UMA MESA COM OS VINTE LUGARES OCUPADOS PODE SIGNIFICAR DUAS COISAS: FESTA DE FAMÍLIA OU PROBLEMAS NA EMPRESA O CARÁTER TINTO Uma geada forte castigava a cidade. O granizo da chuva amassava capôs e funilarias dos carros, quebrava vidros e no Facebook já circulavam fotos de pessoas atingidas por pedras de gelo do tamanho de tijolos de bricolagem. Se era uma montagem ou uma trágica fatalidade sensacionalista, Jonsi Ross não tinha gabarito para dizer. Em dias como hoje, em que os clientes não saem do sofá nem para esquentar uma lasanha no micro-ondas, ele até gastava um tempo tentando descobrir falhas na edição de imagens que vazavam pela rede. Mas, apesar de ser muito eficiente quando se tratava de descobrir coisas, manipulação de imagens não era sua especialidade. empoleiradas onde fosse possível. Filhos, netos, netos com bisnetos no colo, bisnetos com peixinhos dourados dentro de sacos claustrofóbicos. Principiou o diálogo carregando no tom de desdém: Sentia o vento que passava por uma fresta da janela, de maneira que até as cáries dos dentes se recolhiam. Não gostava de frio, não gostava de cobertores e gostava muito de morar em um país tropical. “Isso não é uma frente fria”, pensava, “é uma inversão magnética”. E não era só o clima que estava gelado. Jornais estampavam notícias diárias sobre a claudicante economia. Portais e sites especializados reportavam reuniões de líderes globais e bancarrotas corporativas. Tweets colocavam o desemprego em massa nos trending topics. Nesse momento específico, cada empresa tinha sua maneira de lidar com a míngua. Para muitas delas, a solução era Jonsi Ross. “Ignore-o. Ele está quase que completamente senil.” O telefone tocou. Depois do terceiro toque ele se dirigiu à mesa: “Alguém está mesmo a fim de quebrar o gelo” – disse antes de atender o telefone com um sorriso de canto de boca, pensando em quão infame tinha sido seu trocadilho. A conversa foi breve. Ele olhou pela janela que o mantinha minimamente aquecido, suspirou e pegou sua japona antes de sair. As ruas daquela parte da cidade, normalmente tão cheias, estavam vazias. Nem os cachorros pidões davam as caras pela calçada. O assunto devia ser realmente sério. É, no mínimo, deselegante pedir para alguém sair de casa com um tempo desses. No meio do caminho até a cantina marcada, a frase: “Lide com situações extremas, viva em condições extremas” estava pichada em um muro. Era como se seus últimos meses fossem levados para um pôster de rua, em que homens de negócio e vagabundos poderiam ler e fazer a ligação entre o que estava escrito e a pessoa, de tão apropriada. Nos últimos dois meses, Jonsi Ross viajou o mundo por lugares nada turísticos. Ficou dezesseis dias em uma plataforma de petróleo. Viu abaixo dos seus pés o caminho de ondas que chegariam a mais de 20 metros, arrebentando a não mais que uma milha náutica de distância. Adentrou túneis recônditos do país. Metros e metros abaixo do solo em uma das bases mais secretas do Órgão Aeroespacial de Defesa Nacional. Um ar tão esterilizado circulava por ali que seus pulmões, outrora carbonizados pelo tabaco, ganharam uma sobrevida. Duas semanas confinado fizeram bem a seu sistema circulatório; um ano ali deixaria qualquer pessoa extremamente vulnerável à mais simplória gripe invernal. Por fim, passou um mês visitando centros médicos de pesquisas. Ao término dos 30 dias não tinha mais cabelos nas ventas, tamanha a corrosidade dos laboratórios. Sentia-se no estômago de um crocodilo. Gostava do que fazia, mas esperava que tempos mais tranquilos estivessem chegando. Assim que entrou na cantina observou um outro mundo: paredes de madeira assentadas na posição vertical, mesas quadradas com toalhas quadriculadas, garrafas de vinho vazias penduradas no teto e fotografias em preto e branco de uma velha Itália. Jonsi entrou, perguntou pelo Sr. Rozenberg e foi levado a uma sala semioficial nos fundos. O espaço tinha duas mesas. Uma delas era redonda, com feltro verde e um cinzeiro redondo de aspecto pesado no centro. Faltavam as garrafas de bebidas pela metade e as cartas. Os jogadores seriam consequência, pouco importava o nome do jogo. Na outra mesa, quadrada como as da sala anterior, aguardava um homem de uns setenta e poucos anos, corpulento e vestido de maneira elegantemente rústica. Era o Sr. Rozenberg, e nada dali indicava tempos mais tranquilos chegando. Ele iniciou o diálogo de maneira ríspida: “Sr. Ross...” “Por favor, me chame de Jonsi” – interrompeu tentando ser amigável. “Sr. Ross – reforçou –, uma empresa familiar começa a ruir quando a família começa a ruir.” Ele respirou de maneira pesada e continuou: “Eu estou entrando no meu vigésimo processo trabalhista, sempre contra alguém que sentou comigo à mesa do último Natal”. “Um começo animador”, pensou, enquanto arranhava as unhas no quadradinho vermelho da toalha para gerar eletricidade estática. Três horas depois Jonsi fechou a porta da sala quase secreta e decidiu ir caminhando para seu escritório. Deixou Jayme Rozenberg para trás, sozinho, com seu prato de comida fria. E Jayme lhe deixou um cartão muito sóbrio com nome, telefone e e-mail, um calhamaço de umas 400 páginas e um flash drive de 16GB, cheio até o último byte de informações corporativas. O granizo havia se transformado na garoa característica da cidade. Jayme – Ross ganhava a liberdade das pessoas rapidamente – era dono de uma vinícola familiar. Seu negócio cruzava oceanos, navegava os mais extensos rios do mundo, chegava aonde fosse necessário e desejado. Mas, pelos relatos, nessa fração do tempo, estava naufragando mais rápido que o Bismarck. Ele estava desconfiado de que seus segredos de produção, fermentação, filtragem e envelhecimento estavam sendo roubados. Espionagem industrial no segmento de vinhos era algo de que Jonsi não tinha conhecimento desde quando a família Bordeaux entrou em conflito com a família Chirrazè por terras. A proposta dele era simples: Jonsi Ross prestaria uma consultoria, colocaria a vinícola nos eixos e ganharia shares de CIO. Ele não disse o que aconteceria caso a vinícola não fosse colocada nos eixos, mas Jonsi imaginava que seria contratado do mesmo jeito, e no jantar de comemoração seu vinho estaria envenenado. Assim que entrou no hall do prédio em que ficava seu escritório, os porteiros lançaram olhares incomuns. Alguma coisa o estava esperando em sua sala. Quando chegou à frente da porta, pensou em dar meia-volta e só voltar dali a dois dias. “Bobagem” – disse, buscando sanidade e lembrando que a porta não poderia ficar fechada para sempre. Virou a maçaneta. O impacto seguinte foi como um soco na cara. Não esperava encontrar mais de 30 pessoas, todas com algum traço do Sr. Rozenberg, “Rozenbergs, presumo.” A mulher que parecia a mais velha entre todos se manifestou imediata e inquietamente: “Ficamos sabendo que meu pai chamou você para promover mudanças na empresa.” Ele concordou com a cabeça. Ela continuou: Ross decidiu que era a hora de um pequeno blefe. “Não é isso que boa parte dos números fiscais sugere, madame... “Lucy” – disse baixinho, um pouco ofendida por ele ter conhecimento de alguns números da empresa, mas não de seu nome. O consultor tomou a dianteira: “Vou-lhes dizer o que vamos fazer. Primeiro, vou ler o conteúdo que tenho aqui e, garanto, não é pouco” – e mostrou o material que o patriarca lhe havia cedido. “Amanhã não estará lido, nem depois de amanhã. Semana que vem começaremos alguns procedimentos, e então a ajuda de toda a sua família será auspiciosa. Estamos conversados? Muito bem, até semana que vem” – encerrou, abrindo a porta e mostrando elegantemente a saída, se é que isso fosse possível. Ele nem tinha começado a ler aquela infinidade de relatórios e já sabia que definitivamente faltava transparência à vinícola Mosè. No decorrer das noites terminou a leitura e sua garrafa de Pierre Ferrand. A cada página, um novo parâmetro do cenário familicida com que Jayme estava lidando. Se ele estava mesmo se avizinhando da senilidade, a culpa não era dele. No dia seguinte ao desfecho do compêndio, Jonsi tinha alguns problemas e uma solução que estaria ao alcance de um CIO, não de um consultor. Passou a mão no telefone e resolveu arriscar. Conseguiu que a secretária o transferisse para o mandachuva. Antes do alô, antes do bom-dia, já foi metralhado: “E então? Qual a conclusão?” – disparou o Sr. Rozenberg. Ross sentiu que ele esperava uma resposta objetiva. Uma pena. Companhias com cargos administrativos tão diluídos entre a própria família não levam a conclusões simples. Para retribuir a simpatia, evitou os rodeios: “Preciso de um mês e três pessoas da minha confiança trabalhando na área de TI da Mosè” – atirou no revide. A área de TI da Mosè, isso estava bem claro no balanço, era composta de duas pessoas que cuidavam de um data center com alguns servidores. Os servidores não poderiam parar e espaço para armazenar os dados não poderia faltar. Simples assim. Infiltrado seria um pouco mais fácil Jonsi Ross eliminar as dúvidas que habitavam seu encéfalo. A réplica, se não menos seca, ao menos foi positiva. “Eles começam na próxima segunda.” Telefone no gancho. Ligação encerrada. A orientação de Jonsi Ross para seus soldados de confiança foi simples: não queria que vasculhassem quem passasse horas no Facebook ou em sites de pornografia. Eles só precisavam ser discretos, analisar os dados dos e-mails e melhorar a colaboração entre empresa e fornecedores. Softwares simples começam a sugerir ligações entre pessoas e similaridade de dados. Ele precisava das informações que não estavam declaradas e assinadas. Ele queria insights. Seria um mês dos infernos, mas pelo menos suas ventas sairiam intactas. Durante uma quinzena as informações chegaram, sempre acompanhadas de pequenas novidades, nomes e datas, em sua maioria. No décimo sexto dia, com quatro pedidos de Natal vindos da Espanha, Romênia, Lituânia e Senegal, uma pulga pulou um pouco mais alto atrás de sua orelha esquerda. Foi checar a folha de demissões. Bingo! Estava ali desde o primeiro dia. Os Rozenbergs que acionaram o CEOberg na Justiça perderam seus cargos, foram excomungados e, supostamente, não se sentaram com ele à mesa nos Natais seguintes. Uma busca rápida na folha de pagamentos, porém, indicava que eles ainda recebiam suas fatias como fornecedores. Em nome de seus sócios, elementar. Jonsi se sentia um estúpido. Entre os incontáveis membros da família e sem o devido prazo deixara passar a conspiração. Mas lá estavam eles, grudados e aliados aos parentes restantes, como uma raiz rota de uma árvore genealógica. O velho estava sozinho. Os catorze dias subsequentes só serviram para fechar a cadeia e alimentar suas provas. Repentinamente ganhou apreço por Jayme. O homem era um touro. Todos acharam que ele iria entregar as parreiras às filoxeras e que, quando isso acontecesse, tudo se colocaria na linha. Em um detalhe acertaram: o negócio voltaria ao equilíbrio e, em pouco tempo, para o azul. Mas sem a participação dos salafrários. A última reunião entre Jonsi Ross e Jayme Rozenberg foi desprovida de pompa e circunstância. O CIO consultor voltou à cantina do primeiro encontro, entregou o relatório e a papelada necessária e desejou toda a sorte na abertura de capital. O Sr. Rozenberg teria um Natal bem solitário. Rise of the CIO. Lift. NINGUÉM FICA SOZINHO COM A REDE CERTA DECISÕES DE UMA NOITE QUASE A DOIS. Já passava das dez horas e Jonsi Ross ainda estava no trabalho. Não podemos dizer que ele estava exatamente trabalhando, mas, por outro lado, não estava no conforto de casa, só de meias, com o charuto aceso enquanto assistia ao noticiário noturno. Os corredores mantinham apenas as luzes de segurança acesas. Ele vagava mambembe, mas não como se tivesse tomado uma surra, mais como se estivesse atordoado pelos efeitos de algum remédio contra mal estar. Sua sala estava logo ali, era só virar à esquerda ao sair do elevador e seguir a longa linha reta marmoreada. O nome na porta apontando seu status não o fazia se sentir melhor e, sem mais explicações, a luz que contornava a fresta inferior, de batente a batente, começou a sufocá-lo. Ele decidiu não entrar na sala. Era melhor descer até o térreo para tomar um ar. “E, segundo, eu estava na videocall, Jonsi, obrigada por ignorar, mesmo que tenha sido a rede que você sugeriu que permitiu que eu estivesse do outro lado. Poucas pessoas ali (meu tio e você, imagino) sabem que eu não entendo praticamente nada do que está sendo dito, mas minha imagem presente é importante para o board”. Lydia de repente ficou contemplativa como se uma aura de desesperança negra envolvesse sua pele branca. “E a única razão por que alguém sai, da maneira como você saiu, de uma reunião de board, sem ser questionado, é porque confiam muito em você.” O edifício comercial estava localizado no centro financeiro e também não ficava distante dos bairros boêmios. Em resumo, era bem localizado, mesmo que depois das nove horas fosse mais fácil ver o vento circular, soprando por entre as luzes amarelas dos postes, navegando pela avenida como se ela fosse cavada para que ele tivesse um túnel próprio de passagem rápida através da metrópole. Os poucos carros passavam acima do limite de velocidade e sem respeitar o sinal vermelho. Até que um carro chamou sua atenção. Era de um modelo que ele nunca tinha visto. Lembrava uma limusine em menor escala, que, se perdia em ostentação, não deixava nada a dever no requinte. O motorista ralentou e estacionou na entrada lateral do prédio. Claramente alguém desceu e adentrou o hall, mas ele não conseguiu identificar quem era. Olhando para a fachada do prédio, as duas únicas luzes acesas eram: da sua sala, no penúltimo andar, bem no canto, e a sala de reunião da cobertura. “É um bom começo”, ele disse, segurando nas mãos geladas e bem desenhadas dela. Ele serviu um conhaque francês para ela e esperou a cor voltar para as maçãs do rosto. Ela se levantou, despediramse com um beijo demorado no rosto e Jonsi fechou a porta pouco depois de trocarem um último olhar quando Lydia já se encontrava no meio do caminho até o elevador. “Muito bem, agora sou um CIO”, era a única coisa que soava em sua cabeça. A luz imediatamente em frente à empresa começou a falhar. A cidade era violenta e em pouco tempo ele não estaria mais sozinho. Aproveitou o último sopro gelado da noite e respirou fundo, até que seus pulmões congelassem. Era hora de voltar para a sala. Da entrada do saguão Jonsi podia sentir as harpias das ruas compactuando com as gárgulas do topo do clássico prédio. Aquelas sabiam seus medos porque estas haviam contado. As gárgulas podiam ser bregas, mas ainda estavam no topo, vendo tudo, ouvindo tudo. Quando a porta do elevador fechou seus medos também ficaram para trás. Temporariamente. O piso exalava um perfume esquisito, que não emanava há meia hora, nem há meio dia e nem nunca. O olfato conhecia a essência, só não neste andar. Seus passos eram mais cuidadosos que o normal. O ar frio da noite, que o tinha feito tão bem, era como uma memória do ano retrasado; suas pernas voltaram a tremer. No final do corredor estava mais uma vez sua sala, estática, onde ele a havia deixado. Não como ele a havia deixado. Sombras e movimentos sutis se misturavam à luz que passava pela fresta da porta. Jonsi deixou a chamada de emergência preparada e colocou a mão com o celular no bolso externo do paletó. Aproximou-se lentamente com passos silenciosos, bem encostado na parede do corredor. Quando foi encostar na maçaneta da porta para surpreender o visitante incógnito a porta foi aberta por um homem com quase dois metros de altura e largura. “Ótimo. Você de novo. Eu devia ter imaginado”, disse cabisbaixo. “E eu achei que você teria imaginado”, respondeu uma mulher por detrás do homenzarrão, que empostada em seu salto era ainda maior que os 1,83 metro de Jonsi. O cabelo era claro como a Lua da noite estrelada, e a maquiagem, ao contrário da primeira vez em que se encontraram em um dado evento corporativo, discreta. A piteira, como era habitual, trabalhava pausadamente, deixando a fumaça deslizar por entre seus decotes, fendas, brincos, pulseiras e colares. “E o que eu posso fazer por você desta vez?”, ele perguntou sem a encarar. “Jonsi...Jonsi. Meu motivo continua o mesmo. Meu pai acreditava em você. Ele apostou em você como a grande revolução da nossa empresa” – ela recitava com entusiasmo teatral – “e deu certo por um tempo. De repente...pufff. Você estava aí. Jogado.” “Os tempos mudam, não dá para fazer a mesma coisa para sempre”, respondeu conformado enquanto sentava. Ela flexionou as longas pernas, se abaixou até apoiar os cotovelos em seus joelhos e fechar uma das mãos em sua mandíbula. “E eu? O que eu faço, seu egoísta? Eu sou a única herdeira desta porra de empresa e nem sei direito o que é um balanço financeiro” – disse ríspida enquanto pressionava o rosto de Jonsi. “Tudo que eu posso fazer é contratar as pessoas certas. E você é uma dessas pessoas. Começou com você. Você era o exemplo de confiança que eu tinha. Se eu ia contratar alguém eu pensava: Ele se parece com Jonsi Ross?” Ela pausou por dois minutos inteiros em um silêncio desesperado. “Você pode fazer a mesma coisa por toda uma vida se necessário. É só não fazer sempre igual. Não é o que você faz. É com quem. E como.” “Você sabe que eu me tornar CIO da sua empresa foi o último desejo do seu pai, certo?” Ela assentiu com a cabeça. “Esse desejo era só dele. Mais ninguém daquele board é a favor.” “No seu contrato você agora é nosso CIO. Se você está pensando que está acabado é melhor mudar isso. E rápido. Eu estou acabada? Um bagaço?” “Não foi o que eu quis dizer, Lydia. Você sabe disso”, ele respondeu desviando os olhos. “Não. Eu não sei o que você quis dizer. Que você é um fracalhão. Que eu estou saindo com um poltrão.” Lydia calou e ele sentia um amargo dissabor no olhar que ela lhe deferiu. “Eu não preciso me sentir mais paspalha. Enquanto você, parece um dos amigos aposentados do clube de críquete do meu pai: tomando guaraná em copo de whisky, esperando que alguma interesseira esteja se impressionando, para assim morrer fazendo sexo pela última vez ao invés de escorregar e bater a cabeça no bidê. Você não tem nem quarenta e cinco anos, por Deus.” “Certo. Vamos supor que eu seja a solução para os problemas da empresa” – Jonsi se levantou e junto com ele sua voz. “Por que eles ali em cima me ouviriam? Eles nem me queriam sentado junto deles. Para eles eu sou um moleque impertinente que vai sugar o dinheiro de cada área em meu favor. Eu pedi para sair mais cedo da reunião de hoje, ok, tamanha a minha vergonha e impotência frente à situação.” Ele sentou-se ao lado dela. “Eu não sei em quem confiar.” “Em mim?”, ela respondeu antes de a frase terminar. Ele sabia que precisaria confiar em mais alguém para ser de fato a diferença da empresa. Alguém em quem havia muito ele tinha confiado e cujo contato e, sabe-se lá por que, a confiança, sem razão aparente, ele havia perdido. Serviu um pouco do conhaque no mesmo copo que oferecera para Lydia e começou a digitar em seu laptop. Começou com uma lista de problemas: elegeu como problema número um a dissonância nas vozes de comando. Era uma opinião pessoal, mas que definitivamente estava dividindo a empresa não em duas, mas em suas muitas vozes. Seguiu passando por segurança dos processos, mudanças históricas e necessárias nas prioridades de negócio e, quando viu, tinha terminado uma longa lista com algo bem particular: a falta de sensores de movimento nos elevadores o incomodava profundamente. Em seguida fez uma lista extremamente simples, com um único item, para resolver todas as pendências (exceto a do elevador). Analisou a lista e concluiu que era incrivelmente passional. Anotou em seu caderno de citações: “Àquele que é apaixonado pelo trabalho, toda decisão profissional lhe é passional”. Bastava colocar que Henry Ford cunhara a frase para dali a uma semana sua mãe, seu pai e suas tias lhe abarrotarem a caixa de entrada com a mesma sentença. Copiou a lista, colou no corpo de e-mail e enviou para o board. Serviu mais uma dose de conhaque, respirou fundo, repousou a mão sobre o telefone e esperou alguns segundos. O telefone tocou. “Jonsi”, atendeu. “Sim, estou subindo.” Ao entrar na sala percebeu os olhares desconfiados que caíam sob sua gravata semilasseada e o copo em mãos. Assim que se sentou na cadeira vazia da mesa, ouviu: “IBM?”, lhe indagou o CEO com toda a dúvida que uma voz podia carregar. Com um gesto firme de cabeça respondeu afirmativamente e com segurança. “Por que agora?” “Agora temos uma necessidade real. Nossas informações precisam chegar só a quem importa, nós precisamos de uma network segura”, disse enfático. “Eu não sei se consigo ser breve, mas existe do lado de fora, neste exato momento, 21 zettabyttes de dados. Não precisamos de tudo isso, mas precisamos saber identificar the good data e the bad data. Precisamos de uma network com uma solução que vá nos deixar tranquilos. Porque agora, tudo que eu posso dizer é que não estamos prontos para esse desafio, e definitivamente não podemos mais ficar esperando nossos acionistas majoritários (disse isso apontando para os 3 senhores ao lado do CEO) se deslocarem de Cingapura, Madri ou sei lá onde para tomar uma decisão. Uma rede segura permite maior fidelidade e melhor mapeamento dos nossos fornecedores e prestadores de serviço, permite que esse prédio seja um símbolo, mas que não o vejamos como um quartel-general. Nossa infraestrutura foi montada para este momento. É hora de expandir. De crescer.” O CEO levantou. “É Jonsi, é ousado, ao mesmo tempo em que me parece um tanto idiota. Depois de todo esse tempo. IBM?” “Peter”, um dos senhores da grande mesa interrompeu, “por que não?” “O garoto acabou de ser promovido, tem um plano, e estávamos falando agora mesmo que estamos perdidos com tantas informações inúteis”, rufou outra voz no extremo oposto. Fazia muito tempo que alguém não chamava Jonsi de garoto e apoiava suas decisões assim, gratuitamente. Ele sorriu timidamente e agradeceu o apoio. O CEO, no entanto, pareceu reticente, para dizer o mínimo: “Vocês sabem muito bem que, ainda que tenhamos entrado em tempos menos rígidos, e que a companhia tenha aberto posições de liderança para membros menos experientes, a posição final ainda é de uma pessoa. E já que todos não parecem se importar muito com nosso nome, desde que o próprio cargo não seja maculado, vamos levar isso direto à próxima instância. Amanhã na primeira hora quero todos nesta mesma sala para uma reunião com Lydia. Venham sensatos. Boa noite”. Enquanto todo o board começava se retirar, ainda sentado e terminando seu gole final, Jonsi falou não mais alto do que se estivesse falando com uma criança prestes a dormir. “Ela vai concordar”, soou confiante, sem ser arrogante. “E como você sabe disso?”, rebateu o CEO, e todos pararam para olhar. “Network”, respondeu Jonsi enquanto se levantava com seu paletó no ombro e deixava o copo nas mãos do CEO. “Primeiro...Você vai?”, ela perguntou com um ar óbvio. “Vou o quê?” “Sugar todo o dinheiro da corporação, como o Nosferatu que é?” Lydia emendou uma risada como a dos grandes vilões do cinema. Jonsi olhou para ela irritado e antes que pudesse dizer qualquer coisa ela continuou. Rise of the CIO. Expand. QUANDO TODOS ESTÃO COBRANDO, POUCOS ESTÃO FAZENDO GOTA D’ÁGUA COM SAL Charlie Chaplin não tinha a mais reles mudificitária consciência dos tempos modernos que sucederiam seu “Tempos Modernos”. Não eram apenas as esteiras das linhas de montagem que se moviam incessantemente. Tudo requebrava, ribombeteava e rodopiava em ritmo frenético. Pessoas, pensamentos, ideologias e dados invisíveis, que mais pareciam marés índicas incansáveis reagindo à atração dos astros. A cabeça de Jonsi Ross também não parava um minuto sequer. Desalmada inteligência. Sozinho, em seu escritório, sua atitude era soturna. Havia sofrido uma sequência de ataques, e muitas das pessoas da sua equipe (e de sua confiança) jaziam, fora do combate mercadológico. Baixas de uma guerra de informações, travada muito além da mídia e do conhecimento da população. A placa de proibido fumar na entrada do prédio não impedia que Jonsi Ross abrisse suas janelas, para então abrir seus pulmões, e refletir sobre o que estava acontecendo. Ele bisbilhotava melhor os confins do hipocampo e do córtex com o ambiente turvo. Ajudava-o a enxergar além da claridade e superficialidade dos fatos. Hoje, porém, o tapete puído sob sua mesa poderia reconstituir a dramatização do Edifício Joelma, que ainda assim ele não conseguiria enxergar nada com a devida lucidez. não refletem nem nosso momento, nem nosso business. No call com LATAM e South Pacific ficou identificado que praticamente nenhum projeto que a gente apresentou foi aplicado.” Vestindo a máscara da malícia transviada de inocência Jonsi provocou: “É um problema geral da empresa?” “Não, claro que não. Mas nossos feedbacks estão sofrendo com os processos internos e derrubando o follow up da campanhas” – continuou acusador. Ok, agora transcendemos definitivamente a afetação alucinógena e a síndrome de Leviatã – elucubrava Jonsi Ross enquanto ouvia sem conseguir disfarçar sua expressão pasmada. Encorajado pela concordância de sua súcia, Afonso Gabriel Vergueiro de Évora e Mazagão jogou suas cartas na mesa (sim, esse era o nome completo e überistocrático do paparicado marmanjo, veio a descobrir Jonsi Ross pelo seu cartão de contato. Mais incrível que o nome era ele estar inteiro ali, digitado em duas longas linhas de maneira a compor um equilíbrio sofrível entre o logo da empresa e o imperial nome próprio): O dia ensolarado estava convidativo para um passeio externo. Há anos ele não pisava em um lugar tão leve e sem preocupações quanto um parque. Fechou as cortinas para que a efusividade radiada da área externa não o contagiasse e, enquanto fazia isso, lembrava de seu armário. As bermudas de lazer deveriam estar povoadas por colônias de traças. Uma bela alternativa para aqueles parasitas que tentavam, sem sucesso, mastigar suas calças jeans. A robustez do jeans por um brim macio, refrescante e mal passado, ideal para o calor. Felizes as traças, ainda mais hoje em dia, que a naftalina é artigo de boutique vintage. Ele divagava, mas o fato é que continuava sem uma estrela-guia. Nem loira, nem morena, muito menos ruiva e nem na forma, bem menos interessante, mas ainda funcional, de um documento secreto. “Daqui a um mês o board vai se reunir. Você vai achar uma solution, um hint que seja, para esse backfire, não? Eu sugiro um report” O piso do corredor longilíneo, de madeira nobre maciça, linhava um caminho uniforme do elevador até a sala de Jonsi Ross. A camada de verniz, ainda com sinais medíocres de conservação, era um atestado da nobreza do edifício. Porém, por hoje ela rangia demais. Jonsi Ross demorou a percebeu o motivo: alguém estava se dirigindo a sua sala. Normalmente ele era ligeiro para notar indivíduos se aproximando. Mas, se alguns segundos o haviam traído, por outro lado tirou algumas conclusões: os sapatos eram macios e o rincho descompassado indicava alguéns em vez de alguém. Essas pessoas eram vaidosas o suficiente para comprar um bom sapato. Cromo alemão, talvez. Com um pouco de sorte os sapatos lustrosos trariam a luz de que ele precisava. Mais uma vez sobrava para Jonsi Ross identificar e achar a solução para um problema. Esse era seu trabalho, ele estava acostumado com esse tipo de missão e pressão. Um mês. Ele tinha realmente um deadline razoável, mas tinha também uma novidade no roteiro: agora estavam apontando o dedo para ele, para seus processos, seu gerenciamento, sua capacidade de CIO. Ele não conseguia parar de remoer: Algumas batidas secas na porta e, em poucos segundos, uma trupe de bufões, montados como se fossem natural born leaders, estava plantada na sua frente. Só podiam ser do marketing, os homens das tomadas de decisões tapadas, pensou já sem paciência, antecipando momentos de sublime pedantismo corporativo. Aqueles ternos ajustadinhos (embora fossem muito bem talhados, tanto os lisos quanto os risca de giz, admitia Jonsi Ross), o cabelo engomado sem perder o brilho molhado, os MacBooks e iPads a tiracolo e a estirpe de confiança de quem é o menos ignorante em um departamento que é uma jaula de Pavlov. Aquele que parecia o pastor do rebanho de carcajus adiantouse. Jonsi conhecia o bandidão de vista. Armado de seu marketês feroz, atualizado de acordo com as grandes publicações de língua inglesa, um John Wesley Hardin, travestido de businessman, sentou, deixou seus bajuladores postados na entrada da sala, como se fossem seus guarda-costas particulares e disparou: “Jonsi...Já nos conhecemos, certo?” – começou enfadonho, exibindo um sorriso simulado. “Creio que sim” – respondeu Jonsi Ross. Ofendido por não ser rotulado pelo nome, sobrenome, cargo e modelo do carro, o garotão do marketing continuou seco: “Depois dos últimos meetings vou assumir que você já está aware das razões pra eu estar aqui.” Levantando as sobrancelhas, surpreso, Jonsi respondeu no menor volume que conseguiu: “Não faço a menor puta ideia, na verdade” – replicou com sinceridade, esperando que na próxima vez em que abrisse a boca a criatura lhe desse a resposta que há tantos dias procurava. Como que aceitando os termos de Jonsi o especialista em mercado consumidor e habitué das palestras dos Kingpins of Branding and Technology Solution ou dos Integration Guru Evangelists seguiu: “Eu, sinceramente, estava tentando manter uma mínima compostura, mas já que é esse o nível do nosso relacionamento vou ser bem direto. Estamos outdated. As soluções da empresa “Veja...Ninguém, ninguém, me pediu nada para essa reunião.” – Jonsi rebateu enfático. Já levantando da cadeira, Afonso debruçou-se sobre seu olhar mais embusteiro e se elevou aos céus da análise SWOT: “EU, acabei de pedir.” Virou-se e saiu sem um aperto de mãos, abrindo caminho por entre seus devotos vassalos, deixando Jonsi Ross mais embasbacado do que assustado. “Esse pulha, salta-pocinhas, que espalhou um sem-fim de jocosidades dentro da empresa. Criado pela avó, desmantelou minha equipe com picuinhas de carochinha” – rugia com raiva. CMO estava em um happy hour com o cliente. Jonsi Ross tinha feito aliados e se sentiu aliviado após o congraçamento. Este mês, ele também aproveitou para avisar, receberia os relatórios em home office, para melhor testar a eficiência da solução adotada. Não receberia ninguém em seu escritório. A única coisa em que Jonsi Ross conseguia pensar era Um afastamento necessário, para só assim conseguir a aproximação devida, por entre as teias de conspiração que se formaram na companhia. Um pouco de maresia lhe faria bem. Apagando as luzes já mais tarde do que gostaria, suspirou e contemplou a noite silenciosa. Fosse uma cidade pacata ou tempos mais bucólicos ouviríamos corujas e curiangos misturados à Orquestra Filarmônica das Cigarras no Cio. Não era a situação. Em todo caso, noites como essa propiciavam coloridos especiais às notas do Thelonious rasgado no piano de um bar de improvisações desconhecido da maioria dos amantes da boa música. Antes de descer para o litoral Jonsi Ross fez questão de tirar a noite para si. Fez questão também de não dar um checkin quando chegou ao Chloé. Mais que isso, desligou os celulares. Quem o quisesse achar agora teria que rastrear seu carro, invadir seu notebook ou ler sua mente. Conforme o ambiente acompanhava o solista e ficava pesado nas notas dissonantes e marcadas, sua cabeça ficava mais arejada. Os copos caíam das mesas, criando armadilhas cortantes e um odor particular de madeira de tonéis curtidos. Seu copo de Pierre Ferrand caía somente para dentro de sua garganta. Ele não saiu de lá tão cedo. Quando acordou Jonsi Ross sentiu um aroma e uma viscosidade diferente. Não era café, muito menos pão feito na hora. Olhou para todos os lados e nos primeiros segundos não reconheceu onde estava. Depois de uma chacoalhada na cabeça ele viu que estava de cara para o mar, dormindo em sua varanda, onde esperava estar somente dali umas 8 horas. “Uma coisa de cada vez. Primeiro descubro por que estão dizendo que a empresa está defasada. Depois eu descubro como cheguei aqui.” Com o café forte em mãos a primeira missão foi separar as solicitações para reuniões e declinar todas. Sua função era analítica a distância. Os relatórios e os e-mails com dúvidas e soçobros de desespero pipocavam a cada dez minutos. É incrível a capacidade que as pessoas têm de não ler os e-mails – refletia indignado. Estava tudo lá, explicadinho. Devia ter enviado o e-mail com o subject SAC. “Todas essas mensagens de hoje poderiam ser respondidas no SAC” – seria sua resposta. A madrugada entrava alta com um raro céu estrelado acobertando a cidade, bem de acordo com o clima de hoje, refletiu Jonsi, claramente se referindo mais ao dia ensolarado do que à tempestade de isópodos gigantes que circundava seus pensamentos. Da altura da rua era quase possível sentir o aroma atabacado que saía da única janela ainda acesa no imponente prédio, mesmo que ela estivesse dezenas de andares acima dos postes de luz amarela. Os relatórios chegavam de hora em hora. Ao final de três dias os padrões começavam a tomar forma e ficava estupidamente claro quem estava aproveitando sua cadeia de valor e quem empurrava a responsabilidade com sua Mont Blanc, para nem encostar no problema. Funcionava assim: dividindo funções, mais funcionários ganhavam responsabilidades, que agregavam valor a seu trabalho, que aumentava seu passe, que gerava resultados mais assertivos, que facilitava a análise final por parte dos responsáveis e, em última instância, a sua análise final. Recorreu às pessoas que estimava e que ainda estavam a seu alcance. Assim que dividiu suas angústias entre mortos e feridos, remanescentes e defenestrados, aqueles que um dia Jonsi chamou de seu esquadrão, recebeu uma série de modi operandi, e o mais sensato deles tomou como mantra e o repetiu infindavelmente, autopostulante: Passada uma semana ninguém mais mandava e-mails com dúvidas escabrosas. E um padrão ficou muitíssimo claro para Jonsi Ross. O marketing estava sozinho. Eles não tinham sequer um projeto em dia. Provavelmente suas responsabilidades sociais estavam dentro da agenda, mas isso era impossível de ser computado aqui. Nem sequer era relevante. “Ralha mas não cobra, ralha mas não cobra, a cobra não tem o antídoto para o abraço da jiboia.” Depois de um mês arrebanhando informações e dados Jonsi Ross estava pronto para a reunião de board. Sua expressão era leve. Ele estava preparado. Vestiu a roupa de banho e foi para a areia já no meio do dia, equipado de protetor solar, isoporzinho individual e livros. A 426 quilômetros dali a mesa do board abrira seus envelopes, enviados por Jonsi Ross com os highlights devidamente iluminados, e cobrava a disciplina necessária do marketing antes que eles voltassem a exigir alguma coisa, qualquer coisa. Como um mentecapto orador de praças públicas, Jonsi Ross falava consigo mesmo, mas agora ele sabia exatamente por onde começar. O caminho esperado e certamente mais indolor era a recisão do contrato. Para alimentar essa ilusão de seus contraditores, estava decidido a sair de cena por um período. Para tal, porém, precisava distribuir as funções entre os departamentos, alterando o gerenciamento dos processos, que estavam concentrados na área de tecnologia. Ele convocou uma reunião emergencial. Preparou uma apresentação rápida e colocou todos em uma videocall. Comunicou de maneira clara e concisa que, a partir de então, o acompanhamento seria feito por divisão, os relatórios chegariam aos líderes respectivos e uma compilação geral chegaria até ele. Sua ideia era simplificar, simplificar, simplificar, nada mais que isso. Na atual situação era imensuravelmente mais complicado determinar as prioridades de cada setor. O CEO apoiou, e o CFO, que havia cedido à pressão do CMO, teve que concordar que Jonsi Ross chegara a uma resposta relativamente rápida. O CHRO chegou ao encontro pensando que teria um problema em mãos. Saiu da reunião com a perspectiva de ter uma visão geral da empresa com a magnitude que nunca pensara que teria. O O dia ensolarado estava convidativo. Jonsi Ross não sabia se fixava o guardasol ou se pedia a caipirinha antes. Depois de anos ele pisava em um lugar leve e sem preocupações. Rise of the CIO. Transform.