VIRTUDES A REDESCOBRIR E A VIVER
V.
JUSTIÇA (para além da iniquidade)
Existe acentuado contraste entre o profundo sentido de justiça que todos – mesmo
os malvados - reconhecemos no próprio interior e o mundo que nos surge como
espetáculo de injustiça generalizada. «O homem nasce livre, e em todo o lado é
prisioneiro» (J.J. Rousseau). Há muitas injustiças que não podem ser resolvidas em
tribunais e para as quais não bastam advogados; algumas, porque os aspetos legais
– que podem ser objeto de comutatividade e compensação – cobrem apenas uma
pequena parte do território da justiça, cuja extensão coincide com a totalidade da
vida em comum. Um modo errado de responder à procura de justiça é a tendência
– hoje em acelerado aumento – a legislar sobre toda a vida social, tendendo a
codificar todas as relações interpessoais, transformando em contratos todos os
relacionamentos entre pessoas. Uma tendência-tentação que, em vez de aumentar a
justiça, está a bloquear escolas, condomínios ou hospitais com ratoeiras de
desconfiança recíproca, porque muitos relacionamentos humanos se desvirtuam
quando são contratualizados.
Era outra, porém, a grande lição sobre justiça do humanismo europeu. Começava
por designar a justiça como virtude cardeal, dizendo assim que ela é antes de mais
fruto de exercício continuado da pessoa. Antes de ser invocada como princípio, a
justiça deve ser praticada, vivida, procurada, cultivada, como as outras grandes
virtudes da existência. A justiça da cidade é gerada pela justiça dos cidadãos, como
simbolicamente exprimia a cultura grega fazendo nascer Dike, a deusa da justiça da
polis, da mãe Themis, a deusa da Justiça que antecede qualquer sistema jurídico
histórico e concreto e que torna justo quem a segue. Por isso Themis pode até
entrar em conflito com Dike, como na grande tragédia de Antígona a qual, em
nome de uma justiça maior, contra a justiça da polis, dá sepultura ao irmão morto,
Polinis. Também os escribas e os fariseus tinham a sua justiça, e com base nela
condenaram Cristo. Nenhuma invocação de justiça é adequada se provier de
cidadãos injustos que usam a justiça-Dike contra a Justiça-Themis, talvez para
oprimir pobres e justos, e sempre para vantagem própria. Na verdade, se os
cidadãos não amarem e praticarem a virtude da justiça, as leis que produzirem só
poderão ser injustas, e tanto mais injustas quanto mais democrática for a forma de
governo – de facto, a necessidade de cidadãos virtuosos é a principal fragilidade das
democracias, como bem sabiam Montesquieu e Filangieri. Ao mesmo tempo, as
leis justas reforçam e premeiam as virtudes civis dos cidadãos.
É este o motivo porque as declinações da virtude da justiça são abertas e
propositadamente vagas: convidam a reconhecer e a dar a 'cada um o que é seu'
sem porém dizer como medir aquilo que é próprio de cada um, nem quem é
competente para o medir. E mesmo quando a justiça-Dike é chamada a dar
conteúdo e limite ao 'próprio' de cada um, é ainda mais verdadeiro que a
indeterminação da virtude da justiça é expressão do facto de ela ser uma relação
entre pessoas. Reconhecemos e damos ao outro o que justamente lhe cabe, se e
quando entre nós existir uma comum pertença, porque, em sentido verdadeiro, o
outro interessa-me e diz-me respeito, é terceira pessoa apenas porque, a nível mais
profundo, é segunda (um 'tu'). E enquanto a justiça-Dike pode contentar-se com
dar a cada um o seu, a virtude da justiça vai para além do cálculo do próprio. O
cristianismo disse-nos que a diferença entre a sua justiça e a justiça dos escribas e
dos fariseus se chama ágape, a qual não começa onde acaba a justiça, mas é a sua
concretização e forma.
A pergunta sobre a justiça diz respeito e julga o inteiro sistema capitalista atual;
uma pergunta, porém, que foi posta de lado durante muito tempo, devido
sobretudo a uma crise de pensamento crítico. Não se trata simplesmente de
denunciar como injustos (o que é justo fazer) alguns fenómenos isolados do
capitalismo – desde os vergonhosos ordenados e pensões de muitos altos dirigentes
públicos e privados aos paraísos fiscais, das especulações que não criam mas antes
destroem trabalho às multinacionais das apostas que levam à fome os pobres com a
conivência das instituições… – mas antes de tomar consciência de que existe uma
inimizade muito profunda e radical entre o nosso capitalismo-financeiro e a virtude
cardeal da justiça. Isto não significa negar que existam muitas pessoas que praticam
todos os dias a virtude da justiça na vida económica, mas apenas reconhecer que
um sistema fundado sobre a busca do máximo proveito dos proprietários dos
grandes bancos, das companhias de seguros e das empresas multinacionais, está em
conflito, como sistema ético, com as exigências da virtude da justiça.
A história do séc. XX (...) produziu um capitalismo, que é essencialmente a imagem
em contraluz dos nossos vícios e das nossas poucas virtudes – e por isso pode
sempre ser modificado e evoluir para algo diferente, se nós quisermos. O
espetáculo da injustiça e da iniquidade continua a dominar a cena deste mundo. Há
muita gente acostumada a privilégios e bens de conforto injustos do atual
capitalismo, e que o alimentam com as suas escolhas quotidianas. Outros, ainda
muito poucos, continuam a pensar e a dizer que muitas grandes injustiças
manifestas podem ser eliminadas da nossa sociedade, e agem em consequência, na
medida do que podem. E assim continuam, teimosamente, a «ter fome e sede de
justiça» e, de vez em quando, a serem chamados de «beatos».
Luigino Bruni, Avvenire, 11 de agosto de 2013.
http://www.avvenir.it/Commenti/Pagine/Giustizia%20Oltre%20liniquo.aspx
VIRTUDES A REDESCOBRIR E A VIVER
V.
JUSTIÇA (para além da iniquidade)
Existe acentuado contraste entre o profundo sentido de justiça que todos – mesmo
os malvados - reconhecemos no próprio interior e o mundo que nos surge como
espetáculo de injustiça generalizada. «O homem nasce livre, e em todo o lado é
prisioneiro» (J.J. Rousseau). Há muitas injustiças que não podem ser resolvidas em
tribunais e para as quais não bastam advogados; algumas, porque os aspetos legais
– que podem ser objeto de comutatividade e compensação – cobrem apenas uma
pequena parte do território da justiça, cuja extensão coincide com a totalidade da
vida em comum. Um modo errado de responder à procura de justiça é a tendência
– hoje em acelerado aumento – a legislar sobre toda a vida social, tendendo a
codificar todas as relações interpessoais, transformando em contratos todos os
relacionamentos entre pessoas. Uma tendência-tentação que, em vez de aumentar a
justiça, está a bloquear escolas, condomínios ou hospitais com ratoeiras de
desconfiança recíproca, porque muitos relacionamentos humanos se desvirtuam
quando são contratualizados.
Era outra, porém, a grande lição sobre justiça do humanismo europeu. Começava
por designar a justiça como virtude cardeal, dizendo assim que ela é antes de mais
fruto de exercício continuado da pessoa. Antes de ser invocada como princípio, a
justiça deve ser praticada, vivida, procurada, cultivada, como as outras grandes
virtudes da existência. A justiça da cidade é gerada pela justiça dos cidadãos, como
simbolicamente exprimia a cultura grega fazendo nascer Dike, a deusa da justiça da
polis, da mãe Themis, a deusa da Justiça que antecede qualquer sistema jurídico
histórico e concreto e que torna justo quem a segue. Por isso Themis pode até
entrar em conflito com Dike, como na grande tragédia de Antígona a qual, em
nome de uma justiça maior, contra a justiça da polis, dá sepultura ao irmão morto,
Polinis. Também os escribas e os fariseus tinham a sua justiça, e com base nela
condenaram Cristo. Nenhuma invocação de justiça é adequada se provier de
cidadãos injustos que usam a justiça-Dike contra a Justiça-Themis, talvez para
oprimir pobres e justos, e sempre para vantagem própria. Na verdade, se os
cidadãos não amarem e praticarem a virtude da justiça, as leis que produzirem só
poderão ser injustas, e tanto mais injustas quanto mais democrática for a forma de
governo – de facto, a necessidade de cidadãos virtuosos é a principal fragilidade das
democracias, como bem sabiam Montesquieu e Filangieri. Ao mesmo tempo, as
leis justas reforçam e premeiam as virtudes civis dos cidadãos.
É este o motivo porque as declinações da virtude da justiça são abertas e
propositadamente vagas: convidam a reconhecer e a dar a 'cada um o que é seu'
sem porém dizer como medir aquilo que é próprio de cada um, nem quem é
competente para o medir. E mesmo quando a justiça-Dike é chamada a dar
conteúdo e limite ao 'próprio' de cada um, é ainda mais verdadeiro que a
indeterminação da virtude da justiça é expressão do facto de ela ser uma relação
entre pessoas. Reconhecemos e damos ao outro o que justamente lhe cabe, se e
quando entre nós existir uma comum pertença, porque, em sentido verdadeiro, o
outro interessa-me e diz-me respeito, é terceira pessoa apenas porque, a nível mais
profundo, é segunda (um 'tu'). E enquanto a justiça-Dike pode contentar-se com
dar a cada um o seu, a virtude da justiça vai para além do cálculo do próprio. O
cristianismo disse-nos que a diferença entre a sua justiça e a justiça dos escribas e
dos fariseus se chama ágape, a qual não começa onde acaba a justiça, mas é a sua
concretização e forma.
A pergunta sobre a justiça diz respeito e julga o inteiro sistema capitalista atual;
uma pergunta, porém, que foi posta de lado durante muito tempo, devido
sobretudo a uma crise de pensamento crítico. Não se trata simplesmente de
denunciar como injustos (o que é justo fazer) alguns fenómenos isolados do
capitalismo – desde os vergonhosos ordenados e pensões de muitos altos dirigentes
públicos e privados aos paraísos fiscais, das especulações que não criam mas antes
destroem trabalho às multinacionais das apostas que levam à fome os pobres com a
conivência das instituições… – mas antes de tomar consciência de que existe uma
inimizade muito profunda e radical entre o nosso capitalismo-financeiro e a virtude
cardeal da justiça. Isto não significa negar que existam muitas pessoas que praticam
todos os dias a virtude da justiça na vida económica, mas apenas reconhecer que
um sistema fundado sobre a busca do máximo proveito dos proprietários dos
grandes bancos, das companhias de seguros e das empresas multinacionais, está em
conflito, como sistema ético, com as exigências da virtude da justiça.
A história do séc. XX (...) produziu um capitalismo, que é essencialmente a imagem
em contraluz dos nossos vícios e das nossas poucas virtudes – e por isso pode
sempre ser modificado e evoluir para algo diferente, se nós quisermos. O
espetáculo da injustiça e da iniquidade continua a dominar a cena deste mundo. Há
muita gente acostumada a privilégios e bens de conforto injustos do atual
capitalismo, e que o alimentam com as suas escolhas quotidianas. Outros, ainda
muito poucos, continuam a pensar e a dizer que muitas grandes injustiças
manifestas podem ser eliminadas da nossa sociedade, e agem em consequência, na
medida do que podem. E assim continuam, teimosamente, a «ter fome e sede de
justiça» e, de vez em quando, a serem chamados de «beatos».
Luigino Bruni, Avvenire, 11 de agosto de 2013.
http://www.avvenir.it/Commenti/Pagine/Giustizia%20Oltre%20liniquo.aspx
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