CONTRATOS DE SEGURO - APLICAÇÃO DA LEI Nº 10.741/2003 - ESTATUTO DO IDOSO Sylvio Capanema de Souza A consulente, por meio de seu eminente superintendente jurídico, honrou-nos com pedido de elaboração de parecer jurídico que, em resumo, refere-se à aplicação da Lei nº 10.741/2003 - Estatuto do Idoso aos contratos de seguros de saúde, também conhecidos entre nós como "planos de saúde", celebrados antes de sua vigência. Após minucioso exame da matéria a que nos foi submetida e da documentação pertinente, decidimos aceitar a incumbência, motivados, intelectualmente, pela instigante questão que a consulta envolve e que diz respeito aos limites intertemporais da norma jurídica. Passamos, assim, a emitir nossa opinião legal, na esperança de poder contribuir para o melhor entendimento da questão. I - DA HIPÓTESE VERSADA NA CONSULTA Os planos de saúde, até 1998, não eram disciplinados por qualquer legislação especial, subsumindo-se às regras gerais previstas no Código de Defesa do Consumidor, já que, inequivocamente, tipifica-se como de consumo a relação estabelecida entre pacientes e operadoras ou seguradoras. O aquecimento do mercado, em decorrência da notória falência do Estado em assegurar assistência médica digna a todos os cidadãos, provocou o surgimento cada vez maior de conflitos entre as partes 1 contratantes, que desaguavam no Poder Judiciário, gerando insegurança e perplexidades. Elaborou-se, então, a lei específica, que é a de nº 9.656/1998, que passou a atuar em sintonia com o Código de Defesa do Consumidor. A experiência demonstrou que restaram frustrados os seus objetivos, não tendo a legislação logrado reduzir os conflitos, multiplicando-se as reclamações dirigidas aos Procons e ao Judiciário. No ano de 2000, com o advento de uma Agência Reguladora, a ANS, procurou-se normatizar o sistema, conferindo-lhe maior estabilidade e segurança jurídica, tendo em vista a extraordinária densidade social e econômica do mercado. Várias resoluções e portarias foram editadas, modificando-se continuamente o sistema, com a criação de novas faixas etárias e estimulando-se a adaptação dos chamados "contratos antigos", celebrados antes do surgimento da Lei nº 9.656/1998. Em que reguladora, pesem ainda não os efeitos se obteve positivos da desejável atuação equilíbrio da do agência sistema, persistindo algumas divergências doutrinárias e jurisprudenciais, que ainda o afetam, em prejuízo das partes contratantes. A torturante matéria ainda mais se tumultuou com o advento da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, o Estatuto do Idoso, que, em seu art. 15, § 3º, veda a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade. Em decorrência, três situações distintas passaram a coexistir no mercado dos planos de saúde: 2 a) contratos firmados antes do advento da Lei nº 9.656/1998, não regulamentados e que não poderão ser fiscalizados ou regulados pela ANS, conforme decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn 1931-8, em 21.08.2003; b) contratos firmados sob o império da Lei nº 9.656/1998, até o advento do Estatuto do Idoso, e que a ela se subsumem, criando-se sete faixas etárias, de zero a setenta anos ou mais, para efeito do cálculo atuarial das contraprestações, sendo que a última faixa etária não poderá ter valor superior a seis vezes o valor da primeira; c) contratos firmados sob a vigência do Estatuto do Idoso, que estabeleceu dez faixas etárias, em vez das sete anteriores, referindo-se a última aos maiores de 59 anos. A construção pretoriana e doutrinária tem se mostrado vacilante quanto à aplicação das regras da Lei nº 10.741/2003 aos contratos antes dela celebrados. O cerne da controvérsia reside em se saber se, ao se estender o regime jurídico do Estatuto do Idoso aos contratos precedentes, estaríamos a ele atribuindo efeito retroativo, vedado constitucionalmente, ou se, ao contrário, tratar-se-ia de um efeito imediato e geral da lei nova, a que alguns autores denominam de "retroatividade mínima". Como se vê, a questão, sob o enfoque puramente jurídico, refere-se apenas ao conflito intertemporal das normas jurídicas, que constitui um dos temas mais polêmicos do vasto mundo do Direito. 3 II - DO OBJETO DA CONSULTA Diante da insegurança jurídica gerada pelas vacilações pretorianas, que desequilibram o mercado, colocando em risco o próprio sistema dos seguros e planos de saúde, que é o de maior densidade social e econômica, a consulente nos indaga se as regras do Estatuto do Idoso se aplicariam aos contratos celebrados antes de sua vigência. Ressalte-se, antes de mais nada, que não serão objeto de nossa resposta os aspectos técnicos do problema, envolvendo os cálculos atuariais, para fixação dos prêmios. Todos sabemos que os contratos de seguro envolvem sofisticadas técnicas, ancorando-se na ideia do mutualismo e do cálculo das probabilidades de sinistros. Cabe à difícil ciência da atuária calcular, em cada espécie, o grau de risco assumido pela seguradora, em decorrência do número provável de sinistros que deverão ocorrer em certo tempo, para que se possa fixar a contraprestação a ser paga pelos segurados, e necessária para se formar o fundo, que a todos eles pertence, e do qual serão retiradas as indenizações devidas aos que, escolhidos pelo destino, foram vítimas do sinistro. O equilíbrio desse sistema, indispensável ao seu normal funcionamento, exige a preservação do "fundo do seguro", razão pela qual quanto maior o risco, maior tem que ser o prêmio. Não é preciso ser um técnico, bastando a experiência comum dos fatos da vida para nos convencer de que, em se tratando de seguros ou planos de saúde, quanto maior é a faixa etária do participante, maior é o 4 risco de vir a adoecer e necessitar de cuidados médicos, cada vez mais onerosos e sofisticados. Além disso, existem estudos (pareceres em anexo) de órgãos especializados que comprovam que os gastos per capita em saúde com pessoas com mais de 75 anos são 7,5 vezes superiores do que para os jovens de 15 a 19 anos de idade. Daí ser impossível, sob pena de inexorável falência do sistema, criar-se uma contraprestação única, igual para jovens e idosos. Mas tudo isto pertence ao mundo da atuária e da técnica do seguro, território para nós escorregadio e pantanoso, no qual jamais ousaríamos adentrar. Sobre esses aspectos técnicos, tivemos oportunidade de ler substancioso Parecer intitulado "Diferenciação de risco e mensalidade ou prêmio entre faixas etárias em planos e seguros de saúde", elaborado pela Fipecafi - Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras -, de autoria dos especialistas Drs. Iran Siqueira Lima, Luiz Augusto Ferreira Carneiro, Dânae Dal Bianco e Renata da Silva Mendes, e que muito nos auxiliou para a exata compreensão do tema. Tão importante é a conjugação dos aspectos técnicos e jurídicos, que se interpenetram, que nos parece conveniente anexar a este parecer aquele outro, anteriormente referido. Ficam, assim, determinados os limites e objetivos do presente parecer. 5 III - DOS QUESITOS Quatro grandes indagações, e não propriamente quesitos, nos foram formuladas. A primeira, e mais importante, diz respeito à possibilidade ou impossibilidade de o regime jurídico do Estatuto do Idoso aplicar-se aos contratos firmados antes de sua vigência. A segunda refere-se à legitimidade da ANS para fixar os percentuais de reajustes nestes contratos, de forma diversa aos neles estabelecidos pelas partes. A terceira, mais delicada, nos pede avaliar se decisões judiciais que não enfoquem aspectos periciais e atuariais podem contrariar percentuais de reajuste por mudança de faixa etária. Finalmente, a quarta indagação versa sobre o conceito de abusividade dos índices de reajuste, à luz do direito consumerista, questionando-se a partir de que patamar se pode considerar abusivo o índice pactuado. Estas são as questões a serem examinadas a seguir. IV - DA QUESTÃO DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS Na feliz expressão do Professor Haroldo Valadão, de quem tivemos a honra de sermos alunos, a norma jurídica se apresenta em duas coordenadas fundamentais: o tempo e o espaço. 6 A partir do momento em que passa a viger, a sua eficácia define-se em três dimensões: a primeira no sentido material, a segunda do ponto de vista temporal e a terceira de caráter espacial. Toda lei tem um tempo de vida e um território sobre o qual atua. A consequência inevitável da mobilidade da norma jurídica, nessas duas coordenadas, é o surgimento dos conflitos de leis. No aspecto temporal, o conflito ocorre quando uma lei nova disciplina um fato ou uma relação jurídica, de modo diverso daquele que fazia a lei antiga. No espaço, instala-se o conflito quando a mesma relação jurídica estende os seus efeitos a sistemas diferentes, sob o aspecto territorial, e o estudo de sua solução incumbe ao direito internacional privado. Como se vê, o conflito intertemporal ocorre entre duas leis: uma, anterior, revogada; a outra, posterior, vigente. Diante da mobilidade social, três situações podem ocorrer: a) a situação jurídica nasce e se consuma, exaurindo todos os seus efeitos sob o império da lei anterior, quando, então, nenhuma influência exercerá sobre ela a lei nova; são as chamadas "situações pretéritas"; b) a situação jurídica nasce e se desenvolve já sob o império da lei nova, que regerá todos os seus efeitos, naquilo que se convencionou denominar de "situações futuras"; 7 c) a situação jurídica nasce sob o império da lei anterior, mas é colhida, em pleno voo, pela lei nova, que alcança os seus efeitos ainda não produzidos; são as chamadas "situações pendentes". Nas duas primeiras hipóteses, nenhum conflito ocorrerá, mas, na última, são enormes as dificuldades suscitadas e que há milênios desafiam a argúcia dos juristas. Desde a antiguidade, orientou-se o direito em direção ao princípio da irretroatividade da lei nova, como imperativo da segurança jurídica. Embora na Lei das XII Tábuas não se fizesse referência expressa ao princípio, ele já deitara raízes profundas na época de Cícero, como se observa pela Lex Voconia, que dispunha sobre a incapacidade da mulher para receber por testamento, mas que estabeleceu que essa regra só valeria em relação aos testamentos futuros. A Constituição de Teodósio, o Grande, (440 d.C.) estabeleceu que a lei ficava restrita aos fatos futuros, excluindo-a não só em relação aos fatos passados, como ainda quanto aos seus desenvolvimentos (negotia pendentia). A disposição é hoje lembrada como "regra teodosiana". A Novela 22 do Código Justinianeu, de 535 d.C., firmou, uma vez mais, o princípio rígido da irretroatividade da lei. O Direito Canônico seguiu na mesma direção, segundo as Decretais de Gregório I e Gregório IX, sintetizadas no art. 10 do Código Canônico, e baseadas nas lições de Santo Ambrósio. No regime feudal não houve discrepâncias significativas, prevalecendo as regras externas, do Direito romano. 8 Nos tempos modernos, coube ao Código Napoleão, de 1804, a primazia de incluir, expressamente, o princípio da irretroatividade, em seu famoso e sempre citado art. 2º: "La loi ne dispose que pour l'avenir; elle n'a point d'effet rétroactif". Todas as legislações europeias que se seguiram no século XIX reproduziram, quase ipsis litteris, o dispositivo, como se lê dos Códigos da Itália, Áustria, Holanda, Portugal e muitos outros. Nos tempos atuais, é indiscutível a adoção, como regra geral, do princípio da irretroatividade da lei, embora não seja ele absoluto, admitindo temperamentos, como, por exemplo, o da lei penal mais benéfica ou o das leis que dispõem sobre o estado das pessoas ou sobre padrões monetários. São dois os sistemas adotados nos países modernos. No primeiro, o comando da irretroatividade está inserido na legislação infraconstitucional, dirigindo-se, portanto, apenas aos juízes, aos quais fica vedado aplicar a lei retroativamente. É o caso, por exemplo, do direito francês e dos que seguem a inspiração napoleônica. No segundo, converte-se a irretroatividade em preceito e garantia constitucionais, inseridos, portanto, na Carta Magna, e, neste caso, o comando se estende também aos legisladores, que não poderão elaborar leis retroativas, salvo raras exceções. Neste caso, fortaleceu-se o princípio, repetindo-o tanto na legislação ordinária quanto na Constituição, que se inclui entre as garantias individuais. 9 A tradição do direito brasileiro, desde a 1ª Constituição, de 1824, foi a de incluir o princípio da irretroatividade da lei entre as garantias individuais (art. 179, nº 3, da Constituição do Império). Na Constituição Republicana de 1891, a irretroatividade se consagra nos arts. 11, § 3º, e 72, § 15; na de 1934, no art. 113, nº 3; na de 1946, no art. 141, § 3º; na Constituição de 1969, sob o regime militar, no art. 153, § 3º, e, na atual, de 1988, no art. 5º, XXXVI. A única e lamentável exceção foi a da Constituição de 1937, que se limitou a dizer, no art. 122, nº 13, que as penas estabelecidas ou agravadas na lei nova não se aplicariam aos fatos anteriores. Nos países americanos, a tradição é a mesma, como se pode ler nas Constituições atuais da Bolívia (art. 31), Costa Rica (art. 26), México (art. 14), Nicarágua (art. 43), Paraguai (art. 26) e Peru (art. 25). O Brasil teve o cuidado de inscrever o princípio tanto na Constituição (art. 5º, XXXVI) como na legislação infraconstitucional, e o fez no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942 e até hoje vigendo. Apesar de tudo isto, a matéria jamais se pacificou, sendo inúmeras as teorias que procuram a solução dos conflitos intertemporais das leis. Tão numerosas são que foram divididas em três grupos: as objetivistas, as subjetivistas e as ecléticas. Objetivistas, entre outros, foram Planiol, Affolter e Chironi. Coube, na Itália, a Chironi construir a teoria dos fatos realizados, segundo a qual a) o ato jurídico realizado é o regulado, quanto às suas condições existenciais, pela lei do tempo em que surgiu; b) 10 as consequências jurídicas não são separáveis do ato-fonte e são, portanto, submetidas à lei vigente no tempo em que este último se produziu (Studi e questioni di diritto civile, v. 1, p. 153). Esta é, também, a posição de Ferrara, que reproduzia a velha parêmia romana tempus regit actum para afirmar que "todo fato jurídico, quer pelas suas condições de forma ou de substância, quer em relação a todos os seus efeitos passados, presentes ou futuros, é regulado pela lei do tempo em que o fato foi juridicamente realizado" (Diritto civile, v. I, p. 59). Para Vareilles-Sommières, "uma lei é seguramente retroativa quando cancela no passado os efeitos já produzidos de um ato ou fato anterior, ou quando modifica ou suprime para o futuro um dos seus direitos, com prejuízo para os que os adquiriram" (Une theorie nouvelle sur La rétroactivité dês lois. Rev. Critique, 1893, p. 444). Coviello, em síntese, sustentava que "a lei nova não é aplicável às consequências de fatos passados, ainda que ocorridos sob seu império, quando a sua aplicação tiver como pressuposto necessário o fato passado" (Manuale di diritto civile, 4. ed., 1929, § 33, p. 106). Outra respeitável opinião é de Leon Duguit, para quem "a situação subjetiva, uma vez que decorre da vontade do homem, não pode ser atingida por uma lei posterior, sem criar um caso de retroatividade" (Traité de droit constitutionel, 3. ed., § 21, p. 230). As teorias subjetivistas fundam-se no conceito de direito adquirido. Entre os subjetivistas, Blondeau criou a teoria das expectativas (attentes), segundo a qual a irretroatividade teria por base a crença que uma lei nova desperta em relação ao futuro. 11 Outro famoso subjetivista foi Aubry et Rau, adepto extremado da noção de direito adquirido. Sem dúvida que os dois maiores nomes que se defrontam na liça dos conflitos intertemporais são Paul Roubier e Gabba, razão por que iremos examinar suas lições com maior profundidade. V - AS TEORIAS DE PAUL ROUBIER E F. GABBA De todas as concepções subjetivas, coloca-se em inegável plano superior a de Gabba, fiel ao conceito de direito adquirido. O mestre italiano definiu o direito adquirido como sendo todo direito que: a) é consequência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo em que o ato veio a se realizar, assim como o momento de fazêlo valer não se tenha apresentado antes da vigência de uma nova lei relativa ao mesmo, e, b) nos termos da lei sob cujo império aconteceu o fato de que se originou, passou a fazer parte imediatamente do patrimônio de quem o adquiriu. Ao resumir a doutrina de Gabba, o Desembargador Miguel Maria de Serpa Lopes consignou: Toda doutrina dos direitos adquiridos sustentada por Gabba assenta nos dois seguintes fundamentos: - um direito objetivamente considerado e o fato aquisitivo que o transforma de objetivo em subjetivo ou individual. O fato aquisitivo pode ainda ser simples ou complexo, conforme se compõe num só instante ou se forma mediante partes sucessivas, separadas necessariamente por 12 intervalos de tempo. (Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, v. I, p. 200) Assim sendo, todos os efeitos de um contrato, passados, presentes ou futuros, subsumem-se à lei do tempo em que foi ele celebrado, não podendo ser modificados pelo advento de lei nova, sob pena de se violar o princípio do respeito ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, pilares de sustentação do equilíbrio social. O conceito de Gabba sobre o direito adquirido completa-se com a noção de utilidade para o seu titular. Em nosso Tribunal, ardoroso defensor da tese de Gabba sempre foi o Desembargador Wilson Marques, considerado sempre um de seus maiores juristas. Examinemos, agora, com isenção, a posição de Paul Roubier, por ele explanada em seu sempre citado livro Les conflits des droits dans le temps, de 1929. As opiniões dominantes em sede doutrinária consideram eclética a sua teoria. O saudoso mestre francês afastou-se da concepção de "direito adquirido", para adotar a de "situação jurídica" que lhe parecia superior e mais abrangente. O ponto central de sua tese é a distinção entre efeitos retroativos da lei e efeito imediato. Retornando à tradição romana, Roubier estabelece três categorias de fatos: os facta praeterita, facta pendentia e facta futura. 13 Há retroatividade quando a aplicação da lei nova atinge o passado e, efeito imediato, quando recai sobre o presente. Em relação aos facta pendentia, e segundo a arguta observação de Serpa Lopes, Roubier distingue as partes anteriores à data da mudança da lei, em que haveria retroatividade se fossem atingidas, das partes posteriores, para as quais a lei nova, se aplicável, teria um efeito imediato. Daí se ter criado a máxima que a ele se atribui, e que não é inteiramente verdadeira, segundo a qual "os efeitos futuros dos fatos passados se submetem à lei nova". Esta, aliás, é a tese que sustenta a maior parte das decisões pretorianas sobre a matéria, admitindo a incidência do Estatuto do Idoso aos contratos anteriores, quando ocorre a mudança de faixa etária, sob o fundamento que se trataria de seu efeito imediato, em relação a um fato futuro. Mas isto constitui um colossal equívoco, como procuraremos demonstrar. Ao distinguir os efeitos retroativos dos imediatos e estabelecer duas fases diversas em relação à situação jurídica, uma dinâmica e outra estática, Roubier sustenta a existência de uma zona intermédia que reserva para os contratos em curso, em que ele exclui tanto os efeitos retroativos quanto os imediatos, e o faz em homenagem ao princípio da segurança das relações contratuais, resumida na conhecida regra pacta sunt servanda. Esse aspecto da doutrina de Roubier tem sido pouco estudado e até mesmo esquecido por muitos que o citam, fora do contexto de seu 14 pensamento, como se pode perceber de alguns arestos de nossos Tribunais. Para que não pairem dúvidas sobre o que ora afirmamos, remetemos o leitor ao que expõe o mestre, em sua obra anteriormente citada, nas páginas 597 e seguintes. Formulando o princípio do efeito imediato da lei, Roubier introduz-lhe transcendental exceção, que se refere aos contratos sucessivos ou de execução continuada, entendendo que, em tal caso, sobrevive a lei pretérita que o regeu originariamente. Nossa atual ordem jurídica suscita certa perplexidade. Ao aludir, no inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal, ao "direito adquirido", o legislador constituinte acena em direção à teoria subjetiva, enquanto que o art. 6º da Lei de Introdução, que se refere a "ato jurídico perfeito", identifica-se mais com as propostas de Roubier. Isto talvez explique muitas das vacilações da nossa construção pretoriana. Ainda discorrendo sobre o tema, o Professor Serpa Lopes enumera os efeitos práticos do princípio da irretroatividade sobre o direito das obrigações e dos contratos. Dele extraímos o seguinte trecho, que cai como luva ao objetivo da consulta: No que diz respeito aos contratos, se estes forem da classe dos instantâneos, como a compra e venda à vista, o princípio lógico é o do tempus regit actum. 15 Se se trata de contratos de execução continuada, o problema envolve sérias dificuldades. Parece-nos mais acertada a orientação de Roubier, no sentido de que os contratos em curso, apanhados por uma nova lei, são contudo governados pela lei sob cuja vigência foram estabelecidos. (Ob. cit., p. 209/210 - grifos nossos) Mais adiante, o respeitado civilista observa que, em matéria de obrigações em geral, quer em relação à sua natureza, categorias e espécies, é incontestável o princípio de que deverão ser elas regidas pela lei vigente ao tempo de sua constituição. Em sede jurisprudencial, e como já se disse, a matéria é divergente, o que se explica não só pela complexidade jurídica do tema, como pela sua enorme densidade social. Parece-nos paradigmático um conhecido acórdão do Supremo Tribunal Federal, na ADIn 493-0/DF, do qual foi relator o eminente Ministro Moreira Alves, considerado, com toda justiça, um de seus maiores vultos, não só por ser o redator da Parte Geral do Código Civil de 2002, como também porque, depois de Matos Peixoto, é o maior romanista do Brasil. A referida ADIn não enfrenta a matéria versada na consulta, mas a hipótese jurídica é a mesma, ou seja, a aplicação da lei nova aos contratos anteriores e que estejam vigendo, já que são de execução continuada. Tão importantes para a exata compreensão do tema, permitimo-nos pinçar do acórdão vários trechos, aqui reproduzidos e que confirmam a tese anteriormente sustentada. [...] se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado. Nesse caso, a aplicação 16 imediata se faz, mas, com efeito, retroativo. Por isso mesmo, o próprio Roubier (ob. cit., nº 82, p. 415) não pôde deixar de reconhecer que, se a lei nova infirmar cláusula estipulada no contrato, ela terá efeito retroativo, porquanto, ainda que os efeitos produzidos anteriormente à lei nova não fossem atingidos, a retroatividade seria temperada no seu efeito, não deixando porém de ser verdadeira retroatividade. (grifos nossos) Por outro lado, no direito brasileiro, a eficácia da lei no tempo é disciplinada por norma constitucional. Com efeito, figura entre as garantias constitucionais fundamentais a prevista no inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Esse preceito constitucional se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Citando Reynaldo Porchat (Curso elementar de direito romano, v. I, p. 528), continua o Ministro Moreira Alves: Uma das doutrinas mais generalizadas, e que de longo tempo vem conquistando foros de verdade, é a que sustenta que são retroativas as leis de ordem pública ou as leis de direito público. Esse critério é, porém, inteiramente falso, tendo sido causa das maiores confusões na solução das questões de retroatividade. E continua ele: Com efeito, quer no campo do direito privado, quer no campo do direito público, a questão da aplicação da lei nova aos facta pendentia se resolve com a verificação da ocorrência, ou não no caso, de direito adquirido, de ato jurídico perfeito ou de coisa julgada. 17 Como as soluções, em matéria de direito intertemporal, nem sempre são coincidentes, conforme a teoria adotada, e não sendo a que ora está vigente em nosso sistema jurídico a teoria objetiva de Roubier, é preciso ter cuidado com a utilização indiscriminada dos critérios por este usados para resolver as diferentes questões de direito intertemporal. Um dos comentários mais significativos do acórdão é o seguinte: Essa distinção, em última análise, volta ao problema da retroatividade das leis de ordem pública (ou seja, das leis cogentes), pois são leis dessa natureza que, em direito privado ou em direito público, impõem às partes contratantes a adoção de cláusulas contratuais imperativas. Nem por isso essas cláusulas deixam de integrar o contrato, que, como ato jurídico perfeito, está a salvo das modificações posteriores que outras leis de ordem pública venham impor na redação dessas cláusulas. Volto a repetir o que já demonstrei: a norma constitucional impede a retroatividade da lei nova em face do ato jurídico perfeito, que, por não poder ser modificado retroativamente, tem os seus efeitos futuros resguardados da aplicação dessa lei. Ainda na Corte Constitucional e discorrendo sobre o mesmo tema, da intangibilidade do ato jurídico perfeito, pela lei nova, inclusive quanto a seus efeitos futuros, assim se manifestou o Ministro Celso de Mello, no AIAgRg 266.236/SP, cujo acórdão foi publicado no DJ de 03.02.2006: AGRAVO DE INSTRUMENTO - CADERNETA DE POUPANÇA - CONTRATO DE DEPÓSITO VALIDAMENTE CELEBRADO - ATO JURÍDICO PERFEITO - INTANGIBILIDADE CONSTITUCIONAL - CF/1988, ART. 5º, XXXVI - INAPLICABILIDADE DE LEI SUPERVENIENTE À DATA DA CELEBRAÇÃO DO CONTRATO DE DEPÓSITO, MESMO QUANTO AOS EFEITOS FUTUROS DECORRENTES DO AJUSTE NEGOCIAL 18 - RECURSO IMPROVIDO - Os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As consequências jurídicas que emergem de um ajuste negocial válido são regidas pela legislação em vigor no momento de sua pactuação. Os contratos - que se qualificam como atos jurídicos perfeitos (RT 547/215) acham-se protegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República. Doutrina e precedentes. A incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um contrato preexistente, precisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste negocial, reveste-se de caráter retroativo (retroatividade injusta de grau mínimo), achando-se desautorizada pela intangibilidade Precedentes. das situações (AI-AgRg cláusula constitucional que tutela a jurídicas 266.236/SP, definitivamente Rel. Min. Celso consolidadas. de Melo, DJ 03.02.2006) No Superior Tribunal de Justiça, encontraremos inúmeras manifestações doutrinárias, no mesmo sentido, da proteção do ato jurídico perfeito. Manifestando-se no REsp 809.329/RJ, o Ministro Castro Filho assim se expressou: Ora, o Código de Defesa do Consumidor estabelece normas de ordem pública e de interesse social, e, mesmo assim, tanto esta Corte como o Supremo Tribunal Federal já pacificaram o entendimento da impossibilidade de sua retroatividade a contratos firmados antes de seu advento. 19 Assim, a meu sentir, pela mesma e simples razão, tenho por inaplicável o Estatuto do Idoso aos contratos firmados antes de sua vigência. Não importa que se cuide de lei de ordem pública, porque mesmo estas também se submetem à norma constitucional que preserva o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Logo a seguir, ampara-se o Ministro em lição de Vicente Greco Filho (Comentários ao código de proteção ao consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 380), segundo o qual "as normas de intervencionismo contratual aplicam-se aos contratos celebrados a partir de sua vigência" (grifo nosso). Consta, ainda, de seu voto, o seguinte e esclarecedor comentário: Só o fato de se constituir lei de ordem pública e conferir benesse ao consumidor idoso não traz em si o condão de desconstituir os atos jurídicos formalizados sob a égide de norma anterior. Outrossim, pela suspensividade da nova lei, com vacatio legis de noventa dias após sua publicação (art. 118), mitigou-se a interpretação de conteúdo de aplicação imediata e intervencionista. Destarte, tratando-se de contrato legitimamente celebrado pelas partes, deve ser cumprido nos termos da lei contemporânea ao seu nascimento, regulando todos os seus efeitos, mesmo quanto aos eventos futuros já nele previstos, uma vez que ficam condicionados à lei vigente no momento de sua celebração. Aí, não há como invocar o efeito imediato que se quer dar pela lei nova. O eminente Ministro Humberto Gomes de Barros, também votando no recurso especial anteriormente citado, enriqueceu ainda mais a tese, para 20 afastar a incidência do Estatuto do Idoso aos contratos antes dele celebrados. De seu lapidar voto tiramos o seguinte trecho: No caso, a aplicação imediata do Estatuto do Idoso atingiria o ato jurídico perfeito, porque o contrato de cobertura de assistência médica e hospitalar já se havia consumado segundo a lei vigente ao tempo da pactuação. Seria, em substância, uma incidência retroativa. Inclusive os efeitos futuros do pacto estão a salvo das disposições impositivas do Estatuto do Idoso, pois a chamada "retroatividade mínima", que decorre da aplicação imediata das leis, prejudica o ato jurídico perfeito ao tangenciar efeitos futuros advindos de contratação consumada segundo a vigência de outra lei. E, logo a seguir, remata ele que "o Estatuto do Idoso não se aplica aos contratos consumados antes de sua vigência, porque constituem atos jurídicos perfeitos". Ressalte-se, por oportuno, que foram estes os fundamentos que levaram o Supremo Tribunal Federal a conceder medida liminar na ADIn 1931-8 contra dispositivos da Lei nº 9.656/1998, que, no entender do Relator, ofendiam o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, em razão de regras que atinjam contratos celebrados antes de sua vigência. Os dispositivos atacados, no caso, beneficiavam os consumidores, especialmente os idosos. Examinemos, agora, a posição do Tribunal do Rio do Janeiro, por meio de várias decisões de seus mais eminentes desembargadores: 21 APELAÇÃO CÍVEL - PLANO DE SAÚDE - REAJUSTE - FAIXA ETÁRIA ESTATUTO DO IDOSO - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - Ação proposta pelo rito sumário pretendendo a revisão de cláusula contratual em que se estipulou o reajuste das mensalidades de acordo com a faixa etária. A Lei nº 9.656/1998 faculta a variação das contraprestações pecuniárias em razão da idade do consumidor, vedando sua aplicação apenas nos contratos firmados há mais de 10 anos da vigência da lei no mesmo plano (art. 15, parágrafo único), o que não é o caso, pois o contrato fora celebrado em 1996. Da mesma forma, o contrato foi celebrado antes da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), quando não havia norma proibitiva de tal reajuste, não cabendo falar sobre retroatividade da lei, por mais social que seja. Falta de violação ao CDC. Ato jurídico perfeito. Provimento do recurso. (TJRJ, AC 2008.001.28471, 9ª C.Cív., Des. Marco Aurélio Froes, J. 27.01.2009) PLANO DE SAÚDE - MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA - REAJUSTE DA MENSALIDADE EM QUASE 90% - CONTRATO CELEBRADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 9.656/1998 - Implemento da idade de 60 anos na vigência da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), que, no art. 15, § 3º, vedou a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade. Aplicação da lei vigente na época da celebração do contrato (Lei nº 9.656/1998). Ato jurídico perfeito. Art. 5º, XXXVI, da CF. Direito adquirido da empresa ao reajuste. O implemento da idade constitui condição preestabelecida, inalterável a arbítrio da contratante. Art. 6º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil. Falta de demonstração de abusividade da cláusula de reajuste ou de violação do CDC. Valor inicial da prestação que, presumivelmente, levou em consideração o reajuste pela mudança de faixa etária. (TJRJ, AC 2006.001.49125, 15ª T., Des. André Andrade, J. 01.11.2006) No mesmo sentido, transcrevemos outros julgados proferidos por outros Tribunais estaduais: 22 REAJUSTE DE CUSTO E DE FAIXA ETÁRIA - CONTRATO FIRMADO ANTES DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI Nº 9.656/1998 - [...] Para os contratos firmados antes da entrada em vigor da Lei nº 9.656/1998 para aplicar reajuste de custo, é preciso que haja previsão contratual expressa. [...]. (TJRS, AC 70015186893, 6ª C.Cív., Rel. Des. Artur Arnildo Ludwig, J. 17.04.2008) PLANO DE SAÚDE - REAJUSTE - FAIXA ETÁRIA ACIMA DE 60% CLÁUSULA CONTRATUAL EXPRESSA - LEGALIDADE DA COBRANÇA Ao contratar se a parte já tinha conhecimento de que, ao completar 60 (sessenta) anos de idade, haveria um aumento em virtude da mudança de faixa etária, não se pode tachar de abusiva cláusula de reajuste, à luz do que prescreve o art. 51 do Código de Defesa do Consumidor, isto porque houve expressa previsão contratual para o reajuste da mensalidade em razão da mudança de faixa etária. (TJMG, AC 1.0382.06.065467-2/001, 16ª C.Cív., Rel. Des. Nicolau Masselli, Publ. 01.02.2008) PLANO DE SAÚDE - CONTRATO COLETIVO - CLÁUSULA DE REAJUSTE EXPRESSAMENTE PREVISTA - Se, em planos de saúde coletivos, há cláusula de reajuste expressamente pactuada para a alteração de faixa etária e, diante da análise do caso concreto, este reajuste não se mostra abusivo, não há que se falar em nulidade da cláusula, posto que a separação etária é permitida pela legislação de seguros de saúde e decorre do próprio sistema de riscos que compõem o cálculo do prêmio. (TJMG, AC 1.0382.03.026231-7/001, 9ª C.Cív., Rel. Des. Pedro Bernardes, Publ. 12.05.2007) ESTATUTO DO IDOSO - EFEITOS RETROATIVOS - IMPOSSIBILIDADE Os reajustes das mensalidades do plano de saúde, em razão de mudança de faixa etária, desde que expresso no contrato, não configuram abusividade, nos termos da Lei nº 9.656/1998. Não verificada abusividade 23 ou ilegalidade da cláusula de reajuste por faixa etária, os pedidos anulatório e consignatório devem ser julgados improcedentes. O Estatuto do Idoso não pode produzir efeitos retroativos para alcançar situação já consolidada sob a égide de uma ordem jurídica anterior. (TJMG, AC 1.0024.04.261889-2/002, 14ª C.Cív., Rel. Des. Renato Martins Jacob, publ. 30.03.2007) Especial destaque merece o acórdão do Agravo de Instrumento nº 540.281-4/4-00, de relatoria do Desembargador Guimarães e Souza, da Primeira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, datado de 16 de dezembro de 2008, o qual, com clareza exemplar, decidiu pela impossibilidade de concessão de tutela antecipada para abstenção de reajuste dos valores dos prêmios dos planos de saúde em razão da mudança da faixa etária do segurado, a partir dos 60 anos. Isso porque tal matéria demanda uma cognição mais aprofundada e, consequentemente, a necessária dilação probatória, não estando presentes os requisitos para o deferimento da antecipação da tutela, senão vejamos (in verbis): Recurso. Agravo de instrumento. Interposição contra decisão que deferiu a antecipação para "determinar que a ré se abstenha de reajustar os valores dos prêmios dos planos de saúde em razão da mudança da faixa etária do segurado a partir de 60 anos, para todos os contratos". Matéria que demanda dilação probatória. Requisitos para a antecipação da tutela ausentes por ora. Recurso provido. Referido acórdão ainda se manifestou quanto à impossibilidade da retroatividade da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), não podendo ela alcançar os contratos celebrados anteriormente a sua vigência, in verbis: 24 Assim sendo, mesmo que o Estatuto do Idoso seja - como é - norma cogente (impositiva e de ordem pública), isso não significa que haja a possibilidade de ser admitida exceção ao princípio da irretroatividade. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deixa claro que, para os contratos firmados antes do advento da Lei nº 9.656/1998, continuam em vigor as cláusulas e condições que foram livremente estipuladas pelas partes. No campo da doutrina também se manifestou sobre o tema o respeitado administrativista Professor Celso Antonio Bandeira de Mello, que não sustenta a aplicação imediata de uma lei pelo só fato de ser ela de ordem pública ou de direito público, referindo-se, expressamente, às situações subjetivas, como as contratuais, concluindo, em relação a estas: [...] b) os atos subjetivos (que geram situações jurídicas pessoais, concretas e subjetivas) acarretam o nascimento de direitos adquiridos e, portanto, inatingíveis pelas leis novas; [...]. (Ato administrativo e direitos dos administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 105 a 119) Antes de encerrar o estudo da matéria a que se refere a consulta, é imperioso considerar que a aplicação retroativa do Estatuto do Idoso pode gerar desequilíbrio da equação econômica dos contratos antigos - o que é fatal para a técnica dos seguros. Não se pode deixar de ter em mente que o rompimento do binômio comutativo do seguro afeta o fundo comum, colocando em risco todos os segurados. Os aspectos jurídicos não podem ser considerados isoladamente, devendo se conjugar com os técnicos e econômicos, sem o que se colocará em risco a higidez do mercado. 25 Nesse sentido, cabe trazer à baila a recentíssima decisão, datada de 11 de novembro de 2009, proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, na Suspensão de Liminar ou Antecipação de Tutela nº 2009.01.00.065422-0/MG, de relatoria do Desembargador Jirair Aram Meguerian, o qual deferiu o pedido de suspensão dos efeitos da decisão proferida pelo MM. Juízo Federal da 20ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais, nos autos da Ação Civil Pública nº 2009.38.00.020753-8/MG. A decisão, cujos efeitos foram suspensos, havia determinado à Agência Nacional de Saúde Suplementar que, no prazo de 30 dias a contar de sua intimação, promovesse a adequada alteração regulatória, de modo a assegurar que nenhum idoso, em todo o País, tivesse a sua contraprestação nos planos de saúde aumentada apenas em razão de atingir a idade de 60 anos. Com acerto, o Tribunal entendeu que a referida decisão não deveria prosperar, uma vez que tem o condão de causar grave lesão à ordem e à economia públicas, uma vez que obriga a agência reguladora a editar norma que surtirá efeitos em relação a terceiros, no caso, as empresas de planos de saúde, desestruturando todo o sistema de saúde complementar, o que levará necessariamente, ao reajuste nas mensalidades dos clientes que ainda não atingiram a idade de 60 anos, como forma de cobrir a diferença e possibilitar a continuidade da prestação dos serviços. É evidente que paira sobre o tema o seu conteúdo social, mas por isto mesmo se criou a Lei nº 9.656/1998 e o Estatuto do Idoso, que atenderam aos interesses das partes mais vulneráveis, que são os segurados, mas que não podem, só por isto, ferir de morte o princípio da irretroatividade, tão arraigado na cultura jurídica brasileira. 26 De todo o exposto, concluímos a resposta à 1ª indagação no sentido de ser extremamente polêmica a matéria, em razão das divergências doutrinárias e pretorianas, prevalecendo, entretanto, a tese segundo a qual os efeitos ainda não produzidos pelos contratos de trato sucessivo, de execução continuada, que não se confundem com os que estão vigendo por tempo indeterminado, continuam subsumidos à lei do tempo em que foram celebrados, permanecendo intangíveis pela lei nova. Com efeito, a despeito de ser inegável que os contratos de planos de saúde são de trato sucessivo e que o Estatuto do Idoso é norma cogente, isso não é motivo, com a devida vênia, para permitir que a proteção ao idoso instituída pela Lei nº 10.741/2003 possa alcançar contratos celebrados anteriormente à vigência desse diploma legal. Portanto, não há que se falar em retroatividade do Estatuto do Idoso, para alcançar os contratos celebrados anteriormente a sua vigência, tendo em vista o respeito ao princípio da irretroatividade. VI - DA AGÊNCIA REGULADORA - ANS Quanto à 2ª indagação, já tivemos a oportunidade de observar, anteriormente, que a ANS, sendo uma agência reguladora, não se destina a proteger o segurado, tal como acontece com o Código de Defesa do Consumidor. No Brasil, as Agências Reguladoras são consideradas um instituto novo, surgindo apenas a partir da década de 1990, em um contexto de desregulamentação e desestatização de setores do Estado. 27 A Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, a qual interessa para o desenvolvimento do presente parecer, foi instituída pela Lei nº 9.961/2000 e regulamentada pelo Decreto nº 3.327/2000. Conforme disposto no art. 1º de sua lei de origem, a ANS é órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde, uma vez que os serviços de saúde podem ser fornecidos tanto pelo Poder Público (em caráter obrigatório) como pela iniciativa privada (como atividade econômica). Para o desenvolvimento desse mister, são assegurados à ANS amplos poderes normativos, inclusive sobre as relações contratuais entre os indivíduos e as empresas de saúde, conforme previsto nos incisos do art. 4º da referida lei: Art. 4º Compete à ANS: I - propor políticas e diretrizes gerais ao Conselho Nacional de Saúde Suplementar - Consu para a regulação do setor de saúde suplementar; II - estabelecer as características gerais dos instrumentos contratuais utilizados na atividade das operadoras; [...] XVII - autorizar reajustes e revisões das contraprestações pecuniárias dos planos privados de assistência à saúde, ouvido o Ministério da Fazenda; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001) [...] XX - autorizar o registro dos planos privados de assistência à saúde; [...] XXI - monitorar a evolução dos preços de planos de assistência à saúde, seus prestadores de serviços, e respectivos componentes e insumos; [...] 28 O mesmo entendimento é adotado pelo ilustre Professor Marcos Juruena Villela Souto: Já no campo dos serviços fornecidos pela iniciativa privada, o Estado atua como regulador normativo e fiscalizador dos contratos firmados entre os operadores de saúde e os consumidores; é que esses contratos relacionais, de duração continuada, envolvem uma parte vulnerável, que precisa ser protegida em função da essencialidade do serviço, cabendo ao Estado regulador a constante atualização das normas de proteção. (Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 145) Utilizando-se de suas atribuições legais, a ANS editou, em 03.11.1998, a Resolução Consu nº 6, que dispõe sobre critérios e parâmetros de variação das faixas etárias dos consumidores para efeito de cobrança diferenciada, bem como de limite máximo de variação de valores entre as faixas etárias definidas para planos e seguros de assistência à saúde. A citada Resolução estabelece o seguinte: Art. 1º Para efeito do disposto no art. 15 de Lei nº 9.656/1998, as variações das contraprestações pecuniárias em razão da idade do usuário e de seus dependentes, obrigatoriamente, deverão ser estabelecidas nos contratos de planos ou seguros privados a assistência à saúde, observando-se o máximo de 7 (sete) faixas, conforme discriminação abaixo: I - 0 (zero) a 17 (dezessete) anos de idade; II - 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) anos de idade; III - 30 (trinta) a 39 (trinta e nove) anos de idade; IV - 40 (quarenta) a 49 (quarenta e nove) anos de idade; V - 50 (cinquenta) a 59 (cinquenta e nove) anos de idade; VI - 60 (sessenta) a 69 (sessenta e nove) anos de idade; 29 VII - 70 (setenta) anos de idade ou mais. Art. 2º As operadoras de planos e seguros privados de assistência à saúde poderão adotar por critérios próprios os valores e fatores de acréscimos das contraprestações entre as faixas etárias, desde que o valor fixado para a faixa etária prevista no inciso VII do art. 1º desta Resolução, não seja superior a seis vezes o valor da faixa etária prevista no inciso I do art. 1º desta Resolução. § 1º A variação de valor na contraprestação pecuniária não poderá atingir o usuário com mais de 60 (sessenta) anos de idade, que participa do um plano ou seguro há mais de 10 (dez) anos, conforme estabelecido na Lei nº 9.656/1998. § 2º A contagem do prazo estabelecido no parágrafo anterior deverá considerar cumulativamente os períodos de dois ou mais planos ou seguros, quando sucessivos e ininterruptos, numa mesma operadora, independentemente de eventual alteração em sua denominação social, controle empresarial, ou na sua administração, desde que caracterizada a sucessão. Art. 3º É vedada a concessão de descontos ou vantagens especificamente delimitados em prazos contratuais ou em função de idade do consumidor. Art. 4º O valor atribuído de contraprestação para cada faixa etária dos titulares e dependentes, dentro do limite previsto nos artigos anteriores, deverá ser previamente esclarecido e constar expressamente do instrumento contratual. [...] Art. 6º Aplicam-se as disposições desta Resolução aos contratos celebrados na vigência da Lei nº 9656/1998, de 3 de junho de 1998, e aos existentes anteriores a sua vigência, a partir das respectivas adaptações. (grifos nossos) 30 Portanto, nos termos do art. 1º da Resolução Consu nº 6, cabe à ANS autorizar reajustes para pessoas acima de 60 anos e somente para os planos individuais novos, ou seja, aqueles que tenham sido firmados após o início de vigência da Lei nº 9.656/1998. Aliás, nada mais lógico, uma vez que a principal característica das Agências Reguladoras é o conhecimento técnico, que proporciona agilidade para atuação no mercado. Sendo que, como o mercado de plano de saúde exige um vasto conhecimento técnico, por se tratar de um contrato de risco, envolvendo complexos cálculos atuariais, nada mais apropriado do que a regulação da ANS em relação aos aumentos dos planos. Com o advento do Estatuto do Idoso, em 1º de janeiro de 2004, restaram proibidos os reajustes para pessoas com mais de 60 anos, e novas regras foram aprovadas pela ANS, ao editar a Resolução Normativa nº 63, pois o limite máximo para aumento passou a ser aplicado aos 59 anos. A referida Resolução Normativa nº 63 determina que o número de faixas etárias seja aumentado de sete para 10 e o intervalo entre elas seja de cinco anos (e não mais de dez anos), sendo que o valor para a última faixa etária poderá ser, no máximo, seis vezes superior ao valor da faixa inicial. Entretanto, pelas mesmas razões já expedidas na resposta ao primeiro quesito, o Estatuto do Idoso não se aplica aos contratos celebrados anteriormente a sua entrada em vigor, devendo o contrato legitimamente celebrado pelas partes, em consonância inclusive com as 31 normas da ANS vigentes há época, ser cumprido nos termos da lei contemporânea ao seu nascimento. VII - ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS A terceira indagação escapa ao âmbito de um parecer jurídico, já que interfere no conteúdo das sentenças, o que cabe, com exclusividade, ao Poder Judiciário. Mas é evidente que qualquer decisão que envolva contratos de seguro deverá considerar os seus aspectos técnicos e atuariais. E isto porque, como já se disse antes, a fixação dos valores das contribuições e os cálculos atuariais, que dão sustentação econômica aos contratos, obedece a sofisticada técnica, lastreada em estudos específicos, tendo em mira a preservação do fundo do seguro. Daí a necessária ingerência da ANS, com a emissão de "notas técnicas", criando faixas etárias e percentuais, para assegurar o equilíbrio da equação econômica do contrato, sem se deixar seduzir por um perigoso "paternalismo" em favor dos consumidores, que, em vez de protegê-los, acabarão, a longo prazo, por prejudicar a todos, diante da superveniente inviabilidade econômica do sistema. Decisões judiciais que, sem sólido apoio técnico, alteram esta equação prevista no contrato ou na regulamentação afastam-se, a nosso aviso, não só da melhor doutrina, como da realidade de um mercado que se apresenta multifacetado, não podendo ser as suas regras interpretadas apenas sob o aspecto individual, não se perdendo de vista o interesse coletivo. 32 Portanto, é indiscutível que as decisões judiciais sobre o tema da presente consulta devem atender ao princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. Não nos parece ser razoável que uma decisão determine um reajuste de 0% diante do fato de que a operadora de plano de saúde, ao estabelecer o valor da contraprestação que espera receber de seu associado, considera a situação presente e aquilo que é previsível no futuro, ou seja, quanto maior a idade, provavelmente, maiores serão os gastos com saúde. Daí a necessidade de proporcionalidade e razoabilidade do reajuste a ser adotado. Assim sendo, decisões judiciais que não atentem para o princípio da razoabilidade e proporcionalidade poderão gerar um indesejável e perigoso desequilíbrio financeiro para as operadoras de plano de saúde, com forte probabilidade de acabar inviabilizando o atendimento de todos os beneficiários. VIII - O CDC E A ABUSIVIDADE DAS CLÁUSULAS A última indagação é das mais atuais e instigantes envolvendo a aplicação do CDC na interpretação da abusividade de índices de reajuste, indicando-se que critérios devem ser adotados para que se possa considerar abusivo o percentual. A ordem jurídica implantada após o advento da Constituição Federal de 1988 deu origem a um direito principiológico, que se agastou definitivamente do velho sistema do positivismo estrito, que aprisionava o juiz no texto da lei. 33 Deixaram de ser os Magistrados apenas la bouche de la loi, como queria Montesquieu, para se converterem nos verdadeiros solucionadores dos conflitos de interesses a eles submetidos. O individualismo e o patrimonialismo que caracterizam o direito do século XIX, no qual se inspirou o Código de Bevilacqua, cederam lugar à socialidade e à solidariedade social. Iniciou-se, em decorrência disso, o fenômeno da constitucionalização do direito privado, ou seja, a sua releitura pela ótica dos preceitos constitucionais. Toda a nova ordem jurídica é hoje inspirada por valores ou princípios fundamentais, que devem pairar, soberanamente, sobre o texto da lei. E entre estes paradigmas estão o da função social do direito e o da boa-fé objetiva. O primeiro diz respeito à transformação do direito em poderoso instrumento de construção de uma sociedade mais justa, fraterna e solidária. O segundo, que é uma grande janela que se abriu a uma nova dimensão ética, exige de todos uma conduta honesta, leal, transparente, cujo modelo é o de um homem probo. Estes dois paradigmas, aliados ao da efetividade do direito, desaguaram no Código de Defesa do Consumidor, em 1990, e no Código Civil, em 2002. Em homenagem ao princípio da boa-fé objetiva, passou-se a exigir que os contratos onerosos se assentassem, durante toda a sua vida, em uma equação econômica justa e equilibrada. 34 Para que este ideal fosse alcançado, era preciso assegurar, além da liberdade das partes, uma igualdade real, e não apenas formal. Na impossibilidade de se homogeneizar a sociedade, transformando em iguais todos os seus membros, a solução para que se impedisse a supremacia dos interesses da parte mais forte foi a do dirigismo contratual, que torna juridicamente mais forte o que é econômica ou tecnicamente mais fraco. O Estado abandonou sua postura olímpica de mero expectador da formulação dos contratos, para sobre eles atuar interferindo em seu conteúdo. Na relação consumerista, tríplice é a vulnerabilidade do consumidor, frente ao fornecedor, sob os aspectos econômicos, técnicos e fáticos. Daí por que os legisladores constituintes inseriram na Carta Magna um comando para que se elaborasse uma legislação infraconstitucional que disciplinasse as relações de consumo, e do qual resultou a Lei nº 8.078/1990, que é o Código de Defesa do Consumidor. É evidente que a mens legis foi a de criar um sistema de proteção inspirado pelos já citados paradigmas da função social e da boa-fé objetiva. Toda a política oficial de consumo hoje se assenta no princípio do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, estabelecendo-se que as relações de consumo devem se desenvolver segundo as regras da boafé. 35 Para se atingir tal objetivo, o art. 6º da Lei nº 8.078/1990 elencou direitos fundamentais do consumidor, inafastáveis pela vontade das partes. E no art. 51 tipificou cláusulas consideradas abusivas, fulminadas no nascedouro pela sanção de nulidade absoluta. O elenco do art. 51 não é submetido ao princípio do numerus clausus, sendo, ao contrário, meramente enunciativo. Para isso, impunha-se fornecer ao julgador e ao intérprete um conceito genérico de abusividade. Assim é que se considera abusiva a cláusula que se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso. Diante do caso concreto, caberá ao julgador verificar se determinada cláusula se enquadra na moldura constituída pelo Código. A jurisprudência já é copiosa a respeito do tema, e, em linhas gerais, segue a mesma técnica. Nesse sentido, lapidar é o recente acórdão proferido pela 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, datado de 12.01.2009, cuja Relatora foi a ilustre Desembargadora Suimei Meira Cavalieri: REVISIONAL DE PLANO DE SAÚDE - REAJUSTE POR FAIXA ETÁRIA ESTATUTO DO IDOSO - A questão que se coloca nos autos é saber se o art. 15, § 3º, do Estatuto do Idoso poderia incidir prospectivamente nos contratos celebrados antes de sua entrada em vigor (alcançando, inclusive, os contratos ditos "antigos", anteriores à Lei nº 9.656/1998), ou se, assim, estaria a violar o ato jurídico perfeito, tal como decidido pelo STF ao 36 suspender a eficácia do art. 35-E da Lei nº 9.656/1998 (ADIn 1931/DF). Consoante a melhor exegese, não é a simples majoração do prêmio que traduz a discriminação do idoso que a lei procura combater, mas sim a majoração abusiva, irrazoável, imotivada; é a utilização do fator idade como pretexto para o aumento do plano de saúde. Com isso, o estatuto nada mais fez do que especializar e tornar mais evidente a norma já contida no art. 51, IV, e § 1º, III, do Código de Defesa do Consumidor. No caso concreto, o reajuste questionado pela autora, referente ao último patamar etário, girou em torno de 39%, não denotando uma conduta abusiva por parte da ré, pois encontra paralelo com o maior risco de sinistro em função da senectude e a necessidade de manutenção do equilíbrio contratual. Somente caberia declarar nulas tais cláusulas se patenteassem um extravagante aumento do prêmio de uma faixa etária para outra, o que não é a hipótese. Mesmo em nome da hipossuficiência da consumidora, seria particularmente afrontoso à segurança jurídica anular uma estipulação contratual inequívoca, prevista e aceita há mais de dez anos justamente no momento em que a operadora do plano vem assumir maiores riscos. Parcial provimento do recurso da parte ré. (TJRJ, Apelação Cível nº 2008.001.560-41, 6ª Câmara Cível, Relª Desª Suimei Meira Cavalieri, 12.01.2009) (grifo nosso) Não há que se confundir, nos contratos de seguro, as cláusulas restritivas de direitos, com as abusivas. As primeiras limitam os riscos, o que é da essência do seguro, enquanto que as segundas limitam a responsabilidade. Tanto é verdade que as cláusulas restritivas são admitidas pelo Código do Consumidor, que só exige que apareçam em destaque. O estabelecimento de faixas etárias, influindo no cálculo das prestações, objetiva, exatamente, limitar o risco, e jamais responsabilidade da seguradora ou operadora do plano de saúde. 37 a A adoção, pelo atual Código Civil, da técnica das "cláusulas abertas" impõe ao juiz um desafio, que é o de encontrar a solução mais adequada ao caso concreto, que lhe é submetido. Não há mais standards a direcionar o juiz, que se transforma atualmente no verdadeiro solucionador do conflito de interesse. Exemplo perfeito de cláusula aberta é o conceito anteriormente referido de abusividade. O simples fato de ter o Código do Consumidor, em boa hora, reconhecido a vulnerabilidade do consumidor, com a consequente necessidade de protegê-lo, não significa que tenha sido abolido o princípio da autonomia privada. No contrato de seguro, a equação econômica que o sustenta é bem mais complexa, e do seu razoável equilíbrio depende a própria vida do sistema de proteção. A pergunta que nos faz a consulta é desafiadora, e pode ser assim resumida: quais são os elementos que permitem a identificação da abusividade das cláusulas contratuais, e como é possível defini-las? Não se pode perder de vista que o contrato de plano de saúde é de natureza onerosa, o que significa que nele está inserido o conhecido binômio "prestação x contraprestação". Ambas as partes perseguem um interesse econômico, e o princípio geral da boa-fé exige que o referido binômio se mantenha razoavelmente equilibrado. 38 Para que possamos considerar abusiva uma cláusula contratual, de natureza econômica, é preciso que se apresente ela como notoriamente desfavorável à parte considerada vulnerável. Também nos parece indispensável examinar se a parte supostamente favorecida exerceu, de forma irregular, a sua liberdade de contratar, violando o princípio da confiança e a justa expectativa da parte contrária. Não é por simples acaso que o inciso IV do art. 51 do Código de Defesa do Consumidor inclui no rol das cláusulas abusivas as que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou equidade". Ao incluir, no conceito, a referência à boa-fé e à equidade, pretendeu o legislador abrir ao Judiciário uma larga avenida, para que o juiz pudesse aferir, em cada caso, se foram ultrapassados os seus limites, ou se, ao contrário, as peculiaridades do contrato admitem a equação econômica adotada. De igual modo é o objetivo do inciso II do § 1º do art. 51, que também considera abusiva a cláusula que "restringe direitos ou obrigações fundamentais, inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual". Estes conceitos gerais obrigam o juiz a mergulhar no contrato, levantando a ponta do véu que o encobre, como dizem os juristas alemães, para aferir a sua equação econômica, e se foi ela ameaçada, caso seja suprimida a cláusula que se acusa de abusiva. 39 O novo Código, como se sabe, ao incorporar os paradigmas da função social e da boa-fé, encerrou milenar polêmica, consistente em se saber se o abuso de direito tipificava ato ilícito. O art. 187 espancou, em definitivo, qualquer dúvida que ainda pudesse subsistir, equiparando ao ato ilícito o abuso de direito, criando, assim, uma outra cláusula geral de responsabilidade civil. Mas considera caracterizado o comportamento abusivo quando o titular de um direito o exerce, excedendo manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Não será difícil perceber que, ao aludir a "exceder de maneira manifesta os seus limites", o legislador repeliu os estereótipos, deixando, uma vez mais, ao julgador a responsabilidade de, diante do caso concreto, identificar o abuso tipificador da ilicitude da conduta do agente. Muitos outros são os exemplos constantes do novo Código quanto à presença das cláusulas abertas. Ao definir o vício da lesão, no art. 157, o legislador dispõe que está caracterizado quando "uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga à prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta" (grifo nosso). No art. 317, que prevê a correção do valor real da prestação pecuniária, a lei se refere à "desproporção manifesta". E ao tratar da onerosidade excessiva como causa de resolução do contrato, só admite quando um fato superveniente e imprevisível o tornar "excessivamente oneroso, com extrema desvantagem para a outra parte". 40 Como se vê, não há critérios objetivos, nem fórmulas matemáticas, para se aferir a abusividade de uma cláusula contratual. O julgador terá que se valer dos princípios gerais da boa-fé, da função social e da equidade, para chegar à sua conclusão, mas sem perder de vista os velhos dogmas da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda, que foram relativizados, mas não abolidos. Também serão de grande valia, para a identificação da abusividade os princípios de lealdade, da informação e, acima de tudo, da confiança, que, em última análise, são figuras parcelares da boa-fé objetiva. Na hipótese da consulta temos que considerar as peculiaridades do contrato de seguro ou do plano de saúde e o seu instável equilíbrio econômico. Não se trata de um contrato tipicamente comutativo, como a compra e venda ou locação, em que é bem mais fácil aferir o equilíbrio entre a prestação e a contraprestação. No seguro, em razão da álea que o envolve, a equação econômica é muito mais sofisticada, e a sua alteração feita de maneira atécnica pode levá-lo ao fim. Isto explica o constante dirigismo contratual exercido pelo Estado no mercado segurador, inclusive com a fiscalização permanente da Susep. Também não foi por acaso que se criou a ANS, para regular o mercado, interferindo diretamente no conteúdo econômico dos contratos, podendo fixar ou modificar alíquotas, faixas etárias e tudo mais que esteja umbilicalmente ligado ao seu equilíbrio econômico. 41 Estamos firmemente convencidos do risco que representa interpretar os contratos de seguro ou planos de saúde apenas pela ótica da socialidade. Uma análise superficial, ou emotiva, do contrato de seguro pode inviabilizar todo o sistema, o que traduzirá verdadeira catástrofe social, em razão da notória falência da assistência médica do Estado. As decisões judiciais, como já tivemos a oportunidade de aludir, têm que levar em conta os aspectos técnicos e econômicos, razão pela qual realmente pode ser temerária a decisão que invalidar por completo a aplicação de um determinado reajuste. Conforme informou a consulente, existem índices de reajustes aplicados quando há alteração de faixa etária do associado que atingem patamares que ultrapassam 100% (cem por cento). Ora, ainda que este índice, por hipótese, possa ser considerado abusivo, será justo o Magistrado fixar um índice de 0%, 10% ou 20%? Será que nesta hipótese o desequilíbrio não estaria sendo invertido em prejuízo da operadora de planos de saúde, o que, em última instância, representaria um desequilíbrio de todo o sistema? A última indagação, que ora tentamos responder, encerra-se com a instigante questão de se saber a partir de quando um percentual de reajuste pode ser considerado abusivo ou não. Como vimos é evidente que não há um percentual fixo, um critério objetivo. Parece-nos, entretanto, que o limite se definirá não só pelos órgãos oficiais que regulam o sistema, como pela própria necessidade de se manter o equilíbrio do sistema dos seguros. A questão das faixas etárias, por exemplo, de transcendental importância para os planos de saúde, tem que ser enfrentada com uma 42 visão ampliada, para se preservar o cálculo atuarial que serviu de base para a fixação das mensalidades. A perspectiva do todo deve superar o da individual, sob pena de se colocar em risco os demais segurados, diante de eventual inviabilidade do sistema. É evidente que a cláusula deverá ser considerada abusiva se estiverem presentes os pressupostos elencados nos já citados dispositivos do Código do Consumidor, colocando o segurado em manifesta desvantagem e produzindo excessivo proveito ao fornecedor do serviço. Se, no momento da contratação, foi claramente informado à parte que, ao completar 60 anos de idade, haveria um aumento da mensalidade, pelo evidente e natural agravamento do risco, não há como se taxar de abusiva a cláusula. Os princípios da informação e da confiança foram plenamente atendidos, sendo justificável a adoção do reajuste em virtude da natureza do seguro. Não se afigura ofensiva a cláusula contratual de reajuste de mensalidade em razão de ingresso em faixa etária superior, já que os riscos à saúde são abstratamente maiores. Esta é a própria lógica do sistema de seguros milenarmente consolidada, e que não se pode alterar, de modo a afetar contratos passados. 43 CONCLUSÕES Respondidas as quatro indagações que nos foram dirigidas, podemos resumir as conclusões a que chegamos: a) os contratos de execução continuada ou de trato sucessivo submetemse, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração; b) a incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um contrato preexistente, precisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste negocial, reveste-se de caráter retroativo, sendo desautorizada pela cláusula constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas definitivamente consolidadas, segundo o Ministro Moreira Alves; c) no Direito brasileiro, a questão da irretroatividade da lei é disciplinada por norma constitucional, aplicando-se o preceito a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva; d) em consequência, o Estatuto do Idoso não pode deitar as suas luzes sobre os contratos antes dele celebrados, sob pena de violar a garantia constitucional de irretroatividade da lei, além de gerar insegurança jurídica com o rompimento do equilíbrio econômico dos contratos; e) a Superintendência de Seguros Privados - Susep era, na época, competente para aprovar reajustes de mensalidades para pessoas de idade superior a 60 anos para planos antigos, e a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS era competente para autorizar reajustes de mensalidades para pessoas de idade superior a 60 anos para os planos novos, que foram comercializados entre 2 de janeiro de 1999 (início de vigência da Lei nº 9.656/1998) e 31 de dezembro de 2003 (dia anterior a 44 validade do Estatuto do Idoso), em decorrência de seu conhecimento técnico; f) as decisões judiciais que envolvem matéria atinente aos seguros e planos de saúde devem considerar também os aspectos técnicos e econômicos do contrato, em razão de sua complexidade e para que não se inviabilize o sistema, que se assenta nos cálculos atuariais e probabilidades de sinistros; g) o conceito de cláusula abusiva não é objetivo e não obedece a fórmulas matemáticas, tratando-se de cláusula aberta a ser preenchida pelo julgador, diante do caso concreto, devendo o eminente julgador, nessa hipótese, aplicar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade; h) as cláusulas restritivas de direitos e que fixam mensalidades em razão de faixa etária nada têm de abusivas, atendendo ao caráter do negócio, ainda mais tendo sido levadas ao conhecimento do contratante, de maneira clara. 45