Noções de Cultura para a Comunicação Intercultural Clara Sarmento ISCAP [email protected] No actual mundo globalizado, onde diversas culturas coexistem no contexto imediato que nos rodeia e subjazem às mais comuns situações comunicativas do dia-a-dia, conhecer uma cultura é equivalente a traduzir uma cultura, tanto quanto conhecer e traduzir uma língua. A capacidade de reconhecer e de respeitar as diversas culturas com que irá deparar-se – seus textos, discursos, objectos, práticas, representações, símbolos e formas de pensar/agir – é essencial à formação de qualquer profissional, em qualquer área. A Noção de Cultura… Raymond Williams (1976): “culture is one of the two or three most complicated words in the English language”. O mesmo ocorre com a polissémica “cultura” na Língua Portuguesa. Exemplos de utilização corrente da palavra “cultura” em Língua Portuguesa: “Existem grandes diferenças culturais entre a Europa e a Ásia.” “Ela é muito culta.” “Este é um concurso de cultura geral.” “É preciso preservar a cultura popular portuguesa.” “A televisão é um fenómeno de cultura de massas.” “A cultura desta empresa defende os valores humanos.” Culture is then properly described not as having its origin in curiosity, but as having its origin in the love of perfection: it is a study of perfection. It moves by the force, not merely or primarily of the scientific passion for pure knowledge, but also of the moral and social passion for doing good. Matthew Arnold. Culture and Anarchy, 1869. Cultura = Civilização / Ética + Estética “O estudo da perfeição”, para Matthew Arnold, deve estar ao alcance das “massas rudes e desinteressadas da humanidade” e não apenas às elites = potencialmente democrático; implica alargar o acesso a produtos culturais eruditos (museus, teatros, ópera, literatura) a todas as classes sociais. Mas esta realidade implica invariavelmente a existência de um “superior” e de um “inferior”, de um “culto” e de um “inculto”. O primeiro elemento do binómio oferecerá o seu saber “superior” ao elemento dele desprovido, que o deverá adoptar de forma grata e passiva. “Civilizado” X “Selvagem” Elitismo, Imperialismo, Etnocentrismo, etc... Perspectivas como a de Arnold restringem a cultura à instrução escolar/académica e às artes. Ou seja, a cultura erudita (‘elevada’) estabelece uma oposição com a cultura popular ou ‘de massas’. Ex: poder-se-à estudar Shakespeare mas jamais um folhetim popular. Cultura de Massas / Popular x Cultura Erudita... 1. Necessidade de “doutrinar as massas”: a) Propaganda político-ideológica; b) Propaganda comercial, publicidade. 2. Necessidade de “controlar as massas”: a) Censura; b) Hegemonia (força + consentimento). O debate em redor da “cultura de massas”, “popular” (= imprensa, rádio, cinema, TV, internet…) prolonga-se durante todo o século XX… e XXI. Mas… de que “cultura popular” falamos no contexto português contemporâneo? Cultura popular enquanto ‘folclore’: uma cultura regional, local, tradicional, cujas manifestações são produzidas pela comunidade e para a comunidade, sem fins lucrativos primordiais; ligada à economia de subsistência no mundo rural ou piscatório e ao sector primário da economia. Barcos moliceiros da Ria de Aveiro; Danças e cantares regionais; Casas alentejanas; Gastronomia; Bordados de Viana; Tapetes de Arraiolos; Olaria e cestaria; Trajes típicos; Alfaias agrícolas. Cultura popular enquanto cultura de massas; globalizada, cujas manifestações são produzidas por empresas/indústrias com recurso às mais diversas tecnologias, com a finalidade de obtenção de lucro, independentemente da participação da comunidade/indivíduo (consumidor) a que se destina; ligada ao consumo, ao supérfluo, ao lazer e aos sectores secundário e terciário da economia. Cinema; Fast food; Videojogos; Centros comerciais; Moda; Televisão; Cinema. Uma noção moderna de cultura… Em The Long Revolution (1961), Raymond Williams esboça uma teoria da cultura que liga a definição já apontada com “a particular way of life, which expresses certain meanings and values not only in art and learning but also in institutions and ordinary behaviour”. Culture is ordinary: that is the first fact. (…) We use the word culture in two senses: to mean a whole way of life – the common meanings; to mean the arts and learning – the special processes of discovery and creative effort. Some writers reserve the word for one or other of these senses; I insist on both, and on the significance of their conjunction. (…) Culture is ordinary, in every society and in every mind. Raymond Williams. “Culture is Ordinary”, 1958. Palmas e Assobios; Alimentação; Aliança; Formas de saudação; Vestuário (traje académico, hábito, farda, luto, cerimónias); Códigos comportamentais em diferentes espaços (sala de aula, à mesa, concerto, cinema, conferência). O significado concedido aos objectos físicos e aos conceitos abstractos não é inerente, mas advem da forma como são utilizados por um determinado grupo ou sociedade, num certo momento e contexto. Vestuário; Símbolos de estatuto; “Modas”. Conceitos: Sexo; Religião; Moral; Respeito. Relação de gerações; Família. Beleza. Significados diferentes em co-presença podem gerar conflitos, que se exprimem em comportamentos e práticas concretos. Templo como local de culto ou como atracção turística; Comer carne de porco; Descobrir o cabelo/rosto/corpo; Jejum na 4ª feira de cinzas e abstinência à 6ª feira. Os diversos significados actuantes numa cultura interagem com os comportamentos e as práticas concretas dos actores sociais. Férias de Natal e Páscoa; Fim de semana e Domingo; Feriados religiosos e político-históricos; Horário das refeições. O grupo ou sociedade deve partilhar, por vezes tacitamente, certos valores e atitudes, que Raymond Williams designa por “estruturas de pensamento” (e sentimento…) e que possibilitam a comunicação. Rimos, choramos, revoltamo-nos, toleramos, chocamo-nos com estímulos semelhantes. Anedotas; Morte e suicídio (radicais islâmicos; kamikaze japoneses); Casamento de menores; Igualdade de género; Execuções públicas; Infanticídio feminino. A cultura depende do modo aproximado mas não idêntico como os seus participantes interpretam o mundo e os acontecimentos em redor. A importância dos “significados comuns” não impede que em qualquer cultura exista uma grande diversidade no modo como se interpreta ou representa qualquer tópico. A cultura está implícita em todas as práticas que não são apenas geneticamente programadas, mas que contêm significados e valores, a interpretar/descodificar pelo actor social… todos nós. Cultura = Comunicação Conjunto de Signos Plurivocal Processo Mutável O estudo de uma língua e de uma cultura tem de contextualizar os respectivos documentos e materiais, tanto histórica quanto politicamente. Quando falamos, ouvimos, escrevemos ou lemos acerca de qualquer grupo ou cultura, devemos distinguir claramente entre representações e realidade vivida, pois não se pode assumir de forma acrítica que produtos como filmes, programas televisivos, romances, noticiários, publicidade e media forneçam um reflexo directo e exacto das experiências vividas numa determinada cultura. Estereótipos = representações vivas mas simplistas, que reduzem os indivíduos a um conjunto de traços característicos exacerbados e geralmente negativos, através de operações de poder simbólico. Senso-comum ou ‘usos e costumes’ = ‘regulamento’ tácito que actua como uma ideologia – por vezes extremamente repressiva – nas práticas e representações do quotidiano. Secretária vs. Assessor; Loira; Espanhola (cf. Eça de Queirós) Brasileira; Chinês; Negro; Bailarino; Feminista; Bom aluno; Muçulmana (cf. Shirin Ebadi ; Malala Youssuf). Identidades e Modernidade… No mundo actual, é possível reconhecer a existência de identidades que contradizem os estereótipos e ultrapassam as fronteiras da nação-estado. Para tal, contribuiram vários factores de hibridização cultural: • • • • As diásporas. A transnacionalização da vida económica e cultural. A globalização. A migração, a emigração e a imigração. Multinacionais; Deslocalização das empresas; Imigrantes em Portugal; Novos emigrantes portugueses; Êxodo rural; Media + Cultura de massas + Internet; Erasmus + Estágios internacionais; Turismo. O que significará, actualmente, “ser português”? Os emigrantes de 1960/70, representados por João de Melo em Gente Feliz com Lágrimas (1988)? O português da Expo98, do Nobel da Literatura, do Euro2004 e da Cimeira de Lisboa? Os imigrantes africanos, brasileiros, indianos, chineses, de Leste? Os atletas naturalizados? Os portugueses do pós-revolução, da descolonização e da democratização, analisados por Eduardo Lourenço em O Labirinto da Saudade (1978)? O que significará, actualmente, “ser português”? O “bom povo português”, categorizado por Jorge Dias em “Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa” (1950)? Os portugueses dos bidonvilles d’Os Anos da Lama? O português cidadão da União Europeia? O português da crise, da troika, da recessão, do resgate financeiro? Os novos emigrantes de 2013? ... ? ... A cultura portuguesa só existe quando os seus intérpretes a levam à cena, pelo que temos de rejeitar as interpretações estáticas que reduzem a cultura a um texto fechado e definitivo, com uma leitura única ou de valor absoluto. Porque não existe uma leitura única, mas sim uma pluralidade de leituras culturais. “Há novas rotas linguísticas para alcançar um futuro intercultural comum”. Chris Larkosh, Portuguese Literary & Cultural Studies , 2010. Língua portuguesa = Portugal, Brasil, PALOP, Ásia. Centros Periferias Macau (China) & economias emergentes do Brasil e África lusófona; Timor Leste: língua oficial = Português + Tetum; Brasileiros de origem japonesa na diáspora. É difícil captar as vivências e estruturas de pensamento de outras culturas ou de outros períodos históricos como se fossem as nossas próprias. No entanto, poderemos apreendêlas suficientemente bem se as observarmos reflectindo sobre os preconceitos que estão a interferir na nossa visão. A Babel de culturas do mundo contemporâneo gera ao mesmo tempo novos conhecimentos e também novos conflitos +/latentes, bem como nivelações qualitativas que se inscrevem nas práticas comuns do dia a dia. Só o aprofundar do conhecimento poderá transformar o informe colectivo anónimo num conjunto de seres humanos com uma identidade, uma cultura e experiências a partilhar em igualdade. Multicultural Intercultural