CONTRATOS DE SEGURO - APLICAÇÃO DA LEI Nº
10.741/2003 - ESTATUTO DO IDOSO
Sylvio Capanema de Souza
A consulente, por meio de seu eminente superintendente jurídico,
honrou-nos com pedido de elaboração de parecer jurídico que, em resumo,
refere-se à aplicação da Lei nº 10.741/2003 - Estatuto do Idoso aos
contratos de seguros de saúde, também conhecidos entre nós como
"planos de saúde", celebrados antes de sua vigência.
Após minucioso exame da matéria a que nos foi submetida e da
documentação pertinente, decidimos aceitar a incumbência, motivados,
intelectualmente, pela instigante questão que a consulta envolve e que diz
respeito aos limites intertemporais da norma jurídica.
Passamos, assim, a emitir nossa opinião legal, na esperança de
poder contribuir para o melhor entendimento da questão.
I - DA HIPÓTESE VERSADA NA CONSULTA
Os planos de saúde, até 1998, não eram disciplinados por qualquer
legislação especial, subsumindo-se às regras gerais previstas no Código
de Defesa do Consumidor, já que, inequivocamente, tipifica-se como de
consumo
a
relação
estabelecida
entre
pacientes
e
operadoras
ou
seguradoras.
O aquecimento do mercado, em decorrência da notória falência do
Estado em assegurar assistência médica digna a todos os cidadãos,
provocou o surgimento cada vez maior de conflitos entre as partes
1
contratantes, que desaguavam no Poder Judiciário, gerando insegurança e
perplexidades.
Elaborou-se, então, a lei específica, que é a de nº 9.656/1998, que
passou a atuar em sintonia com o Código de Defesa do Consumidor.
A experiência demonstrou que restaram frustrados os seus objetivos,
não tendo a legislação logrado reduzir os conflitos, multiplicando-se as
reclamações dirigidas aos Procons e ao Judiciário.
No ano de 2000, com o advento de uma Agência Reguladora, a ANS,
procurou-se normatizar o sistema, conferindo-lhe maior estabilidade e
segurança jurídica, tendo em vista a extraordinária densidade social e
econômica do mercado.
Várias
resoluções
e
portarias
foram
editadas,
modificando-se
continuamente o sistema, com a criação de novas faixas etárias e
estimulando-se a adaptação dos chamados "contratos antigos", celebrados
antes do surgimento da Lei nº 9.656/1998.
Em
que
reguladora,
pesem
ainda
não
os
efeitos
se
obteve
positivos
da
desejável
atuação
equilíbrio
da
do
agência
sistema,
persistindo algumas divergências doutrinárias e jurisprudenciais, que ainda
o afetam, em prejuízo das partes contratantes.
A torturante matéria ainda mais se tumultuou com o advento da Lei
nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, o Estatuto do Idoso, que, em seu art.
15, § 3º, veda a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança
de valores diferenciados em razão da idade.
Em decorrência, três situações distintas passaram a coexistir no
mercado dos planos de saúde:
2
a) contratos firmados antes do advento da Lei nº 9.656/1998, não
regulamentados e que não poderão ser fiscalizados ou regulados pela
ANS, conforme decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn
1931-8, em 21.08.2003;
b) contratos firmados sob o império da Lei nº 9.656/1998, até o advento do
Estatuto do Idoso, e que a ela se subsumem, criando-se sete faixas
etárias, de zero a setenta anos ou mais, para efeito do cálculo atuarial das
contraprestações, sendo que a última faixa etária não poderá ter valor
superior a seis vezes o valor da primeira;
c) contratos firmados sob a vigência do Estatuto do Idoso, que estabeleceu
dez faixas etárias, em vez das sete anteriores, referindo-se a última aos
maiores de 59 anos.
A construção pretoriana e doutrinária tem se mostrado vacilante
quanto à aplicação das regras da Lei nº 10.741/2003 aos contratos antes
dela celebrados.
O cerne da controvérsia reside em se saber se, ao se estender o
regime
jurídico
do
Estatuto
do
Idoso
aos
contratos
precedentes,
estaríamos a ele atribuindo efeito retroativo, vedado constitucionalmente,
ou se, ao contrário, tratar-se-ia de um efeito imediato e geral da lei nova, a
que alguns autores denominam de "retroatividade mínima".
Como se vê, a questão, sob o enfoque puramente jurídico, refere-se
apenas ao conflito intertemporal das normas jurídicas, que constitui um
dos temas mais polêmicos do vasto mundo do Direito.
3
II - DO OBJETO DA CONSULTA
Diante da insegurança jurídica gerada pelas vacilações pretorianas,
que desequilibram o mercado, colocando em risco o próprio sistema dos
seguros e planos de saúde, que é o de maior densidade social e
econômica, a consulente nos indaga se as regras do Estatuto do Idoso se
aplicariam aos contratos celebrados antes de sua vigência.
Ressalte-se, antes de mais nada, que não serão objeto de nossa
resposta os aspectos técnicos do problema, envolvendo os cálculos
atuariais, para fixação dos prêmios.
Todos sabemos que os contratos de seguro envolvem sofisticadas
técnicas,
ancorando-se
na
ideia
do
mutualismo
e
do
cálculo
das
probabilidades de sinistros.
Cabe à difícil ciência da atuária calcular, em cada espécie, o grau de
risco assumido pela seguradora, em decorrência do número provável de
sinistros que deverão ocorrer em certo tempo, para que se possa fixar a
contraprestação a ser paga pelos segurados, e necessária para se formar
o fundo, que a todos eles pertence, e do qual serão retiradas as
indenizações devidas aos que, escolhidos pelo destino, foram vítimas do
sinistro.
O
equilíbrio
desse
sistema,
indispensável
ao
seu
normal
funcionamento, exige a preservação do "fundo do seguro", razão pela qual
quanto maior o risco, maior tem que ser o prêmio.
Não é preciso ser um técnico, bastando a experiência comum dos
fatos da vida para nos convencer de que, em se tratando de seguros ou
planos de saúde, quanto maior é a faixa etária do participante, maior é o
4
risco de vir a adoecer e necessitar de cuidados médicos, cada vez mais
onerosos e sofisticados.
Além disso, existem estudos (pareceres em anexo) de órgãos
especializados que comprovam que os gastos per capita em saúde com
pessoas com mais de 75 anos são 7,5 vezes superiores do que para os
jovens de 15 a 19 anos de idade.
Daí ser impossível, sob pena de inexorável falência do sistema,
criar-se uma contraprestação única, igual para jovens e idosos.
Mas tudo isto pertence ao mundo da atuária e da técnica do seguro,
território para nós escorregadio e pantanoso, no qual jamais ousaríamos
adentrar.
Sobre
esses
aspectos
técnicos,
tivemos
oportunidade
de
ler
substancioso Parecer intitulado "Diferenciação de risco e mensalidade ou
prêmio entre faixas etárias em planos e seguros de saúde", elaborado pela
Fipecafi
-
Fundação
Instituto
de
Pesquisas
Contábeis,
Atuariais
e
Financeiras -, de autoria dos especialistas Drs. Iran Siqueira Lima, Luiz
Augusto Ferreira Carneiro, Dânae Dal Bianco e Renata da Silva Mendes, e
que muito nos auxiliou para a exata compreensão do tema.
Tão importante é a conjugação dos aspectos técnicos e jurídicos,
que se interpenetram, que nos parece conveniente anexar a este parecer
aquele outro, anteriormente referido.
Ficam, assim, determinados os limites e objetivos do presente
parecer.
5
III - DOS QUESITOS
Quatro grandes indagações, e não propriamente quesitos, nos foram
formuladas.
A primeira, e mais importante, diz respeito à possibilidade ou
impossibilidade de o regime jurídico do Estatuto do Idoso aplicar-se aos
contratos firmados antes de sua vigência.
A segunda refere-se à legitimidade da ANS para fixar os percentuais
de reajustes nestes contratos, de forma diversa aos neles estabelecidos
pelas partes.
A terceira, mais delicada, nos pede avaliar se decisões judiciais que
não enfoquem aspectos periciais e atuariais podem contrariar percentuais
de reajuste por mudança de faixa etária.
Finalmente,
a
quarta
indagação
versa
sobre
o
conceito
de
abusividade dos índices de reajuste, à luz do direito consumerista,
questionando-se a partir de que patamar se pode considerar abusivo o
índice pactuado.
Estas são as questões a serem examinadas a seguir.
IV - DA QUESTÃO DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS
Na feliz expressão do Professor Haroldo Valadão, de quem tivemos a
honra de sermos alunos, a norma jurídica se apresenta em duas
coordenadas fundamentais: o tempo e o espaço.
6
A partir do momento em que passa a viger, a sua eficácia define-se
em três dimensões: a primeira no sentido material, a segunda do ponto de
vista temporal e a terceira de caráter espacial.
Toda lei tem um tempo de vida e um território sobre o qual atua.
A consequência inevitável da mobilidade da norma jurídica, nessas
duas coordenadas, é o surgimento dos conflitos de leis.
No aspecto temporal, o conflito ocorre quando uma lei nova
disciplina um fato ou uma relação jurídica, de modo diverso daquele que
fazia a lei antiga.
No espaço, instala-se o conflito quando a mesma relação jurídica
estende os seus efeitos a sistemas diferentes, sob o aspecto territorial, e o
estudo de sua solução incumbe ao direito internacional privado.
Como se vê, o conflito intertemporal ocorre entre duas leis: uma,
anterior, revogada; a outra, posterior, vigente.
Diante da mobilidade social, três situações podem ocorrer:
a) a situação jurídica nasce e se consuma, exaurindo todos os seus efeitos
sob o império da lei anterior, quando, então, nenhuma influência exercerá
sobre ela a lei nova; são as chamadas "situações pretéritas";
b) a situação jurídica nasce e se desenvolve já sob o império da lei nova,
que regerá todos os seus efeitos, naquilo que se convencionou denominar
de "situações futuras";
7
c) a situação jurídica nasce sob o império da lei anterior, mas é colhida,
em pleno voo, pela lei nova, que alcança os seus efeitos ainda não
produzidos; são as chamadas "situações pendentes".
Nas duas primeiras hipóteses, nenhum conflito ocorrerá, mas, na
última, são enormes as dificuldades suscitadas e que há milênios desafiam
a argúcia dos juristas.
Desde a antiguidade, orientou-se o direito em direção ao princípio da
irretroatividade da lei nova, como imperativo da segurança jurídica.
Embora na Lei das XII Tábuas não se fizesse referência expressa ao
princípio, ele já deitara raízes profundas na época de Cícero, como se
observa pela Lex Voconia, que dispunha sobre a incapacidade da mulher
para receber por testamento, mas que estabeleceu que essa regra só
valeria em relação aos testamentos futuros.
A Constituição de Teodósio, o Grande, (440 d.C.) estabeleceu que a
lei ficava restrita aos fatos futuros, excluindo-a não só em relação aos
fatos passados, como ainda quanto aos seus desenvolvimentos (negotia
pendentia). A disposição é hoje lembrada como "regra teodosiana".
A Novela 22 do Código Justinianeu, de 535 d.C., firmou, uma vez
mais, o princípio rígido da irretroatividade da lei.
O Direito Canônico seguiu na mesma direção, segundo as Decretais
de Gregório I e Gregório IX, sintetizadas no art. 10 do Código Canônico, e
baseadas nas lições de Santo Ambrósio.
No
regime
feudal
não
houve
discrepâncias
significativas,
prevalecendo as regras externas, do Direito romano.
8
Nos tempos modernos, coube ao Código Napoleão, de 1804, a
primazia de incluir, expressamente, o princípio da irretroatividade, em seu
famoso e sempre citado art. 2º: "La loi ne dispose que pour l'avenir; elle
n'a point d'effet rétroactif".
Todas as legislações europeias que se seguiram no século XIX
reproduziram, quase ipsis litteris, o dispositivo, como se lê dos Códigos da
Itália, Áustria, Holanda, Portugal e muitos outros.
Nos tempos atuais, é indiscutível a adoção, como regra geral, do
princípio da irretroatividade da lei, embora não seja ele absoluto, admitindo
temperamentos, como, por exemplo, o da lei penal mais benéfica ou o das
leis que dispõem sobre o estado das pessoas ou sobre padrões
monetários.
São dois os sistemas adotados nos países modernos.
No
primeiro,
o
comando
da
irretroatividade
está
inserido
na
legislação infraconstitucional, dirigindo-se, portanto, apenas aos juízes,
aos quais fica vedado aplicar a lei retroativamente. É o caso, por exemplo,
do direito francês e dos que seguem a inspiração napoleônica.
No segundo, converte-se a irretroatividade em preceito e garantia
constitucionais, inseridos, portanto, na Carta Magna, e, neste caso, o
comando se estende também aos legisladores, que não poderão elaborar
leis retroativas, salvo raras exceções.
Neste caso, fortaleceu-se o princípio, repetindo-o tanto na legislação
ordinária quanto na Constituição, que se inclui entre as garantias
individuais.
9
A tradição do direito brasileiro, desde a 1ª Constituição, de 1824, foi
a de incluir o princípio da irretroatividade da lei entre as garantias
individuais (art. 179, nº 3, da Constituição do Império).
Na Constituição Republicana de 1891, a irretroatividade se consagra
nos arts. 11, § 3º, e 72, § 15; na de 1934, no art. 113, nº 3; na de 1946, no
art. 141, § 3º; na Constituição de 1969, sob o regime militar, no art. 153, §
3º, e, na atual, de 1988, no art. 5º, XXXVI.
A única e lamentável exceção foi a da Constituição de 1937, que se
limitou a dizer, no art. 122, nº 13, que as penas estabelecidas ou
agravadas na lei nova não se aplicariam aos fatos anteriores.
Nos países americanos, a tradição é a mesma, como se pode ler nas
Constituições atuais da Bolívia (art. 31), Costa Rica (art. 26), México (art.
14), Nicarágua (art. 43), Paraguai (art. 26) e Peru (art. 25).
O Brasil teve o cuidado de inscrever o princípio tanto na Constituição
(art. 5º, XXXVI) como na legislação infraconstitucional, e o fez no art. 6º da
Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942 e até hoje vigendo.
Apesar de tudo isto, a matéria jamais se pacificou, sendo inúmeras
as teorias que procuram a solução dos conflitos intertemporais das leis.
Tão numerosas são que foram divididas em três grupos: as
objetivistas, as subjetivistas e as ecléticas.
Objetivistas, entre outros, foram Planiol, Affolter e Chironi.
Coube, na Itália, a Chironi construir a teoria dos fatos realizados,
segundo a qual a) o ato jurídico realizado é o regulado, quanto às suas
condições
existenciais,
pela
lei
do
tempo
em
que
surgiu;
b)
10
as
consequências jurídicas não são separáveis do ato-fonte e são, portanto,
submetidas à lei vigente no tempo em que este último se produziu (Studi e
questioni di diritto civile, v. 1, p. 153).
Esta é, também, a posição de Ferrara, que reproduzia a velha
parêmia romana tempus regit actum para afirmar que "todo fato jurídico,
quer pelas suas condições de forma ou de substância, quer em relação a
todos os seus efeitos passados, presentes ou futuros, é regulado pela lei
do tempo em que o fato foi juridicamente realizado" (Diritto civile, v. I, p.
59).
Para Vareilles-Sommières, "uma lei é seguramente retroativa quando
cancela no passado os efeitos já produzidos de um ato ou fato anterior, ou
quando modifica ou suprime para o futuro um dos seus direitos, com
prejuízo para os que os adquiriram" (Une theorie nouvelle sur La
rétroactivité dês lois. Rev. Critique, 1893, p. 444).
Coviello, em síntese, sustentava que "a lei nova não é aplicável às
consequências de fatos passados, ainda que ocorridos sob seu império,
quando a sua aplicação tiver como pressuposto necessário o fato passado"
(Manuale di diritto civile, 4. ed., 1929, § 33, p. 106).
Outra respeitável opinião é de Leon Duguit, para quem "a situação
subjetiva, uma vez que decorre da vontade do homem, não pode ser
atingida por uma lei posterior, sem criar um caso de retroatividade" (Traité
de droit constitutionel, 3. ed., § 21, p. 230).
As teorias subjetivistas fundam-se no conceito de direito adquirido.
Entre os subjetivistas, Blondeau criou a teoria das expectativas
(attentes), segundo a qual a irretroatividade teria por base a crença que
uma lei nova desperta em relação ao futuro.
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Outro famoso subjetivista foi Aubry et Rau, adepto extremado da
noção de direito adquirido.
Sem dúvida que os dois maiores nomes que se defrontam na liça dos
conflitos intertemporais são Paul Roubier e Gabba, razão por que iremos
examinar suas lições com maior profundidade.
V - AS TEORIAS DE PAUL ROUBIER E F. GABBA
De todas as concepções subjetivas, coloca-se em inegável plano
superior a de Gabba, fiel ao conceito de direito adquirido.
O mestre italiano definiu o direito adquirido como sendo todo direito
que: a) é consequência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei
do tempo em que o ato veio a se realizar, assim como o momento de fazêlo valer não se tenha apresentado antes da vigência de uma nova lei
relativa ao mesmo, e, b) nos termos da lei sob cujo império aconteceu o
fato de que se originou, passou a fazer parte imediatamente do patrimônio
de quem o adquiriu.
Ao resumir a doutrina de Gabba, o Desembargador Miguel Maria de
Serpa Lopes consignou:
Toda doutrina dos direitos adquiridos sustentada por Gabba assenta
nos dois seguintes fundamentos:
- um direito objetivamente considerado e o fato aquisitivo que o
transforma de objetivo em subjetivo ou individual. O fato aquisitivo pode
ainda ser simples ou complexo, conforme se compõe num só instante ou
se forma mediante partes sucessivas, separadas necessariamente por
12
intervalos de tempo. (Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
v. I, p. 200)
Assim sendo, todos os efeitos de um contrato, passados, presentes
ou futuros, subsumem-se à lei do tempo em que foi ele celebrado, não
podendo ser modificados pelo advento de lei nova, sob pena de se violar o
princípio do respeito ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, pilares
de sustentação do equilíbrio social.
O conceito de Gabba sobre o direito adquirido completa-se com a
noção de utilidade para o seu titular.
Em nosso Tribunal, ardoroso defensor da tese de Gabba sempre foi
o Desembargador Wilson Marques, considerado sempre um de seus
maiores juristas.
Examinemos, agora, com isenção, a posição de Paul Roubier, por ele
explanada em seu sempre citado livro Les conflits des droits dans le
temps, de 1929.
As opiniões dominantes em sede doutrinária consideram eclética a
sua teoria.
O saudoso mestre francês afastou-se da concepção de "direito
adquirido", para adotar a de "situação jurídica" que lhe parecia superior e
mais abrangente.
O ponto central de sua tese é a distinção entre efeitos retroativos da
lei e efeito imediato.
Retornando à tradição romana, Roubier estabelece três categorias
de fatos: os facta praeterita, facta pendentia e facta futura.
13
Há retroatividade quando a aplicação da lei nova atinge o passado e,
efeito imediato, quando recai sobre o presente.
Em relação aos facta pendentia, e segundo a arguta observação de
Serpa Lopes, Roubier distingue as partes anteriores à data da mudança da
lei, em que haveria retroatividade se fossem atingidas, das partes
posteriores, para as quais a lei nova, se aplicável, teria um efeito imediato.
Daí se ter criado a máxima que a ele se atribui, e que não é
inteiramente verdadeira, segundo a qual "os efeitos futuros dos fatos
passados se submetem à lei nova".
Esta, aliás, é a tese que sustenta a maior parte das decisões
pretorianas sobre a matéria, admitindo a incidência do Estatuto do Idoso
aos contratos anteriores, quando ocorre a mudança de faixa etária, sob o
fundamento que se trataria de seu efeito imediato, em relação a um fato
futuro.
Mas
isto
constitui
um
colossal
equívoco,
como
procuraremos
demonstrar.
Ao distinguir os efeitos retroativos dos imediatos e estabelecer duas
fases diversas em relação à situação jurídica, uma dinâmica e outra
estática, Roubier sustenta a existência de uma zona intermédia que
reserva para os contratos em curso, em que ele exclui tanto os efeitos
retroativos quanto os imediatos, e o faz em homenagem ao princípio da
segurança das relações contratuais, resumida na conhecida regra pacta
sunt servanda.
Esse aspecto da doutrina de Roubier tem sido pouco estudado e até
mesmo esquecido por muitos que o citam, fora do contexto de seu
14
pensamento, como se pode perceber de alguns arestos de nossos
Tribunais.
Para que não pairem dúvidas sobre o que ora afirmamos, remetemos
o leitor ao que expõe o mestre, em sua obra anteriormente citada, nas
páginas 597 e seguintes.
Formulando o princípio do efeito imediato da lei, Roubier introduz-lhe
transcendental exceção, que se refere aos contratos sucessivos ou de
execução continuada, entendendo que, em tal caso, sobrevive a lei
pretérita que o regeu originariamente.
Nossa atual ordem jurídica suscita certa perplexidade. Ao aludir, no
inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal, ao "direito adquirido", o
legislador constituinte acena em direção à teoria subjetiva, enquanto que o
art. 6º da Lei de Introdução, que se refere a "ato jurídico perfeito",
identifica-se mais com as propostas de Roubier.
Isto talvez explique muitas das vacilações da nossa construção
pretoriana.
Ainda discorrendo sobre o tema, o Professor Serpa Lopes enumera
os efeitos práticos do princípio da irretroatividade sobre o direito das
obrigações e dos contratos.
Dele extraímos o seguinte trecho, que cai como luva ao objetivo da
consulta:
No que diz respeito aos contratos, se estes forem da classe dos
instantâneos, como a compra e venda à vista, o princípio lógico é o do
tempus regit actum.
15
Se se trata de contratos de execução continuada, o problema
envolve sérias dificuldades. Parece-nos mais acertada a orientação de
Roubier, no sentido de que os contratos em curso, apanhados por uma
nova lei, são contudo governados pela lei sob cuja vigência foram
estabelecidos. (Ob. cit., p. 209/210 - grifos nossos)
Mais adiante, o respeitado civilista observa que, em matéria de
obrigações em geral, quer em relação à sua natureza, categorias e
espécies, é incontestável o princípio de que deverão ser elas regidas pela
lei vigente ao tempo de sua constituição.
Em sede jurisprudencial, e como já se disse, a matéria é divergente,
o que se explica não só pela complexidade jurídica do tema, como pela
sua enorme densidade social.
Parece-nos
paradigmático
um
conhecido
acórdão
do
Supremo
Tribunal Federal, na ADIn 493-0/DF, do qual foi relator o eminente Ministro
Moreira Alves, considerado, com toda justiça, um de seus maiores vultos,
não só por ser o redator da Parte Geral do Código Civil de 2002, como
também porque, depois de Matos Peixoto, é o maior romanista do Brasil.
A referida ADIn não enfrenta a matéria versada na consulta, mas a
hipótese jurídica é a mesma, ou seja, a aplicação da lei nova aos contratos
anteriores e que estejam vigendo, já que são de execução continuada.
Tão importantes para a exata compreensão do tema, permitimo-nos
pinçar do acórdão vários trechos, aqui reproduzidos e que confirmam a
tese anteriormente sustentada.
[...] se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados
anteriormente a ela, será essa lei retroativa porque vai interferir na causa,
que é um ato ou fato ocorrido no passado. Nesse caso, a aplicação
16
imediata se faz, mas, com efeito, retroativo. Por isso mesmo, o próprio
Roubier (ob. cit., nº 82, p. 415) não pôde deixar de reconhecer que, se a
lei nova infirmar cláusula estipulada no contrato, ela terá efeito retroativo,
porquanto, ainda que os efeitos produzidos anteriormente à lei nova não
fossem atingidos, a retroatividade seria temperada no seu efeito, não
deixando porém de ser verdadeira retroatividade. (grifos nossos)
Por outro lado, no direito brasileiro, a eficácia da lei no tempo é
disciplinada por norma constitucional.
Com efeito, figura entre as garantias constitucionais fundamentais a
prevista no inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal: a lei não
prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Esse
preceito
constitucional
se
aplica
a
toda
e
qualquer
lei
infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei
de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva.
Citando Reynaldo Porchat (Curso elementar de direito romano, v. I,
p. 528), continua o Ministro Moreira Alves:
Uma das doutrinas mais generalizadas, e que de longo tempo vem
conquistando foros de verdade, é a que sustenta que são retroativas as
leis de ordem pública ou as leis de direito público. Esse critério é, porém,
inteiramente falso, tendo sido causa das maiores confusões na solução
das questões de retroatividade.
E continua ele:
Com efeito, quer no campo do direito privado, quer no campo do
direito público, a questão da aplicação da lei nova aos facta pendentia se
resolve com a verificação da ocorrência, ou não no caso, de direito
adquirido, de ato jurídico perfeito ou de coisa julgada.
17
Como as soluções, em matéria de direito intertemporal, nem sempre
são coincidentes, conforme a teoria adotada, e não sendo a que ora está
vigente em nosso sistema jurídico a teoria objetiva de Roubier, é preciso
ter cuidado com a utilização indiscriminada dos critérios por este usados
para resolver as diferentes questões de direito intertemporal.
Um dos comentários mais significativos do acórdão é o seguinte:
Essa
distinção,
em
última
análise,
volta
ao
problema
da
retroatividade das leis de ordem pública (ou seja, das leis cogentes), pois
são leis dessa natureza que, em direito privado ou em direito público,
impõem
às
partes
contratantes
a
adoção
de
cláusulas
contratuais
imperativas. Nem por isso essas cláusulas deixam de integrar o contrato,
que, como ato jurídico perfeito, está a salvo das modificações posteriores
que outras leis de ordem pública venham impor na redação dessas
cláusulas. Volto a repetir o que já demonstrei: a norma constitucional
impede a retroatividade da lei nova em face do ato jurídico perfeito, que,
por não poder ser modificado retroativamente, tem os seus efeitos futuros
resguardados da aplicação dessa lei.
Ainda na Corte Constitucional e discorrendo sobre o mesmo tema, da
intangibilidade do ato jurídico perfeito, pela lei nova, inclusive quanto a
seus efeitos futuros, assim se manifestou o Ministro Celso de Mello, no AIAgRg 266.236/SP, cujo acórdão foi publicado no DJ de 03.02.2006:
AGRAVO
DE
INSTRUMENTO
-
CADERNETA
DE
POUPANÇA
-
CONTRATO DE DEPÓSITO VALIDAMENTE CELEBRADO - ATO JURÍDICO
PERFEITO - INTANGIBILIDADE CONSTITUCIONAL - CF/1988, ART. 5º,
XXXVI - INAPLICABILIDADE DE LEI SUPERVENIENTE À DATA DA
CELEBRAÇÃO DO CONTRATO DE DEPÓSITO, MESMO QUANTO AOS
EFEITOS
FUTUROS
DECORRENTES
DO
AJUSTE
NEGOCIAL
18
-
RECURSO IMPROVIDO - Os contratos submetem-se, quanto ao seu
estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua
celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente
celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes.
As consequências jurídicas que emergem de um ajuste negocial válido são
regidas pela legislação em vigor no momento de sua pactuação. Os
contratos - que se qualificam como atos jurídicos perfeitos (RT 547/215) acham-se protegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos
futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5º, XXXVI, da
Constituição da República. Doutrina e precedentes. A incidência imediata
da lei nova sobre os efeitos futuros de um contrato preexistente,
precisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste negocial,
reveste-se de caráter retroativo (retroatividade injusta de grau mínimo),
achando-se desautorizada pela
intangibilidade
Precedentes.
das
situações
(AI-AgRg
cláusula constitucional que tutela a
jurídicas
266.236/SP,
definitivamente
Rel.
Min.
Celso
consolidadas.
de
Melo,
DJ
03.02.2006)
No
Superior
Tribunal
de
Justiça,
encontraremos
inúmeras
manifestações doutrinárias, no mesmo sentido, da proteção do ato jurídico
perfeito.
Manifestando-se no REsp 809.329/RJ, o Ministro Castro Filho assim
se expressou:
Ora, o Código de Defesa do Consumidor estabelece normas de
ordem pública e de interesse social, e, mesmo assim, tanto esta Corte
como o Supremo Tribunal Federal já pacificaram o entendimento da
impossibilidade de sua retroatividade a contratos firmados antes de seu
advento.
19
Assim, a meu sentir, pela mesma e simples razão, tenho por
inaplicável o Estatuto do Idoso aos contratos firmados antes de sua
vigência. Não importa que se cuide de lei de ordem pública, porque mesmo
estas também se submetem à norma constitucional que preserva o ato
jurídico perfeito e o direito adquirido.
Logo a seguir, ampara-se o Ministro em lição de Vicente Greco Filho
(Comentários ao código de proteção ao consumidor. São Paulo: Saraiva,
1991. p. 380), segundo o qual "as normas de intervencionismo contratual
aplicam-se aos contratos celebrados a partir de sua vigência" (grifo
nosso).
Consta, ainda, de seu voto, o seguinte e esclarecedor comentário:
Só o fato de se constituir lei de ordem pública e conferir benesse ao
consumidor idoso não traz em si o condão de desconstituir os atos
jurídicos formalizados sob a égide de norma anterior.
Outrossim, pela suspensividade da nova lei, com vacatio legis de
noventa dias após sua publicação (art. 118), mitigou-se a interpretação de
conteúdo de aplicação imediata e intervencionista.
Destarte, tratando-se de contrato legitimamente celebrado pelas
partes, deve ser cumprido nos termos da lei contemporânea ao seu
nascimento, regulando todos os seus efeitos, mesmo quanto aos eventos
futuros já nele previstos, uma vez que ficam condicionados à lei vigente no
momento de sua celebração. Aí, não há como invocar o efeito imediato que
se quer dar pela lei nova.
O eminente Ministro Humberto Gomes de Barros, também votando no
recurso especial anteriormente citado, enriqueceu ainda mais a tese, para
20
afastar a incidência do Estatuto do Idoso aos contratos antes dele
celebrados.
De seu lapidar voto tiramos o seguinte trecho:
No caso, a aplicação imediata do Estatuto do Idoso atingiria o ato
jurídico perfeito, porque o contrato de cobertura de assistência médica e
hospitalar já se havia consumado segundo a lei vigente ao tempo da
pactuação. Seria, em substância, uma incidência retroativa. Inclusive os
efeitos futuros do pacto estão a salvo das disposições impositivas do
Estatuto do Idoso, pois a chamada "retroatividade mínima", que decorre da
aplicação imediata das leis, prejudica o ato jurídico perfeito ao tangenciar
efeitos futuros advindos de contratação consumada segundo a vigência de
outra lei.
E, logo a seguir, remata ele que "o Estatuto do Idoso não se aplica
aos contratos consumados antes de sua vigência, porque constituem atos
jurídicos perfeitos".
Ressalte-se, por oportuno, que foram estes os fundamentos que
levaram o Supremo Tribunal Federal a conceder medida liminar na ADIn
1931-8 contra dispositivos da Lei nº 9.656/1998, que, no entender do
Relator, ofendiam o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, em razão de
regras que atinjam contratos celebrados antes de sua vigência.
Os dispositivos atacados, no caso, beneficiavam os consumidores,
especialmente os idosos.
Examinemos, agora, a posição do Tribunal do Rio do Janeiro, por
meio de várias decisões de seus mais eminentes desembargadores:
21
APELAÇÃO CÍVEL - PLANO DE SAÚDE - REAJUSTE - FAIXA ETÁRIA ESTATUTO DO IDOSO - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - Ação
proposta pelo rito sumário pretendendo a revisão de cláusula contratual em
que se estipulou o reajuste das mensalidades de acordo com a faixa etária.
A Lei nº 9.656/1998 faculta a variação das contraprestações pecuniárias
em razão da idade do consumidor, vedando sua aplicação apenas nos
contratos firmados há mais de 10 anos da vigência da lei no mesmo plano
(art. 15, parágrafo único), o que não é o caso, pois o contrato fora
celebrado em 1996. Da mesma forma, o contrato foi celebrado antes da Lei
nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), quando não havia norma proibitiva de
tal reajuste, não cabendo falar sobre retroatividade da lei, por mais social
que seja. Falta de violação ao CDC. Ato jurídico perfeito. Provimento do
recurso. (TJRJ, AC 2008.001.28471, 9ª C.Cív., Des. Marco Aurélio Froes,
J. 27.01.2009)
PLANO DE SAÚDE - MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA - REAJUSTE DA
MENSALIDADE
EM
QUASE
90%
-
CONTRATO
CELEBRADO
NA
VIGÊNCIA DA LEI Nº 9.656/1998 - Implemento da idade de 60 anos na
vigência da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), que, no art. 15, § 3º,
vedou a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de
valores diferenciados em razão da idade. Aplicação da lei vigente na época
da celebração do contrato (Lei nº 9.656/1998). Ato jurídico perfeito. Art. 5º,
XXXVI, da CF. Direito adquirido da empresa ao reajuste. O implemento da
idade
constitui
condição
preestabelecida,
inalterável
a
arbítrio
da
contratante. Art. 6º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil. Falta de
demonstração de abusividade da cláusula de reajuste ou de violação do
CDC.
Valor
inicial
da
prestação
que,
presumivelmente,
levou
em
consideração o reajuste pela mudança de faixa etária. (TJRJ, AC
2006.001.49125, 15ª T., Des. André Andrade, J. 01.11.2006)
No mesmo sentido, transcrevemos outros julgados proferidos por
outros Tribunais estaduais:
22
REAJUSTE DE CUSTO E DE FAIXA ETÁRIA - CONTRATO FIRMADO
ANTES DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI Nº 9.656/1998 - [...] Para os
contratos firmados antes da entrada em vigor da Lei nº 9.656/1998 para
aplicar reajuste de custo, é preciso que haja previsão contratual expressa.
[...]. (TJRS, AC 70015186893, 6ª C.Cív., Rel. Des. Artur Arnildo Ludwig, J.
17.04.2008)
PLANO DE SAÚDE - REAJUSTE - FAIXA ETÁRIA ACIMA DE 60% CLÁUSULA CONTRATUAL EXPRESSA - LEGALIDADE DA COBRANÇA Ao contratar se a parte já tinha conhecimento de que, ao completar 60
(sessenta) anos de idade, haveria um aumento em virtude da mudança de
faixa etária, não se pode tachar de abusiva cláusula de reajuste, à luz do
que prescreve o art. 51 do Código de Defesa do Consumidor, isto porque
houve expressa previsão contratual para o reajuste da mensalidade em
razão da mudança de faixa etária. (TJMG, AC 1.0382.06.065467-2/001, 16ª
C.Cív., Rel. Des. Nicolau Masselli, Publ. 01.02.2008)
PLANO DE SAÚDE - CONTRATO COLETIVO - CLÁUSULA DE REAJUSTE
EXPRESSAMENTE PREVISTA - Se, em planos de saúde coletivos, há
cláusula de reajuste expressamente pactuada para a alteração de faixa
etária e, diante da análise do caso concreto, este reajuste não se mostra
abusivo, não há que se falar em nulidade da cláusula, posto que a
separação etária é permitida pela legislação de seguros de saúde e
decorre do próprio sistema de riscos que compõem o cálculo do prêmio.
(TJMG, AC 1.0382.03.026231-7/001, 9ª C.Cív., Rel. Des. Pedro Bernardes,
Publ. 12.05.2007)
ESTATUTO DO IDOSO - EFEITOS RETROATIVOS - IMPOSSIBILIDADE Os reajustes das mensalidades do plano de saúde, em razão de mudança
de
faixa
etária,
desde
que
expresso
no
contrato,
não
configuram
abusividade, nos termos da Lei nº 9.656/1998. Não verificada abusividade
23
ou ilegalidade da cláusula de reajuste por faixa etária, os pedidos
anulatório e consignatório devem ser julgados improcedentes. O Estatuto
do Idoso não pode produzir efeitos retroativos para alcançar situação já
consolidada sob a égide de uma ordem jurídica anterior. (TJMG, AC
1.0024.04.261889-2/002, 14ª C.Cív., Rel. Des. Renato Martins Jacob, publ.
30.03.2007)
Especial destaque merece o acórdão do Agravo de Instrumento nº
540.281-4/4-00, de relatoria do Desembargador Guimarães e Souza, da
Primeira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, datado de 16 de dezembro de 2008, o qual, com clareza
exemplar, decidiu pela impossibilidade de concessão de tutela antecipada
para abstenção de reajuste dos valores dos prêmios dos planos de saúde
em razão da mudança da faixa etária do segurado, a partir dos 60 anos.
Isso porque tal matéria demanda uma cognição mais aprofundada e,
consequentemente,
a
necessária
dilação
probatória,
não
estando
presentes os requisitos para o deferimento da antecipação da tutela, senão
vejamos (in verbis):
Recurso. Agravo de instrumento. Interposição contra decisão que
deferiu a antecipação para "determinar que a ré se abstenha de reajustar
os valores dos prêmios dos planos de saúde em razão da mudança da
faixa etária do segurado a partir de 60 anos, para todos os contratos".
Matéria que demanda dilação probatória. Requisitos para a antecipação da
tutela ausentes por ora. Recurso provido.
Referido acórdão ainda se manifestou quanto à impossibilidade da
retroatividade da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), não podendo ela
alcançar os contratos celebrados anteriormente a sua vigência, in verbis:
24
Assim sendo, mesmo que o Estatuto do Idoso seja - como é - norma
cogente (impositiva e de ordem pública), isso não significa que haja a
possibilidade de ser admitida exceção ao princípio da irretroatividade.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deixa claro que, para
os contratos firmados antes do advento da Lei nº 9.656/1998, continuam
em vigor as cláusulas e condições que foram livremente estipuladas pelas
partes.
No campo da doutrina também se manifestou sobre o tema o
respeitado administrativista Professor Celso Antonio Bandeira de Mello,
que não sustenta a aplicação imediata de uma lei pelo só fato de ser ela
de ordem pública ou de direito público, referindo-se, expressamente, às
situações subjetivas, como as contratuais, concluindo, em relação a estas:
[...] b) os atos subjetivos (que geram situações jurídicas pessoais,
concretas e subjetivas) acarretam o nascimento de direitos adquiridos e,
portanto, inatingíveis pelas leis novas; [...]. (Ato administrativo e direitos
dos administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 105 a 119)
Antes de encerrar o estudo da matéria a que se refere a consulta, é
imperioso considerar que a aplicação retroativa do Estatuto do Idoso pode
gerar desequilíbrio da equação econômica dos contratos antigos - o que é
fatal para a técnica dos seguros.
Não se pode deixar de ter em mente que o rompimento do binômio
comutativo do seguro afeta o fundo comum, colocando em risco todos os
segurados.
Os aspectos jurídicos não podem ser considerados isoladamente,
devendo se conjugar com os técnicos e econômicos, sem o que se
colocará em risco a higidez do mercado.
25
Nesse sentido, cabe trazer à baila a recentíssima decisão, datada de
11 de novembro de 2009, proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª
Região,
na
Suspensão
de
Liminar
ou
Antecipação
de
Tutela
nº
2009.01.00.065422-0/MG, de relatoria do Desembargador Jirair Aram
Meguerian, o qual deferiu o pedido de suspensão dos efeitos da decisão
proferida pelo MM. Juízo Federal da 20ª Vara da Seção Judiciária do
Estado
de
Minas
Gerais,
nos
autos
da
Ação
Civil
Pública
nº
2009.38.00.020753-8/MG.
A decisão, cujos efeitos foram suspensos, havia determinado à
Agência Nacional de Saúde Suplementar que, no prazo de 30 dias a contar
de sua intimação, promovesse a adequada alteração regulatória, de modo
a
assegurar
que
nenhum
idoso,
em
todo
o
País,
tivesse
a
sua
contraprestação nos planos de saúde aumentada apenas em razão de
atingir a idade de 60 anos.
Com acerto, o Tribunal entendeu que a referida decisão não deveria
prosperar, uma vez que tem o condão de causar grave lesão à ordem e à
economia públicas, uma vez que obriga a agência reguladora a editar
norma que surtirá efeitos em relação a terceiros, no caso, as empresas de
planos de saúde, desestruturando todo o sistema de saúde complementar,
o que levará necessariamente, ao reajuste nas mensalidades dos clientes
que ainda não atingiram a idade de 60 anos, como forma de cobrir a
diferença e possibilitar a continuidade da prestação dos serviços.
É evidente que paira sobre o tema o seu conteúdo social, mas por
isto mesmo se criou a Lei nº 9.656/1998 e o Estatuto do Idoso, que
atenderam aos interesses das partes mais vulneráveis, que são os
segurados, mas que não podem, só por isto, ferir de morte o princípio da
irretroatividade, tão arraigado na cultura jurídica brasileira.
26
De todo o exposto, concluímos a resposta à 1ª indagação no sentido
de ser extremamente polêmica a matéria, em razão das divergências
doutrinárias e pretorianas, prevalecendo, entretanto, a tese segundo a qual
os efeitos ainda não produzidos pelos contratos de trato sucessivo, de
execução continuada, que não se confundem com os que estão vigendo
por tempo indeterminado, continuam subsumidos à lei do tempo em que
foram celebrados, permanecendo intangíveis pela lei nova.
Com efeito, a despeito de ser inegável que os contratos de planos de
saúde são de trato sucessivo e que o Estatuto do Idoso é norma cogente,
isso não é motivo, com a devida vênia, para permitir que a proteção ao
idoso
instituída
pela
Lei
nº
10.741/2003
possa
alcançar
contratos
celebrados anteriormente à vigência desse diploma legal.
Portanto, não há que se falar em retroatividade do Estatuto do Idoso,
para alcançar os contratos celebrados anteriormente a sua vigência, tendo
em vista o respeito ao princípio da irretroatividade.
VI - DA AGÊNCIA REGULADORA - ANS
Quanto à 2ª indagação, já tivemos a oportunidade de observar,
anteriormente, que a ANS, sendo uma agência reguladora, não se destina
a proteger o segurado, tal como acontece com o Código de Defesa do
Consumidor.
No Brasil, as Agências Reguladoras são consideradas um instituto
novo, surgindo apenas a partir da década de 1990, em um contexto de
desregulamentação e desestatização de setores do Estado.
27
A Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, a qual interessa
para o desenvolvimento do presente parecer, foi instituída pela Lei nº
9.961/2000 e regulamentada pelo Decreto nº 3.327/2000.
Conforme disposto no art. 1º de sua lei de origem, a ANS é órgão de
regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que
garantam a assistência suplementar à saúde, uma vez que os serviços de
saúde podem ser fornecidos tanto pelo Poder Público (em caráter
obrigatório) como pela iniciativa privada (como atividade econômica).
Para o desenvolvimento desse mister, são assegurados à ANS
amplos poderes normativos, inclusive sobre as relações contratuais entre
os indivíduos e as empresas de saúde, conforme previsto nos incisos do
art. 4º da referida lei:
Art. 4º Compete à ANS:
I - propor políticas e diretrizes gerais ao Conselho Nacional de Saúde
Suplementar - Consu para a regulação do setor de saúde suplementar;
II - estabelecer as características gerais dos instrumentos contratuais
utilizados na atividade das operadoras;
[...]
XVII - autorizar reajustes e revisões das contraprestações pecuniárias dos
planos privados de assistência à saúde, ouvido o Ministério da Fazenda;
(Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)
[...]
XX - autorizar o registro dos planos privados de assistência à saúde;
[...]
XXI - monitorar a evolução dos preços de planos de assistência à saúde,
seus prestadores de serviços, e respectivos componentes e insumos;
[...]
28
O mesmo entendimento é adotado pelo ilustre Professor Marcos
Juruena Villela Souto:
Já no campo dos serviços fornecidos pela iniciativa privada, o Estado
atua como regulador normativo e fiscalizador dos contratos firmados entre
os operadores de saúde e os consumidores; é que esses contratos
relacionais, de duração continuada, envolvem uma parte vulnerável, que
precisa ser protegida em função da essencialidade do serviço, cabendo ao
Estado regulador a constante atualização das normas de proteção. (Direito
administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 145)
Utilizando-se
de
suas
atribuições
legais,
a
ANS
editou,
em
03.11.1998, a Resolução Consu nº 6, que dispõe sobre critérios e
parâmetros de variação das faixas etárias dos consumidores para efeito de
cobrança diferenciada, bem como de limite máximo de variação de valores
entre as faixas etárias definidas para planos e seguros de assistência à
saúde.
A citada Resolução estabelece o seguinte:
Art. 1º Para efeito do disposto no art. 15 de Lei nº 9.656/1998, as
variações das contraprestações pecuniárias em razão da idade do usuário
e de seus dependentes, obrigatoriamente, deverão ser estabelecidas nos
contratos
de
planos
ou
seguros
privados
a
assistência
à
saúde,
observando-se o máximo de 7 (sete) faixas, conforme discriminação
abaixo:
I - 0 (zero) a 17 (dezessete) anos de idade;
II - 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) anos de idade;
III - 30 (trinta) a 39 (trinta e nove) anos de idade;
IV - 40 (quarenta) a 49 (quarenta e nove) anos de idade;
V - 50 (cinquenta) a 59 (cinquenta e nove) anos de idade;
VI - 60 (sessenta) a 69 (sessenta e nove) anos de idade;
29
VII - 70 (setenta) anos de idade ou mais.
Art. 2º As operadoras de planos e seguros privados de assistência à saúde
poderão adotar por critérios próprios os valores e fatores de acréscimos
das contraprestações entre as faixas etárias, desde que o valor fixado para
a faixa etária prevista no inciso VII do art. 1º desta Resolução, não seja
superior a seis vezes o valor da faixa etária prevista no inciso I do art. 1º
desta Resolução.
§ 1º A variação de valor na contraprestação pecuniária não poderá atingir
o usuário com mais de 60 (sessenta) anos de idade, que participa do um
plano ou seguro há mais de 10 (dez) anos, conforme estabelecido na Lei
nº 9.656/1998.
§ 2º A contagem do prazo estabelecido no parágrafo anterior deverá
considerar cumulativamente os períodos de dois ou mais planos ou
seguros, quando sucessivos e ininterruptos, numa mesma operadora,
independentemente de eventual alteração em sua denominação social,
controle empresarial, ou na sua administração, desde que caracterizada a
sucessão.
Art. 3º É vedada a concessão de descontos ou vantagens especificamente
delimitados em prazos contratuais ou em função de idade do consumidor.
Art. 4º O valor atribuído de contraprestação para cada faixa etária dos
titulares e dependentes, dentro do limite previsto nos artigos anteriores,
deverá
ser
previamente
esclarecido
e
constar
expressamente
do
instrumento contratual.
[...]
Art.
6º
Aplicam-se
as
disposições
desta
Resolução
aos
contratos
celebrados na vigência da Lei nº 9656/1998, de 3 de junho de 1998, e aos
existentes anteriores a sua vigência, a partir das respectivas adaptações.
(grifos nossos)
30
Portanto, nos termos do art. 1º da Resolução Consu nº 6, cabe à
ANS autorizar reajustes para pessoas acima de 60 anos e somente para os
planos individuais novos, ou seja, aqueles que tenham sido firmados após
o início de vigência da Lei nº 9.656/1998.
Aliás, nada mais lógico, uma vez que a principal característica das
Agências
Reguladoras
é
o
conhecimento
técnico,
que
proporciona
agilidade para atuação no mercado.
Sendo que, como o mercado de plano de saúde exige um vasto
conhecimento técnico, por se tratar de um contrato de risco, envolvendo
complexos cálculos atuariais, nada mais apropriado do que a regulação da
ANS em relação aos aumentos dos planos.
Com o advento do Estatuto do Idoso, em 1º de janeiro de 2004,
restaram proibidos os reajustes para pessoas com mais de 60 anos, e
novas regras foram aprovadas pela ANS, ao editar a Resolução Normativa
nº 63, pois o limite máximo para aumento passou a ser aplicado aos 59
anos.
A referida Resolução Normativa nº 63 determina que o número de
faixas etárias seja aumentado de sete para 10 e o intervalo entre elas seja
de cinco anos (e não mais de dez anos), sendo que o valor para a última
faixa etária poderá ser, no máximo, seis vezes superior ao valor da faixa
inicial.
Entretanto, pelas mesmas razões já expedidas na resposta ao
primeiro quesito, o Estatuto do Idoso não se aplica aos contratos
celebrados anteriormente a sua entrada em vigor, devendo o contrato
legitimamente celebrado pelas partes, em consonância inclusive com as
31
normas da ANS vigentes há época, ser cumprido nos termos da lei
contemporânea ao seu nascimento.
VII - ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS
A terceira indagação escapa ao âmbito de um parecer jurídico, já que
interfere no conteúdo das sentenças, o que cabe, com exclusividade, ao
Poder Judiciário.
Mas é evidente que qualquer decisão que envolva contratos de
seguro deverá considerar os seus aspectos técnicos e atuariais.
E isto porque, como já se disse antes, a fixação dos valores das
contribuições e os cálculos atuariais, que dão sustentação econômica aos
contratos,
obedece
a
sofisticada
técnica,
lastreada
em
estudos
específicos, tendo em mira a preservação do fundo do seguro.
Daí a necessária ingerência da ANS, com a emissão de "notas
técnicas", criando faixas etárias e percentuais, para assegurar o equilíbrio
da equação econômica do contrato, sem se deixar seduzir por um perigoso
"paternalismo" em favor dos consumidores, que, em vez de protegê-los,
acabarão, a longo prazo, por prejudicar a todos, diante da superveniente
inviabilidade econômica do sistema.
Decisões judiciais que, sem sólido apoio técnico, alteram esta
equação prevista no contrato ou na regulamentação afastam-se, a nosso
aviso, não só da melhor doutrina, como da realidade de um mercado que
se apresenta multifacetado, não podendo ser as suas regras interpretadas
apenas sob o aspecto individual, não se perdendo de vista o interesse
coletivo.
32
Portanto, é indiscutível que as decisões judiciais sobre o tema da
presente consulta devem atender ao princípio da proporcionalidade e da
razoabilidade.
Não nos parece ser razoável que uma decisão determine um reajuste
de 0% diante do fato de que a operadora de plano de saúde, ao
estabelecer o valor da contraprestação que espera receber de seu
associado, considera a situação presente e aquilo que é previsível no
futuro, ou seja, quanto maior a idade, provavelmente, maiores serão os
gastos com saúde.
Daí a necessidade de proporcionalidade e razoabilidade do reajuste
a ser adotado.
Assim sendo, decisões judiciais que não atentem para o princípio da
razoabilidade e proporcionalidade poderão gerar um indesejável e perigoso
desequilíbrio financeiro para as operadoras de plano de saúde, com forte
probabilidade
de
acabar
inviabilizando
o
atendimento
de
todos
os
beneficiários.
VIII - O CDC E A ABUSIVIDADE DAS CLÁUSULAS
A última indagação é das mais atuais e instigantes envolvendo a
aplicação do CDC na interpretação da abusividade de índices de reajuste,
indicando-se que critérios devem ser adotados para que se possa
considerar abusivo o percentual.
A ordem jurídica implantada após o advento da Constituição Federal
de 1988 deu origem a um direito principiológico, que se agastou
definitivamente do velho sistema do positivismo estrito, que aprisionava o
juiz no texto da lei.
33
Deixaram de ser os Magistrados apenas la bouche de la loi, como
queria Montesquieu, para se converterem nos verdadeiros solucionadores
dos conflitos de interesses a eles submetidos.
O individualismo e o patrimonialismo que caracterizam o direito do
século XIX, no qual se inspirou o Código de Bevilacqua, cederam lugar à
socialidade e à solidariedade social.
Iniciou-se, em decorrência disso, o fenômeno da constitucionalização
do direito privado, ou seja, a sua releitura pela ótica dos preceitos
constitucionais.
Toda a nova ordem jurídica é hoje inspirada por valores ou princípios
fundamentais, que devem pairar, soberanamente, sobre o texto da lei.
E entre estes paradigmas estão o da função social do direito e o da
boa-fé objetiva. O primeiro diz respeito à transformação do direito em
poderoso instrumento de construção de uma sociedade mais justa, fraterna
e solidária.
O segundo, que é uma grande janela que se abriu a uma nova
dimensão ética, exige de todos uma conduta honesta, leal, transparente,
cujo modelo é o de um homem probo.
Estes
dois
paradigmas,
aliados
ao
da
efetividade
do
direito,
desaguaram no Código de Defesa do Consumidor, em 1990, e no Código
Civil, em 2002.
Em homenagem ao princípio da boa-fé objetiva, passou-se a exigir
que os contratos onerosos se assentassem, durante toda a sua vida, em
uma equação econômica justa e equilibrada.
34
Para que este ideal fosse alcançado, era preciso assegurar, além da
liberdade das partes, uma igualdade real, e não apenas formal.
Na impossibilidade de se homogeneizar a sociedade, transformando
em iguais todos os seus membros, a solução para que se impedisse a
supremacia dos interesses da parte mais forte foi a do dirigismo contratual,
que torna juridicamente mais forte o que é econômica ou tecnicamente
mais fraco.
O Estado abandonou sua postura olímpica de mero expectador da
formulação dos contratos, para sobre eles atuar interferindo em seu
conteúdo.
Na relação consumerista, tríplice é a vulnerabilidade do consumidor,
frente ao fornecedor, sob os aspectos econômicos, técnicos e fáticos.
Daí por que os legisladores constituintes inseriram na Carta Magna
um comando para que se elaborasse uma legislação infraconstitucional
que disciplinasse as relações de consumo, e do qual resultou a Lei nº
8.078/1990, que é o Código de Defesa do Consumidor.
É evidente que a mens legis foi a de criar um sistema de proteção
inspirado pelos já citados paradigmas da função social e da boa-fé
objetiva.
Toda a política oficial de consumo hoje se assenta no princípio do
reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, estabelecendo-se que
as relações de consumo devem se desenvolver segundo as regras da boafé.
35
Para se atingir tal objetivo, o art. 6º da Lei nº 8.078/1990 elencou
direitos fundamentais do consumidor, inafastáveis pela vontade das partes.
E no art. 51 tipificou cláusulas consideradas abusivas, fulminadas no
nascedouro pela sanção de nulidade absoluta.
O elenco do art. 51 não é submetido ao princípio do numerus
clausus, sendo, ao contrário, meramente enunciativo.
Para isso, impunha-se fornecer ao julgador e ao intérprete um
conceito genérico de abusividade.
Assim é que se considera abusiva a cláusula que se mostra
excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e
o conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias
peculiares ao caso.
Diante do caso concreto, caberá ao julgador verificar se determinada
cláusula se enquadra na moldura constituída pelo Código.
A jurisprudência já é copiosa a respeito do tema, e, em linhas gerais,
segue a mesma técnica. Nesse sentido, lapidar é o recente acórdão
proferido pela 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
datado de 12.01.2009, cuja Relatora foi a ilustre Desembargadora Suimei
Meira Cavalieri:
REVISIONAL DE PLANO DE SAÚDE - REAJUSTE POR FAIXA ETÁRIA ESTATUTO DO IDOSO - A questão que se coloca nos autos é saber se o
art. 15, § 3º, do Estatuto do Idoso poderia incidir prospectivamente nos
contratos celebrados antes de sua entrada em vigor (alcançando, inclusive,
os contratos ditos "antigos", anteriores à Lei nº 9.656/1998), ou se, assim,
estaria a violar o ato jurídico perfeito, tal como decidido pelo STF ao
36
suspender a eficácia do art. 35-E da Lei nº 9.656/1998 (ADIn 1931/DF).
Consoante a melhor exegese, não é a simples majoração do prêmio que
traduz a discriminação do idoso que a lei procura combater, mas sim a
majoração abusiva, irrazoável, imotivada; é a utilização do fator idade
como pretexto para o aumento do plano de saúde. Com isso, o estatuto
nada mais fez do que especializar e tornar mais evidente a norma já
contida no art. 51, IV, e § 1º, III, do Código de Defesa do Consumidor. No
caso concreto, o reajuste questionado pela autora, referente ao último
patamar etário, girou em torno de 39%, não denotando uma conduta
abusiva por parte da ré, pois encontra paralelo com o maior risco de
sinistro em função da senectude e a necessidade de manutenção do
equilíbrio contratual. Somente caberia declarar nulas tais cláusulas se
patenteassem um extravagante aumento do prêmio de uma faixa etária
para outra, o que não é a hipótese. Mesmo em nome da hipossuficiência
da consumidora, seria particularmente afrontoso à segurança jurídica
anular uma estipulação contratual inequívoca, prevista e aceita há mais de
dez anos justamente no momento em que a operadora do plano vem
assumir maiores riscos. Parcial provimento do recurso da parte ré. (TJRJ,
Apelação Cível nº 2008.001.560-41, 6ª Câmara Cível, Relª Desª Suimei
Meira Cavalieri, 12.01.2009) (grifo nosso)
Não há que se confundir, nos contratos de seguro, as cláusulas
restritivas de direitos, com as abusivas. As primeiras limitam os riscos, o
que é da essência do seguro, enquanto que as segundas limitam a
responsabilidade.
Tanto é verdade que as cláusulas restritivas são admitidas pelo
Código do Consumidor, que só exige que apareçam em destaque.
O estabelecimento de faixas etárias, influindo no cálculo das
prestações,
objetiva,
exatamente,
limitar
o
risco,
e
jamais
responsabilidade da seguradora ou operadora do plano de saúde.
37
a
A adoção, pelo atual Código Civil, da técnica das "cláusulas abertas"
impõe ao juiz um desafio, que é o de encontrar a solução mais adequada
ao caso concreto, que lhe é submetido.
Não há mais standards a direcionar o juiz, que se transforma
atualmente no verdadeiro solucionador do conflito de interesse.
Exemplo perfeito de cláusula aberta é o conceito anteriormente
referido de abusividade.
O simples fato de ter o Código do Consumidor, em boa hora,
reconhecido
a
vulnerabilidade
do
consumidor,
com
a
consequente
necessidade de protegê-lo, não significa que tenha sido abolido o princípio
da autonomia privada.
No contrato de seguro, a equação econômica que o sustenta é bem
mais complexa, e do seu razoável equilíbrio depende a própria vida do
sistema de proteção.
A pergunta que nos faz a consulta é desafiadora, e pode ser assim
resumida: quais são os elementos que permitem a identificação da
abusividade das cláusulas contratuais, e como é possível defini-las?
Não se pode perder de vista que o contrato de plano de saúde é de
natureza onerosa, o que significa que nele está inserido o conhecido
binômio "prestação x contraprestação".
Ambas as partes perseguem um interesse econômico, e o princípio
geral da boa-fé exige que o referido binômio se mantenha razoavelmente
equilibrado.
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Para que possamos considerar abusiva uma cláusula contratual, de
natureza econômica, é preciso que se apresente ela como notoriamente
desfavorável à parte considerada vulnerável.
Também
nos
parece
indispensável
examinar
se
a
parte
supostamente favorecida exerceu, de forma irregular, a sua liberdade de
contratar, violando o princípio da confiança e a justa expectativa da parte
contrária.
Não é por simples acaso que o inciso IV do art. 51 do Código de
Defesa do Consumidor inclui no rol das cláusulas abusivas as que
"estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o
consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a
boa-fé ou equidade".
Ao incluir, no conceito, a referência à boa-fé e à equidade, pretendeu
o legislador abrir ao Judiciário uma larga avenida, para que o juiz pudesse
aferir, em cada caso, se foram ultrapassados os seus limites, ou se, ao
contrário, as peculiaridades do contrato admitem a equação econômica
adotada.
De igual modo é o objetivo do inciso II do § 1º do art. 51, que
também considera abusiva a cláusula que "restringe direitos ou obrigações
fundamentais, inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar
seu objeto ou o equilíbrio contratual".
Estes conceitos gerais obrigam o juiz a mergulhar no contrato,
levantando a ponta do véu que o encobre, como dizem os juristas alemães,
para aferir a sua equação econômica, e se foi ela ameaçada, caso seja
suprimida a cláusula que se acusa de abusiva.
39
O novo Código, como se sabe, ao incorporar os paradigmas da
função social e da boa-fé, encerrou milenar polêmica, consistente em se
saber se o abuso de direito tipificava ato ilícito.
O art. 187 espancou, em definitivo, qualquer dúvida que ainda
pudesse subsistir, equiparando ao ato ilícito o abuso de direito, criando,
assim, uma outra cláusula geral de responsabilidade civil.
Mas considera caracterizado o comportamento abusivo quando o
titular de um direito o exerce, excedendo manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.
Não será difícil perceber que, ao aludir a "exceder de maneira
manifesta os seus limites", o legislador repeliu os estereótipos, deixando,
uma vez mais, ao julgador a responsabilidade de, diante do caso concreto,
identificar o abuso tipificador da ilicitude da conduta do agente.
Muitos outros são os exemplos constantes do novo Código quanto à
presença das cláusulas abertas.
Ao definir o vício da lesão, no art. 157, o legislador dispõe que está
caracterizado quando "uma pessoa, sob premente necessidade, ou por
inexperiência, se obriga à prestação manifestamente desproporcional ao
valor da prestação oposta" (grifo nosso).
No art. 317, que prevê a correção do valor real da prestação
pecuniária, a lei se refere à "desproporção manifesta".
E ao tratar da onerosidade excessiva como causa de resolução do
contrato, só admite quando um fato superveniente e imprevisível o tornar
"excessivamente oneroso, com extrema desvantagem para a outra parte".
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Como se vê, não há critérios objetivos, nem fórmulas matemáticas,
para se aferir a abusividade de uma cláusula contratual.
O julgador terá que se valer dos princípios gerais da boa-fé, da
função social e da equidade, para chegar à sua conclusão, mas sem
perder de vista os velhos dogmas da autonomia da vontade e do pacta
sunt servanda, que foram relativizados, mas não abolidos.
Também serão de grande valia, para a identificação da abusividade
os princípios de lealdade, da informação e, acima de tudo, da confiança,
que, em última análise, são figuras parcelares da boa-fé objetiva.
Na hipótese da consulta temos que considerar as peculiaridades do
contrato de seguro ou do plano de saúde e o seu instável equilíbrio
econômico.
Não se trata de um contrato tipicamente comutativo, como a compra
e venda ou locação, em que é bem mais fácil aferir o equilíbrio entre a
prestação e a contraprestação.
No seguro, em razão da álea que o envolve, a equação econômica é
muito mais sofisticada, e a sua alteração feita de maneira atécnica pode
levá-lo ao fim.
Isto explica o constante dirigismo contratual exercido pelo Estado no
mercado segurador, inclusive com a fiscalização permanente da Susep.
Também não foi por acaso que se criou a ANS, para regular o
mercado, interferindo diretamente no conteúdo econômico dos contratos,
podendo fixar ou modificar alíquotas, faixas etárias e tudo mais que esteja
umbilicalmente ligado ao seu equilíbrio econômico.
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Estamos firmemente convencidos do risco que representa interpretar
os contratos de seguro ou planos de saúde apenas pela ótica da
socialidade.
Uma análise superficial, ou emotiva, do contrato de seguro pode
inviabilizar todo o sistema, o que traduzirá verdadeira catástrofe social, em
razão da notória falência da assistência médica do Estado.
As decisões judiciais, como já tivemos a oportunidade de aludir, têm
que levar em conta os aspectos técnicos e econômicos, razão pela qual
realmente pode ser temerária a decisão que invalidar por completo a
aplicação de um determinado reajuste. Conforme informou a consulente,
existem índices de reajustes aplicados quando há alteração de faixa etária
do associado que atingem patamares que ultrapassam 100% (cem por
cento). Ora, ainda que este índice, por hipótese, possa ser considerado
abusivo, será justo o Magistrado fixar um índice de 0%, 10% ou 20%? Será
que nesta hipótese o desequilíbrio não estaria sendo invertido em prejuízo
da
operadora
de
planos
de
saúde,
o
que,
em
última
instância,
representaria um desequilíbrio de todo o sistema?
A última indagação, que ora tentamos responder, encerra-se com a
instigante questão de se saber a partir de quando um percentual de
reajuste pode ser considerado abusivo ou não.
Como vimos é evidente que não há um percentual fixo, um critério
objetivo. Parece-nos, entretanto, que o limite se definirá não só pelos
órgãos oficiais que regulam o sistema, como pela própria necessidade de
se manter o equilíbrio do sistema dos seguros.
A questão das faixas etárias, por exemplo, de transcendental
importância para os planos de saúde, tem que ser enfrentada com uma
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visão ampliada, para se preservar o cálculo atuarial que serviu de base
para a fixação das mensalidades.
A perspectiva do todo deve superar o da individual, sob pena de se
colocar em risco os demais segurados, diante de eventual inviabilidade do
sistema.
É evidente que a cláusula deverá ser considerada abusiva se
estiverem presentes os pressupostos elencados nos já citados dispositivos
do
Código
do
Consumidor,
colocando
o
segurado
em
manifesta
desvantagem e produzindo excessivo proveito ao fornecedor do serviço.
Se, no momento da contratação, foi claramente informado à parte
que, ao completar 60 anos de idade, haveria um aumento da mensalidade,
pelo evidente e natural agravamento do risco, não há como se taxar de
abusiva a cláusula.
Os princípios da informação e da confiança foram plenamente
atendidos, sendo justificável a adoção do reajuste em virtude da natureza
do seguro.
Não se afigura ofensiva a cláusula contratual de reajuste de
mensalidade em razão de ingresso em faixa etária superior, já que os
riscos à saúde são abstratamente maiores.
Esta é a própria lógica do sistema de seguros milenarmente
consolidada, e que não se pode alterar, de modo a afetar contratos
passados.
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CONCLUSÕES
Respondidas as quatro indagações que nos foram dirigidas, podemos
resumir as conclusões a que chegamos:
a) os contratos de execução continuada ou de trato sucessivo submetemse, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente
à época de sua celebração;
b) a incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um contrato
preexistente, precisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste
negocial, reveste-se de caráter retroativo, sendo desautorizada pela
cláusula constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas
definitivamente consolidadas, segundo o Ministro Moreira Alves;
c) no Direito brasileiro, a questão da irretroatividade da lei é disciplinada
por norma constitucional, aplicando-se o preceito a toda e qualquer lei
infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei
de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva;
d) em consequência, o Estatuto do Idoso não pode deitar as suas luzes
sobre os contratos antes dele celebrados, sob pena de violar a garantia
constitucional de irretroatividade da lei, além de gerar insegurança jurídica
com o rompimento do equilíbrio econômico dos contratos;
e) a Superintendência de Seguros Privados - Susep era, na época,
competente para aprovar reajustes de mensalidades para pessoas de
idade superior a 60 anos para planos antigos, e a Agência Nacional de
Saúde Suplementar - ANS era competente para autorizar reajustes de
mensalidades para pessoas de idade superior a 60 anos para os planos
novos, que foram comercializados entre 2 de janeiro de 1999 (início de
vigência da Lei nº 9.656/1998) e 31 de dezembro de 2003 (dia anterior a
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validade do Estatuto do Idoso), em decorrência de seu conhecimento
técnico;
f) as decisões judiciais que envolvem matéria atinente aos seguros e
planos de saúde devem considerar também os aspectos técnicos e
econômicos do contrato, em razão de sua complexidade e para que não se
inviabilize
o
sistema,
que
se
assenta
nos
cálculos
atuariais
e
probabilidades de sinistros;
g) o conceito de cláusula abusiva não é objetivo e não obedece a fórmulas
matemáticas, tratando-se de cláusula aberta a ser preenchida pelo
julgador, diante do caso concreto, devendo o eminente julgador, nessa
hipótese, aplicar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade;
h) as cláusulas restritivas de direitos e que fixam mensalidades em razão
de faixa etária nada têm de abusivas, atendendo ao caráter do negócio,
ainda mais tendo sido levadas ao conhecimento do contratante, de maneira
clara.
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CONTRATOS DE SEGURO - APLICAÇÃO DA LEI Nº 10.741/2003