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A Compaixão de Jesus
John Stott
“Falsos cristos se levantarão”, profetizou Jesus. E assim tem acontecido. Têm surgido charlatões religiosos
com ares de grandeza e pobres enfermos mentais que afirmam ser Jesus Cristo. Temos enfrentado imagens
distorcidas do Jesus verdadeiro, que o apresentam como um guerrilheiro zelote, como um fracassado “superstar”
ou como um palhaço de circo. E é possível que até mesmo nós tenhamos conceitos distorcidos de Jesus.
“Segue-me”, disse ele. “Sim, Senhor, te seguiremos”, tem sido a nossa resposta. Mas a que Cristo seguimos?
O Cristo que alguns seguem inspira amor, mas não justiça; oferece alívio, mas não desafios. Outros estão muito
dispostos a cumprir a ordem para evangelizar, mas não ouvem o chamado a ocupar-se dos pobres, dos enfermos,
dos famintos e dos desesperados.
Os apóstolos deram muita ênfase ao discipulado cristão. Às vezes, queremos “imitá-lo”, mas a ênfase deve
ser em “segui-lo”, em prosseguir nas suas pisadas, no caminho que ele nos traçou. O que isso significa depende
em grande parte de nossa própria comunicação com ele e do nosso conhecimento desse Jesus, a quem devemos
seguir. Assim, busquemos o Jesus real, o autêntico Jesus dos relatos dos evangelhos, e não o Jesus fictício que
muitos têm apresentado. Realmente, nosso estilo de vida como cristãos depende da imagem que temos de Cristo,
do Cristo no qual depositamos a nossa fé.
O exemplo de Jesus
No sermão de evangelização que Pedro pregou a Cornélio e a seus familiares, o apóstolo apresentou Jesus
como “aquele que andou... fazendo o bem” (At 10:38). Essa é uma bela descrição. Jesus nunca fez mal a
ninguém; pelo contrário, a todas as pessoas com quem se encontrou, e em cada circunstância, sempre realizou o
bem.
Se Pedro o descreveu como o que “andou fazendo o bem”, Mateus, em forma mais elaborada, nos conta que
“percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando
toda sorte de doenças e enfermidades” (Mt 9:35). Esse é um balanço do ministério público de Jesus. A ênfase de
Jesus estava no anúncio do reino de Deus, no chamado ao arrependimento e na aceitação das boas novas. Mas à
proclamação acrescentou o ensino, porque lhe interessava a mente dos homens. Estes deviam compreender as
características do reino de Deus, os requisitos para o ingresso nele e as bases para o seu crescimento. Foi em
completa coerência com o seu próprio ensino que Jesus se comprometeu com um serviço prático aos
necessitados: curou os enfermos, alimentou os famintos, consolou os tristes e desempenhou o humilde trabalho
de escravo, quando com água e uma toalha lavou os pés dos seus discípulos.
Mas não estaria perdendo tempo? Não seria mais urgente empenhar-se na tarefa de evangelização,
considerando a grande quantidade de aldeias que deveria visitar e o pouco tempo que teria para isso? Não deveria
ter-se concentrado nisso, deixando a outros a solução dos problemas materiais? Evidentemente, Jesus não
considerou assim. Seu enfoque foi integral porque considerou que suas palavras e atos constituíam um só
ministério. As obras que fazia eram “sinais” do reino que proclamava. “Se, porém, eu expulso os demônios pelo
dedo de Deus, certamente é chagado o reino de Deus sobre vós” (Lc 11:20).
Olhos, ouvidos e mãos que atuam
Sem dúvida, as boas obras de Jesus não devem ser entendidas somente como evidência da presença do reino
de Deus e da derrota do reino de Satanás. Foram, além disso, e principalmente, frutos de sua própria compaixão.
Essa era a motivação suprema de seus serviços! Jesus se comovia profundamente ao ver a necessidade humana, e
isso o movia à ação. Ao examinarmos algumas passagens que nos servem de exemplo, encontramos sempre o
mesmo esquema de ação. Em cada caso, foi uma tremenda necessidade humana que despertou o interesse de
Jesus.
Marcos 1:40,41: “Aproximou-se dele um leproso, rogando-lhe, de joelhos: Se quiseres, podes purificar-me.
Jesus, profundamente compadecido, tocou-o e disse: Quero, fica limpo!”
Lucas 7:11-14: “... dirigia-se Jesus a uma cidade chamada Naim, e... como se aproximasse da porta da cidade,
eis que saía o enterro do filho único de uma viúva; e grande multidão da cidade ia com ela. Vendo-a, o Senhor se
compadeceu dela e lhe disse: Não chores! Chegando-se, tocou o esquife e, parando os que o conduziam, disse:
Jovem, eu te mando: Levanta-te.”
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Não eram somente as necessidades individuais que despertavam a compaixão de Jesus, mas também as
necessidades das multidões, que ele viu como “ovelhas sem pastor”, ou “porque havia muitos enfermos entre
eles”, ou “porque não haviam comido por vários dias e estavam famintos”.
Mateus 9:36: “Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas, como ovelhas
que não têm pastor.”
Marcos acrescenta: “E passou a ensinar-lhes muitas coisas”.
Mateus 14:14: “Desembarcando, viu Jesus uma grande multidão, compadeceu-se dela e curou os seus
enfermos.”
Marcos 8:2-3 e Mateus 15:32: “Naqueles dias, quando outra vez se reuniu grande multidão, e não tendo eles
que comer, chamou Jesus os discípulos e lhes disse: Tenho compaixão desta gente, porque há três dias que
permanecem comigo, e não têm o que comer. Se eu os despedir para suas casas em jejum, desfalecerão pelo
caminho; e alguns deles vieram de longe.”
Quer se tratasse de multidões ou indivíduos, a seqüência era a mesma. A primeira coisa que fazia era ver. O
verdadeiro amor está sempre observando com atenção, e os olhos de Jesus jamais estiveram fechados ante a
necessidade humana. Ninguém podia acusá-lo de ser como o sacerdote ou como o levita da parábola do bom
samaritano. De ambos se diz “vendo-o...”, mas não viram corretamente, porque passaram “de largo” (Lc
10:31,32). Em contraste, Jesus viu corretamente, pois não temia encontrar-se cara a cara com a necessidade
humana e toda a sua angustiosa realidade. E quando viu, inevitavelmente foi movido à compaixão e a um serviço
efetivo. Algumas vezes, expressou o seu sentimento com palavras; mas jamais sua compaixão se diluiu somente
em palavras. Sempre foi concretizada em atos. Viu, sentiu e agiu. A motivação para a ação passou dos olhos ao
coração e daí para as mãos. Tinha sempre compaixão ao ver a necessidade humana, e sempre a demonstrava com
uma ação positiva.
E assim o apóstolo João, inspirado pela inexorável lógica dessa compaixão, volta ao tema em sua primeira
carta. Certamente, João assimilou bem a lição, ao escutar e observar Jesus em seus ensinos e ações. Por isso,
escreve: “Nisto conhecemos o amor, em que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos
irmãos. Ora aquele que possuir recursos deste mundo e vir a seu irmão padecer necessidade e fechar-lhe o seu
coração, como pode permanecer nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas de
fato e de verdade” (1Jo 3:16-18).
Esses versículos são precedidos da surpreendente afirmação de que pelo sacrifício de Jesus nós “conhecemos
o amor”. O que João quer dizer é que o mundo jamais teria conhecido o verdadeiro significado de amor se não
tivesse sido pela cruz de Cristo. “Mas isso é ridículo” – poderá replicar alguém – “todos nós conhecemos o
verdadeiro significado do amor. Não necessitamos de que Jesus nos ensine”. Dificilmente essas palavras críticas
poderiam mudar a opinião do apóstolo João. E a explicação consiste em que todos os amores humanos tornamse pequenos perto do amor supremo. Muito amor humano é bom e nobre, mas em algum grau oculta motivos
ulteriores ou é uma mescla de generosidade e egoísmo. Somente um ato de amor puro foi realizado na história
humana, e este é o sacrifício de Jesus na cruz. Na cruz Jesus amou – e amou com amor perfeito. Ali ele deu tudo
o que tinha: deu-se a si mesmo, por aqueles que não mereciam nada, que eram simples pecadores como nós.
Serviço, não sentimento
O verdadeiro amor, então, é o serviço até o sacrifício, serviço baseado na entrega de si mesmo em benefício
dos demais. O apóstolo João disse que “devemos dar nossa vida pelos irmãos” e essas palavras parecem ter um
alcance mais amplo do que sugere a expressão “irmãos cristãos”. Esse chamado à entrega de nossas vidas não
supõe necessariamente atos espetaculares (ainda que alguns possam ser chamados assim), senão atos de serviço
que podem parecer-nos quase anônimos, mas que nem por isso deixam de ser heróicos. Damos nossa vida
quando nos damos aos outros livremente em serviço. Mas onde ninguém dá ou serve, ali não há amor, ainda que
existam muitas palavras em contrário.
Agora, chegamos a um ponto importantíssimo: com devastadora força, João aplica esse princípio ao cristão
mais poderoso! O apóstolo descreve-o por meio de duas características. Primeiro: possui “recursos deste
mundo”; segundo, vê “seu irmão padecer necessidade”. Esta é a situação: vê a necessidade e tem com que
satisfazê-la. Vê o enfermo e tem medicamentos ou meios para curá-lo; vê a ignorância e possui conhecimento; vê
a pobreza e tem recursos econômicos; vê a carência de conhecimento técnico e possui a tecnologia adequada.
Resumindo: o que João diz é que uma pessoa tem duas opções: vendo a necessidade e tendo com que
satisfazê-la, pode dispor-se e supri-la com o que tem, ou pode negar-se a fazê-lo.
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Sabemos o que fez Jesus: “viu, sentiu e agiu”. E nós? Se não estamos dispostos a suprir a necessidade com o
que temos, estamos cerrando nossos corações ao irmão necessitado. E se fazemos isso, atinge-nos a indignada
pergunta de João: “Como mora o amor de Deus nele?”. Não mora! Não pode morar, já que o amor divino é
serviço, não sentimento. Mas se o amor de Deus é real em nossas vidas, nos impulsionará a uma ação positiva
para suprir com o que temos a necessidade dos outros. E João conclui com um apelo direto: “Não amemos de
palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade”.
Discernimento
O único limite que a nossa liberdade tem para dar e servir é o limite imposto pelo nosso próprio amor. É
possível que muitos tenhamos passado por uma etapa que podemos chamar de “caridade indiscriminada”. Talvez
tenhamos tomado literalmente algumas frases do Sermão do Monte, especialmente a que diz: “Dá a quem te
pede”, e temos querido dar algo a cada mendigo, ou responder com algo a cada necessidade. Realmente, esse
amor, ainda que seja “indiscriminado”, é melhor do que nada. Mas o certo é que o verdadeiro amor é aquele que
pode discernir. Tem a capacidade de ver a necessidade real. Reconhece que nem sempre é o mais conveniente
para o que pede que todas as suas demandas sejam satisfeitas; pode ser um jogador ou um bêbado. O verdadeiro
amor limita sabiamente o dar, não para evadir-se da responsabilidade, mas para criar e desenvolver uma maior
responsabilidade no que pede.
O ensino de Jesus
Já vimos que Jesus “andava fazendo o bem”. Os evangelhos o apresentam desenvolvendo um equilibrado
ministério de pregação, de ensino e de serviço. E o apóstolo João disserta sobre esse grande princípio do “amor
que age”. Agora, vejamos o que Jesus ensinou e exemplificou no Sermão do Monte: “Eu, porém, vos digo: Amai
os vossos inimigos e orai pelos que perseguem”. “Amai... os vossos inimigos, fazei o bem...”. “Fazer o bem” soa
agradavelmente. Mas sabemos que muitos têm feito de uma maneira paternalista, que tem provocado o
descrédito no mandato de Jesus. Assim sucedeu, por exemplo, com os que praticaram a “caridade vitoriana” dos
séculos XVIII e XIX. Claro que não devemos ridicularizar os esforços dos homens da época. Levemos em conta
que estavam profundamente interessados na solução de muitos dos problemas causados pela Revolução
Industrial. Além disso, foi admirável a grande provisão de assistentes sociais, atenção médica domiciliar, comida,
roupas, agasalhos e escolas. O inaceitável para nós é sua atitude paternalista, produto de uma sociedade
estratificada que pensava que Deus a havia ordenado rigidamente dessa forma. Mas é justo agradecer ao Senhor
pelo espírito cristão e empreendedor desses homens.
Os filantropos posteriores à era vitoriana pareciam muito seguros de sua própria justiça: eram arrogantes em
sua maneira de atuar. Isso fez com que o povo pusesse em dúvida o compromisso genuíno de muitos outros que
eram sinceros. As pessoas do bairro mais aristocrático de Londres faziam periódicas “expedições” aos bairros
pobres, talvez mais para tranqüilizar suas próprias consciências do que para atender às necessidades reais. Logo
voltavam tranqüilamente à comodidade burguesa e ao luxo de sua vida anterior. É conveniente esclarecer que
houve grandes e gloriosas exceções, mas estas não lograram calar o inconformismo e o rechaço que os anteriores
estimulavam com a sua maneira de proceder.
Para tanto, parece-nos indicado resgatar o mandato de Jesus de “fazer o bem” do rechaço e desprezo em que
tem caído; devemos fazer várias coisas. Antes de tudo, devemos desembaraçar-nos de atitudes paternalistas,
orgulhosas e arrogantes. Devemos deixar de lado nossa auto-suficiência e prescindir definitivamente da
mentalidade daqueles que se “comprometem” sem realmente se comprometer. Além do mais, numa sociedade na
qual se tem degradado o significado do amor, devemos deixar claro que este não é um sentimento, senão um
auto-sacrifício, que quer servir a outros construtivamente. Somente então nossas obras brilharão como a luz, e
nosso Pai será glorificado.
A quem devemos ajudar?
O mandato de Jesus de “fazer o bem” como expressão de amor encerra duas interrogações. A primeira
refere-se à extensão da nossa responsabilidade: a quem devemos amar? Na realidade, o Novo Testamento
concebe o “amor fraternal” como uma classe especial de amor cristão. Então, de acordo com nossas
possibilidades, “façamos o bem a todos, mas principalmente aos da família de fé” (Gl 6:10).
A caridade começa em casa. Nossa primeira responsabilidade é para com a família da fé. Mas não podemos
ficar aí. No tempo de Jesus, os fariseus trataram de limitar a definição de “próximo” a nada mais que seus
compatriotas judeus. Isso os levou a formular uma interpretação distorcida do segundo mandamento: “Amarás o
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teu próximo, e odiarás o teu inimigo”. Mas Jesus rechaçou totalmente essa distorção: “Eu, porém, vos digo; Amai
os vossos inimigos...”. Segundo Jesus, se seus discípulos amassem apenas os que os amavam, nada estariam
fazendo melhor do que os pagãos. Se queremos ser verdadeiros filhos de Deus, devemos então amar também os
que nos odeiam. Como o Pai Celestial faz brilhar o sol e cair a chuva sobre os bons e os maus, assim devem ser
seus discípulos: perfeitos no amor, como Deus é perfeito.
Jesus ilustrou esse ensino da universalidade do amor cristão na mais conhecida de todas as suas parábolas: a
do homem samaritano. A pergunta que deseja responder é: “Quem é o meu próximo?”. O ponto principal da
história é que o samaritano desprezado fez por um judeu o que jamais um judeu havia feito a um samaritano. A
vítima dos ladrões era um judeu, mas não sabemos mais nada sobre ele. Era um “certo homem”, qualquer
homem, sem nenhuma distinção nem identificação especial, exceto que era um ser humano e que estava em
necessidade. O samaritano não o conhecia e, para dizer claramente, não tinha obrigação alguma de auxiliá-lo em
sua desgraça: pertencia a uma raça, posição social e religião bem diferentes da dele. Mas o estado de necessidade
do judeu ferido e a capacidade do samaritano de compreender e responder a essa necessidade fizeram deste o
próximo daquele.
Que podemos aprender desse ensino de Jesus? O intento de limitar a área dos que devem receber nosso amor
e serviço a determinadas pessoas, como fizeram os fariseus, não é cristão. Mas não é certo que às vezes ficamos
reticentes quanto a servir a pessoas que pertencem a outra religião, sejam animistas, hindus, budistas ou
muçulmanos? Não existe certa hesitação em servi-los, a menos que possamos usar nossa ajuda como uma espécie
de anzol para abrir seus corações a fim de receberem o evangelho? É lógico que queiramos compartilhar com eles
o evangelho; mas, a menos que estejamos motivados por um genuíno interesse por suas pessoas (o que estará
ausente, se não formos capazes de ajudá-los em toda situação), nossos esforços serão inúteis e ainda desonrosos
para a pessoa de Deus. O amor nos obriga a compartilhar, com os demais, ambas as coisas: as bênçãos materiais e
as riquezas espirituais. Porém, o que devemos dar? Isso nos leva diretamente à segunda pergunta: se não
podemos limitar nossa responsabilidade a uma área particular da humanidade, como se manifestará nosso amor?
Aceitamos que amar significa dar e servir: mas como podemos servir, e o que dar? A parábola do bom samaritano
responde também a essas perguntas, porque evidentemente o serviço do bom samaritano está determinado pela
necessidade do homem. Este foi assaltado e ferido; jaz semimorto. É óbvio que sua necessidade mais urgente é a
atenção médica. Assim que o samaritano ata as suas feridas, leva-o a um albergue, cuida dele, paga ao hospedeiro
para que continue atendendo-o e compromete-se a pagar qualquer outro gasto que demande o tratamento. A
única coisa que o samaritano não faz é evangelizá-lo! Põe óleo e vinho nas feridas, mas não enche os bolsos do
judeu com folhetos!
Nosso descuido das necessidades sociais e todas as discussões acerca da evangelização e ação social têm sido
estéreis e desnecessárias. É claro, temos muita razão quando rechaçamos o chamado “evangelho social”, quando
este tenta substituir as boas novas de salvação por uma mensagem de simples promoção social. No entanto, é
incrível que tenhamos chegado ao extremo de colocar a evangelização e a ação social em oposição, como se
mutuamente se excluíssem. Ambas devem ser autênticas expressões de amor ao próximo. Quem é meu próximo,
a quem devo amar? Não é um corpo sem alma, nem uma alma descarnada, nem um indivíduo solitário alienado
de um contexto social. Deus o criou como uma unidade integral e físico-espiritual, que vive em comunidade. E
não posso dizer que amo a meu próximo se estou interessado somente em um aspecto da sua pessoa, quer seja a
alma, quer seja o seu corpo ou a sua posição na comunidade.
Mas alguém pode replicar: e a Grande Comissão? Não nos indica ela, como prioridade, nossa
responsabilidade em evangelizar? Sim e não. A Grande Comissão de Jesus: “Ide por todo o mundo e fazei
discípulos” refere-se, certamente, à tarefa de evangelização do mundo como uma responsabilidade de toda a
Igreja, de todos os cristãos; mas seria exato chamá-la de nossa primeira responsabilidade? É verdade que essas
foram as últimas palavras do Senhor ressuscitado antes de retornar ao Pai. Ainda assim, esse não foi o único
mandamento que Jesus nos deixou. Por que devíamos imaginar, então, que esse mandamento tem precedência
sobre todos os outros e que até os invalida? Sem dúvida, o “grande mandamento” (ao menos em relação ao
nosso próximo) é: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Esse, disse Jesus, é o segundo grande
mandamento, precedido unicamente por “amar a Deus sobre todas as coisas”.
Agora, é correto que igualemos o “amor a nosso próximo” com “evangelizar”? Claro que a morte e
ressurreição de Jesus e a grande salvaçãoassegurada por esses eventos trazem uma nova dimensão ao amor ao
próximo. Foi colocado em nossas mãos um novo e precioso dom a ser compartilhado com o próximo: as boas
novas. Porém, não imaginemos que dar o evangelho ao próximo nos exime da nossa responsabilidade por ele,
que se dermos o evangelho já teremos feito o suficiente.
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Muitos de nós temos sido insensíveis quanto a esses assuntos. Temos pensado e atuado como se Deus só
fosse o Redentor e não o Criador de todos os homens, como se Jesus só tivesse pregado e não tivesse sido
movido, pela compaixão, a alimentar os famintos e sarar os enfermos. Naturalmente, se tivéssemos que escolher
entre evangelização e serviço social, teríamos presente que a vida espiritual e eterna é mais prioritária que a
material e temporal. Mas não temos que escolher, ou pelo menos, serão contadíssimas as ocasiões em que
teremos que fazê-lo. Jesus não escolheu: manteve as duas coisas juntas. Uma não serviu de desculpa ou
dissimulação para a outra: ambas foram expressões genuínas de sua profunda compaixão pelos homens.
Ovelhas e cabritos?
Devemos mencionar um aspecto a mais do ensino de Jesus. Podemos considerá-lo como o sermão sobre o
juízo. Nada destaca mais a força de seu ensino e de seu exemplo do que a forma na qual faz desses dois a base de
seu juízo. Em Mateus 25, Jesus fala de seu regresso, para julgar o mundo. Será o retorno do Filho do homem em
sua glória, para sentar-se como rei sobre o trono, e todas as nações terão que comparecer ante ele. A base da
separação no juízo será a presença ou ausência de obras de amor na vida dos homens. “Então dirá o Rei aos que
estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a
fundação do mundo. Porque TIVE FOME e me destes de comer... Em verdade vos afirmo que sempre que o
fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”. Essa passagem também é chamada de “a
parábola das ovelhas e dos cabritos”. O único elemento que é claramente parabólico é a comparação da salvação
e condenação com a separação de ovelhas e cabras. À parte disso, é um relato direto e solene do juízo final.
Muitos têm tratado de se eximir da admoestação desafiadora de Jesus, aplicando-a a outras situações. Segundos
estes, a expressão “meus pequeninos irmãos” refere-se ao povo judeu apenas, e as nações serão julgadas de
acordo com a maneira como tiverem tratado o povo judeu na História. Mas esse conceito, de que o juízo final
será mais de nações do que de indivíduos carece de sólida fundamentação bíblica. Além do mais, a expressão “um
destes meus pequeninos” é muito pessoal e particular.
Existe outro problema que contribui para a perplexidade de alguns. Se a nossa justificação (nossa aceitação
por parte de Deus) é somente pela fé em Cristo, e pela fé somente, à parte das obras, não é essa passagem
estranha àquela? Não! Nossa justificação é realmente só pela fé. No entanto, onde quer que os escritores do
Novo Testamento se refiram à fé verdadeira, a fé vivente e salvadora, esta vem acompanhada, inevitavelmente,
por boas obras. No relato do juízo final, Jesus indica que nossa atitude real frente a ele será revelada através da
nossa atitude para com os seus irmãos, referindo-se sem dúvida, em primeiro lugar, a seus próprios discípulos,
mas não se restringindo a eles.
O apóstolo Tiago aponta a máxima cristã: “Eu, com as obras, te mostrarei a minha fé”, e Paulo declara que o
realmente importante é “a fé que atua pelo amor” (Tg 2:18 e Gl 5:6). Assim é que a única e sólida evidência de
realidade da nossa fé são as obras de amor. Essa é a razão pela qual, ainda que nossa justificação seja pela fé
somente, nosso juízo será com base nas boas obras. Assim, Paulo, em sua carta aos Romanos, na qual dá ênfase e
explica a justificação pela fé, diz que o povo ao qual Deus dará vida eterna no último dia incluirá aqueles que,
“perseverando em fazer o bem, procuram glória, honra e incorruptibilidade” (Rm 2:7).
Em seus passos
Recapitulando, recordemos a obrigação cristã de “fazer o bem”. Jesus mesmo andou fazendo o bem. Ele nos
ordenou seguir seu exemplo e mostrar amor ao nosso próximo por meio de um eficaz e variado serviço prático.
Jesus também nos preveniu de que as obras serão, no último dia, a evidência para provar a autenticidade de nossa
fé nele, para a salvação.
Como conseqüência incontrovertível, se começarmos a seguir o Jesus verdadeiro e a caminhar em seus
passos, aproveitaremos cada oportunidade para “fazer o bem”. Porque é assim que as nossas boas obras
mostrarão a genuinidade do nosso amor, e a genuinidade do nosso amor mostrará a genuinidade da nossa fé.
*Capítulo 4 do livro Tive Fome, gentilmente, cedido pela ABU Editora (www.abub.org.br).
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Cápitulo 4 – A Compaixão de Jesus