garantias legais (FUNES, 1995).
A expressão Justiça Restaurativa é atribuída a Albert Eglash,
que, em 1977, escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution:
Creative Restitution. No referido trabalho, denotaram-se três respostas ao crime, que são: a retributiva baseada na punição; a distributiva voltada para a reeducação; e a restaurativa, tendo como fundamento a reparação. (GALLI, 2007). Essa expressão também foi
impulsionada pelo Congresso Internacional de Criminologia de
Budapest de 1993 e que conquistou novos adeptos mediante as
Conferências internacionais de Vitimologia de Adelaida (Austrália)
em 1994, Amsterdam em 1997 e Montreal em 2000 (MARTIN,
2006).
Em que pese serem diversas as construções apresentadas ao
conceito de Justiça Restaurativa, pode-se afirmar inicialmente que
a proposta é inacabada, pois é mais que uma teoria em formação, é
um conjunto de práticas em busca de uma teoria.·
Entre os conceitos mais importantes de Justiça Restaurativa
no mundo está o do advogado norte-americano Howard Zher
(2012), considerado um dos fundadores e principais teóricos sobre
Justiça Restaurativa, tendo como destaque a obra “Changing Lenses” (trocando as lentes). Desenvolveu uma concepção detalhada
dos enfoques fundantes da Justiça Restaurativa, merecendo desta-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
229
que os seguintes pontos: o crime é fundamentalmente uma violação
de pessoas e relações interpessoais; as violações criam obrigações e
responsabilidades; e a Justiça Restaurativa busca curar e corrigir
injustiças.
Para Zehr (2012), a Justiça Restaurativa sustenta-se sobre três
pilares que são: os danos e as consequentes necessidades; as obrigações em que ambos são corresponsáveis que advêm do dano; e o
engajamento daqueles que detêm legítimo interesse no caso e na
sua solução. Nesse viés:
La justicia restaurativa es un tipo de justicia que procura, por
medio de un proceso de encuentro y diálogo en el que participan activa y voluntariamente víctima, ofensor y comunidad, la
reparación del daño a la víctima, la restauración del lazo social
y junto con ello la rehabilitación del ofensor. (LONDOÑO,
[s/d])
Em outros termos, toda e qualquer ação realizada pelos protagonistas envolvidos com o conflito, que tenham por finalidade a
justiça por meio da reparação do dano causado pelo ato criminoso
pode ser compreendido como prática restaurativa. Desse modo,
quanto mais se buscar a solução dos conflitos pelas práticas restaurativas mais se aproxima da elaboração e construção da teoria e do
conceito da Justiça Restaurativa (SICA, 2007). Dito de maneira diversa e complementar:
La justicia restaurativa es diferente de la justicia penal contemporánea en muchas maneras. Primero, ve los actos criminales en
forma más amplia – en vez de defender el crimen como simple
transgresión de las leyes, reconoce que los infractores dañan a
las víctimas, comunidades y aun a ellos mismos. Segundo, involucra más partes en repuesta al crimen – en vez de dar papeles
clave solamente al gobierno y al infractor, incluye también víctimas y comunidades. Finalmente, mide en forma diferente el
éxito – en vez de medir cuanto castigo fue infringido, mide cuánto daño es reparado o prevenido. (CENTRO PARA LA JUSTICIA Y LA RECONCILIACIÓN, [s/p])
Para Lade Walgrave (2006, p. 443), “a Justiça Restaurativa caracteriza-se pela tentativa de fazer justiça por meio da reparação do
230
Rosane T. Carvalho Porto, Rodrigo C. Diehl & Fabiano R. Dupont
dano”, mas vai além do que está previsto na legislação civil, pois
também atenta a atos infracionais que são da seara penal. Nesse
cenário, a Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de
consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras
pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de
soluções aos traumas causados pelo crime (PINTO, 2005). No
mesmo sentido, Zehr (2012, p. 28) afirma que, “dentro dessa cosmovisão, o crime representa uma chaga na comunidade, um rompimento da teia de relacionamentos. Significa que vínculos foram
desfeitos”.
No que concerne à natureza conceitual, em relação ao significado e alcance de comunidade (accountability) e ao alcance de potencialização do papel da vítima, em um primeiro momento, para os
programas de Justiça Restaurativa mais antigos, entende-se por
comunidade de relação (community of concern) da vítima e do autor, como também o lugar onde se deu o crime (SICA, 2007).
Nesse aspecto, o valor e a retomada do papel social da comunidade têm por premissa maior preencher a lacuna deixada pelo
Estado em suas atividades de controle a criminalidade. Além disso,
como esclarece Sica (2007), a comunidade pode ser destinatária das
políticas de reparação e fortalecimento do sentimento de segurança
coletiva, como também pode ser ator social sobre ações reparadoras
concretas das consequências do ato criminoso. Para Chris Marshall,
Jim Boyack e Helen Bowen (2005, p. 270),
A justiça restaurativa é uma abordagem colaborativa e pacificadora para a resolução de conflitos e pode ser empregada em
uma variedade de situações (familiar, profissional, escolar, no
sistema judicial, etc.) Ela pode também usar diferentes formatos para alcançar suas metas, incluindo diálogos entre a vítima e o infrator, “conferências” de grupo de comunidades e
familiares, círculos de sentenças, painéis comunitários, e assim por diante.
Ademais, considera-se a Justiça Restaurativa como o procedimento adotado entre os interlocutores ou partes envolvidas e unidas pelo conflito ocasionado em decorrência da infração, que ao
exporem seus sentimentos, emoções e principalmente suas necessi-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
231
dades básicas humanas se predispõem a legitimarem um acordo e
validarem entre si. Do mesmo modo, De Vitto (2005) afirma que a
aplicação prática desse modelo é o que mais se aproxima do que se
deve esperar da intervenção do Estado em relação ao fenômeno
delitivo: uma tentativa de conciliar as justas expectativas da vítima,
do infrator e da sociedade.
É sabido que a partir da experiência das Comissões de Verdade
e Reconciliação na África do Sul, igualmente vêm sendo realizados
empenhos para aplicar a estrutura da Justiça Restaurativa a situações de violência generalizada. Embora o termo “Justiça Restaurativa” recepcione um conjunto de programas e práticas, no seu bojo,
ela é um conjunto de princípios, uma filosofia, uma série alternativa
de questionamentos paradigmáticas, que, em última análise, proporciona uma estrutura alternativa para pensar as ofensas (ZEHR,
2009).
De imediato, passar-se-á a analisar os círculos de construção
de paz, metodologia adotada pelos facilitadores dos processos circulares, que trabalham na área da infância e da juventude da 3ª
Vara Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre e no Juizado da Infância e da Juventude de Caxias do Sul, experiências
estas que não serão tratadas por ora aqui neste trabalho.
2
PROCESSOS CIRCULARES:
OS CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DA PAZ
Os círculos de construção da paz são processos metodológicos
de diálogo aplicados dentro da Justiça Restaurativa e quem realiza
e emprega esta técnica de articulação de pacificação social denomina-se facilitador. O facilitador é um interlocutor que tem por
premissa propor de forma adequada e equilibrada um espaço de
interlocução e diálogo entre os envolvidos pelo crime.
Por conseguinte, os facilitadores precisam estabelecer uma
comunicação respeitosa, questionamentos como “o que a vítima
está sentindo?”, pensando sobre o acontecido; ou “o que poderia
ser feito para auxiliar na cicatrização das feridas deixadas pelo
trauma vivenciado?” Nesse mesmo sentido, outras peculiaridades
imprescindíveis e que precisam ser observadas são: voz alta para
chamar atenção, sem sarcasmo, depois moderação na entonação;
232
Rosane T. Carvalho Porto, Rodrigo C. Diehl & Fabiano R. Dupont
olhar neutro e respirar antes de falar. Muitos danos poderiam ser
evitados com a respiração adequada. As pessoas precisam estar
felizes, por estar ali e se tratarem sensivelmente. A comunicação
estabelecida é informal e a abordagem cuidadosa. Trata-se, pois, de
um ato de amor, solidariedade e fraternidade. O sentimento de “fazer a diferença” é fundamental, pois amar o próximo como a si
mesmo faz com que se respeite o outro como singular (BAUMAN,
2004). Para Pranis (2010, p. 18):
O processo do Círculo é um processo que se realiza através do
contar histórias. Cada pessoa tem uma história, e cada história
oferece uma lição. No Círculo as pessoas se aproximam umas
das outras através da partilha de histórias significativas para
elas.
Falando de um modo geral, os Círculos de Construção de Paz,
baseado em uma cultura antiga e comunitária, respeita a presença
e dignidade de cada envolvido, valoriza as contribuições do todos
os participantes; reforça a conexão entre todas as coisas; oferece
apoio para a expressão emocional e espiritual, possibilita o direito à
escuta para todos (PRANIS, 2010).
A maneira em que as pessoas ficam dispostas em uma sala de
encontro devidamente organizada pelo facilitador do conflito viabiliza a conexão e a empatia com os envolvidos, de modo que se sintam acolhidos e seguros no espaço, fluindo o diálogo; por isso a
forma de um círculo.
Nos Estados Unidos, os Círculos de Construção de Paz foram
implementados com a Justiça Restaurativa, que inclui: as vítimas,
os ofensores e a comunidade num processo de compreensão dos
danos e criação de estratégias para a reparação dos envolvidos.
(PRANIS, 2010).
Neste sentido, os objetivos do Círculo incluem, segundo Pranis
(2010, p. 22), “desenvolver um sistema de apoio àqueles vitimados
pelo crime, decidir a sentença a ser cumprida pelos ofensores, ajudá-los a cumprir as obrigações determinadas e fortalecer a comunidade”, com a finalidade de prevenir novos crimes.
Baseado nessa metodologia da Justiça Restaurativa, a equipe
interdisciplinar realizou a visita domiciliar às vítimas de uma comunidade do interior do município de Santa Cruz do Sul – RS, com
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
233
a finalidade de prestar atendimento de escuta empática nos seus
lares.
Com isso, verifica-se que o emprego dos círculos de construção de paz da Justiça Restaurativa proporciona um espaço de diálogo, em que vítima, ofensor, familiares e a comunidade podem
expressar seus sentimentos e emoções oriundos de um delito, demonstrando as condições para que haja uma maior percepção do
dano causado pelo crime, ao mesmo passo em que valoriza a comunicação pacífica com a finalidade da proximidade e do consenso
entre os envolvidos.
3
RESTABELECENDO A CONEXÃO E RECONSTRUINDO LAÇOS
COM A COMUNIDADE
A partir do contrato social de Rousseau, o homem sai do estado natural e entrega parte de sua liberdade ao Estado, para a garantia da sua propriedade e da sua segurança1. Segurança essa desejada em todas as relações sociais, porém, tem-se observado nas
sociedades que esse direito cada vez mais está ameaçado e fragilizado; o que leva a enxergar o outro como um inimigo ou ameaça.
Ao encontro disso, verifica-se, dentro das comunidades, um sério
problema com a segurança pública, tendo inúmeras justificativas no
que tange à sua fragilidade.
Como bem corrobora Zehr (2012, p. 28):
Os membros da comunidade têm necessidades advindas do
crime, e também papéis a desempenhar. Defensores da Justiça Restaurativa como o juiz Barry Stuart e Kay Pranis argumentam que, quando o Estado assume o lugar do cidadão, isso termina por enfraquecer nosso sentido comunitário.
1
“O que surge desse contrato é o direito. Doravante a vida já não é um dom
precário da natureza, mas um reconhecimento da sociedade, os bens já não são
posse, mas uma propriedade. A sociedade inteira torna-se a fiadora. O homem
perde uma liberdade, por certo ilimitada, mas afinal ilusória, e ganha uma liberdade regulada, mas segura. […] Tudo se organiza, portanto, em torno da
noção de lei. Esta é a expressão da vontade geral. A vontade é geral quando racional, isto é, quando seu próprio objeto é geral, quando estabelece um princípio válido para toda razão.” (ROUSSEAU, 1996, p. 34)
234
Rosane T. Carvalho Porto, Rodrigo C. Diehl & Fabiano R. Dupont
Os estudos vitimológicos surgiram com o movimento das vítimas, que demonstravam os seus verdadeiros interesses ao recorrerem à polícia quando um crime era cometido. Percebia-se, não tinham interesse no processo penal e no castigo, mas procuravam a
resolução do conflito, podendo ser uma indenização ou proteção
imediata (PALLAMOLLA, 2012).
Por isso, são importantes os trabalhos preventivos e de qualidade no atendimento ou prestação de serviços às vítimas, para não
acontecer a vitimização secundária delas, que corresponde à alienação no processo penal, já que em algumas situações não recebem
informações adequadas quanto aos seus direitos nem a devida
atenção jurídica. Consequentemente, propõem-se alternativas de
tratamento de conflitos extrajudiciais, tais como a mediação, a conciliação e a justiça restaurativa com o fito de valorizar o diálogo e
superar os estereótipos sustentados pelo processo penal, de maneira
a reivindicar maior participação da vítima (PALLAMOLLA, 2012).
Nesse sentido, o conflito pode ser visto como uma oportunidade propulsora de um processo de transformação na própria sociedade. Devido à definição da expressão de “pacificadora do conflito”
dentro da comunidade, cria a base para um amplo entendimento
entre os disputantes. Este mesmo enfoque pode ser conferido ao
conflito, cuja própria origem repousa na diversidade de uma sociedade complexa. Assim, na medida em que se transfere ao Estado
toda a responsabilidade da resolução de seus conflitos, contribui
para o não fortalecimento e impede a criação, pela comunidade, de
suas próprias soluções, o que desencadeia um fator da alienação
social (FALSARELLI-FOLEY, 2006).
Neste contexto, Falsarelli-Foley (2006, p. 105) assevera que a
soluções formuladas pela comunidade nos conflitos
[…] permitem maximar as oportunidade para a participação
de todo, para a tolerância à diferença e para a autoajuda, em
um contexto de mutua assistência. Participação traz mais
oportunidade para o exercício dos direitos políticos e das responsabilidades. Pra se ter acesso aos recursos comunitários, o
nível de atividades e de compromissos dos grupos sociais aumenta e a autoestima cresce, após a conquista de mais direitos
[…]. Há uma reciprocidade entre os vários componentes dessa
cadeia “ecológica”, na medida e que implica retroalimentação.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
235
Sendo assim, de qualquer sorte, e independentemente de o
Estado não estar conseguindo prestar com qualidade o serviço de
segurança pública, por meio das suas polícias, dentro da Brigada
Militar – 23º Batalhão de Polícia Militar brota uma experiência de
prestação de serviço em segurança pública mais humanizada, voltada à escuta da vítima. Isso se dá da seguinte maneira: escolhe-se
um caso por amostragem, do tipo roubo a domicílio, mantém contato com a família que está na condição de vítima para a visita; se
positivo por parte do grupo familiar agenda-se um dia para trabalhar com a família, utilizando o círculo de construção da paz.
Uma família em janeiro de 2013 foi vítima de roubo a domicilio. Todos estavam em casa e no bar da família, quando foram surpreendidos por alguns delinquentes armados. Sofreram ameaças e,
depois do fato criminoso, não conseguiram, por algum tempo, ter a
mesma rotina nas suas vidas. Por conseguinte, aceitaram receber a
equipe interdisciplinar, oportunidade em que se trabalhou com o
círculo de construção de paz. Nos principais relatos dos integrantes
familiares, destacam-se: o sentimento de alívio a respeito do dano
emocional ocasionado pelo crime, possibilidade e direito de escuta
e empoderamento que dá novamente sentido a suas vidas após o
trauma sofrido.
Alguns aspectos podem ser considerados positivos com a atuação da Brigada Militar, ao serem aplicados e vivenciados com as
vítimas de roubo os círculos de construção de paz, independentemente do projeto de extensão estar em andamento2.
Assim Brigada Militar coloca-se na vanguarda da implementação das mudanças do Código de Processo Penal de agosto/2008,
que reconheceu direitos à vítima de ser informada do andamento
do seu caso. Anote-se que essas mudanças refletem tendências de
âmbito internacional, possivelmente irreversíveis, e, portanto, provavelmente deverão ser consagradas pela história.
Dá-se também a humanização da atuação da tropa, pelo maior
controle e compromisso, não apenas com as implicações operacionais, mas também com o aspecto emocional/psicológico da população vitimizada. Esse exercício de “empatia” com o sofrimento das
2
E-mail encaminhado ao Comandante Coronel Dalvo Werner Friedrich em 27 de
abril de 2009.
236
Rosane T. Carvalho Porto, Rodrigo C. Diehl & Fabiano R. Dupont
vítimas deve contribuir também, indiretamente, para a transformação do policial.
A visita e a entrevista com as vítimas oferecem ao Comando
de policiamento um feedback imediato sobre a qualidade do atendimento da patrulha, realizado em função da ocorrência delituosa.
Na medida em que os contatos com as vítimas contribuem para
amenizar a sensação de desproteção da população, cada uma das
vítimas, individualmente, deixa de ser uma voz temerosa, reafirmando, com o seu relato vivencial, a certeza de que todos estamos
realmente desprotegidos e reféns da violência. A associação de um
atendimento policial positivo após a ocorrência traumática pode
colocar essa vivência em ênfase sobre o próprio delito, e com isso
contribuir para estancar a espiral negativa de desamparo e insegurança que se expande, de forma contagiante, com base na experiência traumática da vitimização – fator que, segundo os sociólogos,
muitas vezes gera sensação de insegurança maior do que a realidade demonstrada pelos indicadores estatísticos.
Igualmente é importante a qualificação da apropriação da situação ocorrida por parte dos policiais militares, a qual, muitas vezes, é a única fonte de prova consistente que o juiz terá para julgar
o processo. Com o retorno ao encontro das vítimas, estas poderão se
apropriar (e depois relatar em juízo) detalhes das ocorrências que
nem sempre as próprias vítimas ou as testemunhas apresentam – e
cuja falta acarreta muitas absolvições indevidas, pela falta de provas. Estreita-se aí também o vínculo de confiança entre o Judiciário
e o órgão policial militar, suprindo, por vias informais, uma lacuna
que, lamentavelmente, costuma ser deixada pela precariedade das
investigações da polícia judiciária.
Portanto, constatou-se que a punição que era dada ao indivíduo, em um processo comum, é um meio utilizado para impor a
execução de qualquer sistema legal, com o principal intuito de impor uma norma, mas que se apresenta neutra em relação ao sistema
de valores que deve ser executado. Deste modo, a prática restaurativa não se apresenta como um meio, mas, sim, como um produto,
baseada na estrutura causal e nas consequências do ato infrator
(WALGRAVE, 2006).
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
237
A sua principal característica é a promoção da justiça por meio
das práticas restaurativas. A abordagem restaurativa é inerentemente ampla em seu escopo, o que demonstra claramente a
sua orientação em prol da qualidade da vida social, como
principal elemento de orientação normativa. (WALGRAVE,
2006, p. 436)
E, por fim, ao solidarizar-se e procurar amenizar o sofrimento
da vítima, ainda que seja simplesmente dando retorno dos encaminhamentos da ocorrência, haverá não apenas um valor agregado à
qualidade do serviço policial, mas, principalmente, um imenso ganho de imagem institucional para toda a corporação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este capítulo é fruto de pesquisa de extensão que está em andamento, por esse motivo os resultados ora mencionados são parciais.
De qualquer sorte, interessa aqui reconhecer a metodologia da Justiça Restaurativa. Os círculos de construção da paz podem ser utilizados nas mais diversificadas circunstâncias, a destacar: no atendimento às vítimas de ocorrências de crimes de roubo a domicílio
atendidos pela Brigada Militar, do município de Santa Cruz do Sul.
Além disso, mesmo que ainda seja embrionária esta proposta
nas polícias gaúchas (desde o ano de 2008), e a considerar que o
espaço público dessa instituição é hierarquizado, o projeto representa um avanço ao repensar o conflito no enfoque filosófico de
justiça enquanto necessidade humana, bem como no viés humanitário necessário aos envolvidos pelo crime, sejam eles: ofensores,
vítimas e os próprios policiais militares responsáveis pela segurança pública da comunidade a que estão inseridos.
Nesse sentido, a Justiça Restaurativa requer uma nova cultura
social local, contribuindo, para tanto, ao possibilitar a participação
ativa da comunidade desde a sua efetivação até o controle pós-círculo restaurativo, fato que evidencia o restabelecimento da comunicação entre os atores sociais, refletindo no resgate da corresponsabilidade, solidariedade e cooperatividade, essenciais a uma
comunidade autônoma capaz de resolver os seus próprios conflitos.
Válida, portanto, é a equação: desenvolvimento econômico, mais o
desenvolvimento humano, vezes a mudança cultural, igual à autonomia individual.
238
Rosane T. Carvalho Porto, Rodrigo C. Diehl & Fabiano R. Dupont
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Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
239
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ZEHR, Howard; MIKA, Harry. Conceitos fundamentais da justiça restaurativa. Michigan: Michigan University, [s.d.] Mimeo.
Sergio Urquhart de
Cademartori
Doutor em Direito pela UFSC e Professor da
UCS-RS e da Unilasalle-RS.
Contato: [email protected]
Daniela Mesquita Leutchuk
de Cademartori
Doutora em Direito pela UFSC e Professora
da Unilasalle-RS. Contato:
[email protected]
Capítulo 14
FUNÇÕES E
INSTITUIÇÕES DE
GARANTIAS NO NOVO
CONSTITUCIONALISMO
LATINO-AMERICANO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O constitucionalismo pode ser concebido como o conjunto de
doutrinas que, a partir do século XVII, tem-se dedicado a recuperar
no horizonte da constituição dos modernos o aspecto do limite e da
garantia (FIORAVANTI, 2001, p. 85).
Assim, discorrer sobre constitucionalismo implica falar sobre
os mecanismos que ao longo dos séculos a engenharia política desenvolveu em função da limitação do poder. Estes mecanismos, ao
se corporificarem em normas jurídicas, abrangem também o universo normativo, especificamente o direito constitucional. Isso leva
inexoravelmente ao necessário vínculo entre Constituição e poder
limitado, o que se obtém pela positivação em normas constitucionais de direitos e garantias para as pessoas e a divisão de poderes1.
1
“Un Estado puede llamarse constitucional, o provisto de Constitución, si, y solo
si, satisface dos condiciones (disyuntivamente necesarias y conjuntivamente suficientes): 1) por un lado, que estén garantizados los derechos de los ciudadanos
en sus relaciones con el Estado, y 2) por otro, que los poderes de Estado (el Poder
Legislativo, el Poder Ejecutivo o de gobierno y el poder jurisdiccional) estén divi-
242
Sergio Urquhart de Cademartori & Daniela M. Leutchuk de Cademartori
Em resumo, os valores e as técnicas do constitucionalismo podem ser arrolados nos seguintes tópicos (BARBERA, 1997, p. 4-5):
a) a esfera política é autônoma da religiosa e o direito e o estado
encontram seu fundamento na vontade dos próprios associados; b)
o estado e a igreja são separados; c) o ordenamento repousa sobre
uma constituição escrita (e, além disso, “rígida”), fruto de uma decisão soberana do povo; d) os poderes soberanos estão legitimados
por uma decisão da nação; e) o título que legitima a aquisição de
direitos e deveres é a “cidadania”, não o pertencimento a uma corporação ou classe; f) os “direitos do homem” possuem primazia sobre quaisquer outros valores, subordinando os poderes públicos a
eles; g) a principal técnica de tomada de decisões políticas é o
“princípio da maioria”; h) o próprio soberano está submetido à lei;
i) está garantida a separação de poderes; j) o poder legislativo se
corporifica num Parlamento eleito; k) está prevista a tutela dos direitos dos cidadãos, mesmo no confronto com o poder público, por
obra de juízes independentes; l) está garantido o controle de constitucionalidade das leis.
Então, para além da sua dimensão política, o constitucionalismo apresenta-se mais fortemente em seu aspecto jurídico, dado
que são jurídicos os limites ao poder político2.
Isto posto, cabe indagar-se sobre o objeto de limitação visado
pelo constitucionalismo: a soberania ou o governo, representados
ou representantes? Não parece haver dúvida de que esse complexo
mecanismo sempre pretendeu a limitação do poder soberano, que
se num primeiro momento era encarnado pelo Parlamento britânico, hoje em dia, nos Estados Democráticos de Direito, repousa no
povo. Então, é a soberania popular o objeto de contenção, até porque, sem limites, a lógica majoritária, ao presidir a soberania popular, pode conduzir à extinção do sistema democrático, como se viu
2
didos y separados (o sea que se ejerzan por órganos diversos).” (GUASTINI,
2001, p. 31)
Como diz Ferrajoli (2012, p. 13): “[…] o constitucionalismo equivale, como
sistema jurídico, a um conjunto de limites e de vínculos substanciais, além de
formais, rigidamente impostos a todas as fontes normativas pelas normas supraordenadas; e como teoria do direito, a uma concepção de validade das leis
que não está mais ancorada apenas na conformidade das suas formas de produção a normas procedimentais sobre a sua elaboração, mas também na coerência dos seus conteúdos com os princípios de justiça constitucionalmente estabelecidos.”
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
243
na Itália e na Alemanha na primeira metade do século XX3. É claro
que esse mecanismo é criado pela própria soberania popular: “O
vocábulo constitucionalismo alude àqueles limites sobre as decisões
majoritárias: de modo mais específico, aos limites que em certo sentido são autoimpostos”4.
De qualquer sorte, o constitucionalismo, atravessando os últimos séculos e assumindo diversas feições, encontra solo fértil na
América Latina, por ocasião da reconstrução democrática do subcontinente no último quartel do século XX, após a dura quadra enfrentada pelas suas sociedades sob regimes de força. A configuração assumida pelo atual constitucionalismo latino-americano passou a ser designada como “novo constitucionalismo”. Para além da
discussão de se há mais um componente de ruptura ou de continuidade desta nova feição constitucional em relação ao constitucionalismo tradicional5, encontram-se nas novas Constituições latino-americanas algumas contribuições originais para enriquecer a exitosa trajetória do constitucionalismo, notadamente na arquitetura
que as mesmas adotam no que diz com as garantias dos direitos
fundamentais, como se verá a seguir.
1
O PANO DE FUNDO TEÓRICO
Considerando o enfraquecimento do conceito de Constituição
e a própria crise do direito do pós II Guerra Mundial, a teoria constitucional e a própria teoria do direito passaram a acentuar a distinção entre os conceitos formal e substancial de Estado Constitucio3
4
5
Viciano e Martínez, amparados na lição de García Roca, entendem que o que é
limitado pelo constitucionalismo é o poder dos representantes da soberania popular, e não o poder soberano do povo. Como a passagem de García citada para
alicerçar esse entendimento refere-se à limitação do Príncipe, que nos Estados
democráticos é o próprio povo, não se concorda com o entendimento esposado
pelos ilustres professores valencianos. (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ
DALMAU, In: CORTE CONSTITUCIONAL DE ECUADOR PARA EL
PERÍODO DE TRANSICIÓN, 2010a, p. 13)
“El vocablo constitucionalismo alude a aquellos límites sobre las decisiones
mayoritarias: de modo más específico, a los límites que en cierto sentido son autoimpuestos.” (Tradução livre dos autores. ELSTER, 1999, p. 34)
Para uma rica discussão sobre o tema: VICIANO PASTOR, R.; MARTÍNEZ
DALMAU, R. Presentación. Aspectos generales del nuevo constitucionalismo
latinoamericano. In: CORTE CONSTITUCIONAL DE ECUADOR PARA EL
PERÍODO DE TRANSICIÓN, 2010a, p. 14-20.
244
Sergio Urquhart de Cademartori & Daniela M. Leutchuk de Cademartori
nal. Além da Constituição formal, faz-se necessário que o ordenamento jurídico esteja impregnado pelas normas constitucionais. Um
Estado só será um Estado Constitucional se contar com uma Constituição em sentido substancial/material, fruto da legitimidade democrática, bem como com instrumentos que garantam a limitação do
poder e a efetividade dos direitos fundamentais. Sendo assim, o
conceito de Estado Constitucional é um conceito em construção,
visto envolver a luta pela efetivação de dois elementos fundamentais: a legitimidade democrática e a normatividade.
No início da década de 90, as novas Constituições da América
Latina apresentaram-se como uma resposta inovadora à crise constitucional. São propostas de superação do conceito de Constituição
como mero limite ao poder constituído na proporção em que avançam ao apresentar uma fórmula democrática em que o poder constituinte expressa sua vontade também sobre a configuração e limitação da própria sociedade. Por outro lado, as novidades no direito
constitucional, justamente por envolverem uma íntima relação entre
democracia, governo e direito, fundamentos do constitucionalismo
em geral, acabam por não consolidar-se em sua totalidade.
Além do seu enquadramento teórico dentro das reivindicações
éticas desencadeadas pelos efeitos desastrosos dos totalitarismos do
século XX, o fato de as Constituições andinas terem sido criadas ou
reformadas após a vigência de ditaduras militares e da aplicação de
políticas neoliberais na região acrescenta novos elementos à discussão, tornando possível a afirmação de uma nova fase do constitucionalismo. Devem ainda ser levados em conta os espaços geográfico e humano nos quais incidem estas Constituições. É preciso
considerar a conformação histórica que o direito da cultura ocidental assumiu, por ocasião da colonização da América Latina pelo europeu, quando este direito entrou em contato com uma realidade
profundamente diversa em relação àquela em que foi formulado, no
caso, num contexto de um “processo de violenta submissão ou eliminação dos povos nativos”6.
6
COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo, 2006, p. XV. Sobre os estudos orientados a
“descolonização” do pensamento e ao rompimento das amarras dos saberes subordinados que analisam a colonialidade do poder, verificar os trabalhos de
Aníbal Quijano, bem como WOLKMER, A. C., 1994 e; WOLKMER, M. de F. S.
Una crítica cívica y plural del Estado y del Derecho en América Latina. Traduc-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
245
Por ora, a questão refere-se à classificação dada a esta nova
fase – novo constitucionalismo, constitucionalismo andino, ou, ainda, constitucionalismo de terceira geração –, e a inclusão ou não de
determinados processos constitucionais nesta categoria. Uma das
divergências refere-se à inclusão do Brasil nesta seara. Basta lembrar os escritos de Raquel Z. Yrigoyen Fajardo (2010, online), autora que propõe uma evolução em ciclos do que denomina constitucionalismo pluralista. De acordo com a sua classificação, o processo
constitucional brasileiro é incluído em um primeiro ciclo (1982–
1988), o do constitucionalismo multicultural. Após este, constitui-se
um novo ciclo que se inicia em 1989 e vai até 2005, o do constitucionalismo pluricultural; e, finalmente, chega-se ao terceiro e último
ciclo, o do constitucionalismo plurinacional (2006–2009), do qual
fazem parte os processos boliviano e equatoriano. Note-se ainda
que existem autores7 que consideram que a nomenclatura de novo
constitucionalismo deve ser mantida, remanescendo a separação
entre neoconstitucionalismo e novo constitucionalismo latinoamericano. Incluem assim a Constituição brasileira no primeiro e as
Constituições da Colômbia, Venezuela, Equador e Bolívia no segundo. O fato é que ambas as posições retiram a Constituição brasileira do rol de seus estudos. De seu lado, autores como Luigi Ferrajoli postulam uma classificação das constituições em três gerações:
a primeira, aquela das liberdades, a segunda sendo a do constitucionalismo dos direitos sociais e, por último, um constitucionalismo
de terceira geração, marcado pelo aumento das esferas de indecidibilidade e das garantias que, partindo da Constituição brasileira de
1988, chega às novéis Cartas latino-americanas8.
Para o Novo Constitucionalismo, o conteúdo da Constituição
deve ser coerente com a sua fundamentação democrática, isto é,
deve gerar mecanismos para a direta participação política da cidadania, gerando regras que limitem os poderes políticos, sociais,
7
8
ción de A. Rosillo Martínez. In: CADEMARTORI, D. M. L. de et al., 2013, p.
427- 442.
Tais como Miguel Carbonell, José Antonio Martín Pallín, Carlos Gaviria Díaz e
Carlos Alberto López Cadena.
Se a 1a Geração do Constitucionalismo foi marcada pelas Constituições flexíveis, nos séculos XVIII e XIX, a 2a foi marcada pelas Constituições rígidas do 2o
pós-guerra. Já as Constituições de 3a Geração são longas e preveem instituições de garantia, sendo bem mais complexas que as europeias ou do 2o. Constitucionalismo (FERRAJOLI, 2012, p. 232).
246
Sergio Urquhart de Cademartori & Daniela M. Leutchuk de Cademartori
econômicos e culturais, de modo a enfatizar o fundamento democrático da vida social e os direitos e liberdades da cidadania. Este
novo constitucionalismo, além de pretender garantir um real controle sobre o poder por parte dos cidadãos, busca solucionar o problema da desigualdade social. Como estas sociedades não chegaram a vivenciar o Estado Social, existe a tendência, entre alguns
autores, a pensar que foram as lutas sociais a razão para a aparição
do fenômeno representado pelo novo constitucionalismo latino-americano9.
O centro da divergência entre estas doutrinas sobre a inclusão
ou não do Brasil neste cenário diz respeito à alegação de existência
de um déficit de legitimidade democrática presente no processo
constituinte brasileiro, entre os anos de 1987-1988. Por um lado,
existem aqueles que se apegam a este fato, classificando a Carta
brasileira como uma mera herdeira do neoconstitucionalismo pósbélico, e portanto descartando-a em suas considerações quando o
tema é o constitucionalismo latino-americano. Ferrajoli, pelo contrário, considera que o fato de as Constituições latino-americanas
terem sido criadas ou reformadas após a queda dos regimes ditatoriais é determinante para uma nova fase do constitucionalismo – o
de terceira geração. As novidades apresentadas por essa Constituição foram de tal monta que acabaram sobrepondo-se ao modelo
europeu de constitucionalização rígida.
Para o autor italiano, a Constituição brasileira inaugurou tal
constitucionalismo de terceira geração, o que fez com que o próprio
paradigma constitucional fosse responsável por formular um modelo normativo avançado. Trata-se do “mais relevante banco de provas da teoria constitucional”, apresentando uma dupla face: “uma
9
“Los recientes procesos constituyentes latino-americanos, por lo tanto, pasan a
ser procesos necesarios en el devenir de la historia como resultado directo de los
conflictos sociales que aparecieron durante la aplicación de políticas neoliberales, particularmente durante la década de los ochenta, y de los movimientos populares que intentaron contrarrestarlos.” (VICIANO PASTOR; MARTíNEZ
DALMAU, 2010a, p. 9-10). Sobre o tema conferir: SEONE, J.; TADDEI, E.;
ALGRANATI, C. Minería transnacional y resistencias sociales en África y América Latina: experiencias de resistencia y de movilización social frente a las estrategias corporativas de las compañías Vale (Brasil) y Anglogold Ashanti (Sudáfrica) en Argentina, Colombia, Perú, Angola y Mozambique. GEAL, 2011, p.
1-36 [online]. Disponível em: <http://www.dialogosdospovos.org/pdf/liv_ibase_
mineracao_port_REV2.pdf.>. Acesso em: 6 abr. 2013. p. 27 e ss.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
247
progressiva, em face das extraordinárias inovações trazidas através
das instituições e das funções de garantia dos direitos fundamentais; outra potencialmente regressiva, em face das tensões que dela
podem derivar na manutenção do estado de direito” (FERRAJOLI,
2012, p. 233-234).
Visto esse panorama, este capítulo pretende – sem intenção
de esgotar o assunto – examinar alguns aspectos das novidades
trazidas pelas novas Cartas, precisamente algumas garantias para
os direitos fundamentais ali estampados. Para isso, se deterá, primeiramente, de forma esquemática, em algumas características
apresentadas por elas. São tomadas como objeto de análise as
Constituições da Colômbia (1991), da Venezuela (1999), do Equador (após a reforma de 2008) e da Bolívia (2009).
2
CARACTERÍSTICAS DAS NOVAS CONSTITUIÇÕES LATINOAMERICANAS
Viciano e Martínez (2010a, p. 22 ss.) arrolam as características das novas Cartas da América Latina de forma bastante exaustiva, pelo que aqui se segue a orientação imprimida pelos mesmos na
análise desses fenômenos.
Quanto às condições factuais, entendem os autores valencianos que as novas Constituições desfrutam de vasta legitimidade,
pois respondem a uma proposta social e política, sendo precedidas
por mobilizações que evidenciaram a sua necessidade e, conforme
o caso, foram antecedidas e sucedidas por referendos ativador e
ratificador.
Na análise dos autores, a legitimidade é percebida como adequação normativa da resposta a uma situação de fato, pelo que deixa de abranger seu aspecto propriamente axiológico: a correspondência das normas constitucionais aos valores veiculados pelas
Cartas de direitos fundamentais10.
Inobstante isso, as Cartas em análise apresentam alto grau de
legitimidade, dada a sua estreita vinculação aos catálogos de direitos incorporados por elas, como adiante se verá.
10
Sobre o tema cfr. CADEMARTORI, S., 2007.
248
2.1
Sergio Urquhart de Cademartori & Daniela M. Leutchuk de Cademartori
Características formais
A seguir, Viciano e Martínez enumeram as características
formais das leis fundamentais em apreço, enumeração essa que
será analisada logo abaixo. Mas, previamente, deve-se verificar se
essas Cartas preenchem as chamadas condições de constitucionalização, sem as quais a teoria constitucional contemporânea entende
não acontecer o Estado Constitucional de Direito. Veja-se sucintamente, pelas mãos de Guastini (2003, p. 50), quais são essas condições:
1) existência de uma Constituição rígida, ou seja, com modificação dificultada e contendo um núcleo imodificável (cláusulas pétreas);
2) existência de garantia jurisdicional da Constituição, isto é,
de controles judiciais de constitucionalidade, dos quais se
conhecem os modelos americano e europeu ou kelseniano,
além do modelo misto, adotado pelo Brasil;
3) força vinculante da Constituição, a qual deixa de ser mera
Carta de ordenação de poder e passa a impor proibições
(quanto às liberdades) e obrigações (quanto aos direitos sociais) aos poderes;
4) a suprainterpretação da Constituição ou seja a sua interpretação extensiva para do seu texto extrair princípios implícitos e decorrentes do regime adotado pela mesma (tome-se
como exemplo, na Constituição brasileira, a norma do artigo 5º, § 2º);
5) aplicação direta das normas constitucionais, de forma que
naquilo que ela prevê em termos de garantia de direitos a
interposição de tarefa legislativa torna-se redundante (na
Constituição da República Federativa do Brasil, a norma do
artigo 5º, § 1º);
6) interpretação conforme às leis, por força da qual se houver
uma possibilidade interpretativa que harmonize o texto legal com a Constituição, dentre outros resultados hermenêuticos, aquela deve ser adotada, com vedação destes;
7) influência da Constituição sobre as relações políticas, relativizando-se assim o princípio da chamada divisão ou sepa-
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
249
ração de poderes, já que em sede de direitos fundamentais
todos os poderes estão vinculados ao cumprimento das diretrizes constitucionais.
O exame das novas Constituições latino-americanas permite
concluir que elas preenchem as condições de constitucionalização
acima explanadas, haja vista a sua estrutura e os mecanismos por
elas previstos e a seguir relacionados.
Assim, são características formais das novas Cartas:
a) Conteúdo inovador (originalidade)
No que diz com o conteúdo das Cartas, Martínez e Viciano salientam o seu caráter inovador, eis que aquelas veiculam institutos
de todo originais: em primeiro lugar, enfatizam a criação do referendo revogatório dos mandatos políticos11, instrumento de participação popular e democracia direta de inegável valor para a manutenção da soberania popular.
Ainda nessa seara do controle e fiscalização do Poder, festejam, como um dos mecanismos importantes, a previsão, pela Constituição do Equador, do Conselho de Participação cidadã e controle
social12.
Apontam ainda para a nova divisão de poderes prevista na
Constituição da República Bolivariana da Venezuela: para enfatizar
o poder popular, é previsto o Poder Cidadão, além do Poder Eleitoral, este último, entendido aqui como despiciendo, já que a solução
brasileira, da criação da Justiça Eleitoral como um braço do Judiciário, parece funcionar a contento13.
Por último, o princípio da plurinacionalidade, que estrutura a
nova ordem jurídico-política tanto da Bolívia quanto do Equador,
eis que presente nas respectivas Cartas.
11
12
13
Constituição da Bolívia, art. 240, I; Constituição da Colômbia, art. 103; Constituição do Equador, art. 145; Constituição da Venezuela: art. 70.
Arts. 207 e 208.
Art. 136.
250
Sergio Urquhart de Cademartori & Daniela M. Leutchuk de Cademartori
b) Extensão
As novas Constituições latino-americanas são extensas e acentuadamente analíticas, o que leva Viciano e Martínez a salientar o
estreito vínculo dos poderes constituídos com a soberania popular
representada pelo Poder Constituinte. Deve-se alertar, no entanto,
para o perigo da tirania do passado, eis que um formato analítico de
Constituição pode amarrar as gerações futuras nos mais comezinhos
detalhes aos valores da geração que elaborou a Carta.
c) Tratamento da complexidade com linguagem acessível
O próprio fato da analiticidade das Constituições estrutura um
ordenamento bastante complexo, fruto outrossim da complexidade
das relações sociais nas sociedades contemporâneas. Citam os professores valencianos um exemplo extraído da Carta da Venezuela,
que determina a coordenação de políticas fiscais e monetárias através de acordo de políticas macroeconômicas, bem como os processos de eleição para membros do CNJ e TC na Bolívia.
De outro lado, denotam-se as preocupações dos constituintes
em estabelecer uma linguagem acessível aos cidadãos, numa relação de comunicação/educação política importante: veja-se o caso do
artigo 8º da Constituição da Bolívia14.
d) Alteração constitucional através da ativação do poder
Constituinte popular
A última característica formal apontada pelos professores de
Valencia (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p. 3234) leva à conclusão de que eles entendem que as novas Constituições preveem sua alteração exclusivamente por meio do poder
Constituinte, o que não é verdade. Com efeito, dizem os autores
que “as constituições venezuelana de 1999 e boliviana de 2009
marginalizaram completamente o poder constituído”15. Pela leitura
14
15
Art. 8º, I.
“[…] las constituciones venezolana de 1999 y boliviana de 2009 han marginado
completamente al poder constituido.” (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ
DALMAU, 2010, nota 26, à p. 33)
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
251
que se faz das referidas Cartas, não corresponde à realidade essa
assertiva16.
2.2
Características materiais
Viciano e Martínez (2010) iniciam a análise dos elementos
materiais inovadores das recentes constituições latino-americanas
por um elemento que não é material, mas sim formal: as novas formas de participação vinculante, como são aquelas – das quais algumas foram mencionadas acima – que dizem respeito à participação direta do povo e exercício da democracia direta pela cidadania.
Com efeito, esses mecanismos de manifestação do poder político
dizem respeito a quem decide e como decide politicamente (elementos formais) e não sobre o que se pode decidir ou sobre o que
não se pode deixar de decidir (no primeiro caso, liberdades e no
segundo, direitos sociais). É que, como diz Ferrajoli (1995, p. 864866), a democracia apresenta duas facetas: a formal, constituída
pelas condições formais de validade das decisões (que determina
competências e procedimentos, ou seja, os referidos quem decide e
como decide) e a substancial (que condiciona as mesmas decisões a
conteúdos jurídicos – os direitos fundamentais – que devem ser veiculados por aquelas).
De outro lado, deve-se ter sempre presente um risco para a
democracia: o apelo ao povo que sustenta teoricamente o novo
constitucionalismo apresenta aspectos problemáticos. Se por um
lado é feito um forte apelo democrático, corre-se sempre o risco de
que, pela adoção desse mecanismo, se acabe por aniquilar a democracia. Repisando: se à vontade popular (soberania popular) é deferida a possibilidade de alteração da Constituição sem limites, podese acabar repetindo as experiências fascista e/ou nazista, ou seja, a
entrega formalmente democrática (ou seja, majoritária) do poder a
quem vai aniquilar a democracia. Nesse sentido, o aspecto de direito do Estado não deve ser descurado em favor da democracia procedimental. Com efeito, a própria noção de soberania popular pode
ser questionada, já que na realidade não se pode obter de uma so16
Constituição da Bolívia, art. 411; Constituição do Equador: arts. 441 e 442;
Constituição da Venezuela: arts. 342, 343, 344 e 345; Constituição da Colômbia: arts. 374 e 377.
252
Sergio Urquhart de Cademartori & Daniela M. Leutchuk de Cademartori
ciedade complexa e cindida em classes, uma vontade única. A metáfora de Ulisses e as sereias deve estar sempre presente.
De qualquer sorte, esse elemento formal de democratização
do poder se encontra presente nas Cartas ora em análise, em sedes
tais como no controle concentrado de constitucionalidade, tendo
como exemplo a eleição direta de magistrados para o Tribunal
Constitucional na Bolívia17, não sendo em absoluto desprezível o
seu exercício para promoção da dignidade humana.
O principal elemento material de inovação aparece nas Cartas
de direitos incorporadas a essas Constituições, catálogos que atentam para as especificidades dos grupos sociais (mulheres, crianças,
velhos etc.) e suas necessidades diferenciadas. Assim, encontram-se
direitos e garantias em profusão, dirigidos a esses grupos, constituindo-se em leis do mais fraco (FERRAJOLI, 1999, p. 37-73). Mais
adiante serão abordados estes novos direitos de forma mais aprofundada
Outro aspecto material, ao passo que formal, importante, é a
recepção de convênios internacionais de direitos humanos por essas Cartas: por exemplo, por força da Constituição do Equador, se o
tratado incorpora norma mais favorável aos direitos humanos do
que a Constituição, aquele prevalece. Outrossim, na Venezuela, os
tratados de direitos têm estatura constitucional, prevalecendo também a norma mais benéfica.
De outra parte, aplicam-se na interpretação das normas os critérios mais favoráveis aos direitos fundamentais, com o fito de conferir máxima efetividade para os direitos sociais.
Por último, lembram Viciano e Martínez (2010) que essas Cartas são verdadeiras Constituições econômicas, com detalhamento do
planejamento dessa área e forte presença do Estado na economia.
3
FUNÇÕES E INSTITUIÇÕES DE GOVERNO E DE GARANTIA NAS
NOVAS CONSTITUIÇÕES SUL-AMERICANAS: OS PONTOS EM
COMUM COM A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
Isso posto, passa-se ao exame de algumas características comuns entre a Constituição brasileira de 1988 e as referidas Cartas
17
Constituição da Bolívia, art. 198.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
253
para examinar em que medida podem as mesmas ser aglutinadas
num mesmo modelo, como quer Ferrajoli, que as agrupa no que
convencionou chamar de Constituições de terceira geração (Cf.
FERRRAJOLI, 2009, p. 1).
Diz Ferrajoli que essas Constituições marcam o início de uma
terceira fase do constitucionalismo, depois da primeira (setecentista
e oitocentista) das Constituições flexíveis; e da segunda, aquela das
Constituições rígidas do segundo pós-guerra (italiana e alemã). Um
primeiro traço característico delas é a extensão: a Constituição do
Brasil possui 250 artigos e 94 normas transitórias, e ainda mais extensas são a recentíssima Constituição boliviana de janeiro de 2009
(411 artigos e 9 disposições transitórias) e a Constituição do Equador de 2008 (composta por 444 artigos e 30 normas transitórias). O
modelo, parece-lhe, é ao menos em parte – pela sua extensão, pelos
novos direitos e pela extraordinária rigidez – a Constituição portuguesa de 2 de abril de 1976 (extensa, 299 artigos).
Os elementos de novidade que possuem em comum essas
Constituições de terceira geração são conformados pela previsão de
um mais complexo e articulado sistema de garantias18 e de funções
e de instituições de garantia. Estes últimos institutos (funções e
instituições de garantia) exigem uma explicação, já que são fenômenos que só aparecem recentemente nos ordenamentos jurídicos
dos Estados de Direito. Com efeito, diz Ferrajoli (2007, p. 869 ss.)
que hoje se impõe uma reconsideração da esfera pública. Bem mais
do que a clássica separação montesquiana entre poder legislativo,
poder executivo e Poder Judiciário, concebida por um arranjo institucional muito mais elementar do que aqueles hodiernos, é hoje
essencial outra distinção e separação, aquela entre funções e instituições de governo e funções e instituições de garantia, fundada
sobre a diversidade das suas fontes de legitimação: a representatividade política das primeiras, sejam elas legislativas ou executivas,
e a sujeição à lei, e precisamente à universalidade dos direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, das segundas. De um
lado, com efeito, aconteceu que o poder legislativo e o poder executivo estão hoje unidos, em democracia, pela mesma fonte de legiti18
As garantias dividem-se em “primárias”, correspondentes às proibições de
lesão e obrigações de adimplemento dos direitos de liberdade e sociais, respectivamente; e “secundárias”, ou de justiciabilidade das violações dos direitos
fundamentais (FERRAJOLI, 2007, I, p. 27).
254
Sergio Urquhart de Cademartori & Daniela M. Leutchuk de Cademartori
mação, até se configurarem como articulações das funções políticas
ou de governo e iniciam entre eles uma relação muito mais de compartilhamento que de separação. De outro lado, as funções de garantia estão hoje ampliadas e vão além das clássicas funções jurisdicionais de garantia secundária, até incluir todas as funções geradas pelo crescimento do Estado social: a escola, a saúde, a previdência e outras. Todas essas funções administrativas de garantia
primária, não sendo classificáveis dentro da velha tripartição setecentista, foram desenvolvidas na dependência do executivo sob a
etiqueta abrangente da Administração Pública. Mas é claro que elas
– pense-se na educação e na saúde pública – não são legitimadas,
como as funções de governo, pelo critério da maioria, mas pela
aplicação imparcial da lei e do seu papel de tutela, mesmo que contra a maioria, dos direitos fundamentais de todos. Por isso deve ser
a elas assegurada a independência e a separação do poder executivo. Pense-se, sem ir mais longe, no Ministério Público, verdadeira
instituição de garantia de direitos fundamentais, a par de suas outras funções.
Examinem-se então algumas das funções e instituições de garantia que as Cartas do chamado novo constitucionalismo possuem
em comum com a Constituição brasileira de 1988 com a finalidade
de verificar se podem elas ser aglutinadas sob o rótulo, pretendido
por Ferrajoli, de Constituições de terceira geração. Tais funções e
instituições são as seguintes:
a) Uma mais forte rigidez
Como se viu acima, as Constituições recentes da América Latina exigem solenes procedimentos para sua alteração, sendo digna
de menção a previsão de uma nova Assembleia Constituinte, em
algumas delas.
b) Um mais amplo catálogo de direitos
No âmbito dos novos direitos fundamentais – além das clássicas liberdades e direitos sociais, devidamente consagrados nas novas Constituições – é que aparecem temas apaixonantes e de verdadeiro interesse para a ciência jurídica. Com efeito, a primeira
mudança realizada nesta seara é a saída do antropocentrismo, que
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
255
acaba substituído pelo biocentrismo, verdadeira celebração à vida
em todas as suas formas.
Assim, encontram-se dispositivos nas Cartas em análise que
refletem grande parte da cosmovisão andina, impondo o respeito e
a harmonia com a natureza e a vida, como os encontrados na Constituição equatoriana19. Na mesma linha, os direitos dos animais
acabam por ser consagrados na Constituição da Bolívia, eis que da
leitura do artigo 33 é possível concluir-se pela sua existência20.
Tanto num como noutro caso, sejam os direitos da natureza,
sejam os direitos dos animais, a teoria jurídica encontra-se em condições de manejar os conceitos e categorias extraíveis deles, pois,
como já dizia Hans Kelsen, desmistificando a dicotomia pessoa física/pessoa jurídica (cf. KELSEN, 1998, p. 188 ss.), o direito ao longo
dos séculos e em todas as sociedades atribuiu direitos e obrigações
a alguns entes no mundo, por exemplo, as corporações, nominandoos como “pessoas jurídicas”. Desta forma, pode-se pensar em outros
entes aos quais a ordem jurídica atribuiu tais direitos, desde os gatos no antigo Egito, passando pelas vacas da Índia e entidades sobrenaturais como os santos no direito colonial português, sendo
todos estes pessoas jurídicas, isto é, considerados pelo direito. Em
consequência, da mesma forma podem ser considerados como pessoas jurídicas pela teoria do direito, tanto a natureza quanto os animais, bastando a vontade do constituinte ou do legislador para isso.
Assim, não há óbice algum de trabalhar com esses novos sujeitos.
Ainda, tem-se como ethos fundante da normatividade constitucional desses países, sendo isso explícito na Bolívia e no Equador,
a ideia do “Bien Vivir/Vivir Bien”, que no Equador se concretiza nos
direitos sociais e ao meio ambiente (arts. 12 a 34, desdobrados no
Título VII da mesma Carta) e na Bolívia como um objetivo da sociedade, eis que o preâmbulo de sua Constituição refere-se à construção de um Estado “em que predomine a busca do vivir bien”21. Essa
19
20
21
Constituição do Equador, arts. 71 e 72.
Constituição da Bolívia, art. 33.
Preâmbulo da Constituição da Bolívia: “[…] donde predomine la búsqueda del
vivir bien.” Em 15 de outubro de 2012, a Bolívia aprovou a Lei da Mãe Terra e
do Desenvolvimento Integral para o “Vivir Bien”, cuja estrutura abrange, entre
outros, os temas do desenvolvimento integral em harmonia com a Mãe-Terra, o
“vivir bien” como horizonte alternativo ao capitalismo etc. (BOLIVIA. Ley Marco de la Madre Tierra y Desarrollo Integral para vivir bien de 15 de octubre de
256
Sergio Urquhart de Cademartori & Daniela M. Leutchuk de Cademartori
disposição aparece de forma conspícua no artigo 8º da mesma
Constituição, o qual incorpora as diretrizes de vida do povo boliviano. Ainda como exemplo de procura de valores espirituais para legitimar e fundamentar a ordem jurídica, encontra-se a invocação à
Pachamama (Mãe-Terra), nos preâmbulos das Constituições da
Bolívia e do Equador22.
Por último, em tema de inovação na área de direitos fundamentais, é de advertir-se que as Cartas tanto do Equador quanto da
Bolívia permitem o direito de voto aos estrangeiros, sendo que naquele o exercício do direito é condicionado a um prazo de residência23 e nesta o direito se restringe a eleições municipais24. De todas
formas, é um extraordinário avanço rumo à superação de um conceito de cidadania limitado às diversas soberanias nacionais, rumo
ao ideal da construção de uma cidadania sul-americana (cf.
CADEMARTORI; CADEMARTORI, 2011).
c) Vínculos orçamentários em matéria de direitos sociais
As normas constitucionais que vinculam os orçamentos à efetivação de direitos sociais constituem verdadeiras garantias constitucionais primárias, assim como definidas por Ferrajoli:
[…] a garantia dos direitos fundamentais constitucionais constitucionalmente estabelecidos e, de modo mais geral, das
normas constitucionais substanciais, são de dois tipos: constitucionais ou legislativas. As garantias constitucionais que são
estabelecidas por normas constitucionais, são por sua vez,
também de dois tipos: as garantias constitucionais primárias,
que consistem em regras de competência, que exigem do legislador, por um lado, a obrigação de fazer leis de execução
ou de garantir as normas constitucionais substanciais e, por
outro, a proibição de modificar tais normas se não através de
um procedimento agravado.25
22
23
24
25
2012. N. 300. Disponível em: <http: www.planetaverde.org.ar>. Acesso em: 10
abr. 2013)
Preâmbulos das Constituições da Bolívia e do Equador.
Constituição do Equador, art. 63.
Constituição da Bolívia, art. 27.
“[…] le garanzie dei diritti fondamentali costituzionalmente stabiliti e, più in
generale, delle norme costituzionali sostanziali, sono di due tipi: costituzionali o
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
257
De fato, elas materializam a obrigação dos poderes para com a
satisfação das necessidades básicas das pessoas, pré-condição para
que se atinja um mínimo de dignidade humana. Assim é que as
Constituições da Colômbia (arts. 336 e 359) e da Venezuela (arts.
85, 86 e 103) vinculam algumas receitas às despesas com direitos
sociais26.
d) O controle de constitucionalidade por omissão
Assim como no Brasil, as Cartas da Venezuela e do Equador
instituem o controle de constitucionalidade por omissão, sendo que
naquela a ação é próxima ao feitio da brasileira, por tratar-se de
controle concentrado, e neste último a declaração se dá em sede de
procedimento similar ao mandado de segurança27.
e) Um Ministério Público instituído para defesa dos
direitos fundamentais
De forma geral, as novas Constituições latino-americanas instituem e outorgam competência ao Defensor del Pueblo para desempenhar a função de defesa dos direitos coletivos e difusos. De
qualquer sorte existe previsão de um órgão independente, da mesma forma que o Ministério Público brasileiro, para exercício deste
mister. Assim, as Constituições pouco variam no que diz com as
atribuições desse órgão28, que parece ter inspiração em instituto
similar existente no direito espanhol.
26
27
28
legislative. Le garanzie costituzionali, cioè stabiliti da norma costituzionali, sono
allora volta di due tipi: le garanzie costituzionali primarie, consistente in norme
di competenza che impongono al legislatore, da un lato, l’obbligo di produrre
leggi di attuazione o di garanzia delle norme costituzionali sostanziale e,
dall’altro, il divieto di modificare tale norme se non con procedura aggravata.”
(FERRAJOLI, 2007, p. 918)
Constituição da Colômbia, art. 336 e 359; Constituição da Venezuela, arts. 85 e
103.
Constituição da Venezuela, art. 336; Constituição do Equador, art. 94.
Constituição da Colômbia, art. 277; Constituição da Venezuela, arts. 280 e 285;
Constituição do Equador, arts. 86, 214 e 215; Constituição da Bolívia, arts. 218
e 222.
258
Sergio Urquhart de Cademartori & Daniela M. Leutchuk de Cademartori
f) Defesa pública ao lado da acusação pública
Tal como no Brasil, as Cartas em comentário preveem a disponibilidade de um órgão com a competência específica da defesa
de direitos para os necessitados29, à exceção da Colômbia.
g) Instituições de garantia dos direitos políticos
No que tange à garantia dos direitos políticos, os constituintes
das novas Cartas preocuparam-se em instituir entidades dotadas de
independência, diferenciando-se da estrutura orgânica brasileira, na
qual o órgão competente para assegurar direitos políticos é um ramo
do Poder Judiciário. Destarte, encontramos nas diversas Cartas a
nomenclatura Organización Electoral, Consejo Nacional Electoral,
Función Electoral, Órgano Electoral, Tribunal Supremo Electoral30.
Como se vê, os pontos de coincidência entre as Constituições
do chamado Novo Constitucionalismo Latino-Americano e a Constituição Federal brasileira são evidentes, apresentando todas elas –
com as nuances de praxe, já que cada sociedade tem suas características próprias – instituições e funções de garantia que refletem
constante preocupação com a consolidação de Estados Democráticos de Direito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objeto deste capítulo versou sobre o âmbito de inovação
constitucional latino-americano, a partir do sistema de garantias
estabelecido por cada uma das novas constituições, resultado que
foram da reconstrução democrática do subcontinente no último
quartel do século XX. Ora, o atual constitucionalismo latino-americano recebeu a designação de “novo constitucionalismo”, em sociedades que não chegaram a vivenciar o Estado Social. Sem entrar
no debate do que existe de ruptura e/ou continuidade com relação
ao constitucionalismo tradicional, buscou-se verificar o quantum de
29
30
Constituição da Venezuela, art. 253; Constituição da Bolívia, art. 119, II; Constituição do Equador, art. 191.
Constituição da Colômbia, art. 258; Constituição da Venezuela, art. 292; Constituição do Equador, art. 217; Constituição da Bolívia, arts. 205 e 206.
Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo
259
originalidade que reside em algumas contribuições das novas Cartas, em especial no que diz respeito às referidas garantias. Para
isso, foram tomadas como objeto de análise as Constituições da Colômbia (1991), Venezuela (1999), Equador (após a reforma de 2008)
e Bolívia (2009) de modo a possibilitar esboços de uma análise
comparativa com a Constituição brasileira de 1988.
Concluiu-se que as respostas que as novas Constituições
apresentaram à crise constitucional envolvem a própria superação
do conceito de Constituição como mero limite ao poder constituído,
avançando ao apresentar uma fórmula democrática em que o poder
constituinte expressa sua vontade também sobre a configuração e
limitação da própria sociedade. Por outro lado, no plano dos fatos,
percebe-se que as novidades no direito constitucional, acabam,
num primeiro momento, por não se consolidar em sua totalidade,
exatamente por envolverem uma relação íntima entre democracia,
governo e direito.
De modo a possibilitar as bases para a compreensão das novidades deste novo constitucionalismo partiu-se da discussão teórica
envolvendo a tipologia ou a classificação dada a esta nova fase:
novo constitucionalismo, constitucionalismo andino, ou, ainda, constitucionalismo de terceira geração. Uma das divergências refere-se
à inclusão do Brasil nesta seara, acrescentando-se aqui a análise de
autores como Luigi Ferrajoli, quem postula uma classificação das
constituições em três gerações: a primeira, aquela das liberdades; a
segunda, sendo a do constitucionalismo dos direitos sociais; e, por
último, um constitucionalismo de terceira geração, marcado pelo
aumento das esferas de indecidibilidade e das garantias, categoria
na qual estão as novidades constitucionais latino-americanas.
As novas Constituições passam a ser percebidas então a partir
de suas características formais, verificando-se as chamadas condições de constitucionalização, necessárias para a existência do Estado Constitucional de Direito. É a existência de algumas características comuns entre a Constituição brasileira de 1988 e as novas Cartas da América Latina que fazem com que elas possam ser percebidas, a partir de um mesmo modelo, nas chamadas Constituições de
terceira geração.
Em síntese, apesar do grande espaço conquistado pela posição diversa nos debates acadêmicos, não há argumentos fortes para
260
Sergio Urquhart de Cademartori & Daniela M. Leutchuk de Cademartori
negar a tipologia apresentada por Luigi Ferrajoli, ou seja, a existência de um constitucionalismo de terceira geração, partindo da
Constituição brasileira de 1988 e abrangendo as novas Constituições latino-americanas. Como se vê, os pontos convergentes entre
as Constituições apresentadas e a Carta brasileira são evidentes,
cada qual com as suas instituições e funções de garantia. Além do
mais, as justificativas apresentadas pelos doutrinadores em relação
à exclusão do Brasil daquele quadro referem-se a critérios formais,
acentuando um provável déficit de legitimidade. Trata-se muito
mais de um apego ao processo de produção do que ao próprio produto. Sendo assim, os abalos formais no processo constituinte que
de fato afetariam a legitimidade democrática, enquanto poder constituído, não parecem suficientes para servir como justificativa para
analisar o processo constitucional brasileiro, que no ano de 1988
inaugurou uma terceira fase de constitucionalismo, o que determina que ela deva necessariamente ser considerada na análise do
fenômeno das novas Constituições latino-americanas.
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