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RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (1)
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
1. Uma breve explanação sobre a responsabilidade civil da
Administração, no âmbito dos trabalhos preparatórios de um novo diploma
legal sistematizador da responsabilidade patrimonial das entidades públicas
como me foi proposto fazer aqui agora , terá de partir de duas opções de
princípio já pressupostas:
(a) o reconhecimento de que a Constituição remeteu para o
legislador o
encargo de concretizar a garantia jurisdicional da
reparação de danos imputáveis aos titulares de órgãos, funcionários e
agentes administrativos, fixando, no entanto, alguns princípios
basilares inultrapassáveis (2);
(b) a directriz já delineada no programa político da reforma de
contencioso administrativo em curso de instituir uma unidade de
jurisdição no tocante às acções de responsabilidade civil da
Administração, independentemente da natureza de gestão pública ou
gestão privada dos actos causadores dos danos indemnizáveis, o que
naturalmente poderá influenciar algumas das soluções funcionais a
adoptar no regime substantivo.
Estes dois parâmetros um parâmetro constitucional e um parâmetro
de política legislativa
deverão pontuar o percurso sobre alguns dos
aspectos problemáticos do tema: as formas de responsabilidade; as
omissões ilícitas, mormente no plano das omissões do dever de vigilância;
autonomia ou subsidariedade das acções de indemnização; a prescrição do
direito de indemnização.
2. Segundo a leitura que faço dos preceitos constitucionais que mais
directamente interessa considerar
artigos 22º e 271º(3)-, a
1
) Comunicação apresentada no colóquio sobre Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado ,
organizado pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça, e que teve lugar
nos dias 8 e 9 de Março de 2001, no Auditório da Torre do Tombo.
2
) Neste sentido, BARBOSA DE MELO, Responsabilidade civil extracontratual não cobrança de
derrama pelo Estado, Colectânea de Jurisprudência , ano IX, Tomo 4, 1986, pág. 36; AFONSO VAZ,
A Responsabilidade Civil do Estado Ccnsiderações Breves sobre o seu Estatuto Constitucional;
MARGARIDA CORTEZ, Responsabilidade Civil da Administração por Actos Administrativos Ilegais e
Concurso de Omissão Culposa do Lesado, Coimbra, 2000, pág. 30.
3
) Dispõem:
Artigo 22º - O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária
com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício
das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias
ou prejuízo para outrem.
2
responsabilidade delitual do Estado e das demais entidades públicas pelos
danos causados pelos titulares de órgãos, funcionários e agentes é uma
responsabilidade circunscrita aos actos funcionais, isto é, aos actos
praticados no exercício de funções ou por causa desse exercício. É além
disso uma responsabilidade solidária, competindo ao legislador ordinário
definir os termos em que, no âmbito das relações internas, poderá ser
exercido o direito de regresso (artigo 271º, n.º 4).
A primeira consequência que decorre do texto constitucional é a
necessidade de superar o complexo esquema de repartição de
responsabilidade que se encontra actualmente consignado nos artigos 2º e
3º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967 (4).
O Decreto-Lei n.º 48051 respeita unicamente à responsabilidade
derivada de actos de gestão pública, excluindo implicitamente do seu
campo de aplicação os actos pessoais praticados por titulares de órgãos,
funcionários e agentes. É esse princípio-regra que deriva do artigo 2º, n.º 1:
O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente
perante terceiros pelas ofensas de direitos destes ou das disposições legais
destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos
culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes
administrativos no exercício das suas funções ou por causa desse
exercício. (5)
No estrito âmbito dos actos funcionais, o diploma distingue depois
entre a responsabilidade funcional e a responsabilidade pessoal: na
responsabilidade funcional incluem-se os danos emergentes de actos
praticados com negligência, operando ou não o direito de regresso, por
parte da pessoa colectiva pública, consoante se trate de negligência grave
Artigo 271º
1 Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil,
criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa
desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não
dependendo a acção ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica.
2- (...)
3 (...)
4 (...)
4
) A inconstitucionalidade das normas dos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48051, face ao princípio da
responsabilidade solidária decorrente do artigo 22º da Constituição, foi já defendida na doutrina (RUI
MEDEIROS, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992,
pág. 122) e declarada, no que concerne especificamente à norma do artigo 3º,n.º 2, pela acórdão do STJ
de 6 de Maio de 1986 (in BMJ n.º 357, pág. 392). Sobre esta temática, ver, também, MARIA DA
GLÓRIA GARCIA, A Responsabilidade Civil do Estado e demais Pessoas Colectivas Públicas,
Conselho Económico e Social, Série Estudos e Documentos , Lisboa, 1997, págs. 69-70.
5
) Relativamente aos danos produzidos fora do exercício de funções ou por ocasião delas mas não por
causa do seu exercício, os servidores do Estado e das demais pessoas colectivas públicas respondem
pessoalmente perante os tribunais comuns e segundo o regime de direito civil.
3
ou leve (artigo 2º, n.º 1); a responsabilidade pessoal ocorre em relação a
danos resultantes de actos dos titulares dos órgãos ou agentes que excedam
o limites das funções (6) ou de actos praticados com dolo, sendo que, neste
último caso, funciona a responsabilidade solidária da pessoa colectiva
pública (artigo 3º, n.º 1) (7).
Poderão assim configurar-se, no regime ainda em vigor, quatro
situações distintas:
(a) responsabilidade exclusiva da Administração (actos praticados
com negligência leve);
(b) responsabilidade exclusiva da Administração com direito de
regresso (actos praticados com negligência grave);
(c) responsabilidade solidária da Administração (actos praticados
com dolo).
(d) responsabilidade exclusiva dos titulares de órgãos, funcionários
ou agentes (actos que excedam os limites das funções).
Hoje, face ao princípio constitucional vertido no artigo 22º, uma vez
que continua a exigir-se uma conexão entre os actos de violação de direitos
ou interesses dos particulares e a relação de serviço, e se estipula para todos
os casos uma responsabilidade em forma solidária da Administração, o que
se impõe é que o legislador ordinário clarifique o conceito de acto
funcional, por contraposição ao acto pessoal, delimitando desse modo o
âmbito de aplicação da lei de responsabilidade administrativa, e,
6
) Por actos que tiverem excedido os limites das suas funções deverão entender-se, não os actos
pessoais como por vezes vem referido na doutrina, mas os actos praticados no exercício de funções ou por
causa desse exercício, mas que envolvam abuso de autoridade ou excesso de poder, bem como os casos
extremos de incompetência ou de desvio de procedimento, e, em geral, os actos dirigidos à satisfação de
interesses pessoais.
A lei retoma aqui, ao menos em parte, um critério de delimitação da responsabilidade funcional e
pessoal baseado no vício que afectava o acto administrativo, que se encontrava expresso nos artigos 366º
e 367º do Código Administrativo de 1936/40. Estas disposições estatuíam:
Artigo 366º - O concelho, a freguesia e a província (o distrito, a partir de 1959) respondem civilmente
pelas perdas e danos resultantes das deliberações dos respectivos corpos administrativos ou dos actos que
os seus órgãos executivos, funcionários, assalariados ou representantes praticarem com ofensa da lei, mas
dentro das respectivas atribuições e competência, com observância das formalidades essenciais e para a
realização dos fins legais.
§ único (...)
Artigo 367º - Os presidentes, vogais, funcionários, assalariados ou representantes dos corpos
administrativos, e bem assim os administradores e gerentes dos serviços municipalizados, federações de
municípios e uniões de freguesias, são pessoalmente responsáveis pelos actos em que intervenham e de
que resultem para outrem perdas e danos, sempre que aqueles não tenham sido praticados dentro das suas
atribuições e competência, com observância das formalidades essenciais e para a realização dos fins
legais.
Veja-se, a este propósito, MARCELLO CAETANO, Tratado Elementar de Direito Administrativo,
Coimbra, 1943, pág. 410. No sentido exposto, ainda, o acórdão do STA de 22 de Novembro de 1994, in
Jurisprudência Administrativa Escolhida , pág. 603).
7
) Idêntico regime derivava para as autarquias locais dos artigos 90º e 91º da Lei n.º 100/84, de 29 de
Março, e consta actualmente dos artigos 96º e 97º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.
4
concomitantemente, estabeleça os casos em que tem lugar o exercício do
direito de regresso, quer por parte do Estado ou das demais entidades
públicas, quer por parte dos funcionários e agentes que tenham sido
chamados individualmente a satisfazer o crédito do lesado.
E dada a impossibilidade que directamente decorre da directiva
constitucional de fazer incidir sobre os funcionários ou agentes uma
responsabilidade pessoal exclusiva (8), mesmo em relação a danos que
resultem de actos em que estes tenham excedido os limites das suas
funções, a alternativa que se depara ao legislador ordinário é a de estender
a esses casos o regime do exercício de direito de regresso por parte da
Administração, em paralelo com o que já hoje sucede com os danos
derivados de actos funcionais praticados com negligência grave ou dolo.
O direito de regresso da Administração deverá agora abranger todas
as situações que, no regime do Decreto-Lei n.º 48051, correspondiam à
responsabilidade pessoal do funcionário, e à responsabilidade solidária e à
responsabilidade subsidiária da Administração.
3. Uma outra exigência que deriva da norma do artigo 22º da
Constituição refere-se ao requisito do facto ilícito, que pode agora consistir
tanto num comportamento positivo como numa omissão.
O Decreto-Lei n.º 48051, ao definir os termos em que opera a
responsabilidade administrativa, não faz qualquer menção às omissões
ilícitas, o que suscitou dificuldades de interpretação, mormente na área da
omissão de deveres de vigilância.
Tenho defendido e sustentei pelo menos em dois acórdãos do STA
em que essa tese fez vencimento (9) que nas acções de responsabilidade
civil extracontratual da Administração por factos ilícitos e culposos, à luz
do regime constante do Decreto-Lei n.º 48051, não funciona a presunção
de culpa prevista artigo 493º do Código Civil.
Fundamentalmente com base nos seguintes argumentos:
8
) As entidades públicas, em virtude da sua responsabilidade patrimonial solidária, funcionam como
garante do pagamento da indemnização, independentemente do grau de culpa que possa imputar-se à
conduta lesiva do funcionário ou agente. Daí que o credor possa exigir a prestação integral à
Administração ou ao seu servidor, ou contra ambos conjuntamente, cabendo o direito de regresso, por
parte do demandado, nos termos que vierem a ser fixados na lei regulamentadora.
9
) Acórdão de 16 de Maio de 1995, in Cadernos de Justiça Administrativa , n.º 10, pág. 3, e Apêndices
ao Diário da República , de 20 de Janeiro de 1998, pág. 4397; e acórdão de 7 de Novembro de 1995, in
Apêndices ao Diário da República , de 30 de Abril de 1998, pág. 8530.
5
(a) O Decreto-Lei n.º 48051 não contém uma norma geral remissiva
para o Código Civil, contemplando apenas remissões para
aspectos concretos do regime da responsabilidade civil
(apreciação da culpa, pluralidade de responsáveis, prescrição do
direito de indemnização);
(b) A aplicação subsidiária da lei civil ocorre apenas no tocante a
princípios gerais, e apenas quando a regulamentação constante
do Decreto-Lei n.º 48051 for omissa;
(c) Os casos de presunção de culpa configuram regras excepcionais,
pelo que o respectivo regime não poderá ser aplicado
subsidiariamente;
(d) A remissão expressa constante do n.º 1 do artigo 4º do DecretoLei n.º 48051 (10) deve entender-se como feita para o n.º 2 do
artigo 487º do Código Civil, visto que se reporta à apreciação da
culpa, e não ao ónus da prova;
(e) A exclusão da presunção de culpa no domínio da
responsabilidade da Administração por facto ilícito e culposo
torna-se compreensível de jure constituto como factor limitativo
do princípio da indemnização e é a solução mais consentânea
com a unidade do sistema jurídico;
(f) Tendo o legislador optado por enquadrar a tutela ressarcitória de
danos decorrentes de coisas e actividades excepcionalmente
perigosas na responsabilidade objectiva, não faz sentido que
contemplasse igualmente a inversão do ónus de prova, no âmbito
de uma responsabilidade delitual, relativamente a todas as coisas,
actividades ou serviços perigosos, instituindo assim para a
Administração um regime de responsabilidade mais amplo do
que o previsto para o direito privatístico (11).
Este entendimento foi arredado pelo Pleno da Secção (12) que
reafirmou a aplicabilidade da presunção de culpa - e criticado na doutrina
(13), mas, em bom rigor, mais com base em considerações gerais, que
10
) Dispõe: A culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada nos termos do artigo 487º do
Código Civil .
11
) Note-se que, a admitir-se que o artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48051 efectua uma remissão para
toda a disciplina do artigo 487º do Código Civil, incluindo o regime de repartição do ónus da prova a que
se refere o seu n.º 2, essa remissão deve ter-se como feita, em bloco, para qualquer das situações
contempladas no artigo 493º (culpa in vigilando e presunção de culpa por danos causados por actividades
perigosas), englobando, por isso, danos emergentes do funcionamento de serviços e actividades
administrativas que revistam excepcional perigosidade, que se encontravam já abrangidas pela previsão
do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 48051, na modalidade de responsabilidade pelo risco.
12
) Acórdão do STA(Pleno) de 29 de Abril de 1998, in Jurisprudência Administrativa Escolhida , pág.
1089.
13
) MARIA JOSÉ RANGEL MESQUITA, anotação ao acórdão de 16 de Maio de 1995, in Cadernos de
Justiça Administrativa , n.º 10 , págs. 6-10.
6
relevam no plano da política legislativa, do que por apelo a critérios estritos
de interpretação da lei.
Evoca-se uma desejável evolução no sentido de um progressivo
alargamento da responsabilização da Administração e, também, um
reforço, no quadro jurídico-constitucional, das garantias de protecção do
lesado, e, sobretudo, a ausência de um critério material que justifique o
desigual tratamento, em matéria de prova, no tocante à responsabilidade
emergente de um encargo de vigilância, conforme o lesante seja a
Administração ou um particular.
Partindo de considerações que se prendem com o fundamento da
actuação dos entes públicos, que deverá estar vocacionada para a
prossecução do interesse público no respeito pelos direitos e interesses dos
administrados, estou hoje pronto a aceitar de jure condendo a definitiva
ultrapassagem do modelo dcsenhado pelo legislador de 1967 (14). Continuo
a considerar, porém, que o critério jurisprudencial hoje dominante, que veio
a ser construído em resultado uma lacuna legislativa, na medida em que
abre campo a zonas concorrentes de presunção de culpa e de
responsabilidade objectiva, é excessivo. A indistinta aplicação do regime
do artigo 493º à responsabilidade administrativa, incluindo a emergente do
exercício de actividades perigosas que o entendimento jurisprudencial
necessariamente propicia -, faz com que, neste último caso, mesmo que a
entidade pública tenha logrado ilidir a presunção de culpa, não possa evitar
uma responsabilização a título de risco, nos termos do disposto no artigo 8º
(15).
A meu ver, a diversidade das situações justifica um tratamento
diferenciado: o dever de indemnização por danos causados por coisas sobre
as quais impenda um dever de vigilância deverá ser equacionado no âmbito
das omissões ilícitas, podendo aceitar-se nesse caso a extensão do regime
da inversão do ónus da prova previsto no n.º 1 do artigo 493º do Código
Civil; já no que concerne aos danos derivados de actividades perigosas ou
14
) A actividade administrativa deve pautar-se por critérios de legalidade e eficiência que são directamente
impostos pela Constituição e a lei e postulam um dever de boa administração (cfr. artigos 266º da
Constituição e 3º a 10º do Código de Procedimento Administrativo).
15
) Como refere GOMES CANOTILHO, o advérbio excepcionalmente, aplicado no contexto verbal do
artigo 8º do Decreto-lei n.º 48051 para qualificar o funcionamento de serviços ou actividades que poderão
originar uma responsabilidade pelo risco, tem apenas o alcance de significar um perigo acentuado,
distinguindo-o do perigo vulgar que é inerente a uma grande variedade de actividades públicas. O critério
da periculosidade excepcional que está patente no artigo 8º não é, por isso, essencialmente diverso
daquele que serve para definir coisa perigosa constante do artigo 493º do Código Civil, pelo que não é
legítimo justificar a concorrência de responsabilidades (responsabilidade pelo risco e responsabilidade
por facto ilícito e culposo) com base na diferença de grau quanto à natureza das actividades ou serviços
que estão em causa (O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos, Coimbra, 1974, pág.
92).
7
excepcionalmente perigosas, o legislador deve manter-se no quadro de uma
responsabilidade objectiva como a que está actualmente prevista no artigo
8º do Decreto-Lei n.º 48051, assumindo que, desse modo, introduz um
desvio relativamente ao regime geral da lei civil.
À dualidade de critério aqui proposta poderá sempre contrapôr-se o
argumento da unidade de jurisdição que a novo CPTA deverá reservar para
as acções indemnizatórias contra a Administração (independentemente de
respeitarem a actos de gestão pública ou de gestão privada), que poderia
aconselhar a adopção de um regime substantivo único, como forma de
evitar que a discussão sobre a natureza jurídica do acto causador do dano se
reinstale a propósito da definição do regime de responsabilidade civil
concretamente aplicável .
Cabe, no entanto, observar que o risco inerente a actividades
perigosas é um paradigma clássico da responsabilidade objectiva no âmbito
do direito público, constituindo um domínio onde mais facilmente se
poderá perspectivar um dever de indemnizar não condicionado a um mero
comportamento antijurídico. Por outro lado, a responsabilidade pelo risco
assim delimitada opera em relação a serviços e operações materiais da
Administração que são geralmente identificáveis como incluídas na
actividade desenvolvida sob a égide do direito público, não suscitando
especiais dificuldades de aplicação (16).
4. A elaboração de um novo diploma sobre responsabilidade
administrativa é ainda a oportunidade para clarificar alguns conceitos, no
enquadramento dogmático da ilicitude e da culpa, acolhendo aqui os
inestimáveis contributos, que, ao longo da vigência do Decreto-Lei n.º
48051, foram sendo fornecidos pela doutrina e pela jurisprudência.
A constatação de que a ilicitude administrativa não corresponde tout
court ao comportamento antijurídico, como poderia sugerir a redacção da
norma do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 48051, conduz ao afastamento do
dever de indemnizar sempre que estejam em causa meros vícios formais do
acto administrativo (17) que não impeçam que venha a ser praticado um
novo acto com o mesmo conteúdo (18).
16
) O uso de armas de fogo no exercício de operações de polícia, fabrico, depósito ou transporte de
materiais explosivos, treinamento militar, execução de obras públicas ou uso de maquinaria
especialmente complexas, vigilância de dementes ou presos (cfr. MARIA DA GLÓRIA GARCIA, ob.
cit., pág. 47)
17
) V.g., incompetência do autor do acto, vício de forma por falta de fundamentação ou preterição de
formalidades.
18
) Cfr. GOMES CANOTILHO, ob. cit, págs.74-75, e anotação ao acórdão do STA de 12 de Dezembro
de 1989, in RLJ, ano 125º, n.º 3816, pág. 84; MARGARIDA CORTEZ, ob. cit, págs. 71 e segs.; Parecer
da Procuradoria-Geral da República n.º 46/80, de 6 de Novembro de 1980, in BMJ n.º 306, pág. 63. No
8
De outro lado, impõe-se a necessidade de definir um critério de
aferição da culpa que se ajuste às particulares exigências do exercício da
actividade administrativa (19) e para o que não será suficiente a simples
remissão para a lei geral. Releva aqui, não a diligência do homem comum,
mas a diligência de um titular de órgão ou agente avaliada segundo
elevados padrões de competência técnica, profissionalismo e eficiência que
deverão ser apanágio de uma qualquer actuação administrativa (20).
Finalmente, espera-se o reconhecimento da culpa do serviço como
integrante do elemento subjectivo, por adesão à opinio juris, embora se
julgue vantajoso englobar no conceito, não apenas a culpa colectiva,
atribuível a um deficiente funcionamento do serviço, mas também a culpa
anónima, de modo a salvaguardar os casos em que não tenha sido possível
provar a autoria do facto quando o dano resulte de um concreto
comportamento de um agente (21).
5. Uma outra questão incontornável no actual quadro jurídicoconstitucional é a suscitada pelo artigo 7º do Decerto-Lei n.º 48051 (22).
É conhecida a polémica que se instalou por virtude a aparente
contraditoriedade entre os dois segmentos normativos do preceito. O
primeiro garante a independência da acção de indemnização face ao
recurso contencioso, quando o facto danoso seja constituído por um acto
administrativo ilegal. O segundo, porém, restringe o âmbito do direito de
reparação aos danos que se não possam imputar à falta de interposição de
mesmo sentido, o acórdão do STA de 1 de Julho de 1997, in Jurisprudência Administrativa Escolhida ,
pág. 1053.
19
) Cfr. antecedente nota 14.
20
) Note-se que a jurisprudência se tem abstido, na prática, de aplicar o critério de apreciação de culpa
para que aponta o artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48051 (culpa in abstracto por referência à diligência
de um bom pai de família), optando por uma objectivação da culpa, ao considerar que o elemento
subjectivo está já pressuposto na violação, pelo agente, das normas legais a que deveria subordinar a sua
acção (ver, entre outros, o acórdão do STA de 21 de Março de 1996, in Apêndices ao Diário da
República , de 31 de Agosto de 1998, pág. 2010; cfr., também, GOMES CANOTILHO, O Problema...,
citado, pág. 78).
No sentido da exigência de uma culpa qualificada, e não meramente objectiva tal como se preconiza
no texto parece pronunciar-se, também, MARGARIDA CORTEZ. A autora defende a este propósito
que a mera ilegalidade não é suficiente para se poder inferir a culpa e propõe o funcionamento de uma
presunção judicial de culpa, tomando por base dois requisitos: que as normas violadas sejam precisas e
inequívocas; que se trate de uma ilegalidade substantiva (ob. cit, pág. 104).
21
) A hipótese típica será o dano provocado por abandono de munições ou materiais explosivos no
decurso de exercícios militares, quando não seja identificado o autor material do facto.
22
) A referida norma dispõe:
"O dever de indemnizar, por parte do Estado e demais pessoas colectivas públicas, de titulares
dos seus órgãos e dos seus agentes, não depende do exercício pelos lesados do seu direito de recorrer do
acto causador do dano; mas o direito à reparação só subsistirá na medida em que tal dano se não possa
imputar à falta de interposição do recurso ou a negligente conduta processual da sua parte no recurso
interposto".
9
recurso contencioso ou a negligente conduta processual da sua parte no
recurso interposto.
O STA começou por interpretar a ressalva contida nesta segunda
parte do preceito como constituindo uma verdadeira excepção peremptória
do exercício do direito de indemnização (por vezes caracterizada como
caso decidido ou caso resolvido), conferindo, assim, à acção
indemnizatória uma natureza meramente subsidiária em relação ao recurso
contencioso (23)
Mais recentemente - na linha do ensinamento entretanto expresso por
AFONSO QUEIRÓ (24)
a jurisprudência administrativa fixou-se no
entendimento de que a segunda parte do preceito em análise estabelece, não
a caducidade do direito de ressarcimento, mas um regime de exclusão ou
diminuição de indemnização quando a negligência processual do lesado,
por falta ou deficiente impugnação contenciosa do acto administrativo
ilegal ou de utilização de meios processuais acessórios, tenha contribuído
para a produção ou agravamento dos danos. A norma do artigo 7º
caracterizaria, assim, uma situação de concorrência de culpa do lesado,
equivalente à prevista no artigo 570º do Código Civil, relevando apenas no
plano do nexo de causalidade e da culpa (25) (26).
Segundo esta interpretação, o administrado responde pelos prejuízos
pelos quais possa considerar-se corresponsável por se ter abstido de
interpor recurso contencioso ou pedido de suspensão de eficácia que os
poderia ter evitado. Configura-se aqui uma actuação culposa do lesado 23
) Cfr., entre outros, os acórdãos de 14 de Outubro de 1986, in Acórdãos Doutrinais ,n.º 306, pág. 795,
de 18 de Maio e 17 de Fevereiro de 1994, in Apêndices ao Diário da República , de 19 de Agosto de
1996, pág. 2624, e de 20 de Dezembro de 1996, pág. 1315, respectivamente
Parecia ser também esse o entendimento que MARCELLO CAETANO, conforme se depreende da
seguinte transcrição do seu Manual de Direito Administrativo: "Daí que só possam ser abrangidas pelo
direito à reparação pecuniária, na falta de recurso contencioso do acto ilegal, aqueles prejuízos que
ficariam sempre por reparar, mesmo que o acto tivesse sido anulado e a sentença anulatória executada"
(ob. cit., 2º vol., pág. 1238).
Na mesma linha se pronuncia MARIA DA GLÓRIA GARCIA, ob. cit., págs.43-44.
24
) Anotação ao acórdão do STA de 14 de Outubro de 1986, in Revista de legislação e Jurisprudência ,
ano 120º, n.º 3763, págs. 307-310. Segundo o autor, o legislador terá pretendido consagrar no nosso
direito a solução do Código Civil Alemão (§ 239 nº 3), em que se estipula que "o dever de indemnizar não
persiste quando o lesado, dolosa ou culposamente, não tenha impedido a verificação do dano mediante a
utilização dos remédios jurídicos".
25
) Acórdão de 30 de Maio de 1995, in Apêndices ao Diário da República , de 20 de Janeiro de 1998,
pág. 4722. A mesma doutrina veio a ser reafirmada no acórdão do Pleno da Secção de 27 de Fevereiro de
1996, in Acórdãos Doutrinais n.º 420, pág. 1428, Cadernos de Justiça Administrativa n.º 1, pág. 8;
Jurisprudência Administrativa Escolhida , pág. 709.
26
) No mesmo sentido, numa dissertação de mestrado concluída em Outubro de 1995 e defendida em
Setembro do ano seguinte, mas só publicada em Dezembro de 2000, MARGARIDA CORTEZ sustenta
que a reserva contemplada na 2.ª parte do artigo 7º não constitui um limite à autonomia das acções sobre
responsabilidade, mas a simples previsão de uma situação particular de concurso de culpa de lesado que,
a verificar-se, influencia fixação do quantum indemnizatório (Responsabilidade.., pág. 249).
10
consubstanciada na omissão de uma conduta que poderia também ter
impedido a produção dos danos. É essa circunstância que, constituindo uma
das causas do dano, segundo o princípio da causalidade, desonera a
Administração do dever de indemnizar (27) (28) 29.
Como observa, porém, MARGARIDA CORTEZ, num trabalho
recentemente publicado (30), no quadro desta jurisprudência, que parece
agora ser tida como firme, a possibilidade do lesado evitar a produção ou o
agravamento dos danos decorrentes de um acto administrativo ilegal
depende fundamentalmente da probabilidade de êxito de um pedido de
suspensão de eficácia. A diligência processual do particular lesado, para
efeito da aplicação daquela disposição, terá, pois, de ser analisada à luz dos
apertados requisitos que condicionam o decretamento da medida cautelar e
de acordo, também, com a prática jurisprendicial que tem sido adoptada
nessa matéria.
Nestes termos, não poderá ser censurada, por exemplo, a falta de
interposição de um pedido de suspensão de eficácia em relação a actos de
conteúdo negativo (que os tribunais sistematicamente têm considerado
como não sendo passíveis de suspensão jurisdicional), bem como em todos
os casos típicos em que os tribunais, por regra, não reconhecem a
existência de um prejuízo de difícil reparação, ou, ao contrário, sustentam a
prevalência do interesse público na execução do acto impugnado.
6. Não obstante toda esta evolução interpretativa de sentido
favorável à protecção dos interesses dos particulares, parece claro que um
mecanismo semelhante ao do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 48051 não pode
hoje manter-se. A limitação do quantum indemnizatur, em acção de
indemnização fundada em acto administrativo ilegal, aos danos que não se
27
A culpa do lesado não é aqui utilizada em sentido rigoroso, como reportada à prática de um facto ilícito.
Pretende antes exprimir a ideia de reprovação pela imprudência ou falta de cuidado na defesa dos
próprios interesses. O acto do lesado é assim causador do prejuízo, ainda que não tenha carácter ilícito,
nem represente a violação de um dever (cfr. ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e de
Jurisprudência , ano 102, nº 60, e PESSOA JORGE, Ensaio Sobre os Pressupostos de Responsabilidade
Civil, págs. 318 a 360). No mesmo sentido, também, MARGARIDA CORTEZ, ob. cit., pág. 275.
28
) O entendimento que permite conciliar as duas regras contidas na norma do artº 7º, conferindo um
efeito útil ao aludido princípio da autonomia da acção ressarcitória, parece ser o que situa a limitação no
ressarcimento dos danos no âmbito do nexo de causalidade, e, portanto, no plano dos pressupostos da
responsabilidade civil. Nesta óptica, a segunda parte do artº 7º configuraria apenas um caso de exclusão
ou diminuição da responsabilidade quando a negligência processual do lesado tenha contribuído para a
produção ou agravamento dos danos.
29
) MARGARIDA CORTEZ sustenta, porém, divergindo, neste ponto, da apontada jurisprudência, que a
omissão do lesado não é uma autónoma causa operante do dano, mas antes uma condição da sua produção
ou agravamento ou simplesmente a ocasião para que o acto ilícito desenvolva toda a sua eficácia causal
(cfr., Cadernos de Justiça Administrativa n.º 1, págs. 17-18).
30
A Responsabilidade Civil da Administração.., citada (págs. 273 e seguintes).
11
não tenha podido evitar através da prévia impugnação contenciosa foi
concebida num momento histórico em que o recurso contencioso era o
meio processual por excelência do contencioso administrativo e as restantes
acções jurisdicionais
que integravam o chamado contencioso por
atribuição assumiam uma função meramente residual ou complementar.
A afirmação do princípio da plenitude da garantia jurisdicional
administrativa, na revisão constitucional de 1989, e, de forma mais ainda
impressiva, a parificação entre os diversos meios processuais contenciosos,
resultante da revisão de 1997 (31), veio instituir na jurisdição
administrativa, em termos práticos, a regra da correspondência entre o
direito e a acção, já há muito consagrada no processo civil, e devolver aos
particulares a faculdade de escolha do meio processual mais adequado à
defesa do direito ou interesse individual de que é titular (32).
O princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa
significa não apenas a institucionalização de uma panóplia tão ampla
quanto possível de acções jurisdicionais para garantia das posições
jurídicas subjectivas dos particulares, mas também a eliminação dc
quaisquer constrangimentos excessivos ao exercício do direito de acção,
particularmente no plano dos pressupostos processuais ou das condições de
procedência da acção.
Um lesado por um acto administrativo ilegal deverá, pois, poder
optar por um determinado meio de reacção segundo um critério de
idoneidade processual.
31
) Dispunha o artigo 268º, n.ºs 4 e 5, da CRP, na redacção resultante da Lei Constitucional n.º 1/89;
4. É garantido aos interessados recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer
actos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses
legalmente protegidos.
5. É igualmente sempre garantido aos administrados o acesso à justiça administrados para tutela dos
seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Estatui agora, na redacção introduzida pela revisão de 1997, o n.º 4 desse artigo:
4
É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses
legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos interesses, a
impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a
determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares
adequadas.
32
) Veja-se, quanto ao sentido evolutivo da garantia constitucional, VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça
Administrativa, 2.ª edição, Coimbra, págs. 57-60; VASCO PEREIRA DA SILVA, Ventos de Mudança no
Contenciosos Administrativo, Coimbra, 2000, págs. 80-81 e 90-91.
12
Deste modo, uma acção de responsabilidade civil fundada em acto
administrativo ilegal deverá ser tida como um meio processual próprio,
designadamente quando seja previsível que o recurso contencioso a
interpor do mesmo acto não possa já conduzir à reconstituição da situação
jurídica violada, em termos de assegurar por essa via a indemnização
através do princípio da reposição natural. Isso sucederá, em regra, com os
actos denegatórios de licenças precárias, de licenças policiais de curta
duração ou de licenças renováveis, e bem assim, do ponto de vista já
contra-interessados, em relação a actos de concessão de serviços públicos
temporalmente limitados (v. g., concessão de transportes escolares, cujo
prazo se encontre circunscrito ao correspondente ano lectivo), em que a
duração média do recurso contencioso, nas suas diversas instâncias de
apreciação jurisdicional, não permita alcançar uma decisão final em tempo
útil (33).
Defendi, no âmbito da discussão pública da reforma de contencioso
administrativo, que o futuro Código de Processo nos Tribunais
Administrativos não deveria admitir a formulação simultânea de pedidos de
anulação contenciosa e de indemnização, por considerar que essa
cumulação seria incompatível com as exigências de celeridade de um meio
processual do tipo impugnatório e, na prática, iria redundar numa
tendencial transformação dos recursos contenciosos em formas morosas e
complexas de tramitação processual e de indagação probatória. Pareceume, nesse conspecto, que o único modo de manter viva a virtualidade do
recurso contencioso, como meio de defesa dos particulares, era atribuir-lhe
um carácter abreviado ou quase urgente que pudesse evitar a efectiva lesão
de uma posição jurídica subjectiva ou, ao menos, impedir que essa lesão se
tornasse irreversível na esfera jurídica do destinatário de um acto
administrativo.
33
) Paradigmática é a situação analisada no acórdão do STA(Pleno) de 23 de Junho de 1998,
( Jurisprudência Administrativa Escolhida , pág. 1097) em que se declarou a inutilidade superveniente da
lide em recurso contencioso que tinha por objecto o acto de adjudicação de fornecimento de material
informático de prestação de serviços (consistente em acções formação a terem lugar imediatamente após a
entrega dos bens), com base na circunstância de no decurso do processo os efeitos jurídicos directamente
derivados do acto impugnado se terem integralmente produzido através da execução do contrato, não
sendo já possível obter, pela eventual anulação da adjudicação, a destruição das prestações contratuais
realizadas pelo adjudicatário. O tribunal remeteu, assim, o interessado para a competente acção de
indemnização, com a consequente inutilização de toda a actividade processual entretanto desencadeada
com a interposição do recurso contencioso de anulação.
13
Como se sabe não deverá ser essa a opção do legislador. Mas a
possibilidade de cumulação do pedido de anulação contenciosa e de
indemnização, concebida como uma outra solução processual destinada a
reforçar a protecção dos particulares, não invalida o interesse em
reconhecer a independência da acção de indemnização, de forma a
assegurar que o lesado, ponderando a eficiência do meio em função da
natureza dos interesses a acautelar, possa lançar mão unicamente, se assim
o entender, da acção ressarcitória.
De outro modo, a manutenção de um regime similar ao actualmente
previsto no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 48051, forçaria o lesado a utilizar
um de dois procedimentos, com consequências nem sempre satisfatórias:
ou a cumular, no recurso contencioso, os pedidos de anulação e de
indemnização, colocando-se assim a coberto da imputação de uma conduta
processual omissiva ou negligente, mas reduzindo drasticamente a
operacionalidade do meio impugnatório; ou a interpor previamente um
recurso contencioso, com o que pode desencadear uma actividade
processual inútil quando o recurso não possa culminar, por força das
circunstâncias do caso, com a restauração natural da ordem jurídica
violada.
E interessa reter um outro elemento. É que no actual quadro de
desenvolvimento do contencioso administrativo que é propiciado pelo
princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa, o esperado
alargamento dos meios processuais e a inclusão de medidas cautelares de
tutela antecipatória, e não apenas conservatória, virá introduzir novos
factores de variabilidade na apreciação da diligência processual do lesado,
implicando um agravamento da sua posição jurídica na acção de
indemnização. Com efeito, não será já possível justificar a inércia do
particular com o presumível insucesso do pedido de suspensão de eficácia,
quando, em complemento de uma impugnação contenciosa, o particular
puder dispor de providência cautelares que tutelem preventivamente
interesses substantivos pretensivos.
Tudo aponta pois, para que se caminhe para a plena autonomia da
acção indemnizatória, com a consequente eliminação de causas de redução
ou exclusão do quantum indemnizatur com base em motivos de natureza
meramente processual.
14
E não vale argumentar com um possível efeito expansivo da
responsabilização do Estado.
O acto administrativo ilegal potencia sempre uma responsabilidade
administrativa, sendo indiferente, do ponto de vista dos interesses
financeiros das Administração, que o direito ressarcitório dos particulares
seja exercitado através de um recurso contencioso ou de uma acção de
indemnização.
Já hoje o interessado tem sempre o direito de sindicar
contenciosamente o acto lesivo, obtendo, em caso de procedência, ou a
reintegração da ordem jurídica violada que representa já uma forma de
ressarcimento ou uma indemnização por equivalente, cuja fixação o
tribunal poderá inclusivamente remeter para a competente acção de
responsabilidade civil se a matéria for de complexa indagação (34) (35).
7. Em relação directa com a solução que venha a adoptar-se quanto à
manutenção ou não de um mecanismo idêntico ao do artigo 7º do DecretoLei n.º 48051, está o problema da prescrição do direito de indemnização
que tenha por base acto administrativo ilegal.
Como se sabe, a LPTA, alterando o regime originariamente
estabelecido pelo artigo 5º do Decreto-Lei n.º 48051 que, no que se refere
à prescrição, efectuava uma remissão genérica para os prazos da lei civil veio estatuir que, quando o direito resultar da prática de acto cuja
legalidade seja impugnada contenciosamente, a prescrição não terá lugar
antes de decorridos 6 meses sobre o trânsito em julgado da respectiva
sentença." (artigo 71º, n.º 3) (36)
34
)Cfr. artigo 10º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho. Norma de idêntico alcance consta
do n.º 4 do artigo 160º do Anteprojecto do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
35
) A acentuação do carácter subjectivista do recurso contencioso, que resulta da parificação dos meios
processuais contenciosos e que a redução drástica da intervenção processual do Ministério Público
nessa forma de processo, prevista nas directrizes políticas da reforma de contencioso administrativo em
curso, vem reafirmar aponta no sentido de que a reintegração da ordem jurídica violada em sede de
execução da sentença anulatória tem já um efeito reparador dos danos resultantes do acto administrativo
ilegal, envolvendo dessa forma um mecanismo de responsabilidade civil. Em sentido oposto, porém,
MARGARIDA CORTEZ, ob. cit., págs. 174-177.
36
) Essa genérica remissão para a lei civil, quanto ao prazo de prescrição, inculca que ela se refere, não
apenas à estrita indicação do prazo, mas também à determinação do seu termo inicial e do modo de
contagem, incluindo portanto as regras gerais relativas à suspensão e interrupção da prescrição.
Nesta linha de entendimento, poderia reputar-se, sem grande margem para dúvidas, como causa
interruptiva da prescrição, nos termos do artigo 323º, n.º 1, do Código Civil, a citação da autoridade
15
A jurisprudência dividiu-se quanto à interpretação a dar a esta norma
( )
que entretanto veio também a ser julgada organicamente
inconstitucional (38) -, mas o melhor entendimento parece ser aquele que vê
no n.º 3 do artigo 71º da LPTA a única intencionalidade de assegurar um
prolongamento do prazo de prescrição quando haja prévia interposição de
recurso contencioso, com o consequente afastamento da causa interruptiva
constante do artigo 323º, n.º 1, do Código Civil.
37
De facto, se a lei prevê que a prescrição se não verifique antes de
decorridos 6 meses sobre o trânsito da respectiva sentença anulatória, é
porque pressupõe que o direito se possa ter extinguido, pelo decurso do
prazo do seu exercício, na pendência do recurso contencioso ou
imediatamente após o trânsito em julgado da sentença nele proferida. Esta
constatação traz implícito, por parte do legislador, o reconhecimento de que
a interposição do recurso contencioso não é susceptível de desencadear a
interrupção do prazo prescricional do direito de indemnização, nos termos
gerais do artigo 323º, n.º 1, do Código Civil (39)
E bem se compreende que assim seja.
Desde que se torne exigível a prévia impugnação contenciosa do acto
administrativo ilegal, em resultado do regime definido no artigo 7º do
Decreto-Lei n.º 48051, a interrupção do prazo de prescrição do direito de
indemnização que pudesse resultar da notificação da autoridade recorrida
para responder no processo de recurso contencioso - com o prolongamento
dos efeitos da interrupção até ao julgamento definitivo da causa e a
contagem de um novo prazo de três anos a partir do trânsito em julgado da
decisão -, alargaria excessivamente o prazo para propositura da acção de
indemnização. A norma do art.º 71º, n.º 3, da LPTA tem pois a finalidade
de reduzir esse prazo a um limite razoável (seis meses), tanto mais que o
direito de indemnização que se pretende exercitar na acção se conexiona
recorrida para contestar a petição de recurso contencioso de acto administrativo ilegal, visto que a
interposição desse recurso não poderia deixar de ser entendida como uma manifestação indirecta da
intenção, por parte do lesado, de exercer o direito de indemnização.
37
) Veja-se, entre outros, os acórdãos do STA de 24 de Outubro de 1991, de 16 de Janeiro de 1992 e de 9
de Fevereiro de 1993. in Apêndices ao Diário da República , de 31 de Outubro de 1995, pág. 5844, de
29 de Dezembro de 1995, pág. 257, e de 14 de Agosto de 1994, pág. 727, respectivamente.
38
)Cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 148/96, publicado no Diário da República , II Série, de 30
de Novembro de 1996, e, na sua esteira, o acórdão do STA de 2 de Outubro de 1997, publicado nos
Cadernos de Justiça Administrativa , n.º 12, pág. 31.
39
) O mesmo dispositivo (artigo 71º, n.º 3, da LPTA) não exclui, porém, que o prazo prescricional possa
ser interrompido, nos termos gerais, por outra causa, e, designadamente, por efeito da notificação da
autoridade requerida para responder em processo de execução de julgado (neste sentido, o citado acórdão
de 22 de Novembro de 1994).
16
directamente com a matéria de recurso contencioso quando este seja
preliminarmente interposto.
A autonomia da acção de indemnização
vem alterar, porém, os dados do problema.
como agora se preconiza
Se o lesado puder exercer o direito de indemnização em processo
autónomo, independentemente da averiguação prévia da legalidade do acto
administrativo, não faz sentido que o prazo prescricional fique subordinado
às vicissitudes do recurso contencioso, se este tiver sido também interposto,
a ponto de se conferir ao lesado o benefício de prorrogação do prazo para
além da decisão definitiva do recurso. Porém, nesta mesma hipótese de
instauração conjunta de recurso contencioso e de acção de indemnização,
dificilmente se poderá inviabilizar o funcionamento da causa interruptiva
prevista no artigo 323º, n.º 1, do Código Civil, visto que a impugnação
judicial do acto, cujo prazo é mais curto, é um indicador preciso de que o
recorrente pretende exercer o seu direito de ressarcimento, caso não
obtenha uma completa reparação por via daquele meio impugnatório (40).
A autonomia da acção de indemnização postula, por conseguinte, o
funcionamento das regras gerais da prescrição (41).
8.Uma nota final sobre a responsabilidade objectiva do Estado.
Discute-se na doutrina se o âmbito normativo do artigo 22º da CRP
abrange apenas a responsabilidade por factos ilícitos e culposos ou também
a responsabilidade por actos lícitos e pelo risco. A dúvida - que tem sido
resolvida maioritariamente no sentido da segunda proposição (42)- é
40
) MARGARIDA CORTEZ admite, porém, na perspectiva de uma total autonomia entre o exercício do
direito de recurso contencioso e do de indemnização, que o prazo prescricional relativo à responsabilidade
civil se comece a contar a partir do momento da prática do acto administrativo, sem qualquer interrupção,
caso se interpusesse do mesmo acto recurso contencioso ( Cadernos de Justiça Administrativa , n.º 10,
pág. 38).
41
) Sem embargo dessa possibilidade de interrupção, o prazo prescricional deverá iniciar-se com a
notificação ou outra forma de conhecimento oficial do acto administrativo ilegal, salvo se o destinatário
demonstrar que só teve conhecimento da ilegalidade num momento ulterior. Neste sentido se pronunciou
já o acórdão do STA de 24 de Outubro de 19991 (in Apêndices ao Diário da República de 31 de
Outubro de 1995, pág. 5844), considerando que, na ausência de outra prova que permita situar o
conhecimento do direito de indemnização em momento anterior, deve entender-se que o prazo
prescricional começa a correr, pelo menos, na data em que o Autor formulou a petição de recurso
contencioso e identificou nele as ilegalidades que inquinam o acto contenciosamente recorrido.
42
) No sentido de que o preceito abrange também a responsabilidade do Estado por actos lícitos e pelo
risco, pronunciam-se: GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra, pág. 169; VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 337; SINDE MONTEIRO,
Aspectos Particulares da Responsabilidade Médica, in Direito da Saúde e Bioética , Lisboa, 1991, págs.
142-143. Uma interpretação restritiva, em termos de considerar apenas abrangida a responsabilidade
17
suscitada pela referência que no texto constitucional é feita à
responsabilidade solidária das entidades públicas e dos titulares de órgãos,
funcionários e agentes, conjugada com o facto de o dever de indemnizar,
por parte destes últimos, se encontrar circunscrito, nos termos do artigo
271º, a uma responsabilidade meramente subjectiva (acções ou omissões
de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos
dos cidadãos )
Todavia, mesmo uma interpretação restritiva do preceito
constitucional não poderia impedir o legislador ordinário de definir os
termos de uma responsabilidade objectiva do Estado e das demais pessoas
colectivas públicas. O que sucede é que o artigo 22º não estabelece
qualquer directriz quanto aos pressupostos do dever de indemnizar nessa
forma de responsabilidade, daí decorrendo, implicitamente, uma maior
liberdade de conformação no nível infraconstitucional.
Referi já que a potencialidade danosa de actividades ou serviços
administrativos perigosos deveria ser inserida, tal como hoje acontece, no
âmbito da responsabilidade casual, remetendo-se, ao invés, para o domínio
do ilícito omissivo as hipóteses de insuficiência dos serviços por violação
dos deveres de vigilância que impendem sobre as coisas que estão na
disponibilidade operativa da Administração.
E que dizer dos prejuízos causados por acontecimentos imprevisíveis
e inevitáveis (como inundações ou deslizamento de terras), que
aparentemente integram o conceito de caso fortuito ou de força maior, mas
que as autoridades
governamentais, fazendo actuar critérios de
discricionaridade, têm vindo progressivamente a incluir no risco social,
mediante a atribuição de compensações monetárias às vítimas?
Em que medida esses efeitos lesivos não poderão ter como causa
remota a ausência de medidas de planificação de protecção civil, ou erros
de concepção de obras de regulação dos caudais dos rios ou de planos de
ordenamento do território, ou, até, à ilegalidade de actos administrativos de
licenciamento municipal? Até que ponto é aceitável continuar a legitimar
subjectiva, é sustentada por RUI MEDEIROS, O Ensaio sobre Responsabilidade Civil do Estado por
Actos Legislativos, Coimbra, 1992, págs. 92 e segs.
18
as ajudas económicas concedidas nesses casos por apelo a um mero
princípio de solidariedade?
Pergunto-me, pois, se não é este o momento para ensaiar a disciplina
jurídica própria do caso fortuito ou de força maior em direito público, por
aproximação à figura constitucional da emergência ou calamidade pública,
prevenindo, porventura, zonas de interpenetração com o risco social, onde,
de acordo com critérios legais pré-definidos, possa haver lugar ainda a uma
responsabilidade objectiva.
Num outro plano, não será difícil conceber uma certa propensão
expansiva da responsabilidade derivada da imposição de sacrifícios.
Os trabalhos públicos de grande envergadura (como aqueles que se
tiveram lugar a propósito da Expo 98 e os que ocorrem agora no Porto, por
via da sua candidatura a Capital Europeia da Cultura), as obras de
requalificação urbana que se realizam um pouco por todo o lado,
designadamente no âmbito do Programa Polis, as intervenções de cariz
ambiental (de que é exemplo o caso da co-incineração), a proliferação e o
alargamento de zonas pedonais nos centros das cidades, poderão gerar
prejuízos não desprezíveis na esfera jurídica de cidadãos (comerciantes e
moradores) que, não sendo sujeitos da relação jurídica urbanística ou
ambiental, são indirectamente afectados pela realização das obras. As
quais, uma vez concluídas, poderão ainda induzir mudanças duradouras na
situação de vida dos particulares por virtude da necessidade de adaptação à
nova função social do espaço urbano requalificado (mudança de ramo de
comércio, mudança de local de residência, impossibilidade de acesso
automóvel à habitação).
Devemos abrir aqui um novo espaço à contratatualização da
actividade administrativa, de modo a incluir esses grupos de interesses com
pólos da relação jurídica, aplicando-lhes designadamente as técnicas
compensatórias já previstas em instrumentos de planeamento urbanístico,
ou será este ainda um caso a solucionar nos estritos limites da
responsabilidade por actos lícitos?
Eis, enfim, algumas questões que o legislador tem agora
oportunidade de enfrentar se não quiser limitar-se a um programa de
soluções mais ou menos previsíveis.
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RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ( ) 1