3. Argumentação e Filosofia 3.1. Filosofia, retórica e democracia Meados do século V a. C. Atenas começava a instituir a ordem democrática, abrindo a vida política à participação dos cidadãos. A investigação racional sobre a physis (a natureza) é secundarizada pela preocupação de preparar os jovens para a vida pública. Necessidade de uma formação específica para a conquista do poder, uma formação que conferisse capacidade de discursar nas assembleias de cidadãos, para persuadir e convencer o auditório. É neste contexto que surgem os sofistas. Sofistas Professores itinerantes que se dedicavam ao ensino dos jovens cidadãos mediante uma remuneração. Alguns sofistas: Protágoras, Górgias e Hípias. • Dominavam a arte de persuadir pela palavra. • Eram dotados de habilidade linguística e de estilo eloquente. • Surpreendiam pela sua vasta erudição e pelos seus discursos expressivos. • Centravam o seu ensino mais na forma do que no conteúdo. • Ensinavam a técnica do discurso, a arte de fazer triunfar um determinado discurso. Sócrates, Platão e seus discípulos Não podiam aceitar o relativismo da verdade, a valorização da retórica em detrimento da sabedoria. Isto, aliado ao facto de eles se fazerem pagar pelos seus serviços, originou uma visão depreciativa dos sofistas. . Para os sofistas, o discurso não pretende ser verdadeiro, mas eficaz, convincente. A finalidade da retórica não é encontrar o verdadeiro, mas dominar através da palavra. Uma boa argumentação – uma retórica digna – é aquela que serve o filósofo na busca da verdade. Verdade e Bem Ideias que convêm à filosofia. Quem procura o conhecimento da verdade (o filósofo) só pode praticar o bem. A filosofia socrático-platónica pretende inviabilizar a prática de uma retórica baseada em opiniões ou meras aparências. Partindo de um método assente no diálogo e na eliminação do que é contraditório, Sócrates e Platão inauguram o fosso que durante séculos separará a filosofia da retórica. Diálogo Górgias (Platão) Aí, Sócrates, para além de tecer as habituais críticas aos sofistas, define aí a retórica como uma atividade empírica, uma prática que serve de simulacro à política. Discurso como instrumento de poder. Discurso como instrumento de verdade. Próprio dos sofistas. Próprio dos filósofos. Diferença entre os sofistas e os filósofos, na perspetiva de Sócrates/Platão: SOFISTA FILÓSOFO Professor itinerante que se faz pagar pelos seus serviços. Amante, desinteressado, do saber. Centrado na forma do discurso. Centrado no conteúdo do discurso. Procura o discurso eficaz (retórica). Procura o discurso verdadeiro (sabedoria). Entende a verdade à medida das circunstâncias individuais. Entende a verdade como existente em si. Baseia o discurso em opiniões e aparências. Baseia o discurso na Verdade e no Bem. Ensina uma técnica. Procura a verdade absoluta. Na génese da democracia… … evidenciou-se a retórica. O poder do demos (povo) é coetâneo do poder da palavra. A centralidade conferida à palavra enquanto instrumento para convencer é o elemento mais importante da rutura democrática. A igualdade perante a lei e o livre uso da palavra fomentaram a cidadania. Mas também existe o mau uso da palavra, traduzido na demagogia e na manipulação – violência simbólica. 3.2. Persuasão e manipulação ou os dois usos da retórica Aristóteles A retórica assume um estatuto diferente daquele que lhe atribuíram Sócrates e Platão. A retórica torna-se um saber entre outros, uma disciplina que não faz uso do mesmo tipo de provas que as ciências teóricas. Ocupa-se do verosímil. DOMÍNIO DA MORAL DOMÍNIO DA RETÓRICA DOMÍNIO DA VERDADE Distinguindo estes três domínios, Aristóteles pôde libertar a retórica da má reputação que a ligava à sofística. Com efeito, pode fazer-se um bom ou um mau uso da retórica; não é ela que é moral ou imoral, mas quem a utiliza e a forma como a utiliza. Discurso argumentativo Tem por objetivo persuadir o auditório a adotar as teses do orador (persuadir vem do latim – persuadere – e significa levar alguém a aceitar ou a optar por determinada ação ou posição). Argumentação e persuasão são conceitos originariamente contíguos. Com o desenvolvimento das técnicas persuasivas nos domínios jornalístico, publicitário e propagandístico, o conceito de «persuasão» adquire por vezes uma conotação negativa, que o aproxima do de «manipulação» e o associa aos excessos estilísticos da retórica sofística. Manipular consiste em fazer alguém aceitar passivamente algo, sem avaliar adequadamente aquilo que está a aceitar. A argumentação/persuasão, pelo contrário, pressupõe atos de comunicação livres entre emissor e recetor, devendo permitir a posição e não a imposição. Dois usos da retórica Manipulação Persuasão Prática abusiva do discurso – abusiva na medida em que obriga o recetor a aderir a uma dada mensagem (que um dado emissor deseja impor). Prática do discurso que tem como finalidade levar alguém a mudar de ideias, mas pressupondo a livre adesão do auditório à tese que o orador pretende que seja acolhida por ele. Manipulação Manipulação dos afetos Manipulação cognitiva Centrada no apelo à emoção e aos sentimentos do recetor. Opera por falsificação do conteúdo do discurso. Manipulação dos afetos Sedução pela pessoa ou sedução demagógica Recurso a comportamentos e atitudes (falsas) que possam impressionar o público. O discurso demagógico típico é aquele que altera a mensagem consoante o público. Sedução pelo estilo Recurso às figuras de estilo para fugir ao conteúdo do discurso e impressionar pela forma. O “estilo da clareza” (ser claro, transparente e conciso) pode levar a desvirtuar a informação. Esteticização da mensagem Recurso à arte (figuras artísticas) por forma a seduzir. É frequente, na publicidade, o recurso a figuras públicas, artistas de cinema, de televisão, etc. Recurso ao medo Cria-se uma situação de medo pelo uso abusivo da autoridade, que acaba por funcionar como condicionadora. A manipulação das crianças é, a este propósito, um exemplo característico. Repetição da mensagem Repetem-se palavras, ideias, sons ou imagens por forma a que aquilo que inicialmente parecia inaceitável deixe de o parecer. Certos anúncios publicitários aparecem imensas vezes numa só noite. Hipnose e sincronização Estes processos têm por base as leis do condicionamento clássico, estudos psicanalíticos e, sobretudo, a programação neurolinguística. O auditório é como que hipnotizado pela sincronização de gestos, tom e ritmo de voz, etc. Recurso ao tato O contacto físico ou a sua sugestão podem ser utilizados com intuito de aumentar a adesão à mensagem. Em tempo de campanha eleitoral, é usual o aperto de mão aos eleitores e os beijinhos às crianças. Manipulação cognitiva Enquadramento mentiroso Mente-se acerca dos factos ou apresentam-se os factos de uma forma que induz à distorção dos mesmos, tomando-se o falso por verdadeiro ou vice-versa. Mentir aos soldados, em tempo de guerra, dizendo que não se registaram baixas na batalha anterior. Reenquadramento abusivo Orientam-se os factos de maneira a deformar a realidade, induzindo à ilusão. Certo anúncio publicitário diz-nos que certa lixívia «lava mais branco», mas mais branco do que o quê? Enquadramento coercivo Dissimulam-se alguns factos, cria-se uma situação de aceitação de uma primeira mensagem, que não é mais do que uma armadilha para impor ao recetor a real mensagem à qual se pretende a adesão. Algumas empresas promovem os produtos atribuindo prémios a potenciais clientes. Telefonam-lhes, indicam-lhes que devem levantar o prémio na loja e só aí apresentam as contrapartidas do negócio. Mistura da mensagem com elementos exteriores, sugerindo-se um nexo entre ambos (sem que se apresente qualquer fundamento). Na campanha publicitária da Marlboro (final dos anos 50), o seu produto aparece associado a figurantes homens de aspeto viril e ocupados em trabalhos duros (marinheiros, vaqueiros). Legenda utilizada: “sabor masculino”. Amálgama Manipulação Os dois usos da retórica: qual a fronteira que os separa? Persuasão Não são raras as vezes em que nos apercebemos de que estamos a ser seduzidos e que consentimos a manipulação. A manipulação constitui um perigo real quando a encontramos associada, nas sociedades modernas mediáticas, à propaganda política, às ideologias e à publicidade. Ao impor dada palavra, ao invés de permitir a sua livre circulação, a manipulação põe em causa os princípios da democracia. Ao negar a liberdade de pensamento e a sua expressão, a manipulação faz do indivíduo mero peão de um jogo manipulador, comprometendo a sua autonomia e a sua identidade. Retórica Retórica branca Retórica negra Procura pôr a descoberto os procedimentos da retórica negra, sendo, por isso, crítica, lúcida e consciente das diferentes formas e dos diferentes problemas que envolvem a comunicação. Corresponde a um uso ilegítimo do discurso, porque visa enganar, iludir e manipular o interlocutor. Bom uso da retórica (retórica branca) Ajuda a encontrar as armas para lutar contra a manipulação. Trata-se de aprender a argumentar e, ao mesmo tempo, de ser capaz de desmascarar a manipulação. Adquirir competência retórico-argumentativa para se poder prevenir os maus usos da retórica. A questão do mau uso ou abuso da retórica exige uma reflexão crítica sobre os efeitos que ela produz, remetendo para o domínio da ética. Necessidade de estabelecer limites à persuasão Imposição de regras que impeçam a manipulação A regra, ao estabelecer limites à persuasão, liberta o discurso da manipulação. Liberdade de expressão A possibilidade de manipulação pela palavra resulta do facto de não se proteger devidamente a liberdade de receção. A liberdade de palavra e do discurso tem de ser vista nas suas três componentes e na complexidade que delas resulta. Liberdade do discurso Liberdade de receção Liberdade de mediação A extensão da liberdade de palavra, não somente à liberdade de expressão, mas igualmente à de mediação e, sobretudo, à de receção, corresponderia a uma fase superior da democracia e à expansão da liberdade. 3.3. Argumentação, verdade e ser Argumentação É fundamental para a atividade filosófica, que procura uma visão integrada do real, uma compreensão da realidade no seu todo, do ser. A atividade filosófica é uma busca da verdade. Mas a busca da verdade não é exclusiva da filosofia. Também as várias ciências procuram o conhecimento da realidade, apesar de o fazerem de forma setorial. Há diferentes discursos sobre a realidade: filosófico científico político religioso artístico A cada um deles corresponde uma interpretação do ser ou da realidade que pretende ser verdadeira. Os discursos são sempre contextualizados Os contextos são diversos, alterando-se ao longo dos tempos. No domínio das ciências ditas «exatas» propõe-se, hoje, uma conceção de verdade completamente diferente daquela que vigorou durante séculos. As teorias e leis científicas são consideradas como bons modelos explicativos do real, mas provisórios. Um dos exemplos mais significativos do nosso tempo foi a descoberta do bosão de Higgs, cuja existência estava há muito prevista mas que, até dezembro de 2011, não tinha ainda sido demonstrada. FILOSOFIA Sempre se evidenciou como a procura da verdade a partir de problemas ou questões radicais. A diversidade de filosofias e de sistemas filosóficos parece realçar uma fraqueza da filosofia. Mais do que a ciência e as várias teorias científicas, a filosofia não é capaz, aparentemente, de reunir um consenso geral. As teorias filosóficas estiveram (e estão), muitas vezes, dependentes das suas perguntas e respostas tradicionais. Filosofia socrático-platónica Exigia encontrar a Verdade – única, absoluta e universal, capaz de dizer uma realidade absoluta, perfeita e imutável. Criticava fortemente a retórica (sofística), por esta dar espaço ao subjetivismo e ao relativismo. Mas poderá a filosofia desvelar a verdade única e imutável? Será a realidade una, absoluta? Como explicar a diversidade dos sistemas filosóficos? Diversidade dos discursos Reflete a riqueza de perspetivas e leituras que podemos fazer da realidade. Atualmente, a razão não é mais entendida como a faculdade humana detentora (a priori) de conhecimentos definitivos e unívocos, mas como faculdade humana plural, portadora (a posteriori) de conhecimentos plurívocos e o mais próximos possível da verdade. Nova conceção da racionalidade Racionalidade argumentativa Reconhecimento do pluralismo característico da racionalidade: pode dizer-se e conhecer-se o real de diferentes maneiras. Filósofo atual Afirmação de uma (ou várias) verdade(s) possível(eis), aliada(s) a uma atitude crítica, de abertura e questionamento face ao real. Para a filosofia contemporânea, a busca da verdade não é mais incompatível com a retórica. Há mesmo quem afirme poder encontrar na retórica o método da filosofia. As velhas questões filosóficas do ser e da verdade são hoje colocadas na esfera da argumentação. A razão (argumentativa) descobre no discurso consensual a melhor verdade possível.