Diálogo e Consenso: em Busca de uma Ética da Solidariedade e da Justiça nas organizações Autoria: Reynaldo Josue de Paula, Jerry Adriane Pinto de Andrade Resumo Este artigo tem o objetivo de analisar a possibilidade da inserção da Ética do Discurso em organizações públicas, privadas e filantrópicas a partir de uma experiência vivida na Associação de Pequenos Agricultores do Semiárido do Estado da Bahia (Apaeb), que teve como base a Racionalidade Ético-Comunicativa. Essa tem seus pressupostos teóricos embasados na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas (1988 a/b). Nessa obra o autor explicita um novo conceito de razão que tem como médium a linguagem, isto é, a razão discursiva, que é ancorada em relações intersubjetivas e em valores de verdade, justiça e liberdade. Nessa abordagem, a linguagem tem como télos o entendimento entre os sujeitos linguísticos e interativamente competentes, numa relação entre sujeito-sujeito, que pressupõe a existência de um espaço público, isento de qualquer tipo de coação interna ou externa, onde os indivíduos em interação podem livremente externar opiniões, sentimentos e descontentamentos, assim como questionar, concordar, discordar, enfim argumentar, estabelecendo um verdadeiro diálogo. Para realização desta vivência utilizou-se um delineamento metodológico de natureza qualitativa, de maneira mais específica, escolheu-se uma variação da pesquisa-ação em conjunto com a técnica qualitativa de grupos focais e a de dilemas éticos, com uma duração de oito meses. A amostra levou em conta três grupos distintos de pessoas ligadas à Associação: oito membros da diretoria, dez associados e dez funcionários. No resultado desta pesquisa na Apaeb identificou-se o uso dos pressupostos da Ética do Discurso (diálogo, consenso, o emergir de um espaço público etc.) no dia a dia dos membros envolvido neste estudo. Esse fato assume relevância, pois pode contribuir para a democratização da rede de relações sociais nas organizações públicas, privadas e filantrópicas propiciando a cooperação dos agentes sociais na busca do bem estar comum, não somente do bom, em termos de ganhos materiais, mas também do justo, em termos da moral, ampliandose qualitativamente o nível da eticidade nestas instituições. Desse modo, conclui-se que o ato e o efeito de uma ação no campo da razão discursiva estão fundados na escolha e na liberdade, em virtude de estas estarem ancoradas no suporte do entendimento entre os indivíduos que procuram, pelo uso de argumentos racionais, convencer ou se deixar convencer a respeito da validade de qualquer norma ou regra. Instaura-se aí um contexto de solidariedade e de justiça. 1 Introdução As diversas patologias sociais evidenciam que a humanidade está cansada do excesso de racionalismo, de eficientíssimo e consumismo. Esses fatores têm concorrido para o agravamento da exclusão social, da crise de valores, do vácuo existencial dos indivíduos, gerando dois tipos de fome: a de pão, que pode ser saciável, e a de transcendência, que é insaciável. Este último tipo aparece aqui não como uma categoria da filosofia escolástica ou da tradição da filosofia grega que contrapunha o transcendente a outro mundo, o de Deus, mas como o mundo vivido, o da imanência, o da experiência, da atividade e da história humana. É como se esses dois mundos, o transcendente e o imanente, fossem opostos e a religião, uma ponte para unir esses dois universos. Para Heidegger (1998), transcendência e imanência não são dois mundos, mas duas dimensões do mundo humano, onde o ser vive, constrói, conserva para si e para as próximas gerações. Esse projeto planetário pode ser construído na abrangência da esfera individual e coletiva, com o apoio de todas as instituições ou organizações que compõem a sociedade. Contudo, o homem sofre limitações de tempo e espaço que vêm do seu nascimento, da sua classe social, cultura e trajetória histórica. Mas ele não é só isso, é abertura, é um ser de diálogo, de comunicação, um ser que cria uma rede de relações voltadas em todas as direções. Portanto, não pode ser compreendido de forma destacada do outro com o qual interage e se complementa por meio do processo de socialização que, na sua forma mais abrangente, engloba a dimensão da imanência e da transcendência. É nessa dinâmica dialógica que os interlocutores vivem e celebram o reconhecimento da sua individualidade e liberdade, estando ao mesmo tempo disponibilizados para o enriquecimento da alteridade. O diálogo é a dinâmica relacional que envolve a semelhança, a diferença, o mútuo conhecimento, o recíproco enriquecimento e é basilar na obtenção do consenso1. O mútuo conhecimento é um desafio extremamente delicado, pois se constitui na arte de compreender. Isso significa que é possível pensar e ponderar o que o outro pensa. Compreender não é estar necessariamente de acordo, não é romper com as próprias convicções fundamentais, mas o exercício essencial de se recolher para deixar valer o outro. No recíproco enriquecimento, abre-se espaço para o diálogo como intercâmbio de saberes e valores. Para tanto, é necessária uma disposição essencial, a prontidão de se deixar influenciar pelo outro. Só dialoga quem se deixa transformar pelo outro. No entanto, para que isso ocorra, deve-se estar imbuído de imperativos éticos nas interações humanas em todas as esferas da sociedade e, de maneira específica, na esfera organizacional. É comum, no mundo organizacional, fazer-se distinção entre ética e negócios, considerando-os excludentes (SROUR, 2000). Esse fato evidencia um ceticismo ético que encontra respaldo em diversos autores, entre eles Williams (1993, p.152), que afirmou: “ [...] nós devemos rejeitar o ponto de vista objetivista da vida ética e, dessa maneira, a busca de uma verdade ética”. Todavia, a atividade econômica, inclusive a tomada de decisões pelos atores organizacionais, é um ato racional que inclui reflexões, ponderações, análises críticas, pois todas as coisas não estão jogadas de qualquer jeito aí, não estão sequer justapostas umas às outras, estão todas fazendo teias enormes de relação e, por isso, o universo não é o conjunto dos seres, é o conjunto das relações de todos os seres, porque tudo é relação que requer não somente uma vontade, mas também toda uma bagagem de conhecimento e de valores, inclusive os de natureza ética. Esse pressuposto é baseado na nova cosmologia que vem da física quântica, onde tudo tem a ver com tudo, em todos os pontos, em todos os movimentos, tudo é jogo de relação não existe nada fora da relação. O ser humano é um nó de relação, para dentro, para fora, para cima, para todos os lados. Assim, a realidade é um conjunto de relações num movimento constante de transcendência e imanência. Essa dinâmica engloba o mundo das ideias, técnico-científico, cultural, social, espiritual, dentre outros, para 2 que o agente possa decidir com base em uma rede de relações sociais, pautadas em valores éticos, presumidamente, legitimados pela comunidade. Como mostra Nash (1993: xvi), “separar economia de moralidade, e ambas do bom senso no trato com as pessoas, é construir uma análise artificial que deixaria de fornecer os instrumentos necessários para lidar com a realidade”. Tal comportamento pode comprometer sensivelmente a práxis organizacional com relação a uma ação social permeada por valores éticos. “Sem uma estrutura de valores morais básicos, tais como dizer a verdade, justiça e responsabilidade pessoal, a confiança poderá desviar-se até do grupo gerencial mais idealista” (ibidem). Numa visão mais analítica, o sociólogo Guerreiro Ramos (1983), em seus estudos sobre a racionalidade administrativa, demonstra que esta corresponde à razão com relação a fins da tipologia weberiana. No pensamento de Weber, essa razão é determinada por expectativas no comportamento tanto de objetos do mundo exterior como no de outros homens que utilizam essas expectativas como ‘condições’ ou ‘meios’ para alcançar os fins próprios, racionalmente calculados e perseguidos. O cálculo utilitário, como meta, fragmenta e reduz a razão à sua dimensão cognitivo-instrumental. Essa razão é denominada instrumental ou funcional, sendo definida como a ação social baseada no cálculo, na maximização de recursos e orientada para o alcance de metas técnicas ou de finalidades ligadas a interesses econômicos ou de poder social. Nela não se aprecia propriamente a qualidade intrínseca das ações, mas o caminho ou maneiras para atingir um fim pré-estabelecido, independentemente do conteúdo (ético-moral) que possam ter tais ações. Nesse caso, a racionalidade da ação administrativa não é a razão entendida como faculdade humana transcendente, e o homem é visto apenas como uma extensão da engrenagem produtiva, isto é, como peças substituível que propicia a geração de riqueza e não como sujeito dotado de humanidade que encerra um valor em si mesmo (RAMOS, 1981). Sob a lógica da racionalidade instrumental, a ética não é um fim em si mesma, mas a expressão de um comportamento racional utilitarista, permeado por normas que propiciam relações interpessoais adequadas a um contexto produtivo, com o objetivo de maximização dos recursos e de aumento contínuo dos ganhos econômicos. Em outras palavras, é um fator que apenas viabiliza a existência de normas de comportamento que possibilitam a eficácia econômica em vez de propiciar reflexões sobre a conduta humana e o emergir de normas que propiciem um viver em sociedade equânime, por meio do atendimento das necessidades humanas, a saber: materiais, como alimentação, saúde, moradia; psicossociais, tais como liberdade, segurança, afiliação, proteção e ontológicas, tais como religião, estética e autorrealização. Com base na sua análise, Ramos propõe o reexame da noção da racionalidade na práxis organizacional. Mais uma vez, busca em Weber (1977, p.20) outro conceito de razão, relacionado a valores ou à razão substantiva, a qual é “ [...] determinada pela crença consciente em um valor ético, estético, religioso ou de qualquer forma, como se intérprete — próprio e absoluto — de uma determinada conduta, sem relação alguma com o resultado, ou seja, puramente segundo os méritos desse valor”. O autor conceitua a racionalidade substantiva como aquela permeada por responsabilidade ética e defende a retomada e/ou revigoramento dela, a fim de possibilitar o autodesenvolvimento, a autorrealização individual e grupal. A ética é comumente confundida com a moral, tendo sua origem no grego ethos, que significa “morada”, onde vivemos. Em seguida, passou a significar “modo de ser” que uma pessoa ou grupo adquiriu ao longo da sua existência. A moral deriva do latim “mores”, que se traduz por “costume” e, posteriormente, “caráter”, “modo de ser”. Assim, ética e moral têm a mesma origem etimológica. Desse modo, volta-se à reflexão sobre os princípios que dirigem as ações humanas, no sentido de estabelecer o bem, aquilo que é tido como correto, e o mal, o que é tido como incorreto. Apesar disso, diversos autores, entre estes Vasquez (1995), Dupas 3 (2000), Srour (2000), classificam ética e moral como distintas. Vasquez (1995) afirma que a ética como ciência ocupa-se em estudar, esclarecer, refletir, investigar e analisar o comportamento moral do homem. Assim, ela busca analisar e explicar a finalidade da moral, sua origem e evolução histórica através do tempo e espaço das diversas culturas. Nesse sentido, a ética é uma reflexão crítica sobre a moral, sendo que esta é o conjunto de normas, princípios e regras que regulam as relações mútuas entre os indivíduos e entre estes e a comunidade. Ou seja: a moral é a regulação dos valores e comportamentos considerados legítimos por uma determinada sociedade. Já no enfoque de Dupas (2000, p.74), a ética é uma metamoral, isto é, a análise reflexiva das regras de conduta que formam a moral; enquanto esta é “o conjunto de ações pelas quais o homem prudente, impregnado de razão, dá forma a sua razão”. Por sua vez, Srour (2000) diz que a ética é o estudo reflexivo dos costumes de uma sociedade e de sua respectiva moral, sendo a moral o conjunto de normas as quais norteiam o comportamento dos indivíduos em sociedade. Segundo esse autor, a ética, tanto quanto a moral, não é um conjunto de verdades fixas, imutáveis. Elas detêm uma dinamicidade histórica e, dessa maneira, movem-se, ampliam-se e adensam-se. Numa abordagem voltada para o mundo dos negócios, Nash (1993, p.6) define ética como: o estudo da forma pela qual normas morais pessoais se aplicam às atividades e aos objetivos da empresa comercial. Não se trata de um padrão moral separado, mas do estudo de como o contexto dos negócios cria seus problemas próprios e exclusivos à pessoa moral que atua como um gerente desse sistema. Essa autora tende a sintonizar a conduta ética nos negócios com os valores morais pessoais do Decisor, apesar de não lhes negar a influência do contexto social em que está inserido. Entretanto, pode-se fazer uma recepção crítica dessa posição no sentido de evidenciar que se trata da formulação de padrões éticos estabelecidos monologicamente os quais podem assumir um caráter impositivo e autoritário, portanto ao contrário do processo dialógico que se enunciou nos parágrafos anteriores, fato que nos remete a uma ética dialógica. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo analisar a possibilidade da inserção da Ética do Discurso em outras organizações públicas, privadas e filantrópicas, ancorado nos pressupostos da Racionalidade Ético-Comunicativa de Habermas a partir da experiência vivida na Apaeb. Para tanto, a dinâmica deste trabalho na Associação dos Pequenos Agricultores do Semiárido do Estado da Bahia terá os seguintes momentos: no primeiro, será explicitada a problematização do objeto de estudo; no segundo, apresenta-se-á o referencial teórico; no terceiro, serão descritas algumas características da Apaeb; no quarto momento, será esboçado o delineamento metodológico e, finalmente, serão tecidas as considerações finais. Problematização do Objeto de Estudo Hoje se impõe uma reinterpretação, uma forma nova de viver, de criar morada na Terra se o homem não quiser se autodestruir, pois a racionalidade econômica predominante e sua articulação com as estruturas de poder existentes não são uma alternativa para a crise que agora se atravessa. Muito pelo contrário, elas representam a crise e não a solução. Desse modo, não se cria um espaço sustentável para o ser humano viver um encontro entre si mesmo e seus pares numa relação pautada na justiça e na solidariedade2. Portanto, o avanço tecnológico, a transnacionalização do mercado, a crise econômico-financeira, as desigualdades sociais e a relativização dos valores ético-morais têm compelido muitos dos segmentos da sociedade a reivindicarem, de maneira reiterada, aos agentes econômicos e 4 sociais uma práxis organizacional pautada no equilíbrio entre a dimensão ética, social, cultural, política, econômica e humana. Contudo, um problema vem à tona: pode-se, a partir dos resultados desta pesquisa, afirmar que é possível a inserção da Ética Discursiva em outras organizações? Referencial Teórico Na sua obra “Teoria da Ação Comunicativa”, Habermas (1988 a/b) explicita um novo conceito de razão: a Racionalidade Ético-Comunicativa, que tem como médium a linguagem. Essa razão é ancorada em relações intersubjetivas e em valores de verdade, justiça e liberdade. Nessa abordagem, a linguagem tem como télos o entendimento entre os sujeitos linguísticos e interativamente competentes, numa relação entre sujeito-sujeito, ou seja, entre iguais. Nesse ínterim, Habermas sai do paradigma da filosofia da consciência para o paradigma da filosofia da linguagem3, realizando aquilo que foi designado como a “guinada linguística”. Na perspectiva habermasiana, a racionalidade da linguagem está focada na busca do entendimento. Nessa lógica, os atos de fala são as unidades centrais da comunicação linguística. Estes devem pautar-se nas condições universais da ação comunicativa, que são as pretensões de validade as quais constituem a expectativa dos falantes da validação, dos conteúdos de seus proferimentos. Essas pretensões são: a) inteligibilidade; b) verdade; c) veracidade; d) retidão. As pretensões de validade e toda a sua prática argumentativa para obtenção do consenso resultam na Ética do Discurso. Esta tem com elemento norteador o princípio da justiça, visando atender os interesses individuais e os coletivos, ao condicionar a aceitação de uma norma à concordância de todos os envolvidos quanto às consequências previsíveis da sua efetividade. Na Ética do Discurso, subjaz implicitamente a noção da imperfeição moral do homem e a sua quase impossibilidade de encontrar a verdade moral. O que se pode encontrar são situações morais que se adaptam às contingências temporais e espaciais e aos interesses dos participantes. Assim, a efetivação da Ética do Discurso requer um contexto isento de qualquer repressão e uma igualdade comunicativa, na qual todos os participantes potenciais de um discurso tenham um Espaço Público onde todos os concernidos tenham, sem qualquer tipo de coerção interna ou externa: a) a mesma oportunidade de atos de fala; b) a mesma oportunidade de interpretar e justificar enunciados, problematizar questões, dar explicações e refutar pretensões de validade; c) a mesma oportunidade de expressar atitudes, sentimentos e desejos, fazer e retirar promessas e dar razões ou exigi-las. O Mundo da Vida e o Sistema No processo da construção do seu projeto teórico, Habermas, a partir de uma recepção crítica do pensamento de Durkheim, Mead, Husserl e Chomsky, elabora uma construção teórica fundamental na Teoria da Ação Comunicativa: a concepção da sociedade em duas esferas, o Mundo da Vida e o Sistema. No Mundo da Vida, subjaz a noção de “consciência coletiva”, utilizada por Dukheim, do interacionismo simbólico de Mead e do Mundo da Vida de Husserl, e todos esses conceitos são apropriados por Habermas de forma crítica. A partir dessas influências, Habermas (1988 a) concebe que é no Mundo da Vida que a moral tem suas raízes. É o lugar das relações sociais espontâneas, das certezas préreflexivas, ou seja é a esfera da interação, do âmbito de regulação argumentativa e dos saberes implícitos, através dos quais os indivíduos interpretam as situações específicas e definem a 5 situação de fala, possibilitando a busca cooperativa do entendimento. O Mundo da Vida é um conjunto de esquemas interpretativos e um reservatório cultural que fornece saberes e convicções que são aceitos e compartilhados naturalmente por todos os membros da comunidade, sem problemas e questionamentos. Assim, é, a priori, inscrito na intersubjetividade comunicativa. Em suma, é no Mundo da Vida que se processa a Racionalidade Ético-Comunicativa, permeada por relações entre sujeitos, capazes de agir e falar e que comungam a realidade de um mesmo mundo vivido. Segundo Habermas (1988b), a reprodução e manutenção dos componentes estruturais do Mundo da Vida realizam-se pelos seguintes processos: a) reprodução cultural, calcada na racionalidade de um saber válido, o qual proporciona a legitimação das instituições, fomentando uma dimensão educativa que possibilita ao indivíduo desenvolver a competência necessária para efetivação de suas ações sociais; b) integração social, responsável pelo estabelecimento de vínculos de natureza moral, permitindo que as ações sociais do indivíduo sejam legitimamente reguladas e assegurando a estabilidade e a identidade do grupo numa base solidária; c) socialização, que exerce o papel de desenvolver no indivíduo a capacidade de interpretar os significados de situações novas, possibilitando a este agir no plano individual e coletivo, em conformidade com as normas socialmente legitimadas e também a responsabilizar-se autonomamente pelas suas ações. Essa dinâmica pode ser visualizada na figura 1. Componentes Estruturais Processo de Reprodução Reprodução Cultural Cultura Sociedade Personalidade Esquemas de interpretação que possibilitam o consenso (saber válido) Legitimação das instituições Processo de socialização Objetivos educativos Integração Social Obrigações ou Deveres Morais Relações interpessoais legitimamente reguladas Identidade social Socialização Interpretação significados Motivação para atuar em conformidade com as normas Identidade individual (autonomia pessoal) de Figura 1: Os processos de reprodução e manutenção dos componentes estruturais do Mundo da Vida Fonte: Habermas, (1988 b, p.202) O Sistema assume um distanciamento em relação à normatividade das interações comunicativas cotidianas, posicionando-se conceitualmente na perspectiva do observador, que aplica uma norma sem ser por ela implicado. É o âmbito da regulação mecânica e do controle estratégico e tem como componentes a economia e o poder. O Sistema reporta-se à esfera do trabalho, compreendendo as relações funcionais, ou seja, estratégicas. Trata-se de estruturas, indispensáveis à reprodução material da sociedade, que se autonomizaram (desacoplaram) do Mundo da Vida, devido às racionalizações próprias da modernidade (HABERMAS, 1988a). Nessa lógica, os imperativos sistêmicos passaram a sobrepujar as coordenações comunicativas de planos de ações (Mundo da Vida), gerando distorções sistemáticas na comunicação, o que caracteriza uma colonização (HABERMAS, 1988b). A Colonização do Mundo da Vida A colonização do Mundo da Vida é identificada como a invasão da lógica racionalista que pretende submeter todos os aspectos de vida pessoal e social ao princípio da eficácia, sem 6 se interrogar sobre os fins. O processo de colonização é ancorado na crescente mediação das diversas esferas do Mundo da Vida pela lógica sistêmica, passando este a exercer apenas um papel secundário no contexto sistêmico. Esse fato tem sua gênese no uso pragmático da razão prática, ou melhor, é o agir estribado na denominada Ação Estratégica. Nesta, o que impulsiona e determina a ação é a obtenção do ganho econômico e do poder, em detrimento da justiça ou equidade social. Segundo Habermas (1988b), esse desacoplamento ou colonização é o responsável pela integração sistêmica da sociedade, na qual a busca ao entendimento é substituída pela busca ao dinheiro e poder – o êxito. Nessa perspectiva, este artigo parte da afirmação habermasiana da colonização do Mundo da Vida pelo Sistema e do pressuposto de que a inserção da Racionalidade ÉticoComunicativa nas organizações será o fio condutor para a reversão desse processo. Quando algué alguém quer saber como conviver com a seca, eu digo: Não é um bicho de sete cabeç cabeças. É só pegar um avião para Salvador, descer no aeroporto, pegar a estrada para Feira de Santana, seguir até até Serrinha, virar a esquerda na direç direção de Conceiç Conceição do Coité Coité, e chegar em Valente e conhecer a APAEB. PETER SPINK, 2002 A Apaeb fica em Valente, a 180 km de Salvador. É uma associação sem fins lucrativos, fundada em 1980, que tem como missão promover o desenvolvimento social e econômico sustentável, visando à melhoria da qualidade de vida do pequeno produtor rural da região Fonte:sisaleira. Elaborado pelos autores com base no site da Apaeb A Apaeb interfere diretamente na economia da região, procurando agregar mais valor aos Quadro 3: Algumas atividadesagricultores. da Apaeb Atualmente, com mais de 800 empregos, injeta milhões de produtos dos pequenos reais na economia local. Figura 2: Características da Apaeb Fonte: Elaborado pelos autores à partir do site http://www.apaeb.com.br I. Fábrica de tapetes e carpetes de sisal: a produção é voltada para exportação, cuja receita financia 95% dos seus projetos. II. Escola Família Agrícola: com projeto pedagógico, baseado em Paulo Freire e Ferrer. III Convivência com a seca: assistência técnica permanente aos agricultores; atendimento veterinário, laboratorial; melhoramento genético do rebanho caprino e ovino, programas de construção de cisternas; perfuração de poços artesianos, sistemas de irrigação. IV. Cultura: apoio a grupos como a Quixabeira; realização de movimentos culturais em parceria com associações comunitárias. V.Crédito aos agricultores. Fonte: Elaborado pelos autores com base no site da Apaeb Figura 3: Algumas atividades da Apaeb. Fonte: Elaborado pelos autores à partir do site http://www.apaeb.com.br 7 Delineamento Metodológico Para realização de uma vivência da Ética do Discurso entre os representantes da diretoria, funcionários e associados da Apaeb, foi necessário que o pesquisador suspendesse seus valores para permitir que aflorasse a dimensão social, política, como aquelas peculiares ao ser humano, tais como os valores, as crenças e os símbolos. Estes últimos são difíceis de ser quantificados e requerem interpretação, visto que são de acesso exclusivo do próprio sujeito e escapam à mera observação. Em virtude disso, optou-se por uma abordagem metodológica de natureza qualitativa. Dentre essa abordagem, escolheu-se uma variação da pesquisa-ação em conjunto com a técnica qualitativa de Grupos Focais e de Dilemas Éticos. A pesquisa-ação configura-se como uma investigação social de base empírica com relação ao dia a dia dos atores sociais, num esforço de apreendê-la, em toda a sua singularidade. Ela geralmente é associada a “[...] uma ação com a realização de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo” (THIOLLENT, 1994, p.9). Assim, o público-alvo não é tratado como objeto, mas como sujeito interparticipante. Nesse caso, é necessário que o pesquisador interaja com os pesquisados, deixando-se influenciar o mínimo possível por seu conhecimento, por sua etnia, sua cultura e por seus valores ético-morais durante a trajetória da pesquisa. Fases da Pesquisa Com a participação de três grupos formados por 8 (oito) diretores, 10 (dez) funcionários e 10 (dez) associados, as fases da pesquisa foram três: a) o mapeamento dos valores ético-morais de cada grupo; b) a legitimação destes valores (legitimação instaura conflito entre o vivido e o proposto no mapeamento dos valores ético-morais dos participantes, por isso mantém, destrói, constrói, interpreta e pode dar novo sentido às falas, emergidas da fase anterior; nesse sentido, não é somente o “saber-o-quê” dos valores ético-morais manifestados nas falas — o conteúdo norteador do comportamento dos participantes na sua práxis apaebiana — e o “saber-como e do porquê” de tais comportamentos. Isso implica lidar com a eticidade do grupo, não somente no plano conceitual, mas também na concretude do dia a dia desses atores, instaurando a teorização da prática); c) a vivência da Ética do Discurso com os três grupos. Como procedimento inicial dessa fase, fez-se o questionamento de cada uma das falas legitimadas por meio das seguintes perguntas norteadoras: Queremos que essa fala oriente o nosso dia a dia na Apaeb? Elas são justas e solidárias? Quais as consequências da utilização dessa fala para todos nós? No caso de qualquer um dos concernidos discordar da justeza de qualquer uma dessas falas, elas serão problematizadas na busca da obtenção de pretensões de validade, do enunciado que poderá assumir o status de regra ou norma para o grupo. As fases de mapeamento e legitimação dos valores ético-morais foram desenvolvidas com cada um dos grupos enquanto foi realizada a dinâmica da vivência da Ética do Discurso. Essas três fases foram operacionalizadas por meio de Grupos Focais e de Dilemas Éticos. Conforme Gortner (1991), existe um dilema ético em situações nas quais dois ou mais valores em conflito são importantes e competitivos, sendo que somente um deve prevalecer sobre os demais. Para que os indivíduos se encontrem em situações de dilemas, são exigidas três condições mutuamente essenciais: a) que estejam perante uma escolha ética; b) que estejam comprometidos em realizar o que é moralmente certo e c) que estejam confusos em relação ao que é correto. (ENTEMAN, 1993, p.197). 8 Para elaboração de dilemas capazes de instaurar e alimentar o debate, sem criar situações delicadas e embaraçosas que pudessem trazer constrangimento a qualquer participante e sem promover uma conotação plebiscitária, ocorreram vários contatos com os pesquisados e com sua realidade. Os Dilemas Éticos elaborados (dez, no total) tiveram como suporte teórico as categorias enumeradas na figura 4. Categoria Justiça Social Ação Comunicativa versus Ação Estratégica Inclusão Social Espaço Público Mundo da Vida versus Mundo do Sistema Significado A justiça aqui significa que todos os seres humanos devem ser tratados do mesmo modo com relação a direitos e deveres. Isso se baseia num conceito fundamental, o da IGUALDADE. Portanto, uma justiça distributiva livre de egoísmos racionais e a favor dos interesses coletivos, sendo mediada pela intersubjetividade comunicativa. A ação comunicativa é centrada na consensualidade obtida “[...] de um discurso cujos participantes ultrapassam as suas opiniões, a princípio limitados subjetivamente, a favor de um acordo racionalmente motivado” (HABERMAS, 1990, p.291). Já a ação estratégica coordenada por meios extralinguísticos visa apenas ao sucesso financeiro e ao poder social. Tem como força impulsora a racionalidade instrumental, que gera patologias sociais, entre elas a equivalência monetária entre as pessoas e as coisas. Reporta-se ao processo de conviver com a diversidade de opiniões, valores, crença, comportamentos, gênero e etnia, portanto uma inclusão que pressupõe uma unidade a partir da heterogeneidade, pois o indivíduo reconhece-se nessa condição através da interação com seus pares, num contexto isento de qualquer coação e discriminação, fato que remete a relações de poder simétricas, isto é, compartilhamento do poder. É um locus no qual os atores sociais tematizam suas questões por meio de uma prática discursiva, no sentido de desenvolverem uma convivência democrática pautada na solidariedade, na justiça social e na emancipação dos indivíduos. Segundo Habermas, é o “uso público da razão” o qual requer um espaço público para que todos tenham condições de tematizar e validar suas visões de mundo, opiniões, desejos etc. O Mundo da Vida é celeiro de saber organizado linguisticamente e transmitido culturalmente, constituindo-se em uma fonte de modelos de interpretação e compreensão do indivíduo, com relação ao mundo em que vive. O mundo do Sistema é aquele responsável pela produção material da sociedade e tem como médium o sucesso econômico e o poder social. Figura 4: Categorias de análise das falas Fonte: Adaptação de Habermas 1988 a/b A operacionalização dos dilemas foi efetivada por meio de outra técnica qualitativa, a de Grupos Focais. No pensar de Gaskell (2002, p. 76), o Grupo Focal é “ [...] um ambiente mais natural e holístico em que os participantes levam em consideração os pontos de vista dos outros na formulação de suas respostas e comentam suas próprias experiências e as dos outros”. Nesse processo, as crenças, os valores, os mitos e os preconceitos dos participantes são externalizados por meio de suas subjetividades as quais, ao mostrar-se ao mundo, são objetivadas por intermédio da intersubjetividade resultante da interação que ocorre entre os participantes. As falas (valores ético-morais) resultantes desse processo investigativo foram analisadas por meio dos pressupostos da Teoria da Ação Comunicativa e sob a luz da fenomenologia social de Schutz (1968). Os encontros foram gravados com a anuência dos participantes. Após a realização dessas fases, de maneira sintética, fizeram-se algumas considerações sobre os resultados obtidos. Análise das Falas sob a Luz das Categorias4 9 Justiça Social Na categoria da Justiça Social, evidenciou-se a existência de relações solidárias as quais comportam os valores de justiça social. Entretanto, isso só ficou claro na fase da vivência da Ética do Discurso, pois, nas anteriores (1ª e 2ª), os depoimentos apresentaram um viés utilitarista, ou seja, eram destinatários da justiça apenas àqueles pertencentes aos laços afetivos do falante, provocando o sentimento de “não pertencer” para os não integrantes desse círculo afetivo, numa lógica do não reconhecimento do outro, da ação estratégica, indicando a possível existência de vácuos democráticos nos valores dos grupos com relação à questão da justiça. Neste ínterim, surge uma fala que foge dessa lógica com o seguinte conteúdo: “Eu não testemunharia. O compromisso moral é mais importante do que o simples registro de um testemunho. Na Apaeb houve caso do funcionário que bateu a cabeça há mais de seis anos e até hoje é assistido”, numa demonstração de confiança irrestrita na Instituição. Constatou-se, no caso, que a confiança é um padrão cultural com gênese na tradição e cuja historicidade é adquirida e transmitida no tempo e espaço por meio dos saberes do Mundo da Vida, fomentando uma agregação primária que pode tornar-se uma das âncoras da base associativista da Apaeb. Na perspectiva da ação estratégica, a confiança não seria decorrente de um processo social natural, mas algo formatado no sentido de que produza determinado efeito num contexto social, com resultado previamente planejado e controlado, tornando-se, assim, um dos fatores que podem ser manipulados com o objetivo da produção de riqueza e, consequentemente, de poder social. Apesar dessa manifestação seminal, faz-se necessário que a confiança continue sendo realmente um fator agregador social e não se torne mais um instrumento de manipulação e controle social, principalmente em áreas de maior presença das ações estratégicas, como é o caso da Fábrica. Porém, como bem lembrou de maneira emocionante um dos funcionários, “[...] a Fábrica não é somente um reduto de produção de tapetes, mas também um reduto do exercício da cidadania”, numa postura sócio-política de desenvolvimento de uma prática social pautada na equidade. Racionalidade Ético-Comunicativa Neste caso, emergiu a emoção, a ética, os laços familiares e a coletividade como norteadores das ações sociais, como sinaliza a fala seguinte: “[...] o mínimo que eu poderia fazer é denunciar é o mais justo, o mais correto com a comunidade da qual eu faço parte. [...] temos de pensar no social e não somente no dinheiro. Seria uma demonstração de solidariedade”. Esse pronunciamento mostra com clareza a presença da Racionalidade ÉticoComunicativa nos valores ético-morais dos três grupos em uma configuração relacional, de considerar-se o outro como alguém significativo, no sentido da atenção e respeito mútuo; em uma racionalidade que implica autoconsciência da comunhão, da partilha, da dádiva de valores fundamentais em uma comunidade que tem como suporte a justiça e a solidariedade. Todavia, registraram-se manifestações da ação estratégica, como expressa a seguinte fala: “Avisaria ao chefe, mas, no lugar dele, eu manteria sigilo com o cliente, pois implica prejuízo que pode comprometer a folha de pagamento”. Essa fala revela uma ambiguidade ética, pois mostra uma preocupação de cunho ético, mas, logo em seguida, sugere omitir a fraude contra a pessoa lesada, com receio de não receber o salário. Nessa situação, o agir do falante é norteado pela lógica estratégica e pelos imperativos sistêmicos. Falas do tipo “Eu não denunciaria, pois tenho minha família para dar de comer”, “É muito difícil tomar essa 10 decisão”, “Eu ficaria neutro”, à primeira vista, poderiam ser enquadradas na lógica sistêmica, mas, acolhendo compreensivamente esses enunciados, pois se trata de associados na faixa etária acima de 60 anos, portanto fora do mercado de trabalho, pode-se inferir que tal postura remonta a experiências passadas, as quais constituem memórias coletivas, que não são propriedades do indivíduo, mas do grupo; portanto, uma construção social de conotação psíquica que envolve as dimensões social, cultural e econômica. Inclusão Social Apesar de todos os participantes enunciarem a questão da igualdade entre os pares, registraram-se falas que evidenciam a presença de valores com nuances conservadoras e excludentes, como pode ser exemplificado pelas falas a seguir: “O mundo evoluiu muito e, como diz o ditado, ‘papagaio velho não aprende mais a falar’, mesmo estando meio ‘sendeiro’ (velho), eu manteria algumas lideranças e demitiria gradativamente os funcionários mais velhos” e “ Hoje as empress admitem funcionários mais qualificados, então minha prioridade é para o funcionário mais jovem, pois mais cedo ou mais tarde os funcionários antigos vão sair”. Tais colocação feitas por participantes mais jovens e de maior qualificação profissional apontam para o problema de estratificação sócio-cultural numa perspectiva de que o “outro não merece minha atenção”, resvalando contraditoriamente para o problema da exclusão social. Essa atitude excludente advém de um saber que um grupo detém e outro não, saber que assume o caráter de capital simbólico, convertendo-se numa forma de estratificação social entre os indivíduos, como se não houvesse espaço para os não detentores desse saber. Emergiu também a exclusão da mulher, que é uma forma de suprimir o outro do exercício da plenitude de sua potencialidade, baseando-se em valores tradicionais, os quais não dão conta da realidade do atual papel feminino na sociedade. Tal postura costuma levar as mulheres da Associação a sentirem-se injustiçadas, pois acabam sendo violadas na sua individualidade e no exercício de sua cidadania. Espaço Público A fala: Não aceito essa decisão [instalar a câmara de vídeo]. A falta de informação impede os funcionários de entenderem os momentos difíceis da empresa. Os fatos pertencem a todos e não somente a um grupo O diálogo pode resolver muitos problemas funcionais. Mesmo o controle deve ser feito de maneira mais aberta e democrática. torna clara a demanda de um Espaço Público em conformidade com as prescrições da Racionalidade Ético-Comunicativa para que haja um aperfeiçoamento e desenvolvimento de competências comunicativas, possibilitando a participação cidadã de todos os integrantes da Instituição, evitando, dessa forma, a “guetização” da diversidade de pensamento e opiniões, como evidencia a fala acima. Na dimensão política, a exigência por um Espaço Público foi muito enfática, sendo nítidas suas opções políticas, podendo-se inferir que existe nos participantes uma Estética da Política, ou seja, uma postura na qual o indivíduo, na condição de sujeito e ancorado em seus valores, decide a sua trajetória política, numa relação consigo mesmo, porém sem desconsiderar o outro, num processo de aglutinação social, como bem retratam as seguintes falas: “A decisão de apoiar ou não”, é de vontade dos funcionários, portanto a Diretoria não pode assumir esse compromisso. [...] o papel da Diretoria é informar ao deputado a nossa opção social, o nosso compromisso de respeitar a todos os cidadãos. Assim, qualquer 11 imposição ou manipulação eleitoral perde o sentido. [...] todos devem seguir o seu caminho de forma consciente”. É possível inferir que isso constitui um fator identitário dos participantes, visto que seus membros falam de seu engajamento político como referência histórica das suas trajetórias. Mundo da Vida Os participantes colocaram a preservação dos vínculos sociais como imprescindível à consolidação do trabalho social que a Apaeb tem desenvolvido até o momento, sem desconsiderar a importância do avanço tecnológico. Mas que este seja mediado pela razão comunicativa. Isso pode ser constatado nas falas “Se a empresa tem como objetivo o lucro, sem voltar-se para o social, ela é capitalista. Mas nosso lema é o social, então a atitude correta é avançar na tecnologia para garantir o avanço nas responsabilidades sociais” e “A empresa tem de avançar tecnologicamente, melhorar a qualidade, reduzir custos e aumentar produtividade. É a lei do mercado. Então, nós temos de avançar, porém sem pisar na sobrevivência que nos constitui. Não se podem esquecer os vínculos sociais e a solidariedade. É isso que assegura a nossa sobrevivência”. Nesse sentido, para que se tenha uma prática de manutenção e/ou resgate da predominância da razão comunicativa sobre a razão estratégica (sem, contudo, desconhecer o valor desta na reprodução material da sociedade), é fundamental que se saiba trabalhar dialeticamente essas razões, de maneira tal que suas ações comunicativas não sejam camufladas pela lógica instrumental e se tornem ações estratégicas encobertas, contaminando a base comunicativa inerente às interações sociais desse contexto. Os debates propiciados nas fases da pesquisa foram bastante ricos, propiciando aos pesquisados participarem livremente, explicitando as suas visões de mundo, que, muitas vezes, eram contraditórias, mas, na sua totalidade, formavam uma concepção do mundo vivido por esses atores. Entretanto, o ponto central desses debates foi a constatação da maior introjeção dos valores de mercado no contexto da Fábrica do que em outros setores da Apaeb, fato que norteou muitas das falas dos depoentes. Essa realidade foi perceptível para o pesquisador em conversas informais com outros membros da Instituição quando estes falavam da Escola da Família Agrícola (EFA), do Centro de Desenvolvimento Comunitário (CDC) e da própria Apaeb. A entonação verbal e a expressão corporal emitiam para o espectadorouvinte uma conotação quase mítica desses setores tidos como símbolos da solidariedade e valorização humana. Já a Fábrica, apesar da manifestação de orgulho com sua existência, significava apenas o emprego, o dinheiro, o sustentáculo financeiro para os projetos da Instituição, portanto sem a representação simbólica e até mesmo afetiva que era destinada às áreas citadas. Não se está negando que as diferenças naturais devam existir entre áreas da Instituição, visto que estas estão em contextos distintos, com atmosfera diferente, com crenças diferentes, valores diferentes, funções diferentes, mas todas devem comungar a prática solidária, a prática da igualdade, da cidadania, e, representar uma totalidade para seus membros. Desse modo, defende-se que a Fábrica não seja apenas um apêndice de toda a prática solidária da Apaeb, mas que esta, além de promotora econômica, assuma também o papel de promotora de transformação social, estando assim em consonância com os objetivos da Associação. Nesse sentido, é conveniente alertar que não basta que a Instituição desenvolva suas atividades, tendo como suporte conceitual-prático a solidariedade e a justiça social para que as áreas que a compõem tenham a mesma postura. O aprendizado solidário deve resultar da conjugação da interação social cotidiana, mas também de um processo educativo que permita aos atores sociais a reflexão crítica do efeito de suas ações sobre eles e sobre os demais, 12 permitindo uma constante renovação e/ou consolidação dos seus valores e princípios. Isso quer dizer que o aprendizado é possível pela prática, por intermédio das interações sociais, mas tem de ser aliado à institucionalização de programa educativo e contínuo que permita aos atores sociais o processo de acomodação (perspectiva piagetiana) a novas situações e à formação de novas estruturas mentais para incorporarem valores sociais que lhes permitam o desenvolvimento do exercício da solidariedade e da equidade social de maneira consciente e natural. Desse modo, é possível afirmar que a efetivação da prática argumentativa propiciou a flexibilização consensual da rede simbólica dos significados expressos nas falas para atender aos princípios de solidariedade e justiça nas relações sociais. Nessa perspectiva, as falas mostraram a exteriorização de posturas éticas reais dos participantes, ou seja, elas não são postulações, mas comportamentos vividos por esses atores sociais, o que incide no desvelar da eticidade que permeia as atividades desenvolvidas por esses grupos no seu cotidiano. Assim, as contradições que afloraram não podem ser consideradas uma crise de valores, mas uma diversidade destes, que encontram uma dinâmica e um contexto propício ao seu emergir. A aceitabilidade e o acolhimento pelos participantes da vivência da Ética do Discurso mostram que esta pode ser um dos mecanismos de aprimoramento do Espaço Público, que tem como matriz a assembleia dos associados e a sua irradiação para todas os setores da Apaeb. A institucionalização de um Espaço Público é fundamental, pois permitirá a irradiação de uma cultura solidária aos membros dessa Associação e a toda a comunidade, evitando que os benefícios sociais, econômicos e culturais propiciados pela Instituição não sejam instrumentalizadas pelos próprios beneficiários, que buscam um lenitivo para as suas carências sociais. Com isso, esse trabalho social não assumiria uma configuração similar ao clientelismo, ao apadrinhamento, tão tradicionais na região, perdendo, assim, a sua característica de um movimento de transformações sociais, políticas, econômicas e culturais. Enfim, a Apaeb é reconhecida nacional e internacionalmente pela magnitude do trabalho até hoje desenvolvido, mas essa legitimação deve ser real para todos os destinatários, em um processo que lembre a questão da dádiva, ou seja, que todos internalizem que têm um débito para com a sociedade e, em qualquer momento ou local, deve saldá-lo com qualquer pessoa, independente de etnia, gênero, credo etc. Participante Diretor Associado Funcionário Conteúdo das falas dos participantes -Foi ótima, pois a visão dos diretores, dos funcionários e dos associados mudou para enxergar o que é bom para todos. Muitas vezes, nós discordamos de algo, achando que é ruim, como, por exemplo, no dilema do teste de álcool, mas é preciso discutir para se chegar a essa conclusão e não julgar somente a partir da nossa opinião sem considerar o que os outros pensam e as consequências das nossas decisões. -Eu gostei muito porque eu tinha a minha opinião, falava, estando certo ou não, mas também ouvia a opinião do companheiro. Neste curso, a gente pode ver a diferença de opiniões, pois dificilmente dois companheiros respondiam a mesma coisa, mas aprendi que devemos discutir essas opiniões para chegar a um acordo, foi ótimo. -Muito, principalmente pelo que conseguimos aprender na separação das éticas. Foi positivo, porque ali teve oportunidade para os três grupos colocarem seus pontos de vista, discutindo e chegando a um ponto comum. É uma coisa muito interessante, levando todos a aprender, mesmo sem perceber. Foi a melhor parte da pesquisa. A única falha foi o tempo, mas isto é complicado para nós. -Sim, eu mudei, pois percebi que não estava sendo ético em alguns momentos e, desde então, tenho procurado atender melhor o associado, o funcionário da entidade, que às vezes a gente não olhava como um todo. E não posso continuar fazendo algo que, agora sei, não é correto. É uma questão de consciência. -Acho que foi um momento muito importante para mim e para os meus colegas, pois abriu a mente, o peito da gente. O que nós tínhamos vontade de falar, nós falávamos, tiramos do peito ideias novas. Todos ficaram livres, em paz, para fazer perguntas, dialogar e aprender também. 13 Foi um aprendizado para mim e para todos. -Para mim mudou muita coisa, principalmente meu comportamento. Eu enxergava as coisas da minha forma. Depois deste trabalho, entendi que a ética faz parte do dia a dia da gente, em casa, no trabalho, então, eu não posso pensar somente em mim, eu tenho de pensar em todos. -Tenho que ser solidário com meus companheiros, juntar minha experiência com a deles, para tocar o dia a dia. Se o colega fizer errado, eu não vou criticar, porque o importante é ajudá-lo, passar aquilo que eu aprendi. Figura 5: Falas de participantes Fonte: elaborado pelos autores à partir dos dados da pesquisa Diante do exposto, emerge o seguinte questionamento: é possível a inserção da Racionalidade Ético-Comunicativa nas organizações públicas, privadas e filantrópicas? Aqui parte-se do pressuposto que sim. Para justificar essa afirmativa, serão demonstradas algumas falas da avaliação feita no final do trabalho, contendo várias perguntas, dentre elas: O que significou para você a vivência da Ética do Discurso? As falas da figura 5 aclaram a questão. Considerações Finais Esses depoimentos sinalizam a plausibilidade da inserção da Racionalidade ÉticoComunicativa em outros contextos organizacionais. Na Apaeb, esse trabalho, transcendeu o simples aspecto de uma pesquisa, representando para os participantes uma experiência bastante enriquecedora, no sentido de permitir o acolher do outro na sua diversidade. Tal experimento exigiu uma grande capacidade de descentração, já que o indivíduo tinha de salvaguardar o seu “eu”, suspendê-lo temporariamente para que pudesse compreender o outro e, assim, estabelecer uma prática discursiva na qual os atores sociais buscam o consenso sobre as normas ou regras que pontuam as suas ações no sentido de que essas sejam pautadas no senso de justiça e solidariedade. A Racionalidade Ético-Comunicativa pressupõe uma razão discursiva permeada pela crítica e constituída no processo de aceitação ou negação de pretensões de validez. Esse processo tem sua fundamentação no critério da prevalência da melhor argumentação. Convém ressaltar que não se fala em um método, mas sim em dialogicidade com o fio condutor do processo de democratização organizacional o qual precisa ter contemplado nos pressupostos da Ética do Discurso parâmetros que devem ser conciliados com as especificidades de cada contexto. A dialogicidade pela sua configuração argumentativa pode ajudar o homem no seu desenvolvimento cognitivo e moral no sentido de ele ter que aprender a moderar a sua voracidade e adicionar à sua práxis organizacional não somente a criação de bens e riquezas, mas de valores que deem um outro sentido à existência humana, ou seja, ele deve buscar o uso sustentável das bases materiais químicas, físicas e também imateriais que garantam a manutenção e a reprodução da vida, não só da humana, mas de toda a comunidade da vida. Nessa dinâmica, a subjetividade toma uma configuração mais abrangente e interativa, isto é, não é meramente uma subjetividade com vínculo na identidade consigo mesma, mas um sair de si, um “se fazer ver” a si mesmo no seu ser-estar-no-mundo-como-o-outro, intersubjetivamente (MERLEAU-PONTY, 1975), propiciando aos indivíduos na organização o seu desenvolvimento moral e funcional, pois a condição de moralidade de uma ação está na liberdade. Dessa maneira, o ato e o efeito de uma ação no campo da Ética do Discurso estão fundados na escolha e na liberdade, em virtude de estas estarem ancoradas no suporte do entendimento entre os indivíduos que procuram, pelo uso de argumentos racionais, convencer ou se deixar convencer a respeito da validade de qualquer norma ou regra. Instaura-se aí o mundo da sociabilidade, da espontaneidade, da solidariedade e da cooperação. 14 Bibliografia DUPAS, Gilberto. (2000). Ética e poder na sociedade da informação. São Paulo: Unesp ENTEMAN, W. F. (1993). Managerialism: the emergence of a new ideology. Madison: The University of Wisconsin Press GASKELL, George. (2002). Entrevistas individuais e grupais. In: MARTIN, W. Bauer e GASKELL, George. Pesquisa qualitativa, contexto, imagem e som. Petropolis, R.J: Vozes. GORTNER, H. F. (1991). How public managers view their environment: balancing organizational demands, political realities, and personal values. In: BOWMAN, J. S, ed. Ethical Frontiers in 4 public management. Oxford: Jossey - Bass Publishers. HABERMAS, Jurgen. (1988 a) Teoría de La Acción Comunicativa. Tomo I. Madrid: Taurus. HABERMAS, Jurgen. (1988 b). Teoría de la Acción Comunicativa. Tomo II. Madrid: Taurus. HEIDEGGER, Martin. (1998). Ser e tempo. Parte II.Petrópolis : Vozes. MERLEAU-PONTY, Maurice. (1975). A crise do entendimento. São Paulo: Abril cultural. NASH, Laura L. (1993). Ética nas empresas: boas intenções à parte . São Paulo, Makron Books. RAMOS, A. Guerreiro. (1981). A Nova Ciência das Organizações: Uma Reconceituação da Riqueza das Nações. 1ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. RAMOS, A. Guerreiro. (1983). Administração e Contexto Brasileiro: Um Esboço de uma Teoria Geral da Administração. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. SROUR, Robert Henry. (2000). Ética Empresarial. Rio de Janeiro: Campos. VASQUEZ, A. S. (1995). Ética. São Paulo: Atlas. WEBER, Max. (1977). Economía y Sociedad: Esbozo de Sociología Comprensiva. 2ª ed. México: Fondo de Cultura Econômica, 2ºv. SCHUTZ, Albert. (1968). Fenomenologia del mundo social, Buenos Aires. Piados. THIOLLENT, M. (1994). Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo. Cortês. WILLIAMS, Bernard. (1993). Ethics and the Limits of Philosophy. London: Fontana. 1 O consenso é possível através da argumentação. Esta pode ser medida pelas razões que pode oferecer para ser aceita. Assim não existe argumento que, pela sua simples apresentação, prescinda de uma prática discursiva para obtenção de um consenso. Contudo, é bom lembrar que todo consenso é contingente, pois ele é sempre passível de ser questionado e, nesse caso, passa novamente pelo processo de validação. 2 Aqui solidariedade postula empatia e cuidado em relação ao bem estar do próximo. 3 A filosofia da linguagem desponta com bastante expressividade, a partir da metade do século XX, tendo como expoentes os filósofos Frege, Russel e Wittgesntein. Este último, com sua obra Tractus lógico-philosophicus (1921), aborda a análise lógica das proposições linguísticas. Nesta, a linguagem é vista como uma prática social na qual o significado de termos e expressões lingüísticas têm sua gênese, através dessas interações. A obra de Wittgesntein subsidia Austin e seu aluno Searle, cujo trabalho de maior significado é a Teoria dos Atos de Fala, que se tornou o suporte da Pragmática Universal de Habermas. 4 Convém ressaltar que este trabalho, ao enunciar algumas categorias que atendem os pressupostos da Racionalidade Ético-Comunicativa, pretende dar mais clareza ao êxito da metodologia aplicada, não sendo, portanto, estas o foco do trabalho. 15