GINÁSTICA LABORAL E EDUCAÇÃO FÍSICA: A EDUCAÇÃO CORPORAL NO PROCESSO DE QUALIFICAÇÃO DO CORPO DO TRABALHADOR Roger Carlos Ferreira Alves Santos1 Universidade Federal de Sergipe (UFS/NPSE/HISTEDBR) [email protected] Lúcia Aranha2 Universidade Federal de Sergipe (UFS/DSS/NPGED) INTRODUÇÃO A epopéia humana na luta pela conquista do reino da liberdade é bem representada através do mito grego do Prometeu acorrentado. Contudo, esse reino apresenta-se ainda muito distante para a maioria dos homens e mulheres trabalhadores nesse início de século XXI. Isto porque, até mesmo as premissas que propugnavam com otimismo o fim da centralidade do trabalho, hoje estão em xeque, pois em escala planetária o que se observa não é a liberação dos homens e mulheres do fardo do trabalho, mas sim, o aprisionamento à necessidade de assegurarem a sua existência através de formas de trabalho cada vez mais precarizadas. Portanto, a relação trabalho/educação constitui-se numa temática candente no que concerne às possibilidades de realizar o esforço da consciência para a compreensão do capitalismo na contemporaneidade, e os seus reflexos em todas as esferas do ser social. A partir da década de 1970 o sistema produtor de mercadorias sofreu mudanças substanciais – outra crise estrutural do capital – que delinearam uma nova conformação ao mesmo. Com efeito, essa crise suscitou um acirrado debate acerca da centralidade do trabalho no processo de produção/reprodução da existência humana. Estaria então o trabalho com os seus dias contados? Será o trabalho uma espécie em vias de extinção? 1 Aluno do Programa de Pós-graduação em Educação – Mestrado – da Universidade Federal de Sergipe (UFS), membro pesquisador do Núcleo de Pesquisa “Sociedade e Educação” (NPSE) vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR/UNICAMP). 2 Doutora em Educação, professora do Departamento de Serviço Social e do Núcleo de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. 1 É óbvio que a atual configuração do trabalho e bastante diversa da forma como apresentava-se no século XIX, a exemplo da educação e de outros fenômenos humanosociais. Não obstante, traços da exploração do trabalhador e da sua força de trabalho permanecem sob uma nova roupagem aparentemente mais refinada e humanizante; como também não se vislumbra ainda, em um sentido lato, uma educação emancipatória e/ou omnilateral. Partindo-se da assertiva do trabalho como princípio educativo, as demandas clamadas por este interferem diretamente na educação e nas necessidades qualificacionais para a ocupação dos postos de trabalho. Eis que no mundo globalizado e automatizado do trabalho no presente século, os atributos relacionados à qualificação do trabalhador cada vez menos requerem o componente manual. Entretanto, há uma exigência cada vez mais crescente do componente intelectual. O que vem a ser essa nova exigência? Apesar da prevalência relativa do componente intelectual sobre o componente manual do trabalho, isso não significa a negação e/ou subordinação passiva do corpo ao intelecto, mas representa uma ampla vinculação entre ambos. A aparente supremacia do intelecto sobre o corpóreo não quer dizer a sua exclusão – até porque isso seria impossível –, mas engendra um novo tratamento à dimensão corporal. O elevado desenvolvimento tecnológico dos postos de trabalho não implica numa avançada perspectiva de liberdade e emancipação do trabalhador, pois sua atividade livre e criativa – o trabalho – permanece unilateral; ou seja, exclusivamente restrita ao reino da necessidade. Entre algumas mudanças que são implementadas no mundo trabalho, há uma especificamente que chama a atenção: primeiro, por ter sido pouco estudada para além de um sentido bio-fisiológico; segundo, por tratar-se de uma atividade corporal em um momento que se fala de intelectualização dos postos de trabalho. A saber, sua denominação: Ginástica Laboral. De certa forma a implantação de programas de Ginástica Laboral demonstra uma preocupação com a diminuição dos males ocasionados pelo trabalho, mas também faz emergir duas questões: a) no que se refere à educação formal, a disciplina curricular Educação Física parece não dar conta da formação/preparação corporal dos sujeitos que mais cedo ou mais tarde tornar-se-ão trabalhadores. Eis que para compensar essa 2 deficiência da escola as empresas realizam o seu próprio investimento relacionado ao corpo; b) quais os verdadeiros interesses subjacentes a esse investimento na dimensão corpórea do trabalhador, pois ainda que prevaleça o componente intelectual do trabalho, o proprietário da força de trabalho não vai para a sua respectiva atividade laborativa somente com o seu cérebro – o corpo e a mente são dimensões indissociáveis da totalidade humana. Como fica evidente, o corpo e/ou componente manual não subordina-se passivamente ao componente intelectual, de uma forma em que paulatinamente um substitui o outro impulsionado pelo crescente processo de “intelectualização” de alguns postos de trabalho, automatizados por uma base técnica microeletrônica. Pelo contrário, poder-se-ia admitir que o corpo que labora faz parte dos interesses produtivos do capitalismo, visto que a força de trabalho se materializa em ações que necessariamente passam por alguma forma de expressão da corporeidade dos homens e mulheres trabalhadores. Sendo assim, o objetivo do presente artigo é desenvolver em caráter preliminar algumas reflexões sobre o trabalho na contemporaneidade, situando a corporeidade numa dimensão concreta, a partir da relação entre componente intelectual e componente manual do trabalho, e que a emergência relativa do primeiro impõe ao segundo não o seu isolamento, mas um novo sentido – como expressa a adoção de programas de Ginástica Laboral pelas empresas –, além de refletir também sobre as potencialidades emancipatórias inerentes ao fenômeno educativo na formação do ser social, diante de um contexto marcado por um acentuado processo de reestruturação do capital, no qual os mais pragmáticos admitem a chegada do fim da história. Enfim, o propósito maior é tão somente suscitar o debate. Partir-se-á da realidade concreta, pois esta é a síntese das múltiplas determinações que em si comportam o uno e o diverso, sendo o ponto de partida da observação e da representação (MARX, 2003). TRABALHO E SER SOCIAL: BREVES CONSIDERAÇÕES Diante das profundas transformações sociais, econômicas e culturais que a humanidade vem experienciando em escala planetária, muito se tem investigado a 3 respeito do trabalho e de sua centralidade na vida humana. Corrobora-se com a perspectiva que concebe o trabalho como elemento central, não obstante o fato de a sociedade do trabalho encontrar-se em crise. Partir-se-á da acepção marxiana que considera o trabalho como sendo o elemento/atividade essencial ao processo de produção/reprodução da existência, além da contribuição lukacsiana que apresenta os fundamentos de uma ontologia do ser social nas obras de Karl Marx. Assim, poder-se-ia afirmar que o trabalho é o atributo que distingue o ser humano das outras espécies animais. Mas como isso é possível? Uns dirão que os seres humanos se diferenciam dos animais pela consciência, outros dirão que a discrepância está na linguagem, ainda poderia ser pela cultura, ou também pela educação, enfim, por várias características inerentes ao gênero humano e não observadas nas outras espécies animais. No entanto, algumas outras características presentes nos animais têm uma certa familiaridade com os seres humanos. Afinal, qual o limite onde se transcende a animalidade e se constitui a antropomorfização? De um ponto de vista ontológico-social a questão da produção da existência antecede à própria consciência, a linguagem, a cultura, a educação etc. Isto entra em consonância com o fato de que, o modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência (MARX, 2003, p. 5). O primado do ser social sobre a consciência, [...] não significa que à consciência não caiba um papel decisivo na concepção marxiana, muito pelo contrário, mas o que está em questão aqui é a atribuição da prioridade ontológica que é dada ao ser, à existência, enfim, à objetividade do ser social (ARANHA; DIAS, 2005, p. 40-1). Em termos ontológico-sociais o processo de homem fazer-se a si mesmo implica em ações efetuadas no desenvolvimento histórico pelo estabelecimento de relações histórico-sociais de produção essenciais à existência. A primazia do ser em relação à consciência num sentido de prioridade ontológica é explicitada a seguir: 4 Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião e por tudo o que se queira. Mas eles próprios começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência, e esse passo à frente é a própria conseqüência de sua organização corporal. Ao produzirem seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material (MARX; ENGEL, 1998, p. 10-1 Grifos do Autor). O trabalho é a atividade exclusivamente humana que caracteriza-se por ações dirigidas a um objeto, visando um fim; ou seja, se estabelece inicialmente um resultado ideal ou finalidade, que tem como conseqüência um resultado real e/ou produto final. Enfim, é o passo à frente dado pelo ser social! Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais do seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos –, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindolhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza [...] Pressupomos o trabalho sob a forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia idealmente na imaginação do trabalhador (MARX, 2002, p. 211-12). Na citação aludida, já são apresentados alguns indícios a respeito da corporeidade numa dimensão de concreticidade, pois o resultado do trabalho é proveniente tanto do componente intelectual (figuração mental), quanto do componente manual (ação que transforma). O trabalho configura a atividade humana que se materializa através do seu caráter objetivo, imbuído da finalidade de transformar a realidade; ou seja, a sociedade e a natureza para o alcance da satisfação das necessidades humano-sociais (VÁZQUEZ, 1977). Nessa apreensão, o trabalho não tem o seu sentido reduzido à mera ocupação profissional, mas é a práxis humana por excelência. Porém, estando ainda não satisfeito alguém poderia dizer que os animais também transformam a natureza. De fato transformam, não há como negar, mas é questionável se eles projetam a ação mentalmente antes de realizá-la, pois a atividade 5 dos outros animais ocorre da forma que lhes é peculiar por estar inscrita no seu código genético, sem significar uma ação consciente, mas mecânica e repetitiva. O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade (Bestimmtheit) com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser genérico. Ou ele é somente um ser consciente, isto é, a sua própria vida lhe é objeto, precisamente porque é um ser genérico. Eis porque a sua atividade vital é atividade livre (MARX, 2004, p. 84 Grifos do Autor). O que faz o homem ir além da determinidade e da coincidência? Por que sua atividade vital é atividade livre? O homem (ser genérico) e as demais espécies animais têm em comum uma vida no seio da natureza inorgânica, porém, graças à potenciação do caráter de universalidade superior do homem em relação às outras espécies, o primeiro exerce um domínio sobre a natureza inorgânica, fazendo desta o seu corpo inorgânico (MARX, 2004). Dessa relação do ser genérico com a natureza é preciso ponderar que, as formas de objetividade do ser social se desenvolvem, à medida que surge e se explicita a praxis social, a partir do ser natural, tornando-se cada vez mais claramente sociais. Esse desenvolvimento, porém, é um processo dialético, que começa com um salto, com o pôr teleológico do trabalho, não podendo ter nenhuma analogia na natureza. O fato de que esse processo, na realidade, seja bastante longo, com inúmeras formas intermediárias, não anula a existência do salto ontológico. Com o ato da posição teleológica do trabalho, temos em-si o ser social (LÚKACS, 1979, p. 17). Dessa forma, o trabalho consubstancia-se no elemento fundante da humanidade inerente ao ser humano, no organizador da sociedade. Sua configuração de trabalho alienado e/ou atividade que embrutece e desumaniza em vez de libertar é fruto de determinadas relações sociais e de produção/reprodução engendradas historicamente, de forma que o trabalho que distingue o ser humano dos outros animais também acaba aprisionando-o ao reino da necessidade, posto que no sistema sociometabólico vigente o trabalho significa obrigação destituída de prazer e auto-realização, o que ocorre, pois 6 o capitalismo [...] separa o trabalho da criação, os produtos dos produtores e transforma o trabalho numa fadiga incriativa e extenuante. A criação começa além das fronteiras do trabalho industrial. A criação é arte, enquanto o trabalho industrial é ofício, é algo maquinal, repetitivo, e portanto algo pouco apreciado e que se autodespreza (KOSIK, 2002, p. 123). Quer dizer: o trabalho no capitalismo apresenta-se sob a forma de labour, uma vez que as sociedades industriais têm como marca a compartimentalização entre o tempo do trabalho, o tempo livre e a vida social. Sobre essa questão, Férnandez Enguita (1989), corroborando com Marx, observa que o trabalho passou a ser uma fonte de desprazer, de não-realização do ser humano, por isso as outras atividades precisam ocorrer num tempo diferenciado, ocasionando uma separação temporal entre trabalho e ócio. NOVAS EXIGÊNCIAS DO MUNDO DO TRABALHO Sendo uma forma de atividade essencialmente humana, o trabalho carrega em seu bojo as contradições inerentes à sociedade capitalista, não sendo possível compreender a sua configuração atual apartada da mediação com a mesma. Nessa senda, observa-se que a manifestação do trabalho na realidade concreta está pari passu com as transformações experienciadas em todos os setores da vida social e tem um caráter global, com demonstra a pertinente análise abaixo: O que caracteriza o mundo do trabalho no fim do século XX, quando se anuncia o século XXI, é que ele se tornou realmente global. Na mesma escala em que se dá a globalização do capitalismo, verifica-se a globalização do mundo do trabalho. No âmbito da fábrica global criada com a nova divisão transnacional do trabalho e produção, a transição do fordismo ao toyotismo e a dinamização do mercado mundial, tudo isso amplamente favorecido pelas tecnologias eletrônicas, nesse âmbito colocam-se novas formas e novos significados ao trabalho (IANNI, 2004, p. 123). Enfim chegamos ao século XXI, e se são colocadas novas formas e significados ao trabalho, também são colocadas novas formas e significados ao corpo que trabalha, porque, 7 [...] as mudanças qualitativas que são deflagradas pelo processo econômico apresentam o caráter de irreversibilidade, o que aumenta sua complexidade, com conseqüências importantes sobre todos os setores da vida, inclusive o corpo, que se situa na interconexão do mundo da Natureza com o mundo da cultura, e que sofre essas profundas alterações desencadeadas pela economia (SILVA, 2001, p. 60). A introdução de uma implementação tecnológica oriunda dos avanços obtidos na microeletrônica reflete o novo processo de ordenação e racionalização do trabalho, seguindo as mudanças ditadas pela reestruturação do capital e do processo produtivo, como decorrência da crise engendrada a partir da década de 1970. Tais transformações proporcionadas pela evolução e desenvolvimento da tecnologia fizeram o mundo do trabalho configurar-se sob a égide de um novo paradigma produtivo. A constituição desse novo paradigma produtivo emergiu a partir do esgotamento do padrão de acumulação fordista representando mais uma crise estrutural do capitalismo, sendo o eixo central de sua base técnica, a microeletrônica (ARANHA, 1999). Distinguindo-se do fordismo, o toyotismo3 tem a sua produção orientada de forma direta pela demanda, bem como existe uma diversificação do que vai ser produzido, com vistas a suprir prontamente o consumo já que este é quem determina a produção (ANTUNES, 2005). Este paradigma produtivo “ascendente” imputa uma nova racionalidade ao processo de produção (trabalhador – força de trabalho – meios de produção), posto que, a flexibilização dos processos de trabalho e produção implica uma acentuada e generalizada potenciação da capacidade produtiva da força de trabalho. As mesmas condições organizatórias e técnicas da produção flexibilizada permitem a dinamização quantitativa e qualitativa da força produtiva do trabalho. Em lugar da racionalidade característica do padrão manchesteriano, taylorista, fordista ou sthakanovista, a racionalidade mais intensa, geral e pluralizada da 3 O toyotismo é a expressão e/ou modelo do novo paradigma produtivo em sua manifestação no Japão. Contudo, para outros parques industriais avançados como, por exemplo, a Itália, Suécia entre outros países, emprega-se a denominação acumulação flexível. No caso do Brasil seria complicado falar em toyotismo ou acumulação flexível, não obstante o taylorismo/fordismo que caracteriza o processo produtivo do nosso país – em sua forma peculiar –, assimilar algumas características do processo produtivo em voga. 8 organização toyotista ou flexível do trabalho e da produção (IANNI, 2004, p. 126 Grifos Nossos). A racionalização intensa, geral e pluralizada característica do novo paradigma produtivo, vem se expandindo em um sentido crescente, mas relativo, pelo mundo globalizado, sendo a repercussão do processo denominado de mundialização do capital “[...] que traduz a capacidade estratégica de todo grande grupo oligopolista, voltado para a produção manufatureira ou para as principais atividades de serviços, de adotar por conta própria, um enfoque e condutas ‘globais’” (CHESNAIS, 1996, p. 17). Seria a introdução da Ginástica Laboral parte dessa capacidade estratégica dos grupos oligopolistas na esfera da produção? Porque sem dúvida trata-se de uma conduta de caráter global; ou seja, uma conduta ditada pelos países de economia hegemônica. Em um estudo polêmico realizado na década de 1980 – pesquisa encomendada pelo Clube de Roma -, o pensador polonês A. Schaff buscou analisar as conseqüências sociais das transformações técnico-científicas que estavam em curso, e observou através de sua “futurologia”, que com as mudanças no mundo do trabalho provenientes dos avanços tecnológicos, [...] massas humanas cada vez maiores serão liberadas do dever de trabalhar. Do ponto de vista humano-individual, isto significa que um número crescente de pessoas perderá para sempre a possibilidade do trabalho remunerado (isto é, do trabalho no sentido tradicional da palavra), não como resultado das perturbações temporárias no mercado de trabalho, mas pelo fato de que o trabalho humano será substituído em muitos setores por autômatos e robôs, tornando-se simplesmente supérfluo. Partindo da hipótese de que os meios necessários de subsistência – já que nos referimos a isto –, o fenômeno deve ser considerado positivo porque liberaria o homem da maldição de Jeová, segundo a qual foi condenado a ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Este é apenas um aspecto do problema, importante e positivo. Há também o outro lado da moeda, a que devemos dar atenção: o homem que perde o seu trabalho perde ao mesmo tempo o sentido fundamental da vida, que é comum a todos (SCHAFF, 1995, p. 116-17). A longa citação impregnada de um otimismo duvidoso esqueceu-se, porém, de mencionar no que o autor chama de positivo, que numa sociedade capitalista, a substituição do trabalho humano pelo trabalho automatizado gera o desemprego estrutural e a constituição de uma massa de homens e mulheres que sem o “sentido 9 fundamental da vida” ficarão impossibilitados da realização do primeiro fato histórico, que é a produção dos meios de satisfação das necessidades, enfim, da própria vida material (MARX; ENGELS, 1998). Entre outros pontos frágeis, diverge-se de A. Schaff por sua pretensa promessa de liberação do homem da maldição de Jeová nos argumentos por ele empregados. A positividade expressa por esse autor não é constatada na realidade do mundo do trabalho, especialmente em países em desenvolvimento como o caso do Brasil. Espalha-se aos quatros cantos o fim do trabalho, mas a humanidade trabalha cada vez mais, e continua a ser explorada. Se o trabalho é um moribundo, porque continua-se a investir na manutenção/recuperação da força de trabalho? A Ginástica Laboral é um exemplo disso, pois, na verdade, o corpo não se emancipa da disciplina do capital, mas constitui-se uma nova relação psicocorporal, que busca preservar um componente essencial das sociedades do capital, sejam elas modernas ou pós-modernas: um corpo útil, produtivo e submisso (ALVES, 2005, p. 422). A tecnologia expressão da ciência moderna está pautada nos preceitos da razão instrumental, imputando ao ser humano o trabalho sob a perspectiva de labour, que segundo Goudelier (1986), deriva do latim labor, cujo significado é dor, sofrimento, esforço, fadiga ou qualquer atividade penosa. Para a maioria dos homens e mulheres que trabalham, a conotação ainda é essa. É verdade que a forma como está materializado o trabalho hoje é bem diversa, por exemplo, da Inglaterra no século XIX ou do período propriamente taylorista etc. Mas existe a permanência dos pensamentos de uma classe dominante que é hegemônica material e espiritualmente, e continua a reproduzir as idéias que regulamentam a produção e o intercâmbio entre os homens e a natureza a partir dos seus interesses de classe (MARX; ENGELS, 1998). Mesmo que seja evidenciado um deslocamento – relativo – do componente manual do trabalho para o componente intelectual, o corpo não pode deixar de ser requisitado: seja como mais um atributo da qualificação do trabalhador, muitas empresas implementam no tempo de trabalho programas de Ginástica Laboral; seja em atividades realizadas pelos trabalhadores durante o seu tempo livre. 10 A Ginástica Laboral constitui-se em uma atividade física orientada normalmente por um profissional da Educação Física ou fisioterapia, sendo praticada no horário do expediente de trabalho durante uma pausa. Seu objetivo é a promoção de benefícios pessoais no trabalho, bem como minimizar os impactos negativos oriundos do sedentarismo na vida e na saúde do trabalhador. Mais do que uma pausa, a Ginástica Laboral sempre foi acompanhada de pesquisas com o objetivo de aumentar a produtividade. Atualmente, sabe-se que mais do que melhorar a performance produtiva, ela é uma necessidade na prevenção da saúde do trabalhador (LIMA, 2004, p. 15). Cultiva-se ainda uma visão unilateral de saúde-doença, trabalho-produtividade, dentro de um entendimento de relação causal; ou seja, aos trabalhadores que adoecem no trabalho – por conta das atividades laborais – Ginástica Laboral é o remédio para esses males. Essa apreensão benévola do fenômeno oculta que, o novo regime de acumulação flexível impõe o novo tráfico corpomente apenas como ‘meio’ de combate do estresse que atinge o trabalhador assalariado da superexploração toyotizada e não como ‘fim’ de emancipação do corpo-sujeito da disciplina do capital (ALVES, 2005, p. 422). De fato a lógica do capital não pode compactuar com finalidades emancipatórias, então, cada vez mais a assertiva marxiana do tempo como espaço onde se desenvolve o ser humano, está distante dos homens e mulheres trabalhadores. EDUCAÇÃO CORPORAL E FORÇA DE TRABALHO Far-se-á uma breve digressão apenas para esclarecer que não são recentes as preocupações com relação ao corpo do trabalhador, pois foi no século XIX com advento da Revolução industrial demarcando a forma capitalista de exploração da força de trabalho, que os holofotes voltaram-se para os estudos referentes ao corpo. Nesse momento pesquisas foram empreendidas durante o Oitocentos, a fim de tornar o corpo que labora mais produtivo, pois, 11 com a utilização progressiva e cada vez mais específica de máquinas no mundo do trabalho, a força física teve sua importância bastante reduzida para a população. O relevante passou a ser a obtenção e sustentação de uma outra qualidade física, a resistência e, sobretudo, a resistência ao desgaste nervoso, a fadiga. Desponta então uma nova ciência, a ergonomia, ciência da fadiga, das relações entre o homem e a máquina no processo de trabalho (SOARES, 1998, p. 86). Também é nesse século que nasce a Educação Física, conforme Bracht (1999) ela é cria da modernidade, pois sua gênese ocorre no quadro social de afirmação da racionalidade científica, do estado burguês como forma legítima de poder e de emergência e consolidação da economia baseada na indústria. Nesse contexto caracterizado pela liberdade propugnada pelos ideais revolucionários, o trabalhador livre encontrava-se à disposição do trabalho assalariado no que concerne a estar duplamente livre: dos meios de produção dos quais foi expropriado, além de liberado para vender a sua força de trabalho. Então, caberia à Educação Física o seguinte papel: [...] disciplina necessária a ser viabilizada em todas as instâncias, de todas as formas, em todos os espaços [...] no campo, na fábrica, na família, na escola. A Educação Física será a própria expressão física da sociedade do capital. Ela encarna e expressa gestos automatizados, disciplinados, e se faz protagonista de um corpo ‘saudável’; torna-se receita e remédio para curar os homens de sua letargia, indolência, preguiça, imoralidade, e, desse modo passa a integrar o discurso médico, pedagógico...familiar (SOARES, 2001, p. 5-6). Em contrapartida a essa perspectiva utilitária, fora observado que o ideal de uma educação corporal como sendo componente de uma educação integral, também ressurge no Oitocentos, e “seja qual for o julgamento valorativo, este é um grande fato inovador, laico, enquanto valoriza o físico, e democrático enquanto coloca o homem à disposição de si mesmo” (MANACORDA, 2002, p. 289). Uma educação corporal como um dos integrantes dos aspectos fundamentais para a formação humana, materializou-se numa proposição pedagógica desse período, cujo objetivo era articular o trabalho no seu sentido produtivo à educação. Essa perspectiva que visava elevar a classe trabalhadora acima das classes dominantes apresentava três diretrizes fundamentais: 12 1. Educação intelectual. 2.Educação corporal, tal como a que se consegue com os exercícios de ginástica e militares. 3.Educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais (MARX; ENGELS, 1992, p. 60). Em Marx e Engels a conjunção dessas três educações visa à formação omnilateral. As dimensões intelectual e corporal estão em plena articulação. Retomando o olhar para a atualidade, caracterizada por um avanço sem precedentes das forças produtivas e pela intensificação de implementação das inovações tecnológicas e organizacionais, propaga-se o cultivo de discursos “otimistas” que vislumbram a emancipação humana como um processo em andamento; admite-se que está em curso a mútua realização entre liberdade e necessidade. Se durante a Revolução Industrial ocorreu a introdução de uma base técnica não humana (maquinaria) aos processos de trabalho. Muitas mãos puderam ser substituídas pelas máquinas. Essa substituição, além de eliminar postos de trabalho, fez com que o controle sobre o ritmo e intensidade do trabalho, deixasse de pertencer ao trabalhador. Eis a subordinação real do trabalho ao capital, cuja finalidade da modificação da base técnica é a extração ampliada da mais-valia relativa (MARX, 2001). Na realidade o que vem acontecendo é o controle do ritmo e intensidade do trabalho às operações intelectuais, porque, diferentemente da primeira revolução industrial, que operou a transferência das funções manuais para as máquinas, essa nova revolução transfere para as máquinas as próprias operações intelectuais, razão pela qual esta época é também chamada “era das máquinas inteligentes”. Nesse processo, a capacidade produtiva do trabalho humano inegavelmente atinge proporções ilimitadas. A produção automatiza-se, isto é, se torna autônoma, auto-regulável, o que permitiria liberar o homem para a esfera do não-trabalho, possibilitando o cultivo do espírito através das artes, das ciências, da filosofia e do desfrute do tempo livre (SAVIANI, 2002, p. 21). No entanto, a automação da produção não implica a autonomia e liberação do trabalhador para dedicar-se a outras atividades no tempo livre. Entre essas atividades realizadas no desfrute do tempo liberado do trabalho inserir-se-iam as atividades corporais. Mas, tem sido observado que sob a ótica vigente, as atividades corporais 13 realizadas no tempo livre muitas vezes visam cumprir com o atendimento das exigências de qualificação para o trabalho. A esse respeito detectou-se que, também o lazer do trabalhador se modifica, pois o seu tempo livre é cada vez mais utilizado em atividades que visam incrementar seus atributos qualificacionais e/ou reconstituí-los. Não só proliferam as academias de ginástica onde se busca exercitar o físico cada vez menos solicitado nos locais de trabalho, mas também enquadrá-lo dentro de um modelo estético padronizado [...] (BRUNO, 1995, p. 96). A adoção de programas de Ginástica Laboral – atividade corporal realizada durante o tempo de trabalho – corrobora com essa exigência de qualificação essencial para a exploração máxima do corpo do trabalhador. Pois, mesmo que seja menos exigido o corpo, o desgaste mental afeta-o, visto que compõem uma totalidade concreta. Não é possível uma mente fadigada em um corpo disposto, como seria muito difícil supor, uma mente disposta em um corpo fadigado. Portanto, o sentido de qualificação conferido pelo capitalismo, [...] diz respeito à capacidade de realização das tarefas requeridas pela tecnologia capitalista. Esta capacidade pressupõe a existência de dois componentes básicos: um muscular e outro intelectual, que têm sido combinados de diferentes formas nas sucessivas fases do capitalismo e nos diversos tipos de processos de trabalho4 (BRUNO, 1995, p. 92). O trabalho como sendo o princípio educativo, evidencia que aos atuais processos de trabalho a Educação Física – disciplina curricular – muito pouco tem contribuído. O trabalhador chega ao posto de trabalho sem um habitus no que se refere à realização de atividades físicas. Cabe então à empresa resolver essa deficiência ofertando uma atividade física – educação corporal para o trabalhador – ao adotar um programa de Ginástica Laboral. A Lei 10.7935, de 1º dezembro de 2003, que torna a Educação Física componente curricular obrigatório, acaba por imputar-lhe também facultatividade. Examinar-se-á brevemente o que nos diz o artigo 26º da LDB 9.394/96 com o novo texto dado pela lei acima aludida: 4 Esta perspectiva de qualificação não é a defendida por Lúcia Bruno, mas a que vigora no capitalismo. A referida Lei promove uma alteração na redação do art. 26, § 3 da Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996 (LDB 9.394/96). 5 14 A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: I – que cumpra jornada de trabalho igual ou superior a seis horas; II – maior de trinta anos de idade; III – que estiver prestando serviço militar inicial ou que, em situação similar, estiver obrigado à prática da educação física; IV – amparado pelo Decreto-lei nº 1.044, de 21 de outubro de 1969; V – (VETADO); VI – que tenha prole (BRASIL, 2003, p. 1 Grifos Nossos). Fugiria ao que está sendo discutido ao longo dessa exposição, mas a própria legislação educacional torna emblemática a presença e relevância desse componente curricular. Boa parte os itens de que trata a respectiva lei abrange os alunos do ensino noturno – em sua maioria alunos e alunas trabalhadores. Logo, essa facultatividade converte-se em desobrigação sumária no referido turno de ensino. A reestruturação do capital e do mundo do trabalho através da introdução dos processos da microeletrônica coloca em xeque a importância da Educação Física no âmbito escolar, pois nem atrelada aos interesses pragmáticos de outrora (ideário médico-higienista, aspirações eugênicas, esporte, saúde, lazer etc) ela parece estar vinculada. Tornando-se mais difícil justificar a presença dessa disciplina curricular diante de um contexto onde “[...] a aptidão física é cada vez menos importante como determinante para a produtividade no trabalho” (BRACHT, 2001, p. 73). Cabe analisar que como disciplina curricular é pertinente atribuir à Educação Física uma diminuição da sua importância, mas o fato da “secundarização” da aptidão física no que concerne à produtividade é a manifestação de uma mudança na sua forma de utilização, e não a minimização da sua importância na produtividade. MENTE X CORPO: O TRABALHO EM BUSCA DE OUTRA SOCIABILIDADE O pensamento de L. Bruno indica que a qualificação profissional atualmente se estrutura em função da predominância do componente intelectual do trabalho, para a autora “[...] a expansão do trabalho indireto na indústria, em detrimento do trabalho direto, não implica eliminação do trabalho vivo, mas sim o deslocamento do foco da 15 exploração do componente manual para o componente intelectual do trabalho” (BRUNO, 1995, p. 95). Não é possível eliminar o trabalho vivo, pois mesmo sob a égide do capital financeiro, o capital que se amplia e valoriza nessa esfera, é gerado na produção (CHESNAIS, 1996). Pode-se dizer que existindo trabalho vivo, haverá exploração da força de trabalho, o que implica na exploração de um sujeito, o trabalhador. Esse sujeito trabalhador põe a serviço do capital sua cabeça, seus braços, suas pernas etc, pois, na sociedade capitalista, o processo de trabalho, alienando-se de suas raízes humanas, alienou também o homem em sua corporalidade. Sua atividade produtiva, criativa, em que ele expressa seu ser total, é transformada em tempo de trabalho e absorvida pelo capital (GONÇALVES, 1994, p.63). O que está destinado ao componente manual do trabalho? Será que o componente intelectual do trabalho pode prescindir do componente manual? Para recuperar e reparar os danos provocados pelo trabalho – ainda que seja mais explorado o intelecto – as empresas cujos processos de gestão atendem os preceitos universais e modernos em voga, estão investindo em programas de Ginástica Laboral. Isto porque é preciso tornar a atividade menos fatigante, bem como prevenir lesões ocasionadas por atividades repetitivas como a LER/DORT6. A preocupação com tal investimento é com o ser social ou simplesmente com as possibilidades de ampliar a produtividade da força de trabalho, além de diminuir o número de licenças concedidas para o trabalhador afastar-se do seu posto de trabalho? Parece que a preocupação é a redução dos gastos com despesas médicas, até porque, conforme dados do Ministério do Trabalho e Emprego7, as denominadas doenças ocupacionais e/ou doenças relacionadas ao trabalho constituem-se na principal causa de licenças por parte dos trabalhadores. A pesquisa de Alves (2005, p. 423) é bastante elucidativa sobre essa questão, pois ao analisar os benefícios de um programa de Ginástica Laboral em uma determinada empresa constatou que “[...] a suposta saúde 6 LER é a sigla de Lesões por Esforços Repetitivos, e DORT é a sigla de Distúrbios Ósteomusculares. A Sigla LER vem sendo substituída paulatinamente por DORT. Independente da terminologia, ambos os termos se referem a doenças ocupacionais; ou seja, doenças relacionadas ao trabalho. 7 Cf. O site do Ministério do Trabalho e Emprego: www.mte.gov.br 16 dos operários significou um menor índice de absenteísmo, diminuindo o índice de licenciados em decorrência de tal doença”. De fato as ações empreendidas para cuidar e/ou evitar o adoecimento do trabalhador, tem como base às estatísticas, pois foi registrado pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), no período compreendido entre 1999 à 2003 no Brasil, “105.514 casos de doenças relacionadas ao trabalho” (BRASIL, 2004, p. 7). Não se pode negligenciar o fato de que as empresas estão assumindo os cuidados com a educação corporal, a fim de cuidar do componente manual do trabalho, com a adoção de programas de Ginástica Laboral que visam atenuar os males ocasionados por ações motoras repetitivas, posturas incorretas e demais fatores estressores do trabalho, até porque “entre as doenças relacionadas ao trabalho mais freqüentes estão as Lesões por Esforços Repetitivos/Distúrbios Ósteomuculares relacionados ao trabalho (LER/DORT) [...]” (BRASIL, 2004, p. 7). Embora essas medidas representem um avanço para a manutenção da saúde e qualidade de vida do trabalhador, não se pode perder de vista que a sociedade capitalista possui vínculos com o capital, de forma que o trabalho, o trabalhador e a sua força de trabalho são reduzidos a uma dimensão abstrata. Se ainda não há ainda uma nova sociabilidade ao trabalho capaz de dotá-lo de liberdade e sentido, a omnilateralidade não passa de um discurso utópico. Portanto, uma vida cheia de sentido em todas as esferas do ser social, dada pela omnilateralidade humana, somente poderá efetivar-se pro meio da demolição das barreiras existentes entre tempo de trabalho e tempo de não-trabalho, de modo que, a partir de uma atividade vital e cheia de sentido, autodeterminada, para além da divisão hierárquica que subordina o trabalho ao capital hoje vigente e, portanto, sob bases inteiramente novas, possa desenvolver uma nova sociabilidade (ANTUNES, 1999, p. 177 Grifos do Autor). Todavia, a constituição de uma nova sociabilidade ao trabalho e em todas esferas da vida social, pressupõe a transcendência da lógica do capital, indo para além do capital. Isto posto, [...] a tarefa histórica que temos de enfrentar é incomensuravelmente maior que a negação do capitalismo. O conceito para além do capital é inerentemente concreto. Ele tem em vista a realização de uma ordem social metabólica que se sustente concretamente a si própria, sem 17 nenhuma autojustificativa para os males do capitalismo. Deve ser assim porque a negação direta das várias manifestações de alienação é ainda condicional naquilo que ela nega, e portanto permanece vulnerável em virtude dessa condicionalidade (MÉSZÁROS, 2005, p. 61-2 Grifos do Autor). A edificação de uma nova sociabilidade e de uma outra lógica implica a superação da “crise” do mundo do trabalho. Essa crise “[...] não significa o fim da centralidade do trabalho enquanto processo criador humano na sua dupla e inseparável dimensão de necessidade e liberdade” (FRIGOTTO, 1999, p. 132). CRISE: DO TRABALHO OU DA SOCIEDADE DO TRABALHO ABSTRATO? Tanto G. Frigotto (1999), quanto R. Antunes (2005) promovem um debate acirrado com pensadores8 que advogam a fim da centralidade do trabalho na vida humana. Contudo, o que ocorre na realidade é “[...] uma crise da sociedade do trabalho abstrato cuja superação tem na classe trabalhadora, mesmo fragmentada, heterogeneizada e complexificada, o seu pólo central” (ANTUNES, 2005, p. 88). No tocante ao investimento e progresso tecnológico onde se insere por assim dizer os programas de Ginástica Laboral, estes constituem-se em possibilidades para a qualificação do trabalhador e da sua esfera corpóreo-motriz, mas o entendimento de qualificação a seguir, está na contramão dos interesses do capital, pois apreende que: A qualificação humana diz respeito ao desenvolvimento de condições físicas, mentais, afetivas, estéticas e lúdicas do ser humano (condições omnilaterais) capazes de ampliar a capacidade de trabalho na produção dos valores de uso em geral como condição da satisfação das múltiplas necessidades do ser humano no seu devenir histórico (FRIGOTTO, 1999, p. 31-2). Nessa perspectiva de devir, a Ginástica Laboral como as inovações tecnológicas e organizacionais do trabalho estarão enquadradas como a possibilidade mediadora da experiência humana, através do diálogo entre o ser social e a consciência social, posto que, 8 Esses pensadores são R. Kurz, C. Offe, A. Gorz e J. Habermas, que não obstante o fato de questionarem a centralidade do trabalho, guardam entre si diferenças metodológicas e conceituais discrepantes ao realizarem tal discussão. 18 se os homens têm de se conformar com as exigências de uma indústria altamente sincronizada e automatizada e, ao mesmo tempo, com períodos grandemente aumentados de “tempos livres”, eles terão de encontrar uma nova síntese, não baseada nas estações do ano ou nas exigências do mercado, mas fundamentada nos interesses humanos (THOMPSON, 1991, p. 82-3). A Ginástica Laboral fundamentada nos interesses humanos seria então, uma atividade desenvolvida no tempo de trabalho, mas com potencialidades de enriquecer a experiência expressiva corporal dos trabalhadores para além desse tempo. Isto é claro, numa sociedade cujos pilares também sejam lastrados nos interesses humanos. Para Thompson (1991), isso implicaria num reaprendizado na arte de viver, recuperando a capacidade que os seres humanos perderam com a Revolução Industrial, a fim de preencher os “interstícios” de sua vida com relações sociais e pessoais enriquecedoras e prazerosas, rompendo dessa forma com as barreiras existentes entre trabalho e vida. Ou seja, uma aproximação concreta da assertiva marxiana do tempo concebido como o espaço onde se desenvolve o ser humano. A realidade é um produto humano-social, mas precisa ser decifrada, pois não se revela de forma imediata. Contraditoriamente, o ser social que a cria também produz os mecanismos que não permitem apreendê-la em sua totalidade, o criador acaba por se perder em meio às suas criações. Superar a alienação em todas as esferas do ser social é uma tarefa urgente, a fim de se caminhar para uma sociabilidade não-fetichizada; isto porque, a consciência dos limites do capital tem estado ausente em todas as formas de racionalização de suas necessidades reificadas, e não apenas nas versões mais recentes da ideologia capitalista. Paradoxalmente, contudo, o capital é agora compelido a tomar conhecimento de alguns destes limites, ainda que, evidentemente, de uma forma necessariamente alienada. Pelo menos agora nos limites absolutos da existência humana – tanto no plano militar como no ecológico – têm de ser avaliados, não importa quão distorcidos e mistificadores sejam os dispositivos de aferição da contabilidade socioeconômica capitalista. Diante dos riscos de uma aniquilação nuclear por um lado e, por outro, de uma destruição irreversível do meio ambiente, tornouse imperativo criar alternativas práticas e soluções cujo fracasso acaba sendo inevitável em virtude dos próprios limites do capital, os quais agora colidem com os limites da própria existência humana (MÉSZÁROS, 2002, p. 993 Grifos do Autor). 19 Ou seja, trata-se de preservar a existência da espécie humana no mundo. Mas essa preservação está relacionada à possibilidade de superação da lógica do capital e da valorização do ser social. Somente assim, poderá ser constituída uma sociabilidade humano-social não-fetichizada, uma sociabilidade que ao presidir as relações humanas respeite as diferenças que cada ser social possui, mas que, sobretudo, resguarde o que há de comum: justamente a singularidade de pertencer-se ao gênero humano, através da sua atividade vital, o trabalho. CONSIDERAÇÕES FINAIS E então, qual o destino do trabalho? Estaria o trabalho num sentido ontológicosocial fadado ao desaparecimento? Diante de todos os argumentos até aqui elaborados, a posição que se defende é a da permanência da centralidade do trabalho na vida humana, pois, até mesmo o processo de acumulação capitalista sob a égide do capital financeiro não pode prescindir do ciclo: circulação-produção-consumo, pois o trabalho morto apenas transfere valor, ao passo que o trabalho vivo gera valor. Poder-se-ia afirmar com veemência que o trabalho permanecerá central enquanto existir o ser social, o ser humano. No entanto cabe ponderar que a sociabilidade imanente ao trabalho é presidida pela lógica do capital, e essa lógica tem pouca afinidade com os interesses humanos. Seja taylorismo/fordismo, acumulação flexível, toyotismo etc, o que se visa são formas mais elaboradas de acentuar a exploração dos componentes intelectual e manual do trabalho. Nesse sentido, a prevalência do componente intelectual sobre o componente manual do trabalho é apenas relativa, visto que, apesar das diferenças que tais componentes guardam entre si, o ser humano trabalhador é uma unidade indissociável; ou seja, uma totalidade na qual inteligência e mãos, pensar e agir participam do mesmo movimento. O trabalho é o princípio educativo, mas se hoje é o paradigma da flexibilidade que orienta o princípio educativo, o sentido de flexibilidade na educação deve resistir e buscar ser diverso daquele que se manifesta no mundo do trabalho. 20 A educação corporal passa a ser um atributo qualificacional importante, ofertada como uma atividade compensatória – Ginástica Laboral – aos males do trabalho, mesmo em um contexto o qual predomina o componente intelectual. Ao que tudo indica, essa educação do corpo vem cumprindo um papel legítimo – ainda que seja para o atendimento dos interesses do capital. Pois, não faz sentido ocultar que as características de movimentos repetitivos e pré-determinados (alongamentos em sua maioria), ocorrem durante uma pausa de dez a quinze minutos na jornada de trabalho, o que possivelmente acarrete a essa atividade um teor fatigante e penoso – laboral deriva de labor. Isto manifesta-se porque a Educação Física escolar parece não dar conta da preparação corporal requerida pelos novos processos de trabalho. Basta observar o caráter emblemático da sua oferta como disciplina curricular no ensino noturno, o qual a legislação promove sua exclusão sumária. No entanto, não se quer dizer que a plena formação humana possa negligenciar e/ou prescindir da Educação Física. Essa disciplina relaciona-se ao desenvolvimento das potencialidades humanas, expressas pelas dimensões éticas e estéticas inerentes aos elementos da cultura corporal: jogo, esporte, ginástica, danças e lutas. Ou seja, a sua importância poderá concretizar-se pela via do tempo livre, tempo esse onde o ser social possa se desenvolver omnilateralmente, tempo esse desobrigado da produção. No entanto, o caminho a percorrer é muito longo, mas não se deve esquecer que se as circunstâncias fazem os homens, um dia estes podem vir a fazer as circunstâncias, pois, enquanto o ser social que existe na totalidade do mundo e reproduz essa totalidade no seu pensamento, algum dia poderá edificar um outro tipo de sociedade em que as questões e os interesses humanos estarão sempre à frente dos interesses de extração da mais-valia, de exploração e de produção sem limites. Um dia quiçá, o Prometeu será libertado revelando todas as potencialidades humanas e a possibilidade de um destino enquadrado em uma lógica que apreenda a história como um processo permanente, assegurando o fogo sagrado como uma conquista proveniente do incessante e essencial intercâmbio metabólico efetuado entre o ser humano e a natureza. 21 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, G. Trabalho, corpo e subjetividade: toyotismo e formas de precariedade no capitalismo global. In: Revista Trabalho, Educação e Saúde. V. 3, nº 3, 2005. p. 409428 ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. _____. Adeus ao trabalho? ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 10ª ed. São Paulo: Cortez; Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2005. ARANHA, L. Educação e trabalho no contexto da terceira revolução industrial. São Cristóvão/SE: Editora UFS, 1999. ARANHA, L.; DIAS, N. S. R. 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