Introdução A linguagem de mundos possíveis1 é utilizada para caracterizar verdades possíveis e verdades necessárias. No entanto, para que tal seja realizado correctamente há que ter em conta a relação de acessibilidade2 entre mundos possíveis. Desta forma, quando se diz que uma proposição, P, é possivelmente verdadeira num dado mundo possível w0, é porque essa proposição, P, é verdadeira em algum mundo possível (w1) acessível ao mundo dado (w0). Obviamente, diz-se que uma proposição, P, é necessariamente verdadeira num certo mundo possível (w0) apenas no caso dessa proposição, P, ser verdadeira em todos os mundos possíveis acessíveis a w0. Por outro lado, dizer que uma proposição, P, é possivelmente verdadeira ou necessariamente verdadeira num dado mundo possível é apenas dizer que, nesse mesmo mundo, é possível que P ou é necessário que P. Enquanto instrumentos, os mundos possíveis não determinam qualquer tese ou posição sobre os problemas modais, antes clarificam as diversas teses em confronto; desta forma, a linguagem de mundos possíveis é útil para o propósito de estudar os sistemas formais axiomáticos da lógica modal. A tradução de expressões como ‘é possível que’ e ‘é necessário que’ para a linguagem de mundos possíveis permite eliminar aqueles operadores modais em favor de expressões no idioma da lógica quantificada de primeira ordem cujas variáveis de quantificação se estendem sobre mundos possíveis. Em vez de ‘é possível que P’ temos ‘existe um mundo possível, w, tal que w é acessível e P é verdadeira em w’, ou, em vez de ‘é necessário que P’ temos ‘em todos os mundos possíveis acessíveis ao mundo actual, wo, P é verdadeira’. Assim sendo, de um ponto de vista lógico, estas traduções têm a vantagem de permitir utilizar os recursos da lógica não modal quantificada. Por outro lado, e de um ponto de vista metafísico, a questão é saber se a tradução operada entre as asserções modais e a linguagem de mundos possíveis constitui efectivamente uma ajuda para entender o conteúdo e sentido das primeiras e se tal é filosoficamente aceitável; no entanto, a resposta a estas questões está dependente do próprio entendimento que se dá à linguagem de mundos possíveis, ou seja, se os mundos possíveis devem ser considerados 1 Por “mundo” entenda-se “universo”; por “actual” compreenda-se “efectivo”, “em acto” ou “actualizado”. Os mundos possíveis não actuais são situações completamente diferentes da actual, pois constituem uma maneira como o mundo poderia ter sido, ou seja, uma situação contrafactual; qualquer situação contrafactual logicamente consistente constitui um mundo possível alternativo ao actual. 2 Propriedades da relação de acessibilidade: Reflexividade (todo o mundo possível é acessível a si próprio), Simetria (quando um mundo W1 é acessível a um mundo W2 e este, por sua vez, é acessível a W1) e transitividade (quando um mundo W1 é acessível a um mundo W2 e este é acessível a um mundo W3, W1 é acessível a W3). 1 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação dispositivos técnicos de auxílio para a discussão de problemas modais ou se aqueles deverão ser encarados como entidades ou objectos reais, apesar de não actuais, e, se se responder afirmativamente a esta questão, qual a sua natureza. É exactamente sobre as várias opções que se nos deparam quanto à natureza ontológica dos mundos possíveis que versa este estudo; serão analisados os pontos de vista Deflacionistas, Ficcionalista, do Ersatzismo linguístico e do Combinatorialismo. 1. O Ponto de Vista Deflacionista Nesta perspectiva3, a linguagem de mundos possíveis é apenas uma forma de reformular as pretensões modais que retira o seu sentido dos sentidos independentes dos modos mais familiares de expressar aquelas asserções. Desta maneira, não devemos investir a linguagem de mundos possíveis com qualquer significado ontológico, como se se estivesse a falar de uma classe especial de entidades cuja natureza intrínseca aguarde explicação. Uma primeira objecção a esta perspectiva advém do facto de se frases na linguagem de mundos possíveis são verdadeiras (e muitas deverão sê-lo, pois são entendidas como paráfrases de asserções modais verdadeiras), então mundos possíveis devem existir, pois muitas das frases da linguagem de mundos possíveis afirmam explicitamente que estes existem. Considere-se o seguinte exemplo: “possivelmente Pedro é rico”; na linguagem de mundos possíveis a tradução será a seguinte: “existe algum mundo possível, w1, no qual é verdadeiro que Pedro é rico”; nesta frase a expressão “existe algum mundo possível” diz-nos que existe pelo menos um mundo possível, pelo que a linguagem de mundos possíveis não pode ser constituída de modo ontologicamente inocente, pois parece comprometer o seu aderente com a existência de uma certa classe de entidades (mundos possíveis), acerca dos quais a única questão que permanece em aberto diz respeito àquilo que estes são. Os defensores desta perspectiva defendem, face a esta objecção, que a frase na linguagem de mundos possíveis “existe algum mundo possível no qual é verdadeiro que Pedro é rico” não é mais do que uma paráfrase da frase modal mais familiar “possivelmente, Pedro é rico” e retira o seu sentido desta última, a qual, por sua vez, não faz referência a qualquer outra entidade para além de Pedro; deste modo, este ponto de vista não pode ser acusado, segundo os seus defensores, de comprometer os seus 3 Uma teoria deflacionista acerca de um conceito filosófico defende que a este último não está associada ou corresponde uma qualquer propriedade ou relação cuja natureza essencial possa vir a ser alcançada por uma análise conceptual ou científica profunda. 2 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação aderentes com a existência de entidades de um tipo desconhecido: “existe um mundo possível” significa apenas “é possível que algo seja o caso”, “pois esta última, traduzida para a linguagem de mundos possíveis significa “existe algum mundo possível no qual alguma proposição é verdadeira” e isto é trivialmente equivalente a “existe algum mundo possível”, porque é trivialmente verdadeiro que todo o mundo possível é um mundo no qual alguma proposição é verdadeira.”4 Uma aparente vantagem do ponto de vista deflacionista parece ser o modo como supostamente elimina o problema da identidade transmundial; se não existem mundos possíveis, concebidos como entidades reais, e porque “existe algum mundo possível” é dizer que é possível que algumas proposições sejam verdadeiras, então o problema relacionado com um mesmo objecto identificado e ocupando diferentes mundos possíveis não existe5. Para estes filósofos perguntar se existe um mundo possível no qual um determinado indivíduo/objecto seria desta ou daquela maneira distinto das suas características no mundo actual é questionar se esse mesmo objecto poderia ter sido desta ou daquela maneira; desta forma, a única questão de identidade que necessita de ser estabelecida diz respeito ao tipo de indivíduo ou objecto que este é; após estes factos estarem estabelecidos não há mais nenhuma questão acerca da identidade a ser esclarecida – são os próprios falantes que estipulam qual o indivíduo ou objecto em questão. Mas existe efectivamente uma dificuldade nesta argumentação: imagine-se, por exemplo, um indivíduo I, acerca do qual se questiona se poderia ter existido num outro local para além daquele onde existe actualmente e com as mesmas propriedades; poder-se-á dizer que apenas se poderá investigar acerca das propriedades que I poderia ter tido se se estiver numa posição que permita dizer em que circunstâncias I existiria na mesma. Mas não requer isto uma percepção da essência individual de I?6 E não será esta percepção a “percepção de um princípio ou critério de identidade transmundial para objectos do tipo de I? Esta parece ser uma objecção razoável.”7 Apesar de não resolver o problema da identidade transmundial, este ponto de vista tem a seu favor ser ontologicamente parcimonioso; no entanto, pode objectar-se que esta perspectiva deflacionista deixa por explicar o porquê de frases modais familiares serem parafraseadas por frases na linguagem de mundos possíveis, em particular porque este facto parece ser desconhecido para a generalidade dos utilizadores dessas frases 4 LOWE, E. J., A Survey of Metaphysics, Oxford University Press, p. 122. Cf. Idem Op. Cit., p.123. 6 Cf. Idem Op. Cit., p.124. 7 Idem Op. Cit., p.124. 5 3 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação modais8. O problema não diz respeito ao uso da paráfrase, ou melhor dizendo, à noção de uma frase poder ser parafraseada, de um modo que salvaguarde o seu sentido, por uma outra com uma diferente estrutura lógica. Lowe introduz, para melhor explicitar o seu ponto, o exemplo de Frege utilizando as seguintes frases: “a direcção da linha A é a mesma direcção da linha B” e “a linha A é paralela à linha B”; apesar da atribuição de diferentes relações a diferentes partes de objectos, a primeira frase pode ser parafraseada pela segunda; no entanto, este exemplo não constitui um bom modelo, segundo Lowe, para os aderentes desta perspectiva deflacionista por duas razões: 1) a paráfrase não surge como uma surpresa para os utilizadores das frases envolvidas e 2) não há qualquer problema em dizer-se que as direcções existem se as linhas existem, e vice-versa. “Do facto da frase que diz respeito a direcções poder ser parafraseada por uma que diz respeito a linhas não implica naturalmente que as direcções não existem realmente, enquanto que o deflacionista sugere que, porque a linguagem de mundos possíveis é apenas uma paráfrase da linguagem modal mais usual, mundos possíveis não existem realmente.”9 Existe, no entanto, um ponto de vista deflacionista, mais extremo que o primeiro, que considera os mundos possíveis nada mais do que um dispositivo heurístico. Segundo esta perspectiva, ao traduzir-se uma frase modal corrente numa frase na linguagem de mundos possíveis a tradução não preserva nem explica o sentido da frase modal original10. No fundo, é apenas providenciado um substituto para a frase modal original, o qual se constata ser mais manipulável na lógica não modal quantificada. Não há, portanto, qualquer necessidade de questionar que tipos de identidades são “os valores das variáveis de mundos possíveis nas frases de substituição, pois tais frases não devem ser consideradas literalmente falsas ou verdadeiras, mas apenas como providenciando objectos linguísticos convenientes para os propósitos de formular e avaliar argumentos modais.”11 Nesta perspectiva, as frases de substituição formuladas na linguagem de mundos possíveis não possuem sentidos determinados, nem necessitam de os ter para satisfazerem os propósitos para os quais foram construídas. Uma objecção que pode ser colocada a esta teoria deflacionista de mundos possíveis refere-se à sua incapacidade de fornecer um porquê à utilidade da linguagem de mundos possíveis para formular e avaliar argumentos modais uma vez que as frases de substituição não possuem um sentido relacionado com aquele das frases modais das quais são 8 Cf. Idem Op. Cit., p.125. Idem Op. Cit., p.125. 10 Cf. Idem Op. Cit., p.125. 11 Idem Op. Cit., p.125. 9 4 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação substitutas.12 A principal vantagem das duas perspectivas deflacionistas consiste no facto de serem ontologicamente parcimoniosas, permitindo, qualquer delas, a utilização da linguagem de mundos possíveis sem comprometer o utilizador com a obrigatoriedade de definir a natureza daqueles, uma vez que o termo “mundo possível” não expressa o conceito de um tipo distinto de objecto ou entidade. 2. O Ficcionalismo Modal Um outro ponto de vista acerca da natureza ontológica dos mundos possíveis que espera beneficiar deste tipo de linguagem sem incorrer em qualquer compromisso ontológico é geralmente conhecido como ficcionalismo modal; a ideia é a de obter frutos do trabalho de David Lewis sem ter de pagar o preço da objectável ontologia deste último; o cerne desta perspectiva visa dizer que uma frase modal P é verdadeira se e somente se a tradução proposta13 por Lewis para P, digamos P*, for verdadeira, isto sendo a Teoria dos Mundos Possíveis de Lewis verdadeira14. Efectivamente, o ficcionalista modal constrói uma ficção, F, com base na teoria de Lewis, defendendo que F deve ser tida em conta entre as condições de verdade das asserções modais, de forma que se P é uma asserção modal e P* a sua tradução (segundo Lewis), então P é verdadeira se e somente se, de acordo com F, P*. Assim sendo, a expressão “de acordo com F” constitui a principal primitiva do ficcionalista modal; ora, como o lado direito da bicondicional pode ter as seguintes paráfrases15: 1) se F for verdadeira, P* é verdadeira; 2) supondo-se F, P* segue-se; 3) é impossível que F seja verdadeira sem que P* o seja também; então P* ser verdadeira de acordo com F não é mais do que P* ser uma certa consequência de F16. Pelo que a primitiva do ficcionalista é uma primitiva modal. De acordo com este ponto de vista o termo “mundo possível” não é identificado com uma entidade abstracta, mas antes expressa o conceito de um certo tipo de entidade ficcional17, tal como o conceito de unicórnio é o conceito de um certo tipo de entidade ficcional; da mesma forma que se pode dizer como seria ou o que seria um unicórnio, se tal coisa existisse, segundo este ponto de vista pode dizer-se o que um mundo possível 12 Cf. Idem Op. Cit., p.126. “É possível que os elefantes voem” traduz-se por “Há pelo menos um mundo possível no qual os elefantes voam”. 14 Cf. CHIHARA, Charles S., The Worlds of Possibility, Oxford University Press, 2001, p. 168. 15 Cf. Idem Op. Cit., p.168. 16 Cf. Idem Op. Cit., p.168. 17 Cf. LOWE, E. J., A Survey of Metaphysics, Oxford University Press, p.126. 13 5 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação poderia ser, se existisse, quando efectivamente não existe nenhuma destas coisas. A linguagem de mundos possíveis é concebida como semelhante à linguagem acerca de personagens em obras de ficção, como quando por exemplo se fala de Sherlock Holmes, apesar da sua não-existência, e se diz “Sherlock Holmes é um detective”. De acordo com os defensores do ficcionalismo isto é legitimo, uma vez que ao dizer-se uma tal frase não se pretende efectivamente falar acerca de uma pessoa verdadeira, mas apenas se quer dizer algo como isto: “segundo as histórias de Sir Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes é um detective”. O que aqui se evidencia é o facto de se considerar a linguagem de mundos possíveis como uma linguagem acerca de personagens ficcionais, do que resulta, como é possível verificar pelo exemplo já apresentado, a modificação do esquema usual de tradução das frases modais em frases na linguagem de mundos possíveis; temos então que uma frase, P, acerca de mundos possíveis passa a ter a seguinte estrutura: “de acordo com a ficção de mundos possíveis, P”; então, para “é possível que P”, em vez de “existe pelo menos um mundo possível no qual P é verdadeira”, teremos “de acordo com a ficção de mundos possíveis, existe pelo menos um mundo possível no qual P é verdadeira” e para “é necessário que P” teremos “ de acordo com a ficção de mundos possíveis, em todos os mundos possíveis P é verdadeira”. A razão para a alteração do esquema usual de tradução das frases modais em frases na linguagem de mundos possíveis resulta do facto de, para o ficcionalista, mundos possíveis serem entidades ficcionais não existentes, pelo que frases do tipo “existe pelo menos um mundo possível” são falsas, tal como as frases “existe pelo menos um unicórnio” são igualmente falsas; deste modo, frases do tipo “existe um mundo possível no qual P é verdadeira” são falsas, qualquer que seja a proposição P, no entanto, o defensor deste ponto de vista não pretende dizer que as frases “é possível que P” ou “é necessário que P são falsas, independentemente da proposição P utilizada; o que ele tem de fazer é considerar que frases do tipo “é possível que P” sejam devidamente traduzidas por frases na linguagem de mundos possíveis como “existe pelo menos um mundo possível no qual P é verdadeira”. A tradução correcta será, para “é possível que P”, “de acordo com a ficção de mundos possíveis, existe pelo menos um mundo possível no qual P é verdadeira”, tal como as frases do tipo “de acordo com a mitologia Grega, existe pelo menos um unicórnio” são verdadeiras, apesar de a frase “existe pelo menos um unicórnio” ser falsa.18 O ficcionalismo modal sugere, portanto, uma redução da modalidade através da alteração do esquema de tradução: seja P0 uma frase modal e P1 18 Cf. Idem Op. Cit., p.127. 6 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação a análise na linguagem de mundos possíveis de P0; seja P0 “é possível que existam elefantes voadores”, então P1 será “em algum mundo possível existem elefantes voadores”, pelo que a análise dos ficcionalistas das frases modais (por exemplo, P0) será “de acordo com a ficção dos mundos possíveis, P1”. O problema com este ponto de vista é que a “ficção de mundos possíveis” não constitui um descrição exaustiva de uma pluralidade de mundos, pois se fosse possível construir uma tal descrição, chamemos-lhe D, dos mundos possíveis, os teóricos defensores da identidade de mundos possíveis com entidades abstractas não necessitariam de noções modais para definir os seus mundos possíveis.19 O problema reside no facto da possibilidade metafísica ser muito mais “estreita” e limitada do que a possibilidade lógica e a possibilidade analítica, e este é efectivamente o maior obstáculo a uma redução da modalidade, quer aquela se baseie numa ficção acerca de mundos possíveis quer na construção de mundos a partir de entidades abstractas.20 Deste modo, o ficcionalismo não providencia uma descrição completa da totalidade dos mundos possíveis, no entanto os seus defensores consideram adequada a sua redução da linguagem de mundos possíveis com base na ideia de que tendo em conta a noção de verdade segundo a ficção, muitas mais coisas são verdadeiras numa ficção do que aquilo que esta explicitamente afirma; por exemplo, é presumivelmente verdadeiro que nas histórias de Sherlock Holmes este tivesse um pâncreas, apesar de tal nunca ser explicitamente mencionado; da mesma forma, segundo os ficcionalistas, muito mais é verdadeiro na ficção de mundos possíveis para além daquilo que nestes é explicitamente introduzido na sua construção. Por outro lado, se P for uma qualquer frase modal e P1 for a sua análise na linguagem de mundos possíveis, a qual não é explicitamente imposta pela ficção em causa, se o ficcionalismo estiver correcto, e apesar da ficção não impor explicitamente P1, deverá ser verdadeiro de acordo com a ficção que P1. Ora é exactamente neste ponto que surge uma possível objecção à teoria ficcionalista, já que “de acordo com” parece expressar uma noção modal, o que coloca em causa a redução da modalidade proposta, pois “aceitar “de acordo com” sem definição parece ser equivalente aceitar a modalidade não reduzida.”21 A teoria ficcionalista perde ainda no confronto com o primeiro ponto de vista deflacionista, já que este não requer a descrição do tipo de coisa que o mundo possível poderá ser e não obriga a uma modificação do esquema usual de tradução de frases modais para a linguagem de mundos possíveis, uma vez que, de acordo com a primeira, a frase na linguagem de 19 Cf. SYDER, Theodore, Reductive Theories of Modality, p.191. Cf. Idem Op. Cit., p.191. 21 Idem Op. Cit., p.192. 20 7 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação mundos possíveis “ existe pelo menos um mundo possível” é trivialmente verdadeira, pois significa simplesmente que “possivelmente pelo menos uma proposição é verdadeira”.22 Por outro lado, uma vantagem do ponto de vista ficcionalista consiste na sua capacidade para explorar determinadas características das teorias realistas de mundos possíveis sem obrigar o seu aderente a um compromisso ontológico que aquela outra acarretaria.23 3. O Ersatzismo Os defensores do Ersatzismo afirmam que existe apenas um mundo, e não uma pluralidade de mundos concretos como defende Lewis, e inumeráveis entidades abstractas representando modos que esse mesmo mundo poderia ter assumido; desta forma, poderíamos ter entidades representando modos como os elefantes poderiam, ou não, ter sido. É importante realçar que as representações abstractas não são mundos, elefantes, átomos, etc., pelo que não há qualquer afronta com as ideias do senso comum acerca do que existe24; aliás, o Ersatzismo procede a uma divisão bem definida de tudo o que existe em concreto e abstracto: existe apenas um e um só mundo concreto, o qual inclui todos os seres concretos que existem; não existem outros mundos e indivíduos habitantes desses outros mundos; o mundo concreto não é mais ou menos extenso que uma unidade espacio-temporal, de acordo com o senso comum25. De acordo com os realistas modais ersatzistas, existem substitutos abstractos que podem desempenhar adequadamente os papéis teóricos desempenhados pelos possibilia concretos, os quais deverão ser rejeitados. Aqueles substitutos são entidades abstractas capazes de representar entidades concretas num duplo sentido26: a) são representações, pelo que faz todo o sentido falar daquilo que é o caso de acordo com elas, e b) são representativas, pois tomam o lugar daquilo que pretendem representar. Algumas dessas entidades abstractas são mundos ersatz, os quais representam o mundo concreto com um completo e minucioso detalhe, tal como ele é ou poderia ter sido; o mundo ersatz que representa o mundo concreto correctamente está actualizado, os restantes estão desactualizados. Qualquer um destes mundos, se o mundo concreto tivesse sido substancialmente diferente, poderia representá-lo correctamente, pelo 22 Cf. LOWE, E. J., A Survey of Metaphysics, Oxford University Press, p. 127. Cf. Idem Op. Cit., p.127. 24 Cf. LEWIS, David, On the Plurality of Worlds, Blackwell Publishing, 1986, p.136. 25 Quando os ersatzistas afirmam que não existem outros mundos nem os seus habitantes, eles quantificam sobre tudo sem qualquer restrição. Cf. Idem Op. Cit., pp.136-137. 26 Cf. Idem Op. Cit., p.137. 23 8 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação que, desta forma, tal como é o mundo concreto, qualquer um dos mundos ersatz desactualizados o representa incorrectamente; por outro lado, eles poderiam ter representado correctamente outros mundos concretos, “mas ex hypothesi não há nenhum destes para representar”27. No entanto, não é apenas o mundo concreto que possui representações abstractas, já que também os indivíduos concretos as possuem; estas são os indivíduos ersatz actualizados; por outro lado, existem igualmente os indivíduos ersatz desactualizados, os quais poderiam representar indivíduos concretos se as coisas fossem diferentes, pelo que deste modo não representam nada. Os mundos e os indivíduos ersatz desactualizados diferem dos actualizados porque não representam as coisas correctamente; no entanto, eles existem tal como os outros e pertencem ao mesmo e único mundo, pelo que o defensor do ersatzismo pode designá-los a todos de actuais, e considerar-se ele próprio um actualista28. Uma das questões cruciais acerca do ersatzismo, e a qual acaba por levar à distinção neste de três versões (de acordo com David Lewis), é a de como é que o mundo ersatz representa, ou seja, como é que tal e tal é o caso de acordo com um certo mundo ersatz? Diferentes respostas determinam três diferentes versões29: a) o ersatzismo linguístico, segundo o qual os mundos ersatz são como histórias ou teorias, construções a partir das palavras de uma dada linguagem, representando em função dos sentidos estipulados; b) o ersatzismo pictórico, para o qual os mundos ersatz são como modelos ou figuras, representando por isomorfismo; c) o ersatzismo mágico, segundo o qual aqueles apenas representam porque é da sua natureza fazê-lo, não havendo nada a dizer acerca do modo como o fazem. Das três versões, analisaremos apenas a primeira. 3.1. O Ersatzismo Linguístico O Ersatzismo Linguístico inclui-se no tipo de reduções da linguagem de mundos possíveis que identificam estes últimos com entidades abstractas; neste caso em particular procede-se a uma identificação dos mundos com conjuntos maximamente consistentes de frases. Um mundo possível no qual um elefante voa e um rato fala seria identificado como um conjunto de frases que incluiria “elefante voa” e “rato fala”, para além de outras frases que descreveriam os restantes acontecimentos nesse mundo possível. No que concerne aos indivíduos possíveis habitantes desse 27 Idem Op. Cit., p.137. Cf. Idem Op. Cit., p.138. 29 Cf. Idem Op. Cit., p.141. 28 9 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação mundo, estes podem igualmente ser construídos como um “conjunto de fórmulas contendo variáveis livres”30. Elefante voador seria construído como um conjunto contendo, entre outras, as fórmulas “X é um elefante” e “X voa”. O problema surge quando se torna necessário distinguir entre conjuntos de frases que descrevem mundos possíveis de conjuntos de frases que descrevem estados de coisas que não poderiam ocorrer. Considere-se um conjunto, F, de frases; F é um mundo ersatz se e somente se F é máximo (para cada frase, esta ou a sua negação pertencem a F). Desta forma, para uma proposição ser possível teria de ser expressa por alguma frase em algum mundo ersatz; o problema desta definição é que dela resultariam como possíveis todas as proposições, uma vez que qualquer frase é membro do conjunto de todas as frases, o qual, por seu lado é máximo; Proposições do tipo alguns elefantes não são elefantes seriam possíveis. A solução para este problema parece residir numa restrição dos mundos ersatz a mundos possíveis ersatz; um mundo ersatz é possível se e somente se for possível a todos os elementos do conjunto serem verdadeiros simultaneamente31; o problema desta caracterização é que faz uso da noção de possibilidade, pelo que “a análise de mundos possíveis da modalidade que faz uso de mundos possíveis ersatz desta forma é circular.”32 4. Combinatorialismo Uma forma de evitar a circularidade detectada consiste em fornecer uma definição combinatória de um mundo possível; a identificação de mundos possíveis com conjuntos de pontos de espaço-tempo, em que cada um dos conjuntos representa a possibilidade de ocupação por matéria de todos e apenas dos pontos de cada conjunto em particular, constitui, segundo Sider, um exemplo de uma concepção combinatória de mundos possíveis; isto deve-se ao facto da multiplicidade de mundos resultar da “natureza combinatória da teoria de conjuntos: para qualquer combinação de pontos de espaço-tempo existe um conjunto contendo todos e apenas esses pontos.”33 Neste caso a definição de “mundo possível” é nitidamente não modal, uma vez que para impedir representações impossíveis de mundos não é necessária a modalidade, pois qualquer modelo de ocupação dos pontos de espaço-tempo é possível34. No entanto, uma vez que as 30 SYDER, Theodore, Reductive Theories of Modality, p.188. Cf. Idem Op. Cit., p.188. 32 Idem Op. Cit., p.188. 33 Idem Op. Cit., p.189. 34 Cf. Idem Op. Cit., p.189. 31 10 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação bicondicionais35 utilizadas para definir a possibilidade e a necessidade fazem uso da noção das proposições serem verdadeiras em mundos possíveis, e apesar da identificação dos mundos com conjuntos de espaçotempo eliminar a modalidade esta reaparece na definição de “verdadeira em”36. A questão central é a seguinte: o que significa dizer que é verdadeiro que num determinado conjunto, C, de pontos de espaço-tempo existe um elefante voador? E mesmo se o conjunto não contém literalmente o elefante voador, mas antes representa a existência deste, também o termo “representar” necessita de uma explicação tal como a expressão “verdadeira em”. Para que fosse possível dizer que é verdadeiro em C que existe um elefante voador se e somente se C contém um determinado padrão de ocupação suficiente para a existência daquele animal particular, seria necessária uma determinação precisa desses mesmos padrões de ocupação específicos; estes estariam, por sua vez, dependentes de uma análise de “elefante voador” em termos dos pontos de espaço-tempo ocupados; o principal problema é que não se sabe como providenciar uma tal análise de “elefante voador”. Por outro lado, uma análise geral da modalidade exigiria uma definição de “a proposição P é verdadeira no conjunto C” para proposições arbitrárias.37 Uma saída possível seria a de “traduzir” “P é verdadeira num mundo possível W” como “necessariamente: se todos e apenas os pontos de W estão ocupados por matéria, então P é verdadeira”; no entanto, esta definição usa a necessidade, pelo que, uma vez que não parece estar disponível outra definição, “verdadeira em” torna a explicação circular.38 Estas mesmas observações são aplicáveis a outras propostas de explicação combinatória de mundos possíveis, tais como39: 1) mundos possíveis como combinações de estados de coisas fundamentais; 2) mundos possíveis como combinações de frases atómicas primitivas, em que cada frase atómica utiliza apenas vocabulário primitivo. Para cada uma destas teorias um mundo possível é uma combinação de “elementos”, os quais são constituídos de modo a que todas as combinações de elementos sejam possíveis; esta fórmula elimina a necessidade de uma definição modal de uma combinação possível de elementos. O problema passa a ser como dizer que um não-elemento é verdadeiro num mundo possível; nesta questão 35 “Uma proposição é necessária se e somente se é verdadeira em todos os mundos possíveis” e “uma proposição é possível se e somente se é verdadeira em algum mundo possível”. 36 Cf. SYDER, Theodore, Reductive Theories of Modality, p.189. 37 Cf. Idem Op. Cit., p.190. 38 Cf. Idem Op. Cit., p.190. 39 Cf. Idem Op. Cit., p.190. 11 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação apresentam-se duas situações possíveis: a) considera-se que esse elemento (por exemplo, elefante voador) não constitui um estado de coisas fundamental e que “elefante” e “voador” não são predicados primitivos; deste modo, o que é que faz com que um elefante voe num conjunto C de elementos? A única solução que se oferece é uma definição modal circular: “um elefante voa relativamente a um conjunto de elementos se e somente se necessariamente, se todos os elementos desse conjunto são verdadeiros, então um elefante voa”40. b) Considere-se a existência de um elemento que corresponda a “um elefante voa”; neste caso, já não será verdade que todas as combinações de elementos serão possíveis, uma vez que “a presença de alguns elementos que dizem respeito a ocorrências a um micro nível será incompatível com a presença de certos outros elementos que dizem respeito a voar e a elefantes, e a modalidade terá novamente de definir “mundos possíveis”41. Bibliografia LOWE, E. J., A Survey of Metaphysics, Oxford University Press. SYDER, Theodore, Reductive Theories of Modality. LOUX, J., The Possible and the Actual, Cornell University Press, 1979. LEWIS, David, On the Plurality of Worlds, Blackwell Publishing, 1986. CHIHARA, Charles S., The Worlds of Possibility, Oxford University Press, 2001. 40 41 Cf. Idem Op. Cit., p.190. Cf. Idem Op. Cit., p.190. 12 Pedro Miguel Carlos Mestrado em Filosofia Analítica Seminário de Orientação