1 RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (1) Carlos Alberto Fernandes Cadilha 1. Uma breve explanação sobre a responsabilidade civil da Administração, no âmbito dos trabalhos preparatórios de um novo diploma legal sistematizador da responsabilidade patrimonial das entidades públicas como me foi proposto fazer aqui agora , terá de partir de duas opções de princípio já pressupostas: (a) o reconhecimento de que a Constituição remeteu para o legislador o encargo de concretizar a garantia jurisdicional da reparação de danos imputáveis aos titulares de órgãos, funcionários e agentes administrativos, fixando, no entanto, alguns princípios basilares inultrapassáveis (2); (b) a directriz já delineada no programa político da reforma de contencioso administrativo em curso de instituir uma unidade de jurisdição no tocante às acções de responsabilidade civil da Administração, independentemente da natureza de gestão pública ou gestão privada dos actos causadores dos danos indemnizáveis, o que naturalmente poderá influenciar algumas das soluções funcionais a adoptar no regime substantivo. Estes dois parâmetros um parâmetro constitucional e um parâmetro de política legislativa deverão pontuar o percurso sobre alguns dos aspectos problemáticos do tema: as formas de responsabilidade; as omissões ilícitas, mormente no plano das omissões do dever de vigilância; autonomia ou subsidariedade das acções de indemnização; a prescrição do direito de indemnização. 2. Segundo a leitura que faço dos preceitos constitucionais que mais directamente interessa considerar artigos 22º e 271º(3)-, a 1 ) Comunicação apresentada no colóquio sobre Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado , organizado pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça, e que teve lugar nos dias 8 e 9 de Março de 2001, no Auditório da Torre do Tombo. 2 ) Neste sentido, BARBOSA DE MELO, Responsabilidade civil extracontratual não cobrança de derrama pelo Estado, Colectânea de Jurisprudência , ano IX, Tomo 4, 1986, pág. 36; AFONSO VAZ, A Responsabilidade Civil do Estado Ccnsiderações Breves sobre o seu Estatuto Constitucional; MARGARIDA CORTEZ, Responsabilidade Civil da Administração por Actos Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado, Coimbra, 2000, pág. 30. 3 ) Dispõem: Artigo 22º - O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem. 2 responsabilidade delitual do Estado e das demais entidades públicas pelos danos causados pelos titulares de órgãos, funcionários e agentes é uma responsabilidade circunscrita aos actos funcionais, isto é, aos actos praticados no exercício de funções ou por causa desse exercício. É além disso uma responsabilidade solidária, competindo ao legislador ordinário definir os termos em que, no âmbito das relações internas, poderá ser exercido o direito de regresso (artigo 271º, n.º 4). A primeira consequência que decorre do texto constitucional é a necessidade de superar o complexo esquema de repartição de responsabilidade que se encontra actualmente consignado nos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967 (4). O Decreto-Lei n.º 48051 respeita unicamente à responsabilidade derivada de actos de gestão pública, excluindo implicitamente do seu campo de aplicação os actos pessoais praticados por titulares de órgãos, funcionários e agentes. É esse princípio-regra que deriva do artigo 2º, n.º 1: O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas de direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções ou por causa desse exercício. (5) No estrito âmbito dos actos funcionais, o diploma distingue depois entre a responsabilidade funcional e a responsabilidade pessoal: na responsabilidade funcional incluem-se os danos emergentes de actos praticados com negligência, operando ou não o direito de regresso, por parte da pessoa colectiva pública, consoante se trate de negligência grave Artigo 271º 1 Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a acção ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica. 2- (...) 3 (...) 4 (...) 4 ) A inconstitucionalidade das normas dos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48051, face ao princípio da responsabilidade solidária decorrente do artigo 22º da Constituição, foi já defendida na doutrina (RUI MEDEIROS, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992, pág. 122) e declarada, no que concerne especificamente à norma do artigo 3º,n.º 2, pela acórdão do STJ de 6 de Maio de 1986 (in BMJ n.º 357, pág. 392). Sobre esta temática, ver, também, MARIA DA GLÓRIA GARCIA, A Responsabilidade Civil do Estado e demais Pessoas Colectivas Públicas, Conselho Económico e Social, Série Estudos e Documentos , Lisboa, 1997, págs. 69-70. 5 ) Relativamente aos danos produzidos fora do exercício de funções ou por ocasião delas mas não por causa do seu exercício, os servidores do Estado e das demais pessoas colectivas públicas respondem pessoalmente perante os tribunais comuns e segundo o regime de direito civil. 3 ou leve (artigo 2º, n.º 1); a responsabilidade pessoal ocorre em relação a danos resultantes de actos dos titulares dos órgãos ou agentes que excedam o limites das funções (6) ou de actos praticados com dolo, sendo que, neste último caso, funciona a responsabilidade solidária da pessoa colectiva pública (artigo 3º, n.º 1) (7). Poderão assim configurar-se, no regime ainda em vigor, quatro situações distintas: (a) responsabilidade exclusiva da Administração (actos praticados com negligência leve); (b) responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (actos praticados com negligência grave); (c) responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo). (d) responsabilidade exclusiva dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes (actos que excedam os limites das funções). Hoje, face ao princípio constitucional vertido no artigo 22º, uma vez que continua a exigir-se uma conexão entre os actos de violação de direitos ou interesses dos particulares e a relação de serviço, e se estipula para todos os casos uma responsabilidade em forma solidária da Administração, o que se impõe é que o legislador ordinário clarifique o conceito de acto funcional, por contraposição ao acto pessoal, delimitando desse modo o âmbito de aplicação da lei de responsabilidade administrativa, e, 6 ) Por actos que tiverem excedido os limites das suas funções deverão entender-se, não os actos pessoais como por vezes vem referido na doutrina, mas os actos praticados no exercício de funções ou por causa desse exercício, mas que envolvam abuso de autoridade ou excesso de poder, bem como os casos extremos de incompetência ou de desvio de procedimento, e, em geral, os actos dirigidos à satisfação de interesses pessoais. A lei retoma aqui, ao menos em parte, um critério de delimitação da responsabilidade funcional e pessoal baseado no vício que afectava o acto administrativo, que se encontrava expresso nos artigos 366º e 367º do Código Administrativo de 1936/40. Estas disposições estatuíam: Artigo 366º - O concelho, a freguesia e a província (o distrito, a partir de 1959) respondem civilmente pelas perdas e danos resultantes das deliberações dos respectivos corpos administrativos ou dos actos que os seus órgãos executivos, funcionários, assalariados ou representantes praticarem com ofensa da lei, mas dentro das respectivas atribuições e competência, com observância das formalidades essenciais e para a realização dos fins legais. § único (...) Artigo 367º - Os presidentes, vogais, funcionários, assalariados ou representantes dos corpos administrativos, e bem assim os administradores e gerentes dos serviços municipalizados, federações de municípios e uniões de freguesias, são pessoalmente responsáveis pelos actos em que intervenham e de que resultem para outrem perdas e danos, sempre que aqueles não tenham sido praticados dentro das suas atribuições e competência, com observância das formalidades essenciais e para a realização dos fins legais. Veja-se, a este propósito, MARCELLO CAETANO, Tratado Elementar de Direito Administrativo, Coimbra, 1943, pág. 410. No sentido exposto, ainda, o acórdão do STA de 22 de Novembro de 1994, in Jurisprudência Administrativa Escolhida , pág. 603). 7 ) Idêntico regime derivava para as autarquias locais dos artigos 90º e 91º da Lei n.º 100/84, de 29 de Março, e consta actualmente dos artigos 96º e 97º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro. 4 concomitantemente, estabeleça os casos em que tem lugar o exercício do direito de regresso, quer por parte do Estado ou das demais entidades públicas, quer por parte dos funcionários e agentes que tenham sido chamados individualmente a satisfazer o crédito do lesado. E dada a impossibilidade que directamente decorre da directiva constitucional de fazer incidir sobre os funcionários ou agentes uma responsabilidade pessoal exclusiva (8), mesmo em relação a danos que resultem de actos em que estes tenham excedido os limites das suas funções, a alternativa que se depara ao legislador ordinário é a de estender a esses casos o regime do exercício de direito de regresso por parte da Administração, em paralelo com o que já hoje sucede com os danos derivados de actos funcionais praticados com negligência grave ou dolo. O direito de regresso da Administração deverá agora abranger todas as situações que, no regime do Decreto-Lei n.º 48051, correspondiam à responsabilidade pessoal do funcionário, e à responsabilidade solidária e à responsabilidade subsidiária da Administração. 3. Uma outra exigência que deriva da norma do artigo 22º da Constituição refere-se ao requisito do facto ilícito, que pode agora consistir tanto num comportamento positivo como numa omissão. O Decreto-Lei n.º 48051, ao definir os termos em que opera a responsabilidade administrativa, não faz qualquer menção às omissões ilícitas, o que suscitou dificuldades de interpretação, mormente na área da omissão de deveres de vigilância. Tenho defendido e sustentei pelo menos em dois acórdãos do STA em que essa tese fez vencimento (9) que nas acções de responsabilidade civil extracontratual da Administração por factos ilícitos e culposos, à luz do regime constante do Decreto-Lei n.º 48051, não funciona a presunção de culpa prevista artigo 493º do Código Civil. Fundamentalmente com base nos seguintes argumentos: 8 ) As entidades públicas, em virtude da sua responsabilidade patrimonial solidária, funcionam como garante do pagamento da indemnização, independentemente do grau de culpa que possa imputar-se à conduta lesiva do funcionário ou agente. Daí que o credor possa exigir a prestação integral à Administração ou ao seu servidor, ou contra ambos conjuntamente, cabendo o direito de regresso, por parte do demandado, nos termos que vierem a ser fixados na lei regulamentadora. 9 ) Acórdão de 16 de Maio de 1995, in Cadernos de Justiça Administrativa , n.º 10, pág. 3, e Apêndices ao Diário da República , de 20 de Janeiro de 1998, pág. 4397; e acórdão de 7 de Novembro de 1995, in Apêndices ao Diário da República , de 30 de Abril de 1998, pág. 8530. 5 (a) O Decreto-Lei n.º 48051 não contém uma norma geral remissiva para o Código Civil, contemplando apenas remissões para aspectos concretos do regime da responsabilidade civil (apreciação da culpa, pluralidade de responsáveis, prescrição do direito de indemnização); (b) A aplicação subsidiária da lei civil ocorre apenas no tocante a princípios gerais, e apenas quando a regulamentação constante do Decreto-Lei n.º 48051 for omissa; (c) Os casos de presunção de culpa configuram regras excepcionais, pelo que o respectivo regime não poderá ser aplicado subsidiariamente; (d) A remissão expressa constante do n.º 1 do artigo 4º do DecretoLei n.º 48051 (10) deve entender-se como feita para o n.º 2 do artigo 487º do Código Civil, visto que se reporta à apreciação da culpa, e não ao ónus da prova; (e) A exclusão da presunção de culpa no domínio da responsabilidade da Administração por facto ilícito e culposo torna-se compreensível de jure constituto como factor limitativo do princípio da indemnização e é a solução mais consentânea com a unidade do sistema jurídico; (f) Tendo o legislador optado por enquadrar a tutela ressarcitória de danos decorrentes de coisas e actividades excepcionalmente perigosas na responsabilidade objectiva, não faz sentido que contemplasse igualmente a inversão do ónus de prova, no âmbito de uma responsabilidade delitual, relativamente a todas as coisas, actividades ou serviços perigosos, instituindo assim para a Administração um regime de responsabilidade mais amplo do que o previsto para o direito privatístico (11). Este entendimento foi arredado pelo Pleno da Secção (12) que reafirmou a aplicabilidade da presunção de culpa - e criticado na doutrina (13), mas, em bom rigor, mais com base em considerações gerais, que 10 ) Dispõe: A culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada nos termos do artigo 487º do Código Civil . 11 ) Note-se que, a admitir-se que o artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48051 efectua uma remissão para toda a disciplina do artigo 487º do Código Civil, incluindo o regime de repartição do ónus da prova a que se refere o seu n.º 2, essa remissão deve ter-se como feita, em bloco, para qualquer das situações contempladas no artigo 493º (culpa in vigilando e presunção de culpa por danos causados por actividades perigosas), englobando, por isso, danos emergentes do funcionamento de serviços e actividades administrativas que revistam excepcional perigosidade, que se encontravam já abrangidas pela previsão do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 48051, na modalidade de responsabilidade pelo risco. 12 ) Acórdão do STA(Pleno) de 29 de Abril de 1998, in Jurisprudência Administrativa Escolhida , pág. 1089. 13 ) MARIA JOSÉ RANGEL MESQUITA, anotação ao acórdão de 16 de Maio de 1995, in Cadernos de Justiça Administrativa , n.º 10 , págs. 6-10. 6 relevam no plano da política legislativa, do que por apelo a critérios estritos de interpretação da lei. Evoca-se uma desejável evolução no sentido de um progressivo alargamento da responsabilização da Administração e, também, um reforço, no quadro jurídico-constitucional, das garantias de protecção do lesado, e, sobretudo, a ausência de um critério material que justifique o desigual tratamento, em matéria de prova, no tocante à responsabilidade emergente de um encargo de vigilância, conforme o lesante seja a Administração ou um particular. Partindo de considerações que se prendem com o fundamento da actuação dos entes públicos, que deverá estar vocacionada para a prossecução do interesse público no respeito pelos direitos e interesses dos administrados, estou hoje pronto a aceitar de jure condendo a definitiva ultrapassagem do modelo dcsenhado pelo legislador de 1967 (14). Continuo a considerar, porém, que o critério jurisprudencial hoje dominante, que veio a ser construído em resultado uma lacuna legislativa, na medida em que abre campo a zonas concorrentes de presunção de culpa e de responsabilidade objectiva, é excessivo. A indistinta aplicação do regime do artigo 493º à responsabilidade administrativa, incluindo a emergente do exercício de actividades perigosas que o entendimento jurisprudencial necessariamente propicia -, faz com que, neste último caso, mesmo que a entidade pública tenha logrado ilidir a presunção de culpa, não possa evitar uma responsabilização a título de risco, nos termos do disposto no artigo 8º (15). A meu ver, a diversidade das situações justifica um tratamento diferenciado: o dever de indemnização por danos causados por coisas sobre as quais impenda um dever de vigilância deverá ser equacionado no âmbito das omissões ilícitas, podendo aceitar-se nesse caso a extensão do regime da inversão do ónus da prova previsto no n.º 1 do artigo 493º do Código Civil; já no que concerne aos danos derivados de actividades perigosas ou 14 ) A actividade administrativa deve pautar-se por critérios de legalidade e eficiência que são directamente impostos pela Constituição e a lei e postulam um dever de boa administração (cfr. artigos 266º da Constituição e 3º a 10º do Código de Procedimento Administrativo). 15 ) Como refere GOMES CANOTILHO, o advérbio excepcionalmente, aplicado no contexto verbal do artigo 8º do Decreto-lei n.º 48051 para qualificar o funcionamento de serviços ou actividades que poderão originar uma responsabilidade pelo risco, tem apenas o alcance de significar um perigo acentuado, distinguindo-o do perigo vulgar que é inerente a uma grande variedade de actividades públicas. O critério da periculosidade excepcional que está patente no artigo 8º não é, por isso, essencialmente diverso daquele que serve para definir coisa perigosa constante do artigo 493º do Código Civil, pelo que não é legítimo justificar a concorrência de responsabilidades (responsabilidade pelo risco e responsabilidade por facto ilícito e culposo) com base na diferença de grau quanto à natureza das actividades ou serviços que estão em causa (O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos, Coimbra, 1974, pág. 92). 7 excepcionalmente perigosas, o legislador deve manter-se no quadro de uma responsabilidade objectiva como a que está actualmente prevista no artigo 8º do Decreto-Lei n.º 48051, assumindo que, desse modo, introduz um desvio relativamente ao regime geral da lei civil. À dualidade de critério aqui proposta poderá sempre contrapôr-se o argumento da unidade de jurisdição que a novo CPTA deverá reservar para as acções indemnizatórias contra a Administração (independentemente de respeitarem a actos de gestão pública ou de gestão privada), que poderia aconselhar a adopção de um regime substantivo único, como forma de evitar que a discussão sobre a natureza jurídica do acto causador do dano se reinstale a propósito da definição do regime de responsabilidade civil concretamente aplicável . Cabe, no entanto, observar que o risco inerente a actividades perigosas é um paradigma clássico da responsabilidade objectiva no âmbito do direito público, constituindo um domínio onde mais facilmente se poderá perspectivar um dever de indemnizar não condicionado a um mero comportamento antijurídico. Por outro lado, a responsabilidade pelo risco assim delimitada opera em relação a serviços e operações materiais da Administração que são geralmente identificáveis como incluídas na actividade desenvolvida sob a égide do direito público, não suscitando especiais dificuldades de aplicação (16). 4. A elaboração de um novo diploma sobre responsabilidade administrativa é ainda a oportunidade para clarificar alguns conceitos, no enquadramento dogmático da ilicitude e da culpa, acolhendo aqui os inestimáveis contributos, que, ao longo da vigência do Decreto-Lei n.º 48051, foram sendo fornecidos pela doutrina e pela jurisprudência. A constatação de que a ilicitude administrativa não corresponde tout court ao comportamento antijurídico, como poderia sugerir a redacção da norma do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 48051, conduz ao afastamento do dever de indemnizar sempre que estejam em causa meros vícios formais do acto administrativo (17) que não impeçam que venha a ser praticado um novo acto com o mesmo conteúdo (18). 16 ) O uso de armas de fogo no exercício de operações de polícia, fabrico, depósito ou transporte de materiais explosivos, treinamento militar, execução de obras públicas ou uso de maquinaria especialmente complexas, vigilância de dementes ou presos (cfr. MARIA DA GLÓRIA GARCIA, ob. cit., pág. 47) 17 ) V.g., incompetência do autor do acto, vício de forma por falta de fundamentação ou preterição de formalidades. 18 ) Cfr. GOMES CANOTILHO, ob. cit, págs.74-75, e anotação ao acórdão do STA de 12 de Dezembro de 1989, in RLJ, ano 125º, n.º 3816, pág. 84; MARGARIDA CORTEZ, ob. cit, págs. 71 e segs.; Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 46/80, de 6 de Novembro de 1980, in BMJ n.º 306, pág. 63. No 8 De outro lado, impõe-se a necessidade de definir um critério de aferição da culpa que se ajuste às particulares exigências do exercício da actividade administrativa (19) e para o que não será suficiente a simples remissão para a lei geral. Releva aqui, não a diligência do homem comum, mas a diligência de um titular de órgão ou agente avaliada segundo elevados padrões de competência técnica, profissionalismo e eficiência que deverão ser apanágio de uma qualquer actuação administrativa (20). Finalmente, espera-se o reconhecimento da culpa do serviço como integrante do elemento subjectivo, por adesão à opinio juris, embora se julgue vantajoso englobar no conceito, não apenas a culpa colectiva, atribuível a um deficiente funcionamento do serviço, mas também a culpa anónima, de modo a salvaguardar os casos em que não tenha sido possível provar a autoria do facto quando o dano resulte de um concreto comportamento de um agente (21). 5. Uma outra questão incontornável no actual quadro jurídicoconstitucional é a suscitada pelo artigo 7º do Decerto-Lei n.º 48051 (22). É conhecida a polémica que se instalou por virtude a aparente contraditoriedade entre os dois segmentos normativos do preceito. O primeiro garante a independência da acção de indemnização face ao recurso contencioso, quando o facto danoso seja constituído por um acto administrativo ilegal. O segundo, porém, restringe o âmbito do direito de reparação aos danos que se não possam imputar à falta de interposição de mesmo sentido, o acórdão do STA de 1 de Julho de 1997, in Jurisprudência Administrativa Escolhida , pág. 1053. 19 ) Cfr. antecedente nota 14. 20 ) Note-se que a jurisprudência se tem abstido, na prática, de aplicar o critério de apreciação de culpa para que aponta o artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48051 (culpa in abstracto por referência à diligência de um bom pai de família), optando por uma objectivação da culpa, ao considerar que o elemento subjectivo está já pressuposto na violação, pelo agente, das normas legais a que deveria subordinar a sua acção (ver, entre outros, o acórdão do STA de 21 de Março de 1996, in Apêndices ao Diário da República , de 31 de Agosto de 1998, pág. 2010; cfr., também, GOMES CANOTILHO, O Problema..., citado, pág. 78). No sentido da exigência de uma culpa qualificada, e não meramente objectiva tal como se preconiza no texto parece pronunciar-se, também, MARGARIDA CORTEZ. A autora defende a este propósito que a mera ilegalidade não é suficiente para se poder inferir a culpa e propõe o funcionamento de uma presunção judicial de culpa, tomando por base dois requisitos: que as normas violadas sejam precisas e inequívocas; que se trate de uma ilegalidade substantiva (ob. cit, pág. 104). 21 ) A hipótese típica será o dano provocado por abandono de munições ou materiais explosivos no decurso de exercícios militares, quando não seja identificado o autor material do facto. 22 ) A referida norma dispõe: "O dever de indemnizar, por parte do Estado e demais pessoas colectivas públicas, de titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, não depende do exercício pelos lesados do seu direito de recorrer do acto causador do dano; mas o direito à reparação só subsistirá na medida em que tal dano se não possa imputar à falta de interposição do recurso ou a negligente conduta processual da sua parte no recurso interposto". 9 recurso contencioso ou a negligente conduta processual da sua parte no recurso interposto. O STA começou por interpretar a ressalva contida nesta segunda parte do preceito como constituindo uma verdadeira excepção peremptória do exercício do direito de indemnização (por vezes caracterizada como caso decidido ou caso resolvido), conferindo, assim, à acção indemnizatória uma natureza meramente subsidiária em relação ao recurso contencioso (23) Mais recentemente - na linha do ensinamento entretanto expresso por AFONSO QUEIRÓ (24) a jurisprudência administrativa fixou-se no entendimento de que a segunda parte do preceito em análise estabelece, não a caducidade do direito de ressarcimento, mas um regime de exclusão ou diminuição de indemnização quando a negligência processual do lesado, por falta ou deficiente impugnação contenciosa do acto administrativo ilegal ou de utilização de meios processuais acessórios, tenha contribuído para a produção ou agravamento dos danos. A norma do artigo 7º caracterizaria, assim, uma situação de concorrência de culpa do lesado, equivalente à prevista no artigo 570º do Código Civil, relevando apenas no plano do nexo de causalidade e da culpa (25) (26). Segundo esta interpretação, o administrado responde pelos prejuízos pelos quais possa considerar-se corresponsável por se ter abstido de interpor recurso contencioso ou pedido de suspensão de eficácia que os poderia ter evitado. Configura-se aqui uma actuação culposa do lesado 23 ) Cfr., entre outros, os acórdãos de 14 de Outubro de 1986, in Acórdãos Doutrinais ,n.º 306, pág. 795, de 18 de Maio e 17 de Fevereiro de 1994, in Apêndices ao Diário da República , de 19 de Agosto de 1996, pág. 2624, e de 20 de Dezembro de 1996, pág. 1315, respectivamente Parecia ser também esse o entendimento que MARCELLO CAETANO, conforme se depreende da seguinte transcrição do seu Manual de Direito Administrativo: "Daí que só possam ser abrangidas pelo direito à reparação pecuniária, na falta de recurso contencioso do acto ilegal, aqueles prejuízos que ficariam sempre por reparar, mesmo que o acto tivesse sido anulado e a sentença anulatória executada" (ob. cit., 2º vol., pág. 1238). Na mesma linha se pronuncia MARIA DA GLÓRIA GARCIA, ob. cit., págs.43-44. 24 ) Anotação ao acórdão do STA de 14 de Outubro de 1986, in Revista de legislação e Jurisprudência , ano 120º, n.º 3763, págs. 307-310. Segundo o autor, o legislador terá pretendido consagrar no nosso direito a solução do Código Civil Alemão (§ 239 nº 3), em que se estipula que "o dever de indemnizar não persiste quando o lesado, dolosa ou culposamente, não tenha impedido a verificação do dano mediante a utilização dos remédios jurídicos". 25 ) Acórdão de 30 de Maio de 1995, in Apêndices ao Diário da República , de 20 de Janeiro de 1998, pág. 4722. A mesma doutrina veio a ser reafirmada no acórdão do Pleno da Secção de 27 de Fevereiro de 1996, in Acórdãos Doutrinais n.º 420, pág. 1428, Cadernos de Justiça Administrativa n.º 1, pág. 8; Jurisprudência Administrativa Escolhida , pág. 709. 26 ) No mesmo sentido, numa dissertação de mestrado concluída em Outubro de 1995 e defendida em Setembro do ano seguinte, mas só publicada em Dezembro de 2000, MARGARIDA CORTEZ sustenta que a reserva contemplada na 2.ª parte do artigo 7º não constitui um limite à autonomia das acções sobre responsabilidade, mas a simples previsão de uma situação particular de concurso de culpa de lesado que, a verificar-se, influencia fixação do quantum indemnizatório (Responsabilidade.., pág. 249). 10 consubstanciada na omissão de uma conduta que poderia também ter impedido a produção dos danos. É essa circunstância que, constituindo uma das causas do dano, segundo o princípio da causalidade, desonera a Administração do dever de indemnizar (27) (28) 29. Como observa, porém, MARGARIDA CORTEZ, num trabalho recentemente publicado (30), no quadro desta jurisprudência, que parece agora ser tida como firme, a possibilidade do lesado evitar a produção ou o agravamento dos danos decorrentes de um acto administrativo ilegal depende fundamentalmente da probabilidade de êxito de um pedido de suspensão de eficácia. A diligência processual do particular lesado, para efeito da aplicação daquela disposição, terá, pois, de ser analisada à luz dos apertados requisitos que condicionam o decretamento da medida cautelar e de acordo, também, com a prática jurisprendicial que tem sido adoptada nessa matéria. Nestes termos, não poderá ser censurada, por exemplo, a falta de interposição de um pedido de suspensão de eficácia em relação a actos de conteúdo negativo (que os tribunais sistematicamente têm considerado como não sendo passíveis de suspensão jurisdicional), bem como em todos os casos típicos em que os tribunais, por regra, não reconhecem a existência de um prejuízo de difícil reparação, ou, ao contrário, sustentam a prevalência do interesse público na execução do acto impugnado. 6. Não obstante toda esta evolução interpretativa de sentido favorável à protecção dos interesses dos particulares, parece claro que um mecanismo semelhante ao do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 48051 não pode hoje manter-se. A limitação do quantum indemnizatur, em acção de indemnização fundada em acto administrativo ilegal, aos danos que não se 27 A culpa do lesado não é aqui utilizada em sentido rigoroso, como reportada à prática de um facto ilícito. Pretende antes exprimir a ideia de reprovação pela imprudência ou falta de cuidado na defesa dos próprios interesses. O acto do lesado é assim causador do prejuízo, ainda que não tenha carácter ilícito, nem represente a violação de um dever (cfr. ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e de Jurisprudência , ano 102, nº 60, e PESSOA JORGE, Ensaio Sobre os Pressupostos de Responsabilidade Civil, págs. 318 a 360). No mesmo sentido, também, MARGARIDA CORTEZ, ob. cit., pág. 275. 28 ) O entendimento que permite conciliar as duas regras contidas na norma do artº 7º, conferindo um efeito útil ao aludido princípio da autonomia da acção ressarcitória, parece ser o que situa a limitação no ressarcimento dos danos no âmbito do nexo de causalidade, e, portanto, no plano dos pressupostos da responsabilidade civil. Nesta óptica, a segunda parte do artº 7º configuraria apenas um caso de exclusão ou diminuição da responsabilidade quando a negligência processual do lesado tenha contribuído para a produção ou agravamento dos danos. 29 ) MARGARIDA CORTEZ sustenta, porém, divergindo, neste ponto, da apontada jurisprudência, que a omissão do lesado não é uma autónoma causa operante do dano, mas antes uma condição da sua produção ou agravamento ou simplesmente a ocasião para que o acto ilícito desenvolva toda a sua eficácia causal (cfr., Cadernos de Justiça Administrativa n.º 1, págs. 17-18). 30 A Responsabilidade Civil da Administração.., citada (págs. 273 e seguintes). 11 não tenha podido evitar através da prévia impugnação contenciosa foi concebida num momento histórico em que o recurso contencioso era o meio processual por excelência do contencioso administrativo e as restantes acções jurisdicionais que integravam o chamado contencioso por atribuição assumiam uma função meramente residual ou complementar. A afirmação do princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa, na revisão constitucional de 1989, e, de forma mais ainda impressiva, a parificação entre os diversos meios processuais contenciosos, resultante da revisão de 1997 (31), veio instituir na jurisdição administrativa, em termos práticos, a regra da correspondência entre o direito e a acção, já há muito consagrada no processo civil, e devolver aos particulares a faculdade de escolha do meio processual mais adequado à defesa do direito ou interesse individual de que é titular (32). O princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa significa não apenas a institucionalização de uma panóplia tão ampla quanto possível de acções jurisdicionais para garantia das posições jurídicas subjectivas dos particulares, mas também a eliminação dc quaisquer constrangimentos excessivos ao exercício do direito de acção, particularmente no plano dos pressupostos processuais ou das condições de procedência da acção. Um lesado por um acto administrativo ilegal deverá, pois, poder optar por um determinado meio de reacção segundo um critério de idoneidade processual. 31 ) Dispunha o artigo 268º, n.ºs 4 e 5, da CRP, na redacção resultante da Lei Constitucional n.º 1/89; 4. É garantido aos interessados recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos. 5. É igualmente sempre garantido aos administrados o acesso à justiça administrados para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Estatui agora, na redacção introduzida pela revisão de 1997, o n.º 4 desse artigo: 4 É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas. 32 ) Veja-se, quanto ao sentido evolutivo da garantia constitucional, VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 2.ª edição, Coimbra, págs. 57-60; VASCO PEREIRA DA SILVA, Ventos de Mudança no Contenciosos Administrativo, Coimbra, 2000, págs. 80-81 e 90-91. 12 Deste modo, uma acção de responsabilidade civil fundada em acto administrativo ilegal deverá ser tida como um meio processual próprio, designadamente quando seja previsível que o recurso contencioso a interpor do mesmo acto não possa já conduzir à reconstituição da situação jurídica violada, em termos de assegurar por essa via a indemnização através do princípio da reposição natural. Isso sucederá, em regra, com os actos denegatórios de licenças precárias, de licenças policiais de curta duração ou de licenças renováveis, e bem assim, do ponto de vista já contra-interessados, em relação a actos de concessão de serviços públicos temporalmente limitados (v. g., concessão de transportes escolares, cujo prazo se encontre circunscrito ao correspondente ano lectivo), em que a duração média do recurso contencioso, nas suas diversas instâncias de apreciação jurisdicional, não permita alcançar uma decisão final em tempo útil (33). Defendi, no âmbito da discussão pública da reforma de contencioso administrativo, que o futuro Código de Processo nos Tribunais Administrativos não deveria admitir a formulação simultânea de pedidos de anulação contenciosa e de indemnização, por considerar que essa cumulação seria incompatível com as exigências de celeridade de um meio processual do tipo impugnatório e, na prática, iria redundar numa tendencial transformação dos recursos contenciosos em formas morosas e complexas de tramitação processual e de indagação probatória. Pareceume, nesse conspecto, que o único modo de manter viva a virtualidade do recurso contencioso, como meio de defesa dos particulares, era atribuir-lhe um carácter abreviado ou quase urgente que pudesse evitar a efectiva lesão de uma posição jurídica subjectiva ou, ao menos, impedir que essa lesão se tornasse irreversível na esfera jurídica do destinatário de um acto administrativo. 33 ) Paradigmática é a situação analisada no acórdão do STA(Pleno) de 23 de Junho de 1998, ( Jurisprudência Administrativa Escolhida , pág. 1097) em que se declarou a inutilidade superveniente da lide em recurso contencioso que tinha por objecto o acto de adjudicação de fornecimento de material informático de prestação de serviços (consistente em acções formação a terem lugar imediatamente após a entrega dos bens), com base na circunstância de no decurso do processo os efeitos jurídicos directamente derivados do acto impugnado se terem integralmente produzido através da execução do contrato, não sendo já possível obter, pela eventual anulação da adjudicação, a destruição das prestações contratuais realizadas pelo adjudicatário. O tribunal remeteu, assim, o interessado para a competente acção de indemnização, com a consequente inutilização de toda a actividade processual entretanto desencadeada com a interposição do recurso contencioso de anulação. 13 Como se sabe não deverá ser essa a opção do legislador. Mas a possibilidade de cumulação do pedido de anulação contenciosa e de indemnização, concebida como uma outra solução processual destinada a reforçar a protecção dos particulares, não invalida o interesse em reconhecer a independência da acção de indemnização, de forma a assegurar que o lesado, ponderando a eficiência do meio em função da natureza dos interesses a acautelar, possa lançar mão unicamente, se assim o entender, da acção ressarcitória. De outro modo, a manutenção de um regime similar ao actualmente previsto no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 48051, forçaria o lesado a utilizar um de dois procedimentos, com consequências nem sempre satisfatórias: ou a cumular, no recurso contencioso, os pedidos de anulação e de indemnização, colocando-se assim a coberto da imputação de uma conduta processual omissiva ou negligente, mas reduzindo drasticamente a operacionalidade do meio impugnatório; ou a interpor previamente um recurso contencioso, com o que pode desencadear uma actividade processual inútil quando o recurso não possa culminar, por força das circunstâncias do caso, com a restauração natural da ordem jurídica violada. E interessa reter um outro elemento. É que no actual quadro de desenvolvimento do contencioso administrativo que é propiciado pelo princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa, o esperado alargamento dos meios processuais e a inclusão de medidas cautelares de tutela antecipatória, e não apenas conservatória, virá introduzir novos factores de variabilidade na apreciação da diligência processual do lesado, implicando um agravamento da sua posição jurídica na acção de indemnização. Com efeito, não será já possível justificar a inércia do particular com o presumível insucesso do pedido de suspensão de eficácia, quando, em complemento de uma impugnação contenciosa, o particular puder dispor de providência cautelares que tutelem preventivamente interesses substantivos pretensivos. Tudo aponta pois, para que se caminhe para a plena autonomia da acção indemnizatória, com a consequente eliminação de causas de redução ou exclusão do quantum indemnizatur com base em motivos de natureza meramente processual. 14 E não vale argumentar com um possível efeito expansivo da responsabilização do Estado. O acto administrativo ilegal potencia sempre uma responsabilidade administrativa, sendo indiferente, do ponto de vista dos interesses financeiros das Administração, que o direito ressarcitório dos particulares seja exercitado através de um recurso contencioso ou de uma acção de indemnização. Já hoje o interessado tem sempre o direito de sindicar contenciosamente o acto lesivo, obtendo, em caso de procedência, ou a reintegração da ordem jurídica violada que representa já uma forma de ressarcimento ou uma indemnização por equivalente, cuja fixação o tribunal poderá inclusivamente remeter para a competente acção de responsabilidade civil se a matéria for de complexa indagação (34) (35). 7. Em relação directa com a solução que venha a adoptar-se quanto à manutenção ou não de um mecanismo idêntico ao do artigo 7º do DecretoLei n.º 48051, está o problema da prescrição do direito de indemnização que tenha por base acto administrativo ilegal. Como se sabe, a LPTA, alterando o regime originariamente estabelecido pelo artigo 5º do Decreto-Lei n.º 48051 que, no que se refere à prescrição, efectuava uma remissão genérica para os prazos da lei civil veio estatuir que, quando o direito resultar da prática de acto cuja legalidade seja impugnada contenciosamente, a prescrição não terá lugar antes de decorridos 6 meses sobre o trânsito em julgado da respectiva sentença." (artigo 71º, n.º 3) (36) 34 )Cfr. artigo 10º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho. Norma de idêntico alcance consta do n.º 4 do artigo 160º do Anteprojecto do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. 35 ) A acentuação do carácter subjectivista do recurso contencioso, que resulta da parificação dos meios processuais contenciosos e que a redução drástica da intervenção processual do Ministério Público nessa forma de processo, prevista nas directrizes políticas da reforma de contencioso administrativo em curso, vem reafirmar aponta no sentido de que a reintegração da ordem jurídica violada em sede de execução da sentença anulatória tem já um efeito reparador dos danos resultantes do acto administrativo ilegal, envolvendo dessa forma um mecanismo de responsabilidade civil. Em sentido oposto, porém, MARGARIDA CORTEZ, ob. cit., págs. 174-177. 36 ) Essa genérica remissão para a lei civil, quanto ao prazo de prescrição, inculca que ela se refere, não apenas à estrita indicação do prazo, mas também à determinação do seu termo inicial e do modo de contagem, incluindo portanto as regras gerais relativas à suspensão e interrupção da prescrição. Nesta linha de entendimento, poderia reputar-se, sem grande margem para dúvidas, como causa interruptiva da prescrição, nos termos do artigo 323º, n.º 1, do Código Civil, a citação da autoridade 15 A jurisprudência dividiu-se quanto à interpretação a dar a esta norma ( ) que entretanto veio também a ser julgada organicamente inconstitucional (38) -, mas o melhor entendimento parece ser aquele que vê no n.º 3 do artigo 71º da LPTA a única intencionalidade de assegurar um prolongamento do prazo de prescrição quando haja prévia interposição de recurso contencioso, com o consequente afastamento da causa interruptiva constante do artigo 323º, n.º 1, do Código Civil. 37 De facto, se a lei prevê que a prescrição se não verifique antes de decorridos 6 meses sobre o trânsito da respectiva sentença anulatória, é porque pressupõe que o direito se possa ter extinguido, pelo decurso do prazo do seu exercício, na pendência do recurso contencioso ou imediatamente após o trânsito em julgado da sentença nele proferida. Esta constatação traz implícito, por parte do legislador, o reconhecimento de que a interposição do recurso contencioso não é susceptível de desencadear a interrupção do prazo prescricional do direito de indemnização, nos termos gerais do artigo 323º, n.º 1, do Código Civil (39) E bem se compreende que assim seja. Desde que se torne exigível a prévia impugnação contenciosa do acto administrativo ilegal, em resultado do regime definido no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 48051, a interrupção do prazo de prescrição do direito de indemnização que pudesse resultar da notificação da autoridade recorrida para responder no processo de recurso contencioso - com o prolongamento dos efeitos da interrupção até ao julgamento definitivo da causa e a contagem de um novo prazo de três anos a partir do trânsito em julgado da decisão -, alargaria excessivamente o prazo para propositura da acção de indemnização. A norma do art.º 71º, n.º 3, da LPTA tem pois a finalidade de reduzir esse prazo a um limite razoável (seis meses), tanto mais que o direito de indemnização que se pretende exercitar na acção se conexiona recorrida para contestar a petição de recurso contencioso de acto administrativo ilegal, visto que a interposição desse recurso não poderia deixar de ser entendida como uma manifestação indirecta da intenção, por parte do lesado, de exercer o direito de indemnização. 37 ) Veja-se, entre outros, os acórdãos do STA de 24 de Outubro de 1991, de 16 de Janeiro de 1992 e de 9 de Fevereiro de 1993. in Apêndices ao Diário da República , de 31 de Outubro de 1995, pág. 5844, de 29 de Dezembro de 1995, pág. 257, e de 14 de Agosto de 1994, pág. 727, respectivamente. 38 )Cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 148/96, publicado no Diário da República , II Série, de 30 de Novembro de 1996, e, na sua esteira, o acórdão do STA de 2 de Outubro de 1997, publicado nos Cadernos de Justiça Administrativa , n.º 12, pág. 31. 39 ) O mesmo dispositivo (artigo 71º, n.º 3, da LPTA) não exclui, porém, que o prazo prescricional possa ser interrompido, nos termos gerais, por outra causa, e, designadamente, por efeito da notificação da autoridade requerida para responder em processo de execução de julgado (neste sentido, o citado acórdão de 22 de Novembro de 1994). 16 directamente com a matéria de recurso contencioso quando este seja preliminarmente interposto. A autonomia da acção de indemnização vem alterar, porém, os dados do problema. como agora se preconiza Se o lesado puder exercer o direito de indemnização em processo autónomo, independentemente da averiguação prévia da legalidade do acto administrativo, não faz sentido que o prazo prescricional fique subordinado às vicissitudes do recurso contencioso, se este tiver sido também interposto, a ponto de se conferir ao lesado o benefício de prorrogação do prazo para além da decisão definitiva do recurso. Porém, nesta mesma hipótese de instauração conjunta de recurso contencioso e de acção de indemnização, dificilmente se poderá inviabilizar o funcionamento da causa interruptiva prevista no artigo 323º, n.º 1, do Código Civil, visto que a impugnação judicial do acto, cujo prazo é mais curto, é um indicador preciso de que o recorrente pretende exercer o seu direito de ressarcimento, caso não obtenha uma completa reparação por via daquele meio impugnatório (40). A autonomia da acção de indemnização postula, por conseguinte, o funcionamento das regras gerais da prescrição (41). 8.Uma nota final sobre a responsabilidade objectiva do Estado. Discute-se na doutrina se o âmbito normativo do artigo 22º da CRP abrange apenas a responsabilidade por factos ilícitos e culposos ou também a responsabilidade por actos lícitos e pelo risco. A dúvida - que tem sido resolvida maioritariamente no sentido da segunda proposição (42)- é 40 ) MARGARIDA CORTEZ admite, porém, na perspectiva de uma total autonomia entre o exercício do direito de recurso contencioso e do de indemnização, que o prazo prescricional relativo à responsabilidade civil se comece a contar a partir do momento da prática do acto administrativo, sem qualquer interrupção, caso se interpusesse do mesmo acto recurso contencioso ( Cadernos de Justiça Administrativa , n.º 10, pág. 38). 41 ) Sem embargo dessa possibilidade de interrupção, o prazo prescricional deverá iniciar-se com a notificação ou outra forma de conhecimento oficial do acto administrativo ilegal, salvo se o destinatário demonstrar que só teve conhecimento da ilegalidade num momento ulterior. Neste sentido se pronunciou já o acórdão do STA de 24 de Outubro de 19991 (in Apêndices ao Diário da República de 31 de Outubro de 1995, pág. 5844), considerando que, na ausência de outra prova que permita situar o conhecimento do direito de indemnização em momento anterior, deve entender-se que o prazo prescricional começa a correr, pelo menos, na data em que o Autor formulou a petição de recurso contencioso e identificou nele as ilegalidades que inquinam o acto contenciosamente recorrido. 42 ) No sentido de que o preceito abrange também a responsabilidade do Estado por actos lícitos e pelo risco, pronunciam-se: GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra, pág. 169; VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 337; SINDE MONTEIRO, Aspectos Particulares da Responsabilidade Médica, in Direito da Saúde e Bioética , Lisboa, 1991, págs. 142-143. Uma interpretação restritiva, em termos de considerar apenas abrangida a responsabilidade 17 suscitada pela referência que no texto constitucional é feita à responsabilidade solidária das entidades públicas e dos titulares de órgãos, funcionários e agentes, conjugada com o facto de o dever de indemnizar, por parte destes últimos, se encontrar circunscrito, nos termos do artigo 271º, a uma responsabilidade meramente subjectiva (acções ou omissões de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos ) Todavia, mesmo uma interpretação restritiva do preceito constitucional não poderia impedir o legislador ordinário de definir os termos de uma responsabilidade objectiva do Estado e das demais pessoas colectivas públicas. O que sucede é que o artigo 22º não estabelece qualquer directriz quanto aos pressupostos do dever de indemnizar nessa forma de responsabilidade, daí decorrendo, implicitamente, uma maior liberdade de conformação no nível infraconstitucional. Referi já que a potencialidade danosa de actividades ou serviços administrativos perigosos deveria ser inserida, tal como hoje acontece, no âmbito da responsabilidade casual, remetendo-se, ao invés, para o domínio do ilícito omissivo as hipóteses de insuficiência dos serviços por violação dos deveres de vigilância que impendem sobre as coisas que estão na disponibilidade operativa da Administração. E que dizer dos prejuízos causados por acontecimentos imprevisíveis e inevitáveis (como inundações ou deslizamento de terras), que aparentemente integram o conceito de caso fortuito ou de força maior, mas que as autoridades governamentais, fazendo actuar critérios de discricionaridade, têm vindo progressivamente a incluir no risco social, mediante a atribuição de compensações monetárias às vítimas? Em que medida esses efeitos lesivos não poderão ter como causa remota a ausência de medidas de planificação de protecção civil, ou erros de concepção de obras de regulação dos caudais dos rios ou de planos de ordenamento do território, ou, até, à ilegalidade de actos administrativos de licenciamento municipal? Até que ponto é aceitável continuar a legitimar subjectiva, é sustentada por RUI MEDEIROS, O Ensaio sobre Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992, págs. 92 e segs. 18 as ajudas económicas concedidas nesses casos por apelo a um mero princípio de solidariedade? Pergunto-me, pois, se não é este o momento para ensaiar a disciplina jurídica própria do caso fortuito ou de força maior em direito público, por aproximação à figura constitucional da emergência ou calamidade pública, prevenindo, porventura, zonas de interpenetração com o risco social, onde, de acordo com critérios legais pré-definidos, possa haver lugar ainda a uma responsabilidade objectiva. Num outro plano, não será difícil conceber uma certa propensão expansiva da responsabilidade derivada da imposição de sacrifícios. Os trabalhos públicos de grande envergadura (como aqueles que se tiveram lugar a propósito da Expo 98 e os que ocorrem agora no Porto, por via da sua candidatura a Capital Europeia da Cultura), as obras de requalificação urbana que se realizam um pouco por todo o lado, designadamente no âmbito do Programa Polis, as intervenções de cariz ambiental (de que é exemplo o caso da co-incineração), a proliferação e o alargamento de zonas pedonais nos centros das cidades, poderão gerar prejuízos não desprezíveis na esfera jurídica de cidadãos (comerciantes e moradores) que, não sendo sujeitos da relação jurídica urbanística ou ambiental, são indirectamente afectados pela realização das obras. As quais, uma vez concluídas, poderão ainda induzir mudanças duradouras na situação de vida dos particulares por virtude da necessidade de adaptação à nova função social do espaço urbano requalificado (mudança de ramo de comércio, mudança de local de residência, impossibilidade de acesso automóvel à habitação). Devemos abrir aqui um novo espaço à contratatualização da actividade administrativa, de modo a incluir esses grupos de interesses com pólos da relação jurídica, aplicando-lhes designadamente as técnicas compensatórias já previstas em instrumentos de planeamento urbanístico, ou será este ainda um caso a solucionar nos estritos limites da responsabilidade por actos lícitos? Eis, enfim, algumas questões que o legislador tem agora oportunidade de enfrentar se não quiser limitar-se a um programa de soluções mais ou menos previsíveis.