Diálogo e Consenso: em Busca de uma Ética da Solidariedade e da Justiça nas
organizações
Autoria: Reynaldo Josue de Paula, Jerry Adriane Pinto de Andrade
Resumo
Este artigo tem o objetivo de analisar a possibilidade da inserção da Ética do Discurso
em organizações públicas, privadas e filantrópicas a partir de uma experiência vivida na
Associação de Pequenos Agricultores do Semiárido do Estado da Bahia (Apaeb), que teve
como base a Racionalidade Ético-Comunicativa. Essa tem seus pressupostos teóricos
embasados na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas (1988 a/b). Nessa obra o autor
explicita um novo conceito de razão que tem como médium a linguagem, isto é, a razão
discursiva, que é ancorada em relações intersubjetivas e em valores de verdade, justiça e
liberdade. Nessa abordagem, a linguagem tem como télos o entendimento entre os sujeitos
linguísticos e interativamente competentes, numa relação entre sujeito-sujeito, que pressupõe
a existência de um espaço público, isento de qualquer tipo de coação interna ou externa, onde
os indivíduos em interação podem livremente externar opiniões, sentimentos e
descontentamentos, assim como questionar, concordar, discordar, enfim argumentar,
estabelecendo um verdadeiro diálogo. Para realização desta vivência utilizou-se um
delineamento metodológico de natureza qualitativa, de maneira mais específica, escolheu-se
uma variação da pesquisa-ação em conjunto com a técnica qualitativa de grupos focais e a de
dilemas éticos, com uma duração de oito meses. A amostra levou em conta três grupos
distintos de pessoas ligadas à Associação: oito membros da diretoria, dez associados e dez
funcionários. No resultado desta pesquisa na Apaeb identificou-se o uso dos pressupostos da
Ética do Discurso (diálogo, consenso, o emergir de um espaço público etc.) no dia a dia dos
membros envolvido neste estudo. Esse fato assume relevância, pois pode contribuir para a
democratização da rede de relações sociais nas organizações públicas, privadas e filantrópicas
propiciando a cooperação dos agentes sociais na busca do bem estar comum, não somente do
bom, em termos de ganhos materiais, mas também do justo, em termos da moral, ampliandose qualitativamente o nível da eticidade nestas instituições. Desse modo, conclui-se que o ato
e o efeito de uma ação no campo da razão discursiva estão fundados na escolha e na
liberdade, em virtude de estas estarem ancoradas no suporte do entendimento entre os
indivíduos que procuram, pelo uso de argumentos racionais, convencer ou se deixar
convencer a respeito da validade de qualquer norma ou regra. Instaura-se aí um contexto de
solidariedade e de justiça.
1
Introdução
As diversas patologias sociais evidenciam que a humanidade está cansada do excesso
de racionalismo, de eficientíssimo e consumismo. Esses fatores têm concorrido para o
agravamento da exclusão social, da crise de valores, do vácuo existencial dos indivíduos,
gerando dois tipos de fome: a de pão, que pode ser saciável, e a de transcendência, que é
insaciável. Este último tipo aparece aqui não como uma categoria da filosofia escolástica ou
da tradição da filosofia grega que contrapunha o transcendente a outro mundo, o de Deus, mas
como o mundo vivido, o da imanência, o da experiência, da atividade e da história humana. É
como se esses dois mundos, o transcendente e o imanente, fossem opostos e a religião, uma
ponte para unir esses dois universos.
Para Heidegger (1998), transcendência e imanência não são dois mundos, mas duas
dimensões do mundo humano, onde o ser vive, constrói, conserva para si e para as próximas
gerações. Esse projeto planetário pode ser construído na abrangência da esfera individual e
coletiva, com o apoio de todas as instituições ou organizações que compõem a sociedade.
Contudo, o homem sofre limitações de tempo e espaço que vêm do seu nascimento, da
sua classe social, cultura e trajetória histórica. Mas ele não é só isso, é abertura, é um ser de
diálogo, de comunicação, um ser que cria uma rede de relações voltadas em todas as direções.
Portanto, não pode ser compreendido de forma destacada do outro com o qual interage e se
complementa por meio do processo de socialização que, na sua forma mais abrangente,
engloba a dimensão da imanência e da transcendência. É nessa dinâmica dialógica que os
interlocutores vivem e celebram o reconhecimento da sua individualidade e liberdade, estando
ao mesmo tempo disponibilizados para o enriquecimento da alteridade. O diálogo é a
dinâmica relacional que envolve a semelhança, a diferença, o mútuo conhecimento, o
recíproco enriquecimento e é basilar na obtenção do consenso1.
O mútuo conhecimento é um desafio extremamente delicado, pois se constitui na arte
de compreender. Isso significa que é possível pensar e ponderar o que o outro pensa.
Compreender não é estar necessariamente de acordo, não é romper com as próprias
convicções fundamentais, mas o exercício essencial de se recolher para deixar valer o outro.
No recíproco enriquecimento, abre-se espaço para o diálogo como intercâmbio de saberes e
valores. Para tanto, é necessária uma disposição essencial, a prontidão de se deixar influenciar
pelo outro. Só dialoga quem se deixa transformar pelo outro. No entanto, para que isso ocorra,
deve-se estar imbuído de imperativos éticos nas interações humanas em todas as esferas da
sociedade e, de maneira específica, na esfera organizacional.
É comum, no mundo organizacional, fazer-se distinção entre ética e negócios,
considerando-os excludentes (SROUR, 2000). Esse fato evidencia um ceticismo ético que
encontra respaldo em diversos autores, entre eles Williams (1993, p.152), que afirmou: “ [...]
nós devemos rejeitar o ponto de vista objetivista da vida ética e, dessa maneira, a busca de
uma verdade ética”. Todavia, a atividade econômica, inclusive a tomada de decisões pelos
atores organizacionais, é um ato racional que inclui reflexões, ponderações, análises críticas,
pois todas as coisas não estão jogadas de qualquer jeito aí, não estão sequer justapostas umas
às outras, estão todas fazendo teias enormes de relação e, por isso, o universo não é o
conjunto dos seres, é o conjunto das relações de todos os seres, porque tudo é relação que
requer não somente uma vontade, mas também toda uma bagagem de conhecimento e de
valores, inclusive os de natureza ética. Esse pressuposto é baseado na nova cosmologia que
vem da física quântica, onde tudo tem a ver com tudo, em todos os pontos, em todos os
movimentos, tudo é jogo de relação não existe nada fora da relação. O ser humano é um nó de
relação, para dentro, para fora, para cima, para todos os lados. Assim, a realidade é um
conjunto de relações num movimento constante de transcendência e imanência. Essa dinâmica
engloba o mundo das ideias, técnico-científico, cultural, social, espiritual, dentre outros, para
2
que o agente possa decidir com base em uma rede de relações sociais, pautadas em valores
éticos, presumidamente, legitimados pela comunidade. Como mostra Nash (1993: xvi),
“separar economia de moralidade, e ambas do bom senso no trato com as pessoas, é construir
uma análise artificial que deixaria de fornecer os instrumentos necessários para lidar com a
realidade”. Tal comportamento pode comprometer sensivelmente a práxis organizacional com
relação a uma ação social permeada por valores éticos. “Sem uma estrutura de valores morais
básicos, tais como dizer a verdade, justiça e responsabilidade pessoal, a confiança poderá
desviar-se até do grupo gerencial mais idealista” (ibidem).
Numa visão mais analítica, o sociólogo Guerreiro Ramos (1983), em seus estudos
sobre a racionalidade administrativa, demonstra que esta corresponde à razão com relação a
fins da tipologia weberiana. No pensamento de Weber, essa razão é determinada por
expectativas no comportamento tanto de objetos do mundo exterior como no de outros
homens que utilizam essas expectativas como ‘condições’ ou ‘meios’ para alcançar os fins
próprios, racionalmente calculados e perseguidos. O cálculo utilitário, como meta, fragmenta
e reduz a razão à sua dimensão cognitivo-instrumental. Essa razão é denominada instrumental
ou funcional, sendo definida como a ação social baseada no cálculo, na maximização de
recursos e orientada para o alcance de metas técnicas ou de finalidades ligadas a interesses
econômicos ou de poder social. Nela não se aprecia propriamente a qualidade intrínseca das
ações, mas o caminho ou maneiras para atingir um fim pré-estabelecido, independentemente
do conteúdo (ético-moral) que possam ter tais ações. Nesse caso, a racionalidade da ação
administrativa não é a razão entendida como faculdade humana transcendente, e o homem é
visto apenas como uma extensão da engrenagem produtiva, isto é, como peças substituível
que propicia a geração de riqueza e não como sujeito dotado de humanidade que encerra um
valor em si mesmo (RAMOS, 1981).
Sob a lógica da racionalidade instrumental, a ética não é um fim em si mesma, mas a
expressão de um comportamento racional utilitarista, permeado por normas que propiciam
relações interpessoais adequadas a um contexto produtivo, com o objetivo de maximização
dos recursos e de aumento contínuo dos ganhos econômicos. Em outras palavras, é um fator
que apenas viabiliza a existência de normas de comportamento que possibilitam a eficácia
econômica em vez de propiciar reflexões sobre a conduta humana e o emergir de normas que
propiciem um viver em sociedade equânime, por meio do atendimento das necessidades
humanas, a saber: materiais, como alimentação, saúde, moradia; psicossociais, tais como
liberdade, segurança, afiliação, proteção e ontológicas, tais como religião, estética e
autorrealização.
Com base na sua análise, Ramos propõe o reexame da noção da racionalidade na
práxis organizacional. Mais uma vez, busca em Weber (1977, p.20) outro conceito de razão,
relacionado a valores ou à razão substantiva, a qual é “ [...] determinada pela crença
consciente em um valor ético, estético, religioso ou de qualquer forma, como se intérprete —
próprio e absoluto — de uma determinada conduta, sem relação alguma com o resultado, ou
seja, puramente segundo os méritos desse valor”. O autor conceitua a racionalidade
substantiva como aquela permeada por responsabilidade ética e defende a retomada e/ou
revigoramento dela, a fim de possibilitar o autodesenvolvimento, a autorrealização individual
e grupal.
A ética é comumente confundida com a moral, tendo sua origem no grego ethos, que
significa “morada”, onde vivemos. Em seguida, passou a significar “modo de ser” que uma
pessoa ou grupo adquiriu ao longo da sua existência. A moral deriva do latim “mores”, que se
traduz por “costume” e, posteriormente, “caráter”, “modo de ser”. Assim, ética e moral têm a
mesma origem etimológica. Desse modo, volta-se à reflexão sobre os princípios que dirigem
as ações humanas, no sentido de estabelecer o bem, aquilo que é tido como correto, e o mal, o
que é tido como incorreto. Apesar disso, diversos autores, entre estes Vasquez (1995), Dupas
3
(2000), Srour (2000), classificam ética e moral como distintas.
Vasquez (1995) afirma que a ética como ciência ocupa-se em estudar, esclarecer,
refletir, investigar e analisar o comportamento moral do homem. Assim, ela busca analisar e
explicar a finalidade da moral, sua origem e evolução histórica através do tempo e espaço das
diversas culturas. Nesse sentido, a ética é uma reflexão crítica sobre a moral, sendo que esta é
o conjunto de normas, princípios e regras que regulam as relações mútuas entre os indivíduos
e entre estes e a comunidade. Ou seja: a moral é a regulação dos valores e comportamentos
considerados legítimos por uma determinada sociedade.
Já no enfoque de Dupas (2000, p.74), a ética é uma metamoral, isto é, a análise
reflexiva das regras de conduta que formam a moral; enquanto esta é “o conjunto de ações
pelas quais o homem prudente, impregnado de razão, dá forma a sua razão”. Por sua vez,
Srour (2000) diz que a ética é o estudo reflexivo dos costumes de uma sociedade e de sua
respectiva moral, sendo a moral o conjunto de normas as quais norteiam o comportamento dos
indivíduos em sociedade. Segundo esse autor, a ética, tanto quanto a moral, não é um
conjunto de verdades fixas, imutáveis. Elas detêm uma dinamicidade histórica e, dessa
maneira, movem-se, ampliam-se e adensam-se.
Numa abordagem voltada para o mundo dos negócios, Nash (1993, p.6) define ética
como:
o estudo da forma pela qual normas morais pessoais se aplicam às atividades
e aos objetivos da empresa comercial. Não se trata de um padrão moral
separado, mas do estudo de como o contexto dos negócios cria seus
problemas próprios e exclusivos à pessoa moral que atua como um gerente
desse sistema.
Essa autora tende a sintonizar a conduta ética nos negócios com os valores morais
pessoais do Decisor, apesar de não lhes negar a influência do contexto social em que está
inserido. Entretanto, pode-se fazer uma recepção crítica dessa posição no sentido de
evidenciar que se trata da formulação de padrões éticos estabelecidos monologicamente os
quais podem assumir um caráter impositivo e autoritário, portanto ao contrário do processo
dialógico que se enunciou nos parágrafos anteriores, fato que nos remete a uma ética
dialógica. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo analisar a possibilidade da inserção da
Ética do Discurso em outras organizações públicas, privadas e filantrópicas, ancorado nos
pressupostos da Racionalidade Ético-Comunicativa de Habermas a partir da experiência
vivida na Apaeb.
Para tanto, a dinâmica deste trabalho na Associação dos Pequenos Agricultores do
Semiárido do Estado da Bahia terá os seguintes momentos: no primeiro, será explicitada a
problematização do objeto de estudo; no segundo, apresenta-se-á o referencial teórico; no
terceiro, serão descritas algumas características da Apaeb; no quarto momento, será esboçado
o delineamento metodológico e, finalmente, serão tecidas as considerações finais.
Problematização do Objeto de Estudo
Hoje se impõe uma reinterpretação, uma forma nova de viver, de criar morada na
Terra se o homem não quiser se autodestruir, pois a racionalidade econômica predominante e
sua articulação com as estruturas de poder existentes não são uma alternativa para a crise que
agora se atravessa. Muito pelo contrário, elas representam a crise e não a solução. Desse
modo, não se cria um espaço sustentável para o ser humano viver um encontro entre si mesmo
e seus pares numa relação pautada na justiça e na solidariedade2. Portanto, o avanço
tecnológico, a transnacionalização do mercado, a crise econômico-financeira, as
desigualdades sociais e a relativização dos valores ético-morais têm compelido muitos dos
segmentos da sociedade a reivindicarem, de maneira reiterada, aos agentes econômicos e
4
sociais uma práxis organizacional pautada no equilíbrio entre a dimensão ética, social,
cultural, política, econômica e humana.
Contudo, um problema vem à tona: pode-se, a partir dos resultados desta pesquisa, afirmar
que é possível a inserção da Ética Discursiva em outras organizações?
Referencial Teórico
Na sua obra “Teoria da Ação Comunicativa”, Habermas (1988 a/b) explicita um novo
conceito de razão: a Racionalidade Ético-Comunicativa, que tem como médium a linguagem.
Essa razão é ancorada em relações intersubjetivas e em valores de verdade, justiça e
liberdade. Nessa abordagem, a linguagem tem como télos o entendimento entre os sujeitos
linguísticos e interativamente competentes, numa relação entre sujeito-sujeito, ou seja, entre
iguais. Nesse ínterim, Habermas sai do paradigma da filosofia da consciência para o
paradigma da filosofia da linguagem3, realizando aquilo que foi designado como a “guinada
linguística”.
Na perspectiva habermasiana, a racionalidade da linguagem está focada na busca do
entendimento. Nessa lógica, os atos de fala são as unidades centrais da comunicação
linguística. Estes devem pautar-se nas condições universais da ação comunicativa, que são as
pretensões de validade as quais constituem a expectativa dos falantes da validação, dos
conteúdos de seus proferimentos. Essas pretensões são: a) inteligibilidade; b) verdade; c)
veracidade; d) retidão.
As pretensões de validade e toda a sua prática argumentativa para obtenção do
consenso resultam na Ética do Discurso. Esta tem com elemento norteador o princípio da
justiça, visando atender os interesses individuais e os coletivos, ao condicionar a aceitação de
uma norma à concordância de todos os envolvidos quanto às consequências previsíveis da sua
efetividade. Na Ética do Discurso, subjaz implicitamente a noção da imperfeição moral do
homem e a sua quase impossibilidade de encontrar a verdade moral. O que se pode encontrar
são situações morais que se adaptam às contingências temporais e espaciais e aos interesses
dos participantes.
Assim, a efetivação da Ética do Discurso requer um contexto isento de qualquer
repressão e uma igualdade comunicativa, na qual todos os participantes potenciais de um
discurso tenham um Espaço Público onde todos os concernidos tenham, sem qualquer tipo de
coerção interna ou externa: a) a mesma oportunidade de atos de fala; b) a mesma
oportunidade de interpretar e justificar enunciados, problematizar questões, dar explicações e
refutar pretensões de validade; c) a mesma oportunidade de expressar atitudes, sentimentos e
desejos, fazer e retirar promessas e dar razões ou exigi-las.
O Mundo da Vida e o Sistema
No processo da construção do seu projeto teórico, Habermas, a partir de uma recepção
crítica do pensamento de Durkheim, Mead, Husserl e Chomsky, elabora uma construção
teórica fundamental na Teoria da Ação Comunicativa: a concepção da sociedade em duas
esferas, o Mundo da Vida e o Sistema.
No Mundo da Vida, subjaz a noção de “consciência coletiva”, utilizada por
Dukheim, do interacionismo simbólico de Mead e do Mundo da Vida de Husserl, e todos
esses conceitos são apropriados por Habermas de forma crítica.
A partir dessas influências, Habermas (1988 a) concebe que é no Mundo da Vida
que a moral tem suas raízes. É o lugar das relações sociais espontâneas, das certezas préreflexivas, ou seja é a esfera da interação, do âmbito de regulação argumentativa e dos saberes
implícitos, através dos quais os indivíduos interpretam as situações específicas e definem a
5
situação de fala, possibilitando a busca cooperativa do entendimento. O Mundo da Vida é um
conjunto de esquemas interpretativos e um reservatório cultural que fornece saberes e
convicções que são aceitos e compartilhados naturalmente por todos os membros da
comunidade, sem problemas e questionamentos. Assim, é, a priori, inscrito na
intersubjetividade comunicativa. Em suma, é no Mundo da Vida que se processa a
Racionalidade Ético-Comunicativa, permeada por relações entre sujeitos, capazes de agir e
falar e que comungam a realidade de um mesmo mundo vivido.
Segundo Habermas (1988b), a reprodução e manutenção dos componentes
estruturais do Mundo da Vida realizam-se pelos seguintes processos: a) reprodução cultural,
calcada na racionalidade de um saber válido, o qual proporciona a legitimação das
instituições, fomentando uma dimensão educativa que possibilita ao indivíduo desenvolver a
competência necessária para efetivação de suas ações sociais; b) integração social,
responsável pelo estabelecimento de vínculos de natureza moral, permitindo que as ações
sociais do indivíduo sejam legitimamente reguladas e assegurando a estabilidade e a
identidade do grupo numa base solidária; c) socialização, que exerce o papel de desenvolver
no indivíduo a capacidade de interpretar os significados de situações novas, possibilitando a
este agir no plano individual e coletivo, em conformidade com as normas socialmente
legitimadas e também a responsabilizar-se autonomamente pelas suas ações. Essa dinâmica
pode ser visualizada na figura 1.
Componentes
Estruturais
Processo
de Reprodução
Reprodução Cultural
Cultura
Sociedade
Personalidade
Esquemas de interpretação
que
possibilitam
o
consenso (saber válido)
Legitimação das instituições
Processo
de
socialização Objetivos
educativos
Integração Social
Obrigações ou Deveres
Morais
Relações
interpessoais
legitimamente reguladas
Identidade social
Socialização
Interpretação
significados
Motivação para atuar em
conformidade
com
as
normas
Identidade individual
(autonomia pessoal)
de
Figura 1: Os processos de reprodução e manutenção dos componentes estruturais do Mundo da Vida
Fonte: Habermas, (1988 b, p.202)
O Sistema assume um distanciamento em relação à normatividade das interações
comunicativas cotidianas, posicionando-se conceitualmente na perspectiva do observador, que
aplica uma norma sem ser por ela implicado. É o âmbito da regulação mecânica e do controle
estratégico e tem como componentes a economia e o poder. O Sistema reporta-se à esfera do
trabalho, compreendendo as relações funcionais, ou seja, estratégicas. Trata-se de estruturas,
indispensáveis à reprodução material da sociedade, que se autonomizaram (desacoplaram) do
Mundo da Vida, devido às racionalizações próprias da modernidade (HABERMAS, 1988a).
Nessa lógica, os imperativos sistêmicos passaram a sobrepujar as coordenações comunicativas
de planos de ações (Mundo da Vida), gerando distorções sistemáticas na comunicação, o que
caracteriza uma colonização (HABERMAS, 1988b).
A Colonização do Mundo da Vida
A colonização do Mundo da Vida é identificada como a invasão da lógica racionalista
que pretende submeter todos os aspectos de vida pessoal e social ao princípio da eficácia, sem
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se interrogar sobre os fins. O processo de colonização é ancorado na crescente mediação das
diversas esferas do Mundo da Vida pela lógica sistêmica, passando este a exercer apenas um
papel secundário no contexto sistêmico. Esse fato tem sua gênese no uso pragmático da razão
prática, ou melhor, é o agir estribado na denominada Ação Estratégica. Nesta, o que
impulsiona e determina a ação é a obtenção do ganho econômico e do poder, em detrimento
da justiça ou equidade social. Segundo Habermas (1988b), esse desacoplamento ou
colonização é o responsável pela integração sistêmica da sociedade, na qual a busca ao
entendimento é substituída pela busca ao dinheiro e poder – o êxito.
Nessa perspectiva, este artigo parte da afirmação habermasiana da colonização do
Mundo da Vida pelo Sistema e do pressuposto de que a inserção da Racionalidade ÉticoComunicativa nas organizações será o fio condutor para a reversão desse processo.
Quando algué
alguém quer saber como conviver com
a seca, eu digo: Não é um bicho de sete cabeç
cabeças.
É só pegar um avião para Salvador, descer no
aeroporto, pegar a estrada para Feira de Santana,
seguir até
até Serrinha, virar a esquerda na direç
direção de
Conceiç
Conceição do Coité
Coité, e chegar em Valente e
conhecer a APAEB.
PETER SPINK, 2002
A Apaeb fica em Valente, a 180 km de Salvador. É uma associação sem fins lucrativos,
fundada em 1980, que tem como missão promover o desenvolvimento social e econômico
sustentável, visando à melhoria da qualidade de vida do pequeno produtor rural da região
Fonte:sisaleira.
Elaborado pelos autores com base no site da Apaeb
A Apaeb interfere diretamente na economia da região, procurando agregar mais valor aos
Quadro
3: Algumas
atividadesagricultores.
da Apaeb Atualmente, com mais de 800 empregos, injeta milhões de
produtos
dos pequenos
reais na economia local.
Figura 2: Características da Apaeb
Fonte: Elaborado pelos autores à partir do site http://www.apaeb.com.br
I. Fábrica de tapetes e carpetes de sisal: a
produção é voltada para exportação, cuja
receita financia 95% dos seus projetos.
II. Escola Família Agrícola: com projeto
pedagógico, baseado em Paulo Freire e Ferrer.
III Convivência com a seca: assistência técnica
permanente aos agricultores; atendimento
veterinário,
laboratorial;
melhoramento
genético do rebanho caprino e ovino, programas
de construção de cisternas; perfuração de poços
artesianos, sistemas de irrigação.
IV. Cultura: apoio a grupos como a Quixabeira;
realização de movimentos culturais em parceria
com associações comunitárias.
V.Crédito aos agricultores.
Fonte: Elaborado pelos autores com base no site da Apaeb
Figura 3: Algumas atividades da Apaeb.
Fonte: Elaborado pelos autores à partir do site http://www.apaeb.com.br
7
Delineamento Metodológico
Para realização de uma vivência da Ética do Discurso entre os representantes da
diretoria, funcionários e associados da Apaeb, foi necessário que o pesquisador suspendesse
seus valores para permitir que aflorasse a dimensão social, política, como aquelas peculiares
ao ser humano, tais como os valores, as crenças e os símbolos. Estes últimos são difíceis de
ser quantificados e requerem interpretação, visto que são de acesso exclusivo do próprio
sujeito e escapam à mera observação. Em virtude disso, optou-se por uma abordagem
metodológica de natureza qualitativa.
Dentre essa abordagem, escolheu-se uma variação da pesquisa-ação em conjunto com
a técnica qualitativa de Grupos Focais e de Dilemas Éticos. A pesquisa-ação configura-se
como uma investigação social de base empírica com relação ao dia a dia dos atores sociais,
num esforço de apreendê-la, em toda a sua singularidade. Ela geralmente é associada a “[...]
uma ação com a realização de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os
participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo
cooperativo ou participativo” (THIOLLENT, 1994, p.9). Assim, o público-alvo não é tratado
como objeto, mas como sujeito interparticipante. Nesse caso, é necessário que o pesquisador
interaja com os pesquisados, deixando-se influenciar o mínimo possível por seu
conhecimento, por sua etnia, sua cultura e por seus valores ético-morais durante a trajetória da
pesquisa.
Fases da Pesquisa
Com a participação de três grupos formados por 8 (oito) diretores, 10 (dez)
funcionários e 10 (dez) associados, as fases da pesquisa foram três:
a) o mapeamento dos valores ético-morais de cada grupo;
b) a legitimação destes valores (legitimação instaura conflito entre o vivido e o
proposto no mapeamento dos valores ético-morais dos participantes, por isso mantém, destrói,
constrói, interpreta e pode dar novo sentido às falas, emergidas da fase anterior; nesse sentido,
não é somente o “saber-o-quê” dos valores ético-morais manifestados nas falas — o conteúdo
norteador do comportamento dos participantes na sua práxis apaebiana — e o “saber-como e
do porquê” de tais comportamentos. Isso implica lidar com a eticidade do grupo, não somente
no plano conceitual, mas também na concretude do dia a dia desses atores, instaurando a
teorização da prática);
c) a vivência da Ética do Discurso com os três grupos. Como procedimento inicial
dessa fase, fez-se o questionamento de cada uma das falas legitimadas por meio das seguintes
perguntas norteadoras: Queremos que essa fala oriente o nosso dia a dia na Apaeb? Elas são
justas e solidárias? Quais as consequências da utilização dessa fala para todos nós? No caso
de qualquer um dos concernidos discordar da justeza de qualquer uma dessas falas, elas serão
problematizadas na busca da obtenção de pretensões de validade, do enunciado que poderá
assumir o status de regra ou norma para o grupo. As fases de mapeamento e legitimação dos
valores ético-morais foram desenvolvidas com cada um dos grupos enquanto foi realizada a
dinâmica da vivência da Ética do Discurso.
Essas três fases foram operacionalizadas por meio de Grupos Focais e de Dilemas
Éticos. Conforme Gortner (1991), existe um dilema ético em situações nas quais dois ou mais
valores em conflito são importantes e competitivos, sendo que somente um deve prevalecer
sobre os demais. Para que os indivíduos se encontrem em situações de dilemas, são exigidas
três condições mutuamente essenciais: a) que estejam perante uma escolha ética; b) que
estejam comprometidos em realizar o que é moralmente certo e c) que estejam confusos em
relação ao que é correto. (ENTEMAN, 1993, p.197).
8
Para elaboração de dilemas capazes de instaurar e alimentar o debate, sem criar
situações delicadas e embaraçosas que pudessem trazer constrangimento a qualquer
participante e sem promover uma conotação plebiscitária, ocorreram vários contatos com os
pesquisados e com sua realidade. Os Dilemas Éticos elaborados (dez, no total) tiveram como
suporte teórico as categorias enumeradas na figura 4.
Categoria
Justiça Social
Ação Comunicativa
versus
Ação Estratégica
Inclusão
Social
Espaço Público
Mundo da Vida
versus
Mundo do Sistema
Significado
A justiça aqui significa que todos os seres humanos devem ser tratados do mesmo
modo com relação a direitos e deveres. Isso se baseia num conceito fundamental, o
da IGUALDADE. Portanto, uma justiça distributiva livre de egoísmos racionais e a
favor dos interesses coletivos, sendo mediada pela intersubjetividade comunicativa.
A ação comunicativa é centrada na consensualidade obtida “[...] de um discurso
cujos
participantes
ultrapassam
as suas opiniões, a princípio limitados
subjetivamente, a favor de um acordo racionalmente motivado” (HABERMAS, 1990,
p.291). Já a ação estratégica coordenada por meios extralinguísticos visa apenas ao
sucesso financeiro e ao poder social. Tem como força impulsora a racionalidade
instrumental, que gera patologias sociais, entre elas a equivalência monetária entre as
pessoas e as coisas.
Reporta-se ao processo de conviver com a diversidade de opiniões, valores, crença,
comportamentos, gênero e etnia, portanto uma inclusão que pressupõe uma unidade a
partir da heterogeneidade, pois o indivíduo reconhece-se nessa condição através da
interação com seus pares, num contexto isento de qualquer coação e discriminação,
fato que remete a relações de poder simétricas, isto é, compartilhamento do poder.
É um locus no qual os atores sociais tematizam suas questões por meio de uma
prática discursiva, no sentido de desenvolverem uma convivência democrática
pautada na solidariedade, na justiça social e na emancipação dos indivíduos. Segundo
Habermas, é o “uso público da razão” o qual requer um espaço público para que
todos tenham condições de tematizar e validar suas visões de mundo, opiniões,
desejos etc.
O Mundo da Vida é celeiro de saber organizado linguisticamente e transmitido
culturalmente, constituindo-se em uma fonte de modelos de interpretação e
compreensão do indivíduo, com relação ao mundo em que vive. O mundo do Sistema
é aquele responsável pela produção material da sociedade e tem como médium o
sucesso econômico e o poder social.
Figura 4: Categorias de análise das falas
Fonte: Adaptação de Habermas 1988 a/b
A operacionalização dos dilemas foi efetivada por meio de outra técnica qualitativa, a
de Grupos Focais. No pensar de Gaskell (2002, p. 76), o Grupo Focal é “ [...] um ambiente
mais natural e holístico em que os participantes levam em consideração os pontos de vista dos
outros na formulação de suas respostas e comentam suas próprias experiências e as dos
outros”. Nesse processo, as crenças, os valores, os mitos e os preconceitos dos participantes
são externalizados por meio de suas subjetividades as quais, ao mostrar-se ao mundo, são
objetivadas por intermédio da intersubjetividade resultante da interação que ocorre entre os
participantes. As falas (valores ético-morais) resultantes desse processo investigativo foram
analisadas por meio dos pressupostos da Teoria da Ação Comunicativa e sob a luz da
fenomenologia social de Schutz (1968). Os encontros foram gravados com a anuência dos
participantes. Após a realização dessas fases, de maneira sintética, fizeram-se algumas
considerações sobre os resultados obtidos.
Análise das Falas sob a Luz das Categorias4
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Justiça Social
Na categoria da Justiça Social, evidenciou-se a existência de relações solidárias as
quais comportam os valores de justiça social. Entretanto, isso só ficou claro na fase da
vivência da Ética do Discurso, pois, nas anteriores (1ª e 2ª), os depoimentos apresentaram um
viés utilitarista, ou seja, eram destinatários da justiça apenas àqueles pertencentes aos laços
afetivos do falante, provocando o sentimento de “não pertencer” para os não integrantes desse
círculo afetivo, numa lógica do não reconhecimento do outro, da ação estratégica, indicando a
possível existência de vácuos democráticos nos valores dos grupos com relação à questão da
justiça.
Neste ínterim, surge uma fala que foge dessa lógica com o seguinte conteúdo: “Eu não
testemunharia. O compromisso moral é mais importante do que o simples registro de um
testemunho. Na Apaeb houve caso do funcionário que bateu a cabeça há mais de seis anos e
até hoje é assistido”, numa demonstração de confiança irrestrita na Instituição. Constatou-se,
no caso, que a confiança é um padrão cultural com gênese na tradição e cuja historicidade é
adquirida e transmitida no tempo e espaço por meio dos saberes do Mundo da Vida,
fomentando uma agregação primária que pode tornar-se uma das âncoras da base
associativista da Apaeb.
Na perspectiva da ação estratégica, a confiança não seria decorrente de um processo
social natural, mas algo formatado no sentido de que produza determinado efeito num
contexto social, com resultado previamente planejado e controlado, tornando-se, assim, um
dos fatores que podem ser manipulados com o objetivo da produção de riqueza e,
consequentemente, de poder social.
Apesar dessa manifestação seminal, faz-se necessário que a confiança continue sendo
realmente um fator agregador social e não se torne mais um instrumento de manipulação e
controle social, principalmente em áreas de maior presença das ações estratégicas, como é o
caso da Fábrica. Porém, como bem lembrou de maneira emocionante um dos funcionários,
“[...] a Fábrica não é somente um reduto de produção de tapetes, mas também um reduto do
exercício da cidadania”, numa postura sócio-política de desenvolvimento de uma prática
social pautada na equidade.
Racionalidade Ético-Comunicativa
Neste caso, emergiu a emoção, a ética, os laços familiares e a coletividade como
norteadores das ações sociais, como sinaliza a fala seguinte: “[...] o mínimo que eu poderia
fazer é denunciar é o mais justo, o mais correto com a comunidade da qual eu faço parte. [...]
temos de pensar no social e não somente no dinheiro. Seria uma demonstração de
solidariedade”. Esse pronunciamento mostra com clareza a presença da Racionalidade ÉticoComunicativa nos valores ético-morais dos três grupos em uma configuração relacional, de
considerar-se o outro como alguém significativo, no sentido da atenção e respeito mútuo; em
uma racionalidade que implica autoconsciência da comunhão, da partilha, da dádiva de
valores fundamentais em uma comunidade que tem como suporte a justiça e a solidariedade.
Todavia, registraram-se manifestações da ação estratégica, como expressa a seguinte
fala: “Avisaria ao chefe, mas, no lugar dele, eu manteria sigilo com o cliente, pois implica
prejuízo que pode comprometer a folha de pagamento”. Essa fala revela uma ambiguidade
ética, pois mostra uma preocupação de cunho ético, mas, logo em seguida, sugere omitir a
fraude contra a pessoa lesada, com receio de não receber o salário. Nessa situação, o agir do
falante é norteado pela lógica estratégica e pelos imperativos sistêmicos. Falas do tipo “Eu
não denunciaria, pois tenho minha família para dar de comer”, “É muito difícil tomar essa
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decisão”, “Eu ficaria neutro”, à primeira vista, poderiam ser enquadradas na lógica sistêmica,
mas, acolhendo compreensivamente esses enunciados, pois se trata de associados na faixa
etária acima de 60 anos, portanto fora do mercado de trabalho, pode-se inferir que tal postura
remonta a experiências passadas, as quais constituem memórias coletivas, que não são
propriedades do indivíduo, mas do grupo; portanto, uma construção social de conotação
psíquica que envolve as dimensões social, cultural e econômica.
Inclusão Social
Apesar de todos os participantes enunciarem a questão da igualdade entre os pares,
registraram-se falas que evidenciam a presença de valores com nuances conservadoras e
excludentes, como pode ser exemplificado pelas falas a seguir: “O mundo evoluiu muito e,
como diz o ditado, ‘papagaio velho não aprende mais a falar’, mesmo estando meio ‘sendeiro’
(velho), eu manteria algumas lideranças e demitiria gradativamente os funcionários mais
velhos” e “ Hoje as empress admitem funcionários mais qualificados, então minha prioridade
é para o funcionário mais jovem, pois mais cedo ou mais tarde os funcionários antigos vão
sair”. Tais colocação feitas por participantes mais jovens e de maior qualificação profissional
apontam para o problema de estratificação sócio-cultural numa perspectiva de que o “outro
não merece minha atenção”, resvalando contraditoriamente para o problema da exclusão
social.
Essa atitude excludente advém de um saber que um grupo detém e outro não, saber que
assume o caráter de capital simbólico, convertendo-se numa forma de estratificação social
entre os indivíduos, como se não houvesse espaço para os não detentores desse saber.
Emergiu também a exclusão da mulher, que é uma forma de suprimir o outro do exercício da
plenitude de sua potencialidade, baseando-se em valores tradicionais, os quais não dão conta
da realidade do atual papel feminino na sociedade. Tal postura costuma levar as mulheres da
Associação a sentirem-se injustiçadas, pois acabam sendo violadas na sua individualidade e
no exercício de sua cidadania.
Espaço Público
A fala:
Não aceito essa decisão [instalar a câmara de vídeo]. A falta de informação
impede os funcionários de entenderem os momentos difíceis da empresa. Os fatos
pertencem a todos e não somente a um grupo O diálogo pode resolver muitos
problemas funcionais. Mesmo o controle deve ser feito de maneira mais aberta e
democrática.
torna clara a demanda de um Espaço Público em conformidade com as prescrições da
Racionalidade Ético-Comunicativa para que haja um aperfeiçoamento e desenvolvimento de
competências comunicativas, possibilitando a participação cidadã de todos os integrantes da
Instituição, evitando, dessa forma, a “guetização” da diversidade de pensamento e opiniões,
como evidencia a fala acima.
Na dimensão política, a exigência por um Espaço Público foi muito enfática, sendo
nítidas suas opções políticas, podendo-se inferir que existe nos participantes uma Estética da
Política, ou seja, uma postura na qual o indivíduo, na condição de sujeito e ancorado em seus
valores, decide a sua trajetória política, numa relação consigo mesmo, porém sem
desconsiderar o outro, num processo de aglutinação social, como bem retratam as seguintes
falas: “A decisão de apoiar ou não”, é de vontade dos funcionários, portanto a Diretoria não
pode assumir esse compromisso. [...] o papel da Diretoria é informar ao deputado a nossa
opção social, o nosso compromisso de respeitar a todos os cidadãos. Assim, qualquer
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imposição ou manipulação eleitoral perde o sentido. [...] todos devem seguir o seu caminho de
forma consciente”.
É possível inferir que isso constitui um fator identitário dos participantes, visto que
seus membros falam de seu engajamento político como referência histórica das suas
trajetórias.
Mundo da Vida
Os participantes colocaram a preservação dos vínculos sociais como imprescindível à
consolidação do trabalho social que a Apaeb tem desenvolvido até o momento, sem
desconsiderar a importância do avanço tecnológico. Mas que este seja mediado pela razão
comunicativa. Isso pode ser constatado nas falas “Se a empresa tem como objetivo o lucro,
sem voltar-se para o social, ela é capitalista. Mas nosso lema é o social, então a atitude correta
é avançar na tecnologia para garantir o avanço nas responsabilidades sociais” e “A empresa
tem de avançar tecnologicamente, melhorar a qualidade, reduzir custos e aumentar
produtividade. É a lei do mercado. Então, nós temos de avançar, porém sem pisar na
sobrevivência que nos constitui. Não se podem esquecer os vínculos sociais e a solidariedade.
É isso que assegura a nossa sobrevivência”.
Nesse sentido, para que se tenha uma prática de manutenção e/ou resgate da
predominância da razão comunicativa sobre a razão estratégica (sem, contudo, desconhecer o
valor desta na reprodução material da sociedade), é fundamental que se saiba trabalhar
dialeticamente essas razões, de maneira tal que suas ações comunicativas não sejam
camufladas pela lógica instrumental e se tornem ações estratégicas encobertas, contaminando
a base comunicativa inerente às interações sociais desse contexto.
Os debates propiciados nas fases da pesquisa foram bastante ricos, propiciando aos
pesquisados participarem livremente, explicitando as suas visões de mundo, que, muitas
vezes, eram contraditórias, mas, na sua totalidade, formavam uma concepção do mundo
vivido por esses atores. Entretanto, o ponto central desses debates foi a constatação da maior
introjeção dos valores de mercado no contexto da Fábrica do que em outros setores da Apaeb,
fato que norteou muitas das falas dos depoentes. Essa realidade foi perceptível para o
pesquisador em conversas informais com outros membros da Instituição quando estes falavam
da Escola da Família Agrícola (EFA), do Centro de Desenvolvimento Comunitário (CDC) e
da própria Apaeb. A entonação verbal e a expressão corporal emitiam para o espectadorouvinte uma conotação quase mítica desses setores tidos como símbolos da solidariedade e
valorização humana. Já a Fábrica, apesar da manifestação de orgulho com sua existência,
significava apenas o emprego, o dinheiro, o sustentáculo financeiro para os projetos da
Instituição, portanto sem a representação simbólica e até mesmo afetiva que era destinada às
áreas citadas. Não se está negando que as diferenças naturais devam existir entre áreas da
Instituição, visto que estas estão em contextos distintos, com atmosfera diferente, com crenças
diferentes, valores diferentes, funções diferentes, mas todas devem comungar a prática
solidária, a prática da igualdade, da cidadania, e, representar uma totalidade para seus
membros. Desse modo, defende-se que a Fábrica não seja apenas um apêndice de toda a
prática solidária da Apaeb, mas que esta, além de promotora econômica, assuma também o
papel de promotora de transformação social, estando assim em consonância com os objetivos
da Associação.
Nesse sentido, é conveniente alertar que não basta que a Instituição desenvolva suas
atividades, tendo como suporte conceitual-prático a solidariedade e a justiça social para que as
áreas que a compõem tenham a mesma postura. O aprendizado solidário deve resultar da
conjugação da interação social cotidiana, mas também de um processo educativo que permita
aos atores sociais a reflexão crítica do efeito de suas ações sobre eles e sobre os demais,
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permitindo uma constante renovação e/ou consolidação dos seus valores e princípios. Isso
quer dizer que o aprendizado é possível pela prática, por intermédio das interações sociais,
mas tem de ser aliado à institucionalização de programa educativo e contínuo que permita aos
atores sociais o processo de acomodação (perspectiva piagetiana) a novas situações e à
formação de novas estruturas mentais para incorporarem valores sociais que lhes permitam o
desenvolvimento do exercício da solidariedade e da equidade social de maneira consciente e
natural.
Desse modo, é possível afirmar que a efetivação da prática argumentativa propiciou a
flexibilização consensual da rede simbólica dos significados expressos nas falas para atender
aos princípios de solidariedade e justiça nas relações sociais.
Nessa perspectiva, as falas mostraram a exteriorização de posturas éticas reais dos
participantes, ou seja, elas não são postulações, mas comportamentos vividos por esses atores
sociais, o que incide no desvelar da eticidade que permeia as atividades desenvolvidas por
esses grupos no seu cotidiano. Assim, as contradições que afloraram não podem ser
consideradas uma crise de valores, mas uma diversidade destes, que encontram uma dinâmica
e um contexto propício ao seu emergir. A aceitabilidade e o acolhimento pelos participantes
da vivência da Ética do Discurso mostram que esta pode ser um dos mecanismos de
aprimoramento do Espaço Público, que tem como matriz a assembleia dos associados e a sua
irradiação para todas os setores da Apaeb.
A institucionalização de um Espaço Público é fundamental, pois permitirá a irradiação
de uma cultura solidária aos membros dessa Associação e a toda a comunidade, evitando que
os benefícios sociais, econômicos e culturais propiciados pela Instituição não sejam
instrumentalizadas pelos próprios beneficiários, que buscam um lenitivo para as suas
carências sociais. Com isso, esse trabalho social não assumiria uma configuração similar ao
clientelismo, ao apadrinhamento, tão tradicionais na região, perdendo, assim, a sua
característica de um movimento de transformações sociais, políticas, econômicas e culturais.
Enfim, a Apaeb é reconhecida nacional e internacionalmente pela magnitude do trabalho até
hoje desenvolvido, mas essa legitimação deve ser real para todos os destinatários, em um
processo que lembre a questão da dádiva, ou seja, que todos internalizem que têm um débito
para com a sociedade e, em qualquer momento ou local, deve saldá-lo com qualquer pessoa,
independente de etnia, gênero, credo etc.
Participante
Diretor
Associado
Funcionário
Conteúdo das falas dos participantes
-Foi ótima, pois a visão dos diretores, dos funcionários e dos associados mudou para enxergar
o que é bom para todos. Muitas vezes, nós discordamos de algo, achando que é ruim, como,
por exemplo, no dilema do teste de álcool, mas é preciso discutir para se chegar a essa
conclusão e não julgar somente a partir da nossa opinião sem considerar o que os outros
pensam e as consequências das nossas decisões.
-Eu gostei muito porque eu tinha a minha opinião, falava, estando certo ou não, mas também
ouvia a opinião do companheiro. Neste curso, a gente pode ver a diferença de opiniões, pois
dificilmente dois companheiros respondiam a mesma coisa, mas aprendi que devemos discutir
essas opiniões para chegar a um acordo, foi ótimo.
-Muito, principalmente pelo que conseguimos aprender na separação das éticas. Foi positivo,
porque ali teve oportunidade para os três grupos colocarem seus pontos de vista, discutindo e
chegando a um ponto comum. É uma coisa muito interessante, levando todos a aprender,
mesmo sem perceber. Foi a melhor parte da pesquisa. A única falha foi o tempo, mas isto é
complicado para nós.
-Sim, eu mudei, pois percebi que não estava sendo ético em alguns momentos e, desde então,
tenho procurado atender melhor o associado, o funcionário da entidade, que às vezes a gente
não olhava como um todo. E não posso continuar fazendo algo que, agora sei, não é correto. É
uma questão de consciência.
-Acho que foi um momento muito importante para mim e para os meus colegas, pois abriu a
mente, o peito da gente. O que nós tínhamos vontade de falar, nós falávamos, tiramos do peito
ideias novas. Todos ficaram livres, em paz, para fazer perguntas, dialogar e aprender também.
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Foi um aprendizado para mim e para todos.
-Para mim mudou muita coisa, principalmente meu comportamento. Eu enxergava as coisas da
minha forma. Depois deste trabalho, entendi que a ética faz parte do dia a dia da gente, em
casa, no trabalho, então, eu não posso pensar somente em mim, eu tenho de pensar em todos.
-Tenho que ser solidário com meus companheiros, juntar minha experiência com a deles, para
tocar o dia a dia. Se o colega fizer errado, eu não vou criticar, porque o importante é ajudá-lo,
passar aquilo que eu aprendi.
Figura 5: Falas de participantes
Fonte: elaborado pelos autores à partir dos dados da pesquisa
Diante do exposto, emerge o seguinte questionamento: é possível a inserção da
Racionalidade Ético-Comunicativa nas organizações públicas, privadas e filantrópicas? Aqui
parte-se do pressuposto que sim. Para justificar essa afirmativa, serão demonstradas algumas
falas da avaliação feita no final do trabalho, contendo várias perguntas, dentre elas: O que
significou para você a vivência da Ética do Discurso? As falas da figura 5 aclaram a questão.
Considerações Finais
Esses depoimentos sinalizam a plausibilidade da inserção da Racionalidade ÉticoComunicativa em outros contextos organizacionais. Na Apaeb, esse trabalho, transcendeu o
simples aspecto de uma pesquisa, representando para os participantes uma experiência
bastante enriquecedora, no sentido de permitir o acolher do outro na sua diversidade. Tal
experimento exigiu uma grande capacidade de descentração, já que o indivíduo tinha de
salvaguardar o seu “eu”, suspendê-lo temporariamente para que pudesse compreender o outro
e, assim, estabelecer uma prática discursiva na qual os atores sociais buscam o consenso sobre
as normas ou regras que pontuam as suas ações no sentido de que essas sejam pautadas no
senso de justiça e solidariedade. A Racionalidade Ético-Comunicativa pressupõe uma razão
discursiva permeada pela crítica e constituída no processo de aceitação ou negação de
pretensões de validez. Esse processo tem sua fundamentação no critério da prevalência da
melhor argumentação.
Convém ressaltar que não se fala em um método, mas sim em dialogicidade com o fio
condutor do processo de democratização organizacional o qual precisa ter contemplado nos
pressupostos da Ética do Discurso parâmetros que devem ser conciliados com as
especificidades de cada contexto. A dialogicidade pela sua configuração argumentativa pode
ajudar o homem no seu desenvolvimento cognitivo e moral no sentido de ele ter que aprender
a moderar a sua voracidade e adicionar à sua práxis organizacional não somente a criação de
bens e riquezas, mas de valores que deem um outro sentido à existência humana, ou seja, ele
deve buscar o uso sustentável das bases materiais químicas, físicas e também imateriais que
garantam a manutenção e a reprodução da vida, não só da humana, mas de toda a comunidade
da vida. Nessa dinâmica, a subjetividade toma uma configuração mais abrangente e interativa,
isto é, não é meramente uma subjetividade com vínculo na identidade consigo mesma, mas
um sair de si, um “se fazer ver” a si mesmo no seu ser-estar-no-mundo-como-o-outro,
intersubjetivamente (MERLEAU-PONTY, 1975), propiciando aos indivíduos na organização
o seu desenvolvimento moral e funcional, pois a condição de moralidade de uma ação está na
liberdade.
Dessa maneira, o ato e o efeito de uma ação no campo da Ética do Discurso estão
fundados na escolha e na liberdade, em virtude de estas estarem ancoradas no suporte do
entendimento entre os indivíduos que procuram, pelo uso de argumentos racionais, convencer
ou se deixar convencer a respeito da validade de qualquer norma ou regra. Instaura-se aí o
mundo da sociabilidade, da espontaneidade, da solidariedade e da cooperação.
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WILLIAMS, Bernard. (1993). Ethics and the Limits of Philosophy. London: Fontana.
1
O consenso é possível através da argumentação. Esta pode ser medida pelas razões que pode oferecer para ser
aceita. Assim não existe argumento que, pela sua simples apresentação, prescinda de uma prática discursiva para
obtenção de um consenso. Contudo, é bom lembrar que todo consenso é contingente, pois ele é sempre passível
de ser questionado e, nesse caso, passa novamente pelo processo de validação.
2
Aqui solidariedade postula empatia e cuidado em relação ao bem estar do próximo.
3
A filosofia da linguagem desponta com bastante expressividade, a partir da metade do século XX, tendo como
expoentes os filósofos Frege, Russel e Wittgesntein. Este último, com sua obra Tractus lógico-philosophicus
(1921), aborda a análise lógica das proposições linguísticas. Nesta, a linguagem é vista como uma prática social
na qual o significado de termos e expressões lingüísticas têm sua gênese, através dessas interações. A obra de
Wittgesntein subsidia Austin e seu aluno Searle, cujo trabalho de maior significado é a Teoria dos Atos de Fala,
que se tornou o suporte da Pragmática Universal de Habermas.
4
Convém ressaltar que este trabalho, ao enunciar algumas categorias que atendem os pressupostos da
Racionalidade Ético-Comunicativa, pretende dar mais clareza ao êxito da metodologia aplicada, não sendo,
portanto, estas o foco do trabalho.
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1 Diálogo e Consenso: em Busca de uma Ética da