{ saúde }
tarja
verde
Cada vez mais pesquisas
confirmam a utilidade
da maconha para o
tratamento de uma
grande variedade de
doenças. Apesar de a
lei brasileira prever o
uso medicinal, a falta de
regulamentação impede
sua aplicação no Brasil.
por Ta rso a r aujo
com cola bor ação de r achel cosTa
Ilustração Fabricio Lopes
maconha | 49
{ sAúde }
“Meu dia a dia é
ouvir os pacientes reclamarem de dor”, diz Eusébio*, ortopedista brasileiro especialista em coluna. Em seus mais de 15 anos de formado, ele
se preparou para resolver dores com cirurgias, infltrações
na coluna e medicamentos. Mesmo com esse arsenal, cerca
de 5% dos seus pacientes continuam com dores crônicas,
que os impedem de levar uma vida normal. “É frustrante”.
Há três anos, ele somou livros de cultivo de maconha aos
de medicina, depois de perceber um aumento no número
de estudos científcos sobre os benefcios da cannabis para
tratar vários tipos de dores crônicas. Hoje, fornece extratos
de três variedades da planta para um grupo de 17 pacientes
que não respondeu a nenhum outro tratamento. Tudo ilegal. “Posso perder meu CRM e até ser acusado de tráfco”,
diz, explicando que tem um acordo verbal de sigilo com
seus pacientes. “Eles confrmam que o negócio funciona.
Não tenho medo, só quero que a lei mude.”
A situação dos pacientes brasileiros não é muito diferente. Quem quer usar a erva para aliviar sintomas de
alguma doença precisa recorrer ao mercado negro ou
cultivar, com risco de ser acusado de tráfco. Foi o que
aconteceu com o publicitário Alexandre Thomaz, de Canoas (RS). Diagnosticado com câncer, ele começou uma
quimioterapia. Na sexta sessão, vomitava só de pensar
em tomar o remédio. Quando soube que fumar maconha
poderia ajudá-lo com as náuseas e seguir o tratamento,
decidiu plantá-la. Até que uma denúncia anônima o levou
à cadeia. Afnal, ele curou-se do câncer, mas ainda responde a um processo por tráfco de drogas (veja na página
52). “Por que o Estado, que deveria contemplar meu bem-estar, é justamente quem me castiga?”
O Brasil faz parte da maioria de países que considera a
maconha uma droga sem utilidade. Mas, para os cientistas
que lidam com a erva, ela é uma espécie de nova penicilina:
relativamente segura, barata e com diversas aplicações. Algumas têm efcácia comprovada por estudos clínicos, como
no caso de dores crônicas, esclerose múltipla, anorexia e
náusea causada por quimioterapia. Pesquisas mostram que
componentes da maconha podem se tornar uma alternativa para cuidar de doenças psiquiátricas tratadas hoje em dia
com remédios de tarja preta, que têm mais efeitos colaterais
e maior potencial de causar dependência. Estudos com animais têm resultados positivos até no tratamento de câncer.
Novo impulso
Ano passado, o interesse pelo tema ganhou novo fôlego
com um documentário da rede de TV CNN. Weed é apresentado por Sanjay Gupta, o Dráuzio Varella dos Estados
Unidos, famoso por sua posição contra a maconha medicinal. No flme, ele dá o braço a torcer e muda sua opinião so-
50 | MACONHA
*Eusébio é um nome fictício
Foto Celso Junior
PARA
QUE SERVE?
As aplicações da
maconha medicinal
podem ser divididas
em três níveis,
segundo a qualidade
das evidências
disponíveis em
cada caso.
Nível A
Recomendação
baseada em consistentes evidências
científicas, com testes
em pacientes.
Náusea e vômito, anorexia
e perda de peso, dor neuropática, fibromialgia, espasmos
causados por esclerose
múltipla ou lesão da medula,
síndrome de Tourette, dor
em decorrência do câncer
e de seu tratamento.
Nível B
Recomendação
baseada em evidências
científcas limitadas,
com testes em pacientes.
Dor pós-operatória ou causada
por processos inflamatórios,
como doença de Chron, asma,
glaucoma e epilepsia.
Nível C
Recomendação baseada
em consenso médico
ou pela prática clínica,
sem testes em humanos.
Gliobastomas (tipo de
câncer de cérebro), controle
das alterações causadas
pelo Alzheimer.
Futuro
Possíveis recomendações, em fase de
pesquisa básica.
Doenças autoimunes,
câncer, função neuroprotetora,
febre e alterações da pressão
sanguínea.
Fonte www.jabfm.org/content/
24/4/452/T1.expansion.html
Minha filha
tinha 60
convulsões
por seMana.
seMana
passada,
teve três.
É uMa coisa
Milagrosa.
b
KAtiele Bortoli
FisCher, 33,
mãe dA ANNy, 5
portadora da
síndrome de CDKL5
brAsíliA (Df)
d Minha filha anny teve a
primeira convulsão com 45 dias
e logo passou a ter dezenas de crises
por semana. Só conseguimos um
diagnóstico da síndrome de CDKL5
quando ela tinha 4 anos. Mas
nenhuma medicação funcionava
e ela teve um atraso cognitivo.
Só conseguiu andar com 3 anos e
balbuciava algumas palavras. Com
4 anos, ela piorou e voltou a ser um
bebê. Parou de andar, de sentar,
de fazer sons. A cada crise, ela
pode aspirar vômito e pegar uma
pneumonia. Então é risco o tempo
todo. Às vezes, a crise não para
e vamos ao hospital para ela ser
sedada. Quando conseguimos
o diagnóstico, pesquisamos na
internet e descobrimos um grupo
de pais de crianças com a doença.
Um americano disse que sua filha
tinha melhorado com um extrato
de maconha com canabidiol (CBD).
A gente já tinha tentado de tudo,
todas as combinações existentes de
remédio para a epilepsia, com efeitos
colaterais horríveis. Fizemos até uma
cirurgia no cérebro, e nada funcionou. Então compramos o produto de
uma empresa nos EUA. É uma pasta,
sem o negócio que dá barato, e ela
toma uma vez por dia. Há dois meses,
quando começamos, minha filha
tinha 60 convulsões por semana.
Semana passada, teve três. É uma
coisa milagrosa. Ela está esperta,
fazendo sons, movimentos com
braços e pernas. Ficamos surpresos.
A imagem que a gente tinha da
maconha era essa da Globo, de
morro e traficante. Ninguém pensa
que pode ser algo medicinal. Quando
soube do CBD falei: “Será?” Mas
aprendemos muito, não temos
mais preconceito. É emocionante,
impressionante, surpreendente.
Quando você encontra algo que
faz efeito, você coloca isso no seu
coração, na sua alma. Quando
dá certo é um alívio muito intenso.
Estamos passando por um momento
muito feliz, porque o CBD trouxe
uma qualidade de vida para a Anny
que ela não tinha há muito tempo.
Isso mudou a nossa vida.
{ SaúdE }
d Aos 33 Anos, recebi o diagnóstico bombástico: tinha um câncer no
pescoço. Fiz uma cirurgia na semana
seguinte e comecei a quimioterapia.
Seriam oito sessões, e depois 25 de
quimioterapia. Na segunda sessão,
começou a cair o cabelo e vieram
enjoos fortes. Na sexta, eu já vomitei
antes de colocar o catéter com a
medicação. Como eu não suportava,
os médicos resolveram interromper
a quimio. Na radioterapia, perdi
todo o paladar, não conseguia me
alimentar direito. Foi quando tive
a ideia de tentar a maconha e
perguntei ao oncologista. Ele disse
que não podia prescrever, que em
países de primeiro mundo usam
mesmo cannabis para atenuar esses
sintomas. Já tinha fumado algumas
vezes, mas esse tempo passou.
Procurei amigos que ainda fumavam
e comecei esse tratamento paralelo.
Logo percebi mudanças: comecei a
me alimentar melhor, dormia melhor,
gradualmente até minha autoestima
melhorou. Então decidi plantar no
meu sítio sementes importadas,
indicadas para uso medicinal. Era
tão mais limpa que passei a fumar
menos e comecei a usar em chás,
bolos e outras receitas. Um dia,
sem mandato e na minha ausência, a
policía arrombou as portas e revirou
minha propriedade. Não acharam
armas nem dinheiro, mas roubaram
coisas minhas e levaram os dez pés
da maconha que aliviava meus
síntomas. O delegado denunciou os
policiais por abuso de autoridade.
O Ministério Público não levou a
acusação em frente, alegando que
eles estavam cumprindo sua função,
mas me indiciou por tráfico.
O tratamento deu certo: segundo
meus médicos, as chances de
o câncer voltar são mínimas.
Mas ainda respondo processo e
posso acabar preso. Se a Constituição Federal diz que todo ser humano
tem direito à dignidade, fico me
perguntando por que o Estado, que
deveria cuidar do meu bem-estar,
é justamente quem me pune.
fico me
perguntando:
por que o
estado, que
deveria
cuidar do
meu bemestar, é
justamente
quem me
pune?
b
AlexAndre
ThomAz, 44
publicitário
Canoas (Rs)
bre o assunto. A principal personagem
do documentário é a pequena Charlote
Figi, de 5 anos, portadora de um tipo de
epilepsia raro, grave e sem tratamento
chamado síndrome de Dravet.
Depois de tentar de tudo e com a flha
cada vez pior, os pais decidiram arriscar o uso de um extrato de canabidiol
(CBD), componente da cannabis sem
efeito psicoativo. Os resultados foram
incríveis e a menina, que sofria em
média 300 ataques epiléticos por semana, passou a ter no máximo um por
semana. Seu caso chegou aos ouvidos
de Gupta e, depois do documentário,
ao mundo inteiro. Inclusive ao Brasil,
onde a mãe de Sofa – outra menina de
5 anos com uma epilepsia grave, rara e
sem cura – viu uma esperança
“Eu nem me preocupei com a questão legal. Se tivesse que responder processo para controlar as crises da minha flha, responderia”, diz Margarete
de Brito, mãe de Sofa. Ela importou
um extrato de CBD e as convulsões da
criança caíram de 12 para seis por semana. Mas, depois de um mês, o produto perdeu efeito. Na internet, Margarete conheceu mães com a mesma
doença e as ajudou. Foi seu exemplo
que inspirou Katiele Fischer, mãe de
Anny, 5 anos, a fazer o mesmo. A mãe
defne o resultado como “milagroso”:
as convulsões caíram de 60 por semana
para três, em dois meses de “tratamento alternativo” (veja na página 51).
“Depois do documentário, vários pais
me procuraram dispostos a recorrer
ao CBD. É um grupo que gostaríamos
de reunir para iniciar uma pesquisa”,
diz o neuropediatra e especialista em
epilepsia Eduardo Favaret, médico de
Sofa. “São mães que andam com uma
maleta de CTI quando vão se deslocar
com a criança.” Ele explica que os tratamentos disponíveis para epilepsia
não têm efeito em um terço do total
de casos, que atinge pelo menos 1% da
população brasileira – 190 mil pessoas.
Outro problema dos remédios dis-
Foto Gustavo Schramm Roth
poníveis é que alguns têm efeitos colaterais graves, incluindo a cegueira
parcial. “Alguns podem até piorar as
crises, dependendo do paciente.” O
CBD poderia ser uma opção de tratamento importante para epiléticos que
não respondem aos tratamentos, especialmente porque não é tóxico. “Existem vários estudos sobre a toxicidade
do CBD em animais e em humanos e ele
parece ser uma droga bastante segura.
O efeito colateral mais frequente é a sonolência, em doses mais elevadas”, diz
Antônio Zuardi, psiquiatra da USP de
Ribeirão Preto, autor de vários estudos
sobre os efeitos da substância.
“Não posso prescrever para ninguém,
porque é ilegal. Isso me causa certa angústia. Se fosse meu flho, não tenho
dúvida de que já estaria no Colorado.
Mudava para lá, se fosse o caso”, diz Faveret, referindo-se ao Estado dos EUA
em que Charlote pode usar o medicamento legalmente. Por enquanto, sair
do país é mesmo a única alternativa
para os brasileiros que gostariam de
usar cannabis medicinal para aliviar o
sofrimento de alguma doença. Podem
ser dezenas de milhares de pessoas.
Coisa séria
O uso terapêutico da maconha é milenar. A mais antiga enciclopédia de
medicamentos do mundo, escrita na
China com conhecimentos do segundo milênio antes de Cristo, já indicava
a erva para diversos males. No mundo
ocidental, ela teve seus dias de glória
na segunda metade do século 19, receitada para dor, náusea, epilepsia e outros
problemas. Isso acabou nas décadas de
1930 e 1940, conforme vários países criminalizavam seu uso. Em 1961, quando
a droga foi incluída na lista negra da
Convenção Única de Entorpecentes da
ONU, seu uso medicinal já era coisa do
passado.
“A utilidade terapêutica da cannabis
foi essencialmente esquecida”, diz Raphael Mechoulan, químico búlgaro que
maconha | 53
{ sAúde }
ajudaria a reverter esse quadro com o isolamento do THC,
princípio psicoativo da maconha, em 1964 (leia a entrevista com ele na página 60). Seu trabalho levaria à descoberta
de um mecanismo de comunicação entre os neurônios,
que ele chamou de sistema endocanabinoide. Hoje, sabe-se que esse sistema regula uma série de reações do nosso
organismo ao mundo externo – emoções, humor, dores,
apetite e memória, por exemplo.
“Com essa descoberta, começamos a entender por que
a maconha mostrava resultado em uma série de doenças”, conta o tcheco Lumír Hanus, cientista da equipe de
Mechoulan que em 1992 descobriu a anandamida, um
endocanabinoide, espécie de THC produzido pelo nosso
corpo e peça que faltava nesse quebra-cabeça. Esse conhecimento deu novo vigor aos estudos sobre a maconha. Na
base de dados mantida pela Associação Internacional
para Medicamentos com Canabinoides (IACM, em inglês),
72% dos trabalhos catalogados são posteriores à descoberta da anandamida.
Já existem mais de 70 canabinoides descritos e o desafo dos cientistas é descobrir como se benefciar de cada
um. “O CBD é um dos que mais têm chamado a atenção
por ter propriedades terapêuticas interessantes, mas não
os efeitos psicoativos do THC”, explica o médico alemão
Franjo Grotenhermen, diretor executivo da IACM. O THC,
por sua vez, pode ajudar até no controle de tumores. “Seu
uso no tratamento de câncer poderá ser muito diversifcado. Há testes em casos de glioma, câncer de mama, fgado,
pele, pâncreas e próstata, entre outros. Mas até agora o
que temos foi demonstrado apenas em modelos animais”,
diz o espanhol Manuel Guzmán, pesquisador da Universidade Complutense de Madri e autor de um dos primeiros
trabalhos sobre o assunto.
Essas perspectivas atraem cada vez mais pesquisadores
interessados no potencial terapêutico da maconha. Um
grupo de cientistas defende o uso da planta in natura,
seja inalada, fumada, adicionada a alimentos ou mesmo
processada na forma de óleos ou pomadas. Um dos principais representantes dessa via é Lester Grispoon, da
Universidade Harvard e um dos papas da maconha medicinal – que começou a estudar a droga para mostrar seus
malefcios, mas mudou de ideia durante as pesquisas. “A
planta é uma opção barata e naturalmente equilibrada.
Transformar canabinoides em remédio apenas encarece
o processo e reduz a efcácia do produto”, diz.
Outro grupo defende que remédios com canabinoides, em vez da planta, sejam melhores para controlar os
efeitos desejados. “Os pacientes desejam ter acesso a um
remédio que seja prescrito, que não tenha de ser fumado
ou usado a partir de preparações domésticas, que tenha
54 | MACONHA
Foto Rafael Jacinto, ilustração Bruno Algarve
farmácia
canábica
Existem diferentes
formas de acesso à
cannabis medicinal.
Todas que contêm THC
podem ter efeito
psicoativo.
Maconha
Flores da planta fêmea da
cannabis, rica em canabinoides. Dependendo da variedade, ela pode conter mais
THC, mais CBD ou um equilíbrio
de ambos. Fumada ou vaporizada (inalada sem combustão
com instrumento adequado)
produz efeito imediato.
Onde: Nos programas medicinais do Canadá, de Israel e
da Holanda, e nos 21 Estados
norte-americanos com uso
medicinal regulado.
Extratos E
aliMEntos
Concentrados de um ou mais
canabinoides estão disponíveis
em soluções, óleos ou pastas,
para consumo via oral ou vaporização. Eles também podem
ser adicionados em alimentos.
Produtos com CBD, apenas,
não causam efeito psicoativo.
Onde: Em Israel e nos Estados
dos EUA que autorizam
o uso medicinal.
sativEx®
(nabixiMol)
Extrato natural de maconha
em spray, para uso oral e nasal.
Dos medicamentos aprovados,
é o único com todas as substâncias da planta. Sua formulação permite a administração
da mesma proporção de
THC e CBD.
Onde: Venda aprovada em 24
países para alívio de sintomas
da esclerose múltipla.
Marinol®
(Dronabinol)
Remédio em cápsulas
com THC sintético.
Onde: Nos EUA, para pacientes
em quimioterapia e para
anorexia em pacientes de aids.
cEsaMEt®
(nabilona)
Remédio em cápsulas com
nabilona, molécula sintética
similar ao THC. Sua eficácia
é menor que a dos canabinoides naturais.
Onde: Aprovado no Canadá
(desde 1985) e nos EUA (2006),
para náusea e vômito em
pacientes de quimioterapia.
d Tenho esclerose múlTipla,
Parece que
a cannabis
foi feita
Para a
esclerose
múltiPla.
É imPressionante:
assim que
você fuma,
a Paz volta.
b
GilbErto
castro, 40
designer
S ã o PA U l o ( S P )
uma doença sem cura e progressiva.
Tudo o que a medicina sabe,
atualmente, é prolongar o tempo de
vida de quem tem essa enfermidade.
Eu estou no grau 4 da doença, de
uma escala que vai até 10, quando o
paciente está morto. Os médicos não
chegam a falar em morte comigo,
mas consideram que mais cedo ou
mais tarde eu fique acamado.
Quando recebi o diagnóstico, me
disseram que isso aconteceria em
dez anos, no máximo. Mas isso já faz
15 anos e sigo bem. Para os médicos,
eu sou “ganhador da Sena”. Para
mim, se estou assim, é por causa da
maconha.
Comecei a usar pouco depois de
descobrir a doença, em 1999. Em
uma consulta, depois de relatar o
que sentia, o médico virou para mim
em voz baixa e disse: “Se você fumar
um ‘baseadinho’ vai ajudar”. Desde
então, faço o que se faz em vários
lugares do mundo, mas é proibido no
Brasil. E não sou o único: conheço
muita gente que também recebeu a
recomendação dos médicos para
fazê-lo, “por baixo dos panos”, claro.
Os sintomas mais comuns que sinto
são dormência, choques, sensação
de quente-frio, cansaço e formigamento. Tudo isso melhora quando
uso maconha. Os choques e
espasmos praticamente desaparecem e as dores caem pela metade.
Nas duas vezes em que passei
períodos prolongados sem maconha, os sintomas progrediram
rapidamente. Parece que a cannabis
foi feita para a esclerose múltipla.
É impressionante: assim que você
fuma, a paz volta. Tem muito
paciente de esclerose múltipla
que não sabe disso e está na cama,
desesperado, sem saber o que fazer.
Fico pensando: A maconha é só
uma planta. Não pode ter uma
planta em casa?
{ SAúDE }
d Abril de 2007. Nessa data
comecei uma luta para viver.
Foi quando soube que teria
de fazer quimioterapia, radioterapia
e cirurgia para tratar um câncer.
Foi também quando comecei a usar
maconha medicinal. Ao pedir aos
médicos, não encontrei resistência.
Eles não podem receitar, mas
apoiaram. Só pediram que não
abandonasse o tratamento
convencional, e foi o que fiz.
Minha diferença para os outros
pacientes logo tornou-se visível.
Eu comia melhor, dormia melhor,
meu humor era melhor e minhas
dores eram bem menores. O
problema foi quando fiz a cirurgia.
Nesse período, fiquei 15 dias
internada e não pude usar a erva.
Sentia dores muito fortes, que os
médicos tentavam controlar com
morfina, não tinha apetite e o soro
que me injetavam machucava ainda
mais minhas veias, frágeis por
causa da quimioterapia.
Após o tratamento contra o câncer,
parei de usar maconha. Mas dois
anos depois comecei a sentir uma
dor insuportável. Tinha fibromialgia.
Propuseram o tratamento com
antidepressivos, vitaminas e
analgésicos muito fortes.
Comecei seguindo-o, mas os efeitos
colaterais estavam me fazendo tão
mal que resolvi tentar a maconha
mais uma vez. De novo, consegui
dormir melhor e os sintomas
amenizaram muito. Com acompanhamento médico, aos poucos
parei com os outros remédios e
fiquei só com a planta.
Os problemas para conseguir a
maconha seguem. Tenho muito
medo de ficar sem ela e ter de voltar
ao tratamento convencional e aos
seus efeitos colaterais. Sei que é
proibido, mas minhas dores são
maiores do que a lei.
Sei que é
proibido,
maS minhaS
doreS São
maioreS
do que
a lei.
b
Maria antonia
Goulart, 65
artista plástica
S ã o Pa u l o ( S P )
composição e qualidade garantidas,
autorizado por agências regulatórias
para condições médicas específcas
e feito por farmacêuticos”, diz Mark
Rogerson, representante da GW Pharmaceuticals, dona do Sativex (marca
do genérico nabiximol), extrato de canabinoides vendido em 24 países para
o tratamento de esclerose múltipla.
O Sativex é hoje uma das maiores
promessas da cannabis medicinal. Ele
sai na frente da planta porque a empresa já fnanciou na última década diversos estudos clínicos que nunca foram
feitos com a erva em si. “Não existem
patentes no mundo da cannabis”, diz
Raphael Mechoulan, explicando que
não se pode ter patentes sobre produtos naturais. “Então, se uma empresa
gasta 500 milhões de dólares com um
teste clínico, ela não vai ter retorno”.
Como esse problema não acontece
com o Sativex, não falta dinheiro para
investir em suas pesquisas. Ele está
passando por teste clínico de fase 3 –
o último antes de um remédio ir para
as prateleiras – para ser aprovado nos
EUA. Se isso acontecer, a empresa deve
ganhar bilhões de dólares com um remédio que é, basicamente, um extrato
natural da planta, com todos os seus
canabinoides, não apenas THC e CBD.
O fabricante também já solicitou à
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) um registro para importá-lo para o Brasil, em 2011, mas até hoje
não obteve resposta.
Mas, como acontece com qualquer
remédio patenteado, o Sativex é relativamente caro. Um estudo publicado
em 2012 constatou que isso inviabiliza seu custo-benefcio no tratamento
de esclerose pelo sistema de saúde do
Reino Unido. Lá, a terapia com o remédio sai 17 vezes mais cara do que a
oferecida pelo Ministerio da Saúde da
Holanda, que regulamentou a venda
de Bedrocan – maconha de qualidade
controlada. Desde 2001, o país tem
um programa federal que hoje atende
Foto Rafael Jacinto
cerca de 2 mil pacientes. “Os médicos
prescrevem cannabis da mesma forma
como fazem com outros medicamentos”, informa Catherine Sandvos, da
Agência Holandesa para a Cannabis
Medicinal. Os pacientes recebem uma
receita normal, com a frequência e o
tipo de cannabis que devem fumar ou
inalar – existem três tipos, cada um
mais adequado para um tipo de doença. Um pote com cinco gramas da droga sai por cerca de R$ 130. É bem mais
cara que a dos famosos cofee shops do
país, mas tem as concentrações de THC
e CBD controladas, com certifcação do
Ministério da Saúde.
Em Israel, onde Raphel Mechoulan
pesquisa canabinoides há cinco décadas, são mais de 14 mil benefciados.
Além da for para inalar, são vendidos
alimentos e óleos contendo maconha,
para quem tem a prescricão de um dos
20 médicos cadastrados no programa
do governo. O Ministério da Saúde de
Israel defende sua posição num comunicado em seu site: “Mesmo que ela
não seja um medicamento ofcial ou
um remédio reconhecido ao redor do
mundo, pode reduzir o sofrimento de
diversos pacientes”, defendeu o órgão
em comunicado ofcial. No Canadá, outro pioneiro da cannabis medicinal, ela
é usada por mais de 30 mil pacientes. O
programa nacional está mudando para
reduzir desvios de pequenos produtores para o mercado negro. A partir de
31 de março, só empresas cadastradas
pelo governo terão autorização para
cultivo, mas o paciente não precisará
mais se registrar no governo – basta
a receita médica. Quem plantava não
gostou da novidade. Mas a situação deles ainda é bem melhor que a do Brasil.
Pé atrás brasileiro
“A maconha e o THC são proscritos no
país porque estão na lista 1 da Convenção de Psicotrópicos da ONU, que diz
que seu uso é proscrito, exceto para fns
médicos e científcos”, diz a farmacêu-
maconha | 57
{ sAúde }
tica Renata Souza, chefe da Coordenação de Produtos Controlados da Anvisa.
É seu departamento que controla a lista
das substâncias proibidas no País. A exceção citada por Souza também está na
Lei de Drogas brasileira (11.343/2006),
que diz: “Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais
referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fns medicinais ou científcos, em local e prazo predeterminados, mediante fscalização, respeitadas
as ressalvas supramencionadas.” Então
por que não se pode plantar cannabis
com fnalidade medicinal no País?
“O entendimento é de que o artigo só
se aplica para fns de pesquisa. O fm
medicinal de que o artigo trata só é efetivo na forma de medicamento. E como
não há remédio registrado no Brasil à
base da planta, não há justifcativa
para mudar”, diz Souza. Para Luciana
Boiteux, professora de direito e coordenadora do Grupo de Pesquisas em
Política de Drogas e Direitos Humanos
da UFRJ, a posição da agência deve ser
contestada. “A Anvisa não pode ignorar
ou ir contra a lei. Cabe à agência analisar os pedidos, e não negar de maneira
genérica dizendo que a lei proíbe. Isso
não se sustenta legalmente”.
A representante da Anvisa diz que a
questão até poderia ser reavaliada. “Mas
nunca houve um pedido. Por que vamos
mudar algo se não tem demanda?”, diz
Souza. Katiele Fischer, mãe da menina Anny, contratou um advogado para
importar o extrato de CBD legalmente
e pode se tornar a primeira brasileira a
contestar a agência na Justiça. Apesar
de o canabinoide não ser tóxico nem
psicoativo, e de não constar na lista de
substâncias controladas, ele é proibido,
segundo a coordenação de substâncias
controladas, porque a regulamentação
vigente proíbe “todas as substâncias obtidas a partir das plantas” da lista negra.
Ou seja, qualquer coisa que a cannabis
contenha é proibido no país, mesmo
que não seja conhecido ou que não haja
58 | MACONHA
evidência de que faça qualquer mal. Interpretada ao pé da letra, a portaria da
Anvisa proíbe até água.
Emílio Figueiredo, consultor jurídico
do Growroom, fórum de internet que
agrega cultivadores da erva e reúne dezenas de pacientes clandestinos de maconha medicinal, lamenta a posição da
agência. “Tenho a impressão de que no
Brasil é mais fácil conseguir autorização para pesquisar urânio ou plutônio
do que para usar cannabis medicinal.”
O cientista brasileiro Elisaldo Carlini, psicofarmacologista da Unifesp que
pesquisa a maconha desde a década de
1960, defende a criação de uma agência
reguladora específca para a cannabis
medicinal. Em 2010, ele organizou um
seminário internacional sobre o assunto e seus participantes encaminharam
ao Ministério da Saúde uma proposta de
criação da agência. “Tenho a impressão
de que nem examinaram os argumentos. O fato é que não se mexeram”, diz.
“Bastaria colocar a maconha no mesmo patamar da morfna e de outros
opioides, que podem ser prescritos
com receita amarela. Já criaria uma
possibilidade para os pacientes”, diz o
médico Eusébio, que faz extratos para
seus pacientes, observando que não seria necessário mudar a lei. “Como médico, quero ter acesso a todas as ferramentas possíveis para trabalhar. Se eu
sei que tem um tratamento disponível
no mundo, vou aonde for para aprendê-lo. Seja uma técnica cirúrgica, seja um
remédio como esse. É muito ruim saber
que isso acontece lá fora, e aqui, não.”
Além dos médicos, cada vez mais
pacientes estão informados sobre o potencial terapêutico da maconha e gostariam de recorrer a essa opção para
aliviar seu sofrimento. “A gente sabe
disso”, diz Renata Souza, da Anvisa.
“No cenário nacional, pessoalmente,
tenho visto essas histórias nas reportagens. A primeira demanda que vier
será o ponto de partida para começar
essa discussão.”
Foto Pierry Aires
voltei a
trabalhar
e a ter
vida social.
tomava três
tipos de antidepressivos
e agora
não uso
nenhum.
b
Marco
antônio, 26
comerciante
Governador
va l a d a r e s ( M G )
d A maconha me beneficia
duplamente, pois tenho doença de
Crohn, uma inflamação crônica do
intestino, e epilepsia. Chegava a ter
até quatro crises epiléticas num
único dia, com desmaios e convulsões. Em 2011, cheguei a ter uma
parada cardíaca. Com a maconha,
elas quase acabaram – em 2013, tive
apenas uma crise. Mas o efeito é bem
maior na doença de Crohn. Quando
ela surgiu, há quatro anos, cheguei a
perder 20 quilos. Tinha muitas dores
abdominais, diarreia, fadiga extrema,
dores nas articulações, febre e falta
de apetite. Um dia antes do
vestibular, acabei internado. Não
tinha mais condição nenhuma de
trabalhar ou estudar. Passei 40 dias
no hospital e por duas cirurgias para
colocar uma bolsa no meu intestino.
Usava maconha de vez em quando
desde os 16 anos e quando descobri
a doença decidi parar de fumar, com
medo de piorar. Qual não foi minha
surpresa quando busquei o assunto
na internet e vi que ela era um
tratamento indicado para a doença
que eu tinha! O uso regular me fez
melhorar muito. Meu médico sabe e
acompanha os resultados: há quase
dois anos não sou internado e a
doença de Chron está em remissão.
Voltei a trabalhar, tenho um emprego
de meio período na parte da tarde, e
voltei a ter uma vida social. Antes
não saía de casa com vergonha de
que os outros não entendessem
minha doença. Tomava três tipos de
antidepressivos e agora não uso mais
nenhum. Quando descobri que a cannabis me ajudava, fiquei muito feliz.
Mas isso não passa na mídia, e nem
todo mundo que tem minha doença
vai ter essa mesma descoberta.
{ pOlítiCA }
O começo
do fm
Primeiro país
do mundo a ter
um mercado legal
de compra e venda de
maconha, Uruguai pode
servir de exemplo para
uma reviravolta nas
políticas globais
de drogas.
por Ta rso a r aujo,
de montev idéu
ilustr ação indio san
28 | MACONHA
maconha | 29
{ política }
Fim de tarde
na rambla, como os
uruguaios chamam o calçadão de Montevidéu,
capital do país “na esquina do Oceano Atlântico
com o Rio da Prata”. Três jovens com idades de 22
a 24 anos assistem ao pôr-do-sol, enquanto bebem
chimarrão, andam de skate e fumam maconha
tranquilamente. No Uruguai fuma-se a erva na
rua sem muita cerimônia porque o uso nunca foi
criminalizado. A reportagem da SUPER pede uma
entrevista. Vocês pretendem fumar a maconha do
governo? “Não”, diz Alberto Costa, enquanto pede
isqueiro a um dos amigos. “Não vou entrar numa
lista de maconheiros. O governo vai colocar isso na
minha carteira de identidade.”
O cadastro exigido para comprar ou cultivar
a droga é um dos pontos mais polêmicos da lei.
“Esse cadastro é completamente sigiloso, protegido por uma lei já existente de dados sensíveis.
Mas as pessoas não sabem e informá-las sobre
isso é um dos nossos desafos”, diz Julio Calzada,
secretário-geral da Junta de Drogas. Os detalhes
sobre o funcionamento da carteirinha ainda não
estão regulamentados, mas a ideia é que ela seja
usada para controlar a compra de maconha na farmácia, legalmente.
Há dois anos, ninguém diria que isso seria possível num país da América Latina. Mas é o que vai
acontecer no Uruguai a partir do segundo semestre. Costa, sua turma do skate e as 120 mil pessoas que vivem no país e fumam maconha regularmente terão duas opções para comprar a droga. A
primeira é a de sempre: recorrer aos trafcantes. A
segunda é a novidade: registrar-se de graça no Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (Ircca)
e adquirir a erva legalmente em farmácias tradicionais – sem necessidade de receita, algo que só
usuários medicinais precisarão ter. O balconista
confere no sistema se a identidade do comprador
corresponde ao sujeito registrado. O usuário pode
comprar qualquer quantidade dentro do limite de
40 gramas por mês. Quem não tiver a carteirinha
– menores de idade e turistas, por exemplo – não
terá acesso ao comércio legal.
Em vez de comprar, os usuários também poderão cultivar até seis plantas por vez, em cada casa.
Também será necessário registrar-se no Ircca, antes de jogar a primeira semente na terra (veja na
página 32). Mas nem todos estão felizes. “Planto
em casa e quero continuar. Mas, como eu moro
com outra pessoa que fuma, seis plantas não se-
rão sufcientes. Vou acabar tendo que
comprar na farmácia”, diz o usuário e
cultivador Diego Sanchéz, 32.
A droga comercializada legalmente
vai ser bem diferente da que existe no
mercado negro. O governo pretende
oferecer em torno de cinco variedades,
com concentração de THC semelhante
à que os uruguaios estão acostumados,
de cerca de 5%. Mas enquanto a droga
clandestina geralmente chega do Paraguai prensada e com mofo (veja na
página 36), a do governo será feita e armazenada com controle de qualidade
– provavelmente orgânica, como defendem representantes dos cultivadores.
A regulamentação detalhada desse
sistema fca pronta no fm de abril e
começa a funcionar em agosto ou setembro. O Uruguai será o primeiro país
do planeta a ter um mercado legal para
a produção, a distribuição e o comércio
de maconha. A reviravolta que pode
mudar para sempre a política global
de drogas começou a tomar forma no
primeiro semestre de 2012, no meio de
uma onda inédita de violência.
Várias execuções ligadas a disputas
por pontos de venda de drogas ou a dívidas entre trafcantes aconteceram em
Montevidéu. De janeiro a abril, o número de assassinatos aumentou 60% em
relação ao mesmo período do ano anterior. O motivo mais comum eram os
“ajustes de cuentas” (29%). Apesar de o
país ter o segundo menor índice de homicídios do continente – só perde para
o Chile –, os casos criavam uma sensação de insegurança generalizada.
O governo tinha que tomar uma atitude, mas ninguém esperava tanta ousadia. O presidente José “Pepe” Mujica
convocou uma coletiva de imprensa e
anunciou, entre outras medidas, que o
Poder Executivo encaminharia ao Congresso um projeto para regulamentar a
maconha e diminuir o poder do tráfco,
que tem na cannabis sua principal fonte de receita. A ideia surgiu numa longa
reunião de Mujica com seus ministros
mais próximos. A primeira pessoa a pronunciá-la
foi o ministro da Defesa, Eleutério Fernandéz Huidobro. E convenceu todos os presentes.
“Havia um consenso de que a guerra às drogas
adotada em outros países é um fracasso. Se queríamos diminuir o uso de drogas e combater o tráfco
de modo efcaz, precisávamos de outra estratégia”,
diz Diego Cánepa, prosecretário da presidência da
República Oriental do Uruguai – braço direito de
Mujica e espécie de chefe da Casa Civil. Àquela altura, nem os Estados norte-americanos de Colorado
e Washington tinham aprovado seus plebiscitos
para fazer o mesmo (veja na página 38). Era a primeira vez que um governo desafava a Convenção
Única de Entorpecentes da ONU, que desde 1961
entregou o mercado de maconha aos trafcantes.
Choveram críticas, é claro. O consumo vai aumentar. A percepção de risco vai diminuir. O tráfco não vai acabar. A maconha estatal vai parar na
mão de menores e turistas. Pior: uma pesquisa de
opinião mostrou que a maioria da população era
contra o projeto de lei. Mas o governo estava decidido. “Como dizia Albert Einstein: ‘Estúpido é aquele
que sempre faz o mesmo e espera resultados diferentes’”, diz Cánepa. “E não podemos ser estúpidos
quando estamos no governo. Se não deu certo nas
últimas décadas, vamos tentar algo diferente.”
Luta econômica
A maioria das histórias de violência de Montevidéu vem de Casavalle, bairro humilde a 20 minutos do centro da capital. Além dos homicídios, a
região concentra o maior índice nacional de uso
de pasta base de cocaína, cujo uso dobrou no país
entre 2005 e 2006. No Uruguai, não existem cracolândias. Mas, numa incursão pelas redondezas,
a reportagem da SUPER chegou a ver um pequeno
grupo fumando a droga, rente ao muro do cemitério local, enquanto crianças de 10 anos jogavam
bola do outro lado da rua. Apesar de não haver favelas, com casas de madeira ou sem saneamento
básico, os moradores desaconselhavam entrar nos
conjuntos habitacionais baixinhos que, como aqui,
são chamados de pombais – “los palomares”. Contrastando com a simplicidade das casas, duplas
de jovens com roupas e tênis de marca passavam a
bordo de motos novas. Iam e voltavam, de capacete, vigiando o jornalista estrangeiro.
“Todos malandros”, diz Lurdes Silva. Diarista,
ela fechou o pequeno bazar que mantinha em fren-
Imagens Shutterstock, AFP, Corbis/Latinstock
te de casa, depois de uma sequência de
assaltos. Mostra um tiro de bala na porta da lojinha fechada e conta que nos últimos anos a coisa piorou. “A pasta base
entrou demais no bairro”. Ela conta que
expulsou o flho de casa há seis anos,
depois que ele passou a andar com trafcantes – justamente na época em que
o consumo da droga aumentou no país.
E agora teme pela segurança das duas
netas, de 9 e 10 anos, que moram com
ela e sua flha. “Outro dia, uma amiga
morreu com um tiro nas costas, a duas
quadras daqui. Os trafcantes brigam e
paga quem não tem nada com isso.”
Ao longo da década de 2000, a disputa
entre os cartéis mexicanos por rotas de
drogas para os EUA se acirrou. Os trafcantes colombianos passaram então a
diversifcar suas rotas de distribuição
na América do Sul, para fazer sua cocaína chegar à Europa. A passagem – e
o consumo – de derivados de coca aumentou em todo o continente, inclusive
no Uruguai. “Nosso mercado é pequeno,
mas não é desprezível para os locais.
Quando nos tornamos um país de trânsito, houve um aumento associado do
tráfco interno”, diz Cánepa. Daí surgiram os “ajustes de cuentas”, com execuções à luz do dia. A novidade assusta os
pacatos uruguaios, que antes só viam
“estúpido é aquele
que faz sempre o mesmo
e espera resultados
diferentes. não podemos
ser estúpidos no governo.
vamos fazer diferente.”
maconha | 31
{ pOlítiCA }
controle geral
Todo o mercado fica sob
supervisão do Instituto de Regulação
e Controle da Cannabis (Ircca), que
emite licença para os envolvidos
e fiscaliza suas atividades.
riscos
Tráfico
Se os usuários não
aderirem à maconha
estatal, o mercado
negro pode continuar forte.
riscos
Consumo
coisas assim nos jornais brasileiros. “O aumento
desse tipo de violência está associado ao tráfco,
que rompeu códigos existentes dentro da própria
criminalidade. E a repressão não solucionou esse
problema em nenhum país”.
Em vários aspectos, o fenômeno é parecido com
o que aconteceu em cidades como Rio de Janeiro
e São Paulo nos anos 80 e 90, quando surgiram
facções como Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital, respectivamente. A diferença
está na solução proposta para o problema. “Vamos
disputar esse mercado e roubá-lo deles”, diz Júlio
Calzada. Com 57 anos e três flhos adolescentes,
ele fala calmo e devagar, mas cheio de confança.
“Hoje, o prensado custa 1 dólar, em média. Vamos
vender a esse preço. Se eles baixarem, vamos diminuir o preço. Vamos tirar ao menos uma boa parte
desse dinheiro do crime organizado.”
Enfraquecer os trafcantes é um objetivo básico da lei, mas ela também pretende reduzir
os danos associados ao consumo. Por exemplo,
separando os mercados de erva e pasta base,
muito mais viciante e perigosa. “Hoje o sujeito
vai à boca comprar maconha, o trafcante lhe diz
que não tem, mesmo quando tem, e lhe oferece
pasta. Vamos acabar com isso”, diz o coordenador de prevenção da Junta Nacional de Drogas,
Augusto Vitale.
A lei também cria uma disciplina de educação
sobre drogas nas escolas e prevê que o lucro obtido com a droga seja usado em campanhas de
prevenção e educação. Todas as cidades com mais
de 10 mil habitantes deverão ter centros de informação sobre drogas e assistência para dependentes. Além disso, a regulamentação da maconha
faz parte de um conjunto de medidas polêmicas
que o governo de Mujica colocou em prática para
ampliar as liberdades civis – como a legalização do
aborto e do casamento gay.
DEvEr DE CASA
Regular o mercado de drogas ilegais é uma proposta feita por quem defende a legalização há décadas. Mas como fazer isso, na prática? O governo
não sabia e foi fazer o dever de casa. Organizou
conferências com especialistas em direito, política, economia e saúde de diversos países. Fez
reuniões semanais com representantes de diferentes ministérios e de grupos de direitos humanos, redução de danos e usuários. “Havia uma
32 | MACONHA
O acesso legal e a
queda na percepção
de risco podem
causar uma alta
no uso e no número
de usuários.
MACONHA
ESTATAL
cadeia produtiva
Empresas uruguaias poderão
se candidatar a ter licenças
para produzir e distribuir a
droga. As farmácias licenciadas também serão escolhidas pelo Ircca.
os usuários
Para usar maconha legalmente será
preciso ter cadastro no Ircca. A privacidade é protegida por lei já existente.
Cada usuário terá um número de
registro intransferível: emprestá-lo
é crime, segundo a lei.
Proibido
dirigir sob efeito
de maconha.
Proibido
para menores
de 18 anos.
Projeto uruguaio
regulamenta a
cadeia produtiva,
da plantação ao
comércio varejista,
e todos os usos da
cannabis.
r$
70 miLhões
por ano
Faturamento anual
do mercado negro de
maconha no Uruguai,
segundo estimativa
do governo.
produção
Empresas com
sede no Uruguai
podem se candidatar a produzir
maconha ou
derivados e
cânhamo.
A variedade e
a quantidade
de plantas
permitidas
nestes cultivos
em larga escala
serão determinadas por
decreto.
varejo
Nada de coffee
shops. A venda
no varejo será
feita em farmácias tradicionais.
Não em todas,
mas em algumas,
licenciadas
segundo critérios
específicos de
segurança definidos na
regulamentação.
riscos
Assaltos
riscos
Lucro educativo
O dinheiro arrecadado
com os usuários que
compram nas farmácias
vai bancar o Ircca e as
empresas da cadeia produtiva. O lucro será investido
em prevenção e educação
sobre os riscos do uso
de maconha.
transporte
Empresas terceirizadas serão
responsáveis
por distribuir
a produção
de maconha.
Seu perfil será
semelhante ao
de uma transportadora de
valores, já
que o grama
de maconha
é mais caro que
o de prata, por
exemplo.
Contrabando
O desvio de quantidades significativas
de droga para o
tráfico, principalmente de grandes
produtores e de
clubes canábicos.
A exportação dessa
maconha pode dar
briga com países
vizinhos.
Farmácias e plantios
residenciais ou de
clubes podem se
tornar alvo preferencial de ladrões.
Proibido
qualquer tipo
de publicidade.
compra
Usuários registrados poderão
comprar até 40
gramas por mês.
A cota será
controlada pelo
mesmo sistema
usado para
remédios controlados. Vai custar
cerca de U$ 1 por
grama – preço
atual do mercado
negro. Mas pode
cair, se traficantes baixarem
seu preço.
cultivo
Quem quiser
fumar recreativamente também
poderá se registrar para plantar
sua própria erva,
dentro do limite
de seis plantas
fêmeas em
floração por residência e 480
gramas por ano.
Plantas machos
ou sem flores,
que não têm
efeito psicoativo,
não entram na
conta.
clube
canábico
Outra opção de
acesso são os
clubes canábicos, que
também
precisam ser
autorizados pelo
Ircca e podem ter
de 15 a 45 sócios,
todos formalmente cadastrados. Sua
lavoura coletiva
poderá ter uma
quantidade de
plantas proporcional ao número
de sócios.
ciência
e saúde
O Ministério
da Saúde vai
controlar o
fornecimento
de maconha
para pesquisas
científicas e
pacientes do
sistema público
de saúde, que
não vão precisar
comprar a droga.
Proibido
prensar
maconha.
riscos
Desvios
Existe a possibilidade de a droga
comprada ou produzida legalmente
ser revendida para
menores de idade
e turistas.
maconha | 33
{ pOlítiCA }
preocupação muito grande em não escrever uma
lei ingênua, descolada da realidade”, diz Vitale,
que organizou esses encontros e atualmente é
um dos responsáveis pela regulamentação da lei.
“Foi interessante ver como era importante para
os cultivadores se associar, por exemplo, e trazer
isso para a lei”.
Esses grupos já estavam no radar do governo
por causa de outro projeto de lei que estava em discussão no Congresso desde 2011, para autorizar o
cultivo pessoal e a criação de clubes com esse fm.
Apesar de bem menos audacioso, ele já poderia ser
considerado uma revolução sobre o tema na América Latina. Mas quando Mujica anunciou seu plano, ele foi naturalmente engavetado. Seus autores,
os deputados Sebastian Sabini e Julio Bango, assumiram a tarefa de redigir o projeto de lei que seria
aprovado na Câmara dos Deputados, em agosto
de 2013, e no Senado, em dezembro do mesmo
ano. Ano passado, Vitale e outros envolvidos com
a regulamentação ainda foram aos EUA conhecer
a experiência dos Estados de Washington e Colorado – a essa altura, os eleitores norte-americanos já
haviam aprovado a legalização do uso recreativo e
a regulamentação já estava sendo desenhada.
Uma das polêmicas que apareceram ano passado foi a contribuição da ONG americana Drug
Policy Alliance para alguns intercâmbios feitos durante a gestação do projeto. O jornal El País, que
pertence a integrantes da oposição ao governo,
publicou que George Soros – investidor bilionário que banca a ONG por meio da fundação Open
Society – estava usando o Uruguai para legalizar a
maconha e lucrar com o cultivo da droga como sócio da Monsanto, fabricante de sementes transgênicas. A fundação fnancia projetos e organizações
que defendem a legalização das drogas no mundo
inteiro, e Soros realmente se declarou a favor da
iniciativa. Mas a teoria da conspiração foi abandonada depois de alguns esclarecimentos. “Soros
sequer tem participação na Monsanto. Mesmo que
tivesse: as atividades da fundação não têm ligação
com os negócios dele”, diz Pedro Abramovay, diretor da Open Society para a América Latina.
nada de “liberou geral”
A lei do Uruguai também não deve ser um bom
negócio para quem pensa em lucrar milhões. A
Frente Ampla, partido de Mujica e da base governista, é uma coalizão de esquerda formada por di-
34 | MACONHA
versos partidos de orientação socialista. E, como tal, não quer que o mercado
seja controlado por megacorporações
multinacionais. Ao contrário: por lei,
apenas empresas uruguaias poderão
explorar a produção e a distribuição.
E pelo menos uma dezena de licenças
de produção devem ser concedidas,
para descentralizar a safra e o poder
econômico dos benefciados. Assessorado pelo Ircca, o Poder Executivo vai
controlar toda a cadeia produtiva. Inclusive, e principalmente, os preços. Ou
seja, um cenário bem diferente do livre
empreendedorismo que costuma atrair
investidores bilionários e é a marca da
legalização nos EUA (veja na página 38).
“O governo entende que não podemos
abrir mão do controle de certos setores
estratégicos, como habitação, segurança, saúde e educação”, diz o deputado
Julio Bango, coautor da lei. “A política
de drogas tem grandes consequências
sobre a segurança e a saúde, então faz
sentido trazer isso para a responsabilidade do Estado, assim como estamos
regulando estritamente o comércio de
tabaco desde a década passada”.
Essa pegada estatal também explica
por que o governo diz que não está legalizando, mas regulamentando a maconha. Para alguns, o segundo termo é
apenas um eufemismo para o primeiro. Para Cánepa, a diferença vai muito
além da retórica. “A maconha não será
um artigo de comércio qualquer, como
batata. Estamos criando um mercado
regulado, com licenças a particulares e
controle estrito do Estado sobre o preço e a quantidade que se pode comprar
e produzir. Não é algo que vai estar na
mão do mercado”, diz.
Esse cuidado com as palavras também é importante para mudar a
percepção da população sobre a lei.
Pesquisas de opinião mostraram que
“legalização” remete à ideia de um “liberou geral”, enquanto “regulamentação” soa mais organizado e restritivo.
E acertar na comunicação é especial-
mente estratégico porque essas mesmas pesquisas mostram que boa parte dos uruguaios contra
a lei ainda não a entenderam direito.
Um exemplo disso vem de um levantamento
feito em outubro de 2013 pelo Instituto Factum.
Quando se perguntava: “O que você acha da legalização da maconha?”, 63% se diziam contra.
Mas as mesmas pessoas foram questionadas se os
usuários deveriam comprar maconha em “farmácias controladas pelo Estado” ou com a “máfa das
drogas”. Nesse caso, 78% das pessoas se disseram
a favor da venda em farmácias, exatamente como
estabelece a lei. “Aos poucos, passamos da caricatura ao retrato. Quando entenderem a lei, as pessoas vão apoiá-la”, diz Vitale.
da teoria À prática
Dia 10 de dezembro, de 2013, uma terça-feira, o
Senado uruguaio estava lotado. Um ano e meio
depois de José Mujica anunciar seu plano de regular a maconha, o mundo inteiro estava de olho
no Uruguai. Sob pressão, o presidente admitiu
numa entrevista à TV local: “Totalmente, não
estamos preparados. Mas é preciso ter coragem
e audácia, e buscar caminhos novos na luta contra o narcotráfco”. O debate entre os senadores
começou às 10h30 da manhã e durou mais de 12
horas e alguns minutos.
O médico e senador Alfredo Solari disse que
“se a lei for aprovada, vamos nos converter em
um foco regional para o turismo de cannabis”. O
senador Blanco Jorge Larrañaga, provável candidato da oposição nas eleições para presidente que
acontecem em outubro, disse que o projeto “é uma
enorme improvisação do governo, o mercado pode
tornar-se incontrolável.” Mas de nada adiantou, e
os senadores da coalizão governista aprovaram
a medida. O que parecia impossível há menos de
dois anos – um país contrariar a ONU e criar um
mercado completamente lícito de maconha – tornara-se realidade.
A pressão também vinha de fora. “O Uruguai
está contrariando as convenções internacionais
de controle de drogas”, declarou a Junta Internacional de Fiscalização de Estupefaciantes da ONU,
em comunicado ofcial. A nota foi divulgada no
dia seguinte à sessão do Senado e provocou uma
resposta imediata de Mujica: “Eles têm dois discursos. Um para o Uruguai e outro para os fortes”,
disse o presidente a um canal de televisão.
“Hoje vão à boca
comprar maconHa,
o traficante diz
que não tem, mesmo
se tiver, e oferece
pasta base. vamos
acabar com isso.”
“Somos um país que respeita muito
o direito internacional. Mas assinamos muitos tratados, e alguns deles
são contraditórios”, diz Diego Cánepa,
revelando não se preocupar com a possibilidade de sanções. “Se houver algum
problema, então vamos discutir qual
direito prevalece. Para nós, é o direito
à vida, um valor supremo.”
É claro que a lei também despertou
reações positivas. A revista britânica
The Economist, que há alguns anos defende a legalização das drogas, elegeu o
Uruguai “o país do ano”. O ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso mostrou-se otimista em entrevista à SUPER:
“Certamente, será um espaço de teste
para novas políticas que poderão ser
analisadas e inspirar mudanças nos
países vizinhos. É importante que cada
país possa experimentar diferentes alternativas”, disse, incluindo-se na lista
de pessoas que vão estar de olho no
Uruguai, com aquela grande dúvida na
cabeça: Será que vai dar certo?
“Nunca temos 100% de garantia que
uma política vai dar certo. Mas temos a
convicção de que precisamos mudar”,
diz Cánepa. “O único critério da verdade é a prática. Então deixemos de teoria
e façamos o necessário.”
maconha | 35
{ pOlítiCA }
Em janeiro de 2002, o trafcante
A nova
guerra
do
Paraguai
Maior produtor de maconha da
América do Sul, país tem suas
fronteiras e plantações disputadas
por traficantes locais e brasileiros.
por Ta rso a r aujo
ilustr ação indio san
36 | MACONHA
paraguaio Carlos Cabral, conhecido como “Líder”,
foi vítima de uma emboscada fulminante. Sua fazenda foi invadida por 20 homens encapuzados,
armados de fuzis, metralhadoras e granadas. Morreram 11 pessoas, incluindo seu flho de 3 anos. Seu
algoz seria o trafcante brasileiro Fernandinho
Beira-Mar. Em represália, o paraguaio matou 22
pessoas – o dobro – ligadas ao líder do Comando
Vermelho. Foi um dos meses mais sangrentos da
guerra que há mais de uma década se desenrola
no país vizinho, pelo controle do contrabando de
maconha para o Brasil.
A fronteira do Paraguai é estratégica para o
crime organizado brasileiro desde a década de
1990, quando a região se tornou uma das maiores
produtoras de maconha do mundo. Em 1994, 2,8
toneladas da droga foram apreendidas no Brasil.
Em 2000, esse número aumentou 55 vezes, para
156 toneladas, segundo a Polícia Federal. Noventa
por cento do volume de fagrantes vinha de dois
Estados: Mato Grosso do Sul (75%) e Rio de Janeiro
(15%). Apreensões refetem um aumento na produção ou na fscalização. Seja qual for o caso, é claro
que havia uma conexão forte entre os morros cariocas e o país famoso pelas muambas.
A conexão entre o Comando Vermelho e o Paraguai começou a bombar em 1997, quando Beira-Mar fugiu de um presídio de Belo Horizonte para
lá. Ele recebeu cobertura da família Morel, que produzia maconha desde a década de 1970 e era seu
maior fornecedor de erva. O brasileiro comprou
fazendas, passou a fnanciar o plantio e a usar o
país para receber e exportar cocaína da Bolívia. Em
2001, decidiu assumir de vez o controle da situação e mandou matar o patriarca João Morel – crime
pelo qual está preso – e seus dois flhos – execuções
que confessou ligando para uma rádio local.
“Ele levou ao Paraguai sua expertise e uma rede
de contatos e logística que facilitava o escoamento
da droga até a venda no varejo”, diz Marcelo Botelho, chefe da Delegacia de Repressão ao Tráfco de
Drogas da Polícia Federal de Mato Grosso do Sul.
Desde então, o Paraguai virou uma zona de guerra entre trafcantes paraguaios e brasileiros – do
Comando Vermelho e dos paulistas do Primeiro
Comando da Capital, que se associaram para explorar a região. “Os trafcantes brasileiros usam o
Paraguai para tudo. Para produzir e contrabandear drogas, lavar dinheiro e se esconder da polícia”,
diz o juiz federal Odilon de Oliveira, que já condenou dezenas de integrantes das duas facções em
seu despacho na capital do Mato Grosso do Sul.
O Brasil tenta controlar o problema, mas o desafo é grande. “O Paraguai tem muita fronteira seca
com o Brasil”, diz Botelho, explicando a difculdade. “A droga entra por uma grande quantidade de
estradas vicinais, que estão dentro de fazendas e
não são nem catalogadas.”
Hoje, o Paraguai fornece a maior parte da maconha que se consome na Argentina, no Brasil, no
Chile e no Uruguai. As apreensões de maconha da
PF em 2012 dão uma pista da importância do vizinho para o mercado brasileiro: 70% vieram dos
dois Estados que fazem fronteira com o Paraguai,
Mato Grosso do Sul e Paraná. Os camponeses vendem cada quilo de maconha, que rende pelo menos R$ 4 mil no varejo, por apenas R$ 150. Para
não perder peso, compactam o produto antes de
estar bem seco, com galhos e sementes. A umidade favorece o crescimento de bactérias e fungos,
que impregnam a droga de amônia. É o “prensado
paraguaio” que domina as bocas das regiões Sul,
Sudeste e Centro-Oeste – além de todo o Mercosul.
A guerra da maconha não leva só violência ao
Paraguai. Assim como a disputa por rotas de cocaína para EUA e Europa desestabilizam a democracia em toda a América Latina, a produção de erva
transforma um dos países mais pobres da região
num típico “narcoestado”, afogado em corrupção.
Até o presidente Horácio Cartes, eleito em 2013,
é suspeito. Em 1986, ele foi detido, acusado de lavar dinheiro. Em 2000, um avião com 343 quilos
de maconha e 20 de cocaína foi apreendido em sua
fazenda e, em 2010, o Wikileaks mostrou que ele
era investigado pela agência antidrogas dos EUA
por usar seu banco para lavar dinheiro do tráfco.
Nos dois casos, ele não foi indiciado. Em julho, seu
tio Juan Cartes foi detido no Uruguai com 478 quilos de maconha – está preso. Questionado sobre as
suspeitas numa entrevista, Cartes disse: “Se tudo
isso fosse verdade, eu não seria presidente.”
A reportagem da SUPER insistiu por uma entrevista com Luís Rojas, ministro da Secretaria Nacional de Drogas do Paraguai. O pedido foi negado
– ele estava envolvido num escândalo na imprensa
local, por incluir o gerente geral do banco de Cartes na investigação de uma operação que deu errado. Senadores e deputados protestaram, mas a
polêmica não deu em nada. E a guerra continua.
Fontes Polícia Federal; Jornais ABC Color (Paraguai) e Folha de S.Paulo; Comissão Parlamentar de Inquérito do Narcotráfico.
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maconha | 37
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