{ saúde } tarja verde Cada vez mais pesquisas confirmam a utilidade da maconha para o tratamento de uma grande variedade de doenças. Apesar de a lei brasileira prever o uso medicinal, a falta de regulamentação impede sua aplicação no Brasil. por Ta rso a r aujo com cola bor ação de r achel cosTa Ilustração Fabricio Lopes maconha | 49 { sAúde } “Meu dia a dia é ouvir os pacientes reclamarem de dor”, diz Eusébio*, ortopedista brasileiro especialista em coluna. Em seus mais de 15 anos de formado, ele se preparou para resolver dores com cirurgias, infltrações na coluna e medicamentos. Mesmo com esse arsenal, cerca de 5% dos seus pacientes continuam com dores crônicas, que os impedem de levar uma vida normal. “É frustrante”. Há três anos, ele somou livros de cultivo de maconha aos de medicina, depois de perceber um aumento no número de estudos científcos sobre os benefcios da cannabis para tratar vários tipos de dores crônicas. Hoje, fornece extratos de três variedades da planta para um grupo de 17 pacientes que não respondeu a nenhum outro tratamento. Tudo ilegal. “Posso perder meu CRM e até ser acusado de tráfco”, diz, explicando que tem um acordo verbal de sigilo com seus pacientes. “Eles confrmam que o negócio funciona. Não tenho medo, só quero que a lei mude.” A situação dos pacientes brasileiros não é muito diferente. Quem quer usar a erva para aliviar sintomas de alguma doença precisa recorrer ao mercado negro ou cultivar, com risco de ser acusado de tráfco. Foi o que aconteceu com o publicitário Alexandre Thomaz, de Canoas (RS). Diagnosticado com câncer, ele começou uma quimioterapia. Na sexta sessão, vomitava só de pensar em tomar o remédio. Quando soube que fumar maconha poderia ajudá-lo com as náuseas e seguir o tratamento, decidiu plantá-la. Até que uma denúncia anônima o levou à cadeia. Afnal, ele curou-se do câncer, mas ainda responde a um processo por tráfco de drogas (veja na página 52). “Por que o Estado, que deveria contemplar meu bem-estar, é justamente quem me castiga?” O Brasil faz parte da maioria de países que considera a maconha uma droga sem utilidade. Mas, para os cientistas que lidam com a erva, ela é uma espécie de nova penicilina: relativamente segura, barata e com diversas aplicações. Algumas têm efcácia comprovada por estudos clínicos, como no caso de dores crônicas, esclerose múltipla, anorexia e náusea causada por quimioterapia. Pesquisas mostram que componentes da maconha podem se tornar uma alternativa para cuidar de doenças psiquiátricas tratadas hoje em dia com remédios de tarja preta, que têm mais efeitos colaterais e maior potencial de causar dependência. Estudos com animais têm resultados positivos até no tratamento de câncer. Novo impulso Ano passado, o interesse pelo tema ganhou novo fôlego com um documentário da rede de TV CNN. Weed é apresentado por Sanjay Gupta, o Dráuzio Varella dos Estados Unidos, famoso por sua posição contra a maconha medicinal. No flme, ele dá o braço a torcer e muda sua opinião so- 50 | MACONHA *Eusébio é um nome fictício Foto Celso Junior PARA QUE SERVE? As aplicações da maconha medicinal podem ser divididas em três níveis, segundo a qualidade das evidências disponíveis em cada caso. Nível A Recomendação baseada em consistentes evidências científicas, com testes em pacientes. Náusea e vômito, anorexia e perda de peso, dor neuropática, fibromialgia, espasmos causados por esclerose múltipla ou lesão da medula, síndrome de Tourette, dor em decorrência do câncer e de seu tratamento. Nível B Recomendação baseada em evidências científcas limitadas, com testes em pacientes. Dor pós-operatória ou causada por processos inflamatórios, como doença de Chron, asma, glaucoma e epilepsia. Nível C Recomendação baseada em consenso médico ou pela prática clínica, sem testes em humanos. Gliobastomas (tipo de câncer de cérebro), controle das alterações causadas pelo Alzheimer. Futuro Possíveis recomendações, em fase de pesquisa básica. Doenças autoimunes, câncer, função neuroprotetora, febre e alterações da pressão sanguínea. Fonte www.jabfm.org/content/ 24/4/452/T1.expansion.html Minha filha tinha 60 convulsões por seMana. seMana passada, teve três. É uMa coisa Milagrosa. b KAtiele Bortoli FisCher, 33, mãe dA ANNy, 5 portadora da síndrome de CDKL5 brAsíliA (Df) d Minha filha anny teve a primeira convulsão com 45 dias e logo passou a ter dezenas de crises por semana. Só conseguimos um diagnóstico da síndrome de CDKL5 quando ela tinha 4 anos. Mas nenhuma medicação funcionava e ela teve um atraso cognitivo. Só conseguiu andar com 3 anos e balbuciava algumas palavras. Com 4 anos, ela piorou e voltou a ser um bebê. Parou de andar, de sentar, de fazer sons. A cada crise, ela pode aspirar vômito e pegar uma pneumonia. Então é risco o tempo todo. Às vezes, a crise não para e vamos ao hospital para ela ser sedada. Quando conseguimos o diagnóstico, pesquisamos na internet e descobrimos um grupo de pais de crianças com a doença. Um americano disse que sua filha tinha melhorado com um extrato de maconha com canabidiol (CBD). A gente já tinha tentado de tudo, todas as combinações existentes de remédio para a epilepsia, com efeitos colaterais horríveis. Fizemos até uma cirurgia no cérebro, e nada funcionou. Então compramos o produto de uma empresa nos EUA. É uma pasta, sem o negócio que dá barato, e ela toma uma vez por dia. Há dois meses, quando começamos, minha filha tinha 60 convulsões por semana. Semana passada, teve três. É uma coisa milagrosa. Ela está esperta, fazendo sons, movimentos com braços e pernas. Ficamos surpresos. A imagem que a gente tinha da maconha era essa da Globo, de morro e traficante. Ninguém pensa que pode ser algo medicinal. Quando soube do CBD falei: “Será?” Mas aprendemos muito, não temos mais preconceito. É emocionante, impressionante, surpreendente. Quando você encontra algo que faz efeito, você coloca isso no seu coração, na sua alma. Quando dá certo é um alívio muito intenso. Estamos passando por um momento muito feliz, porque o CBD trouxe uma qualidade de vida para a Anny que ela não tinha há muito tempo. Isso mudou a nossa vida. { SaúdE } d Aos 33 Anos, recebi o diagnóstico bombástico: tinha um câncer no pescoço. Fiz uma cirurgia na semana seguinte e comecei a quimioterapia. Seriam oito sessões, e depois 25 de quimioterapia. Na segunda sessão, começou a cair o cabelo e vieram enjoos fortes. Na sexta, eu já vomitei antes de colocar o catéter com a medicação. Como eu não suportava, os médicos resolveram interromper a quimio. Na radioterapia, perdi todo o paladar, não conseguia me alimentar direito. Foi quando tive a ideia de tentar a maconha e perguntei ao oncologista. Ele disse que não podia prescrever, que em países de primeiro mundo usam mesmo cannabis para atenuar esses sintomas. Já tinha fumado algumas vezes, mas esse tempo passou. Procurei amigos que ainda fumavam e comecei esse tratamento paralelo. Logo percebi mudanças: comecei a me alimentar melhor, dormia melhor, gradualmente até minha autoestima melhorou. Então decidi plantar no meu sítio sementes importadas, indicadas para uso medicinal. Era tão mais limpa que passei a fumar menos e comecei a usar em chás, bolos e outras receitas. Um dia, sem mandato e na minha ausência, a policía arrombou as portas e revirou minha propriedade. Não acharam armas nem dinheiro, mas roubaram coisas minhas e levaram os dez pés da maconha que aliviava meus síntomas. O delegado denunciou os policiais por abuso de autoridade. O Ministério Público não levou a acusação em frente, alegando que eles estavam cumprindo sua função, mas me indiciou por tráfico. O tratamento deu certo: segundo meus médicos, as chances de o câncer voltar são mínimas. Mas ainda respondo processo e posso acabar preso. Se a Constituição Federal diz que todo ser humano tem direito à dignidade, fico me perguntando por que o Estado, que deveria cuidar do meu bem-estar, é justamente quem me pune. fico me perguntando: por que o estado, que deveria cuidar do meu bemestar, é justamente quem me pune? b AlexAndre ThomAz, 44 publicitário Canoas (Rs) bre o assunto. A principal personagem do documentário é a pequena Charlote Figi, de 5 anos, portadora de um tipo de epilepsia raro, grave e sem tratamento chamado síndrome de Dravet. Depois de tentar de tudo e com a flha cada vez pior, os pais decidiram arriscar o uso de um extrato de canabidiol (CBD), componente da cannabis sem efeito psicoativo. Os resultados foram incríveis e a menina, que sofria em média 300 ataques epiléticos por semana, passou a ter no máximo um por semana. Seu caso chegou aos ouvidos de Gupta e, depois do documentário, ao mundo inteiro. Inclusive ao Brasil, onde a mãe de Sofa – outra menina de 5 anos com uma epilepsia grave, rara e sem cura – viu uma esperança “Eu nem me preocupei com a questão legal. Se tivesse que responder processo para controlar as crises da minha flha, responderia”, diz Margarete de Brito, mãe de Sofa. Ela importou um extrato de CBD e as convulsões da criança caíram de 12 para seis por semana. Mas, depois de um mês, o produto perdeu efeito. Na internet, Margarete conheceu mães com a mesma doença e as ajudou. Foi seu exemplo que inspirou Katiele Fischer, mãe de Anny, 5 anos, a fazer o mesmo. A mãe defne o resultado como “milagroso”: as convulsões caíram de 60 por semana para três, em dois meses de “tratamento alternativo” (veja na página 51). “Depois do documentário, vários pais me procuraram dispostos a recorrer ao CBD. É um grupo que gostaríamos de reunir para iniciar uma pesquisa”, diz o neuropediatra e especialista em epilepsia Eduardo Favaret, médico de Sofa. “São mães que andam com uma maleta de CTI quando vão se deslocar com a criança.” Ele explica que os tratamentos disponíveis para epilepsia não têm efeito em um terço do total de casos, que atinge pelo menos 1% da população brasileira – 190 mil pessoas. Outro problema dos remédios dis- Foto Gustavo Schramm Roth poníveis é que alguns têm efeitos colaterais graves, incluindo a cegueira parcial. “Alguns podem até piorar as crises, dependendo do paciente.” O CBD poderia ser uma opção de tratamento importante para epiléticos que não respondem aos tratamentos, especialmente porque não é tóxico. “Existem vários estudos sobre a toxicidade do CBD em animais e em humanos e ele parece ser uma droga bastante segura. O efeito colateral mais frequente é a sonolência, em doses mais elevadas”, diz Antônio Zuardi, psiquiatra da USP de Ribeirão Preto, autor de vários estudos sobre os efeitos da substância. “Não posso prescrever para ninguém, porque é ilegal. Isso me causa certa angústia. Se fosse meu flho, não tenho dúvida de que já estaria no Colorado. Mudava para lá, se fosse o caso”, diz Faveret, referindo-se ao Estado dos EUA em que Charlote pode usar o medicamento legalmente. Por enquanto, sair do país é mesmo a única alternativa para os brasileiros que gostariam de usar cannabis medicinal para aliviar o sofrimento de alguma doença. Podem ser dezenas de milhares de pessoas. Coisa séria O uso terapêutico da maconha é milenar. A mais antiga enciclopédia de medicamentos do mundo, escrita na China com conhecimentos do segundo milênio antes de Cristo, já indicava a erva para diversos males. No mundo ocidental, ela teve seus dias de glória na segunda metade do século 19, receitada para dor, náusea, epilepsia e outros problemas. Isso acabou nas décadas de 1930 e 1940, conforme vários países criminalizavam seu uso. Em 1961, quando a droga foi incluída na lista negra da Convenção Única de Entorpecentes da ONU, seu uso medicinal já era coisa do passado. “A utilidade terapêutica da cannabis foi essencialmente esquecida”, diz Raphael Mechoulan, químico búlgaro que maconha | 53 { sAúde } ajudaria a reverter esse quadro com o isolamento do THC, princípio psicoativo da maconha, em 1964 (leia a entrevista com ele na página 60). Seu trabalho levaria à descoberta de um mecanismo de comunicação entre os neurônios, que ele chamou de sistema endocanabinoide. Hoje, sabe-se que esse sistema regula uma série de reações do nosso organismo ao mundo externo – emoções, humor, dores, apetite e memória, por exemplo. “Com essa descoberta, começamos a entender por que a maconha mostrava resultado em uma série de doenças”, conta o tcheco Lumír Hanus, cientista da equipe de Mechoulan que em 1992 descobriu a anandamida, um endocanabinoide, espécie de THC produzido pelo nosso corpo e peça que faltava nesse quebra-cabeça. Esse conhecimento deu novo vigor aos estudos sobre a maconha. Na base de dados mantida pela Associação Internacional para Medicamentos com Canabinoides (IACM, em inglês), 72% dos trabalhos catalogados são posteriores à descoberta da anandamida. Já existem mais de 70 canabinoides descritos e o desafo dos cientistas é descobrir como se benefciar de cada um. “O CBD é um dos que mais têm chamado a atenção por ter propriedades terapêuticas interessantes, mas não os efeitos psicoativos do THC”, explica o médico alemão Franjo Grotenhermen, diretor executivo da IACM. O THC, por sua vez, pode ajudar até no controle de tumores. “Seu uso no tratamento de câncer poderá ser muito diversifcado. Há testes em casos de glioma, câncer de mama, fgado, pele, pâncreas e próstata, entre outros. Mas até agora o que temos foi demonstrado apenas em modelos animais”, diz o espanhol Manuel Guzmán, pesquisador da Universidade Complutense de Madri e autor de um dos primeiros trabalhos sobre o assunto. Essas perspectivas atraem cada vez mais pesquisadores interessados no potencial terapêutico da maconha. Um grupo de cientistas defende o uso da planta in natura, seja inalada, fumada, adicionada a alimentos ou mesmo processada na forma de óleos ou pomadas. Um dos principais representantes dessa via é Lester Grispoon, da Universidade Harvard e um dos papas da maconha medicinal – que começou a estudar a droga para mostrar seus malefcios, mas mudou de ideia durante as pesquisas. “A planta é uma opção barata e naturalmente equilibrada. Transformar canabinoides em remédio apenas encarece o processo e reduz a efcácia do produto”, diz. Outro grupo defende que remédios com canabinoides, em vez da planta, sejam melhores para controlar os efeitos desejados. “Os pacientes desejam ter acesso a um remédio que seja prescrito, que não tenha de ser fumado ou usado a partir de preparações domésticas, que tenha 54 | MACONHA Foto Rafael Jacinto, ilustração Bruno Algarve farmácia canábica Existem diferentes formas de acesso à cannabis medicinal. Todas que contêm THC podem ter efeito psicoativo. Maconha Flores da planta fêmea da cannabis, rica em canabinoides. Dependendo da variedade, ela pode conter mais THC, mais CBD ou um equilíbrio de ambos. Fumada ou vaporizada (inalada sem combustão com instrumento adequado) produz efeito imediato. Onde: Nos programas medicinais do Canadá, de Israel e da Holanda, e nos 21 Estados norte-americanos com uso medicinal regulado. Extratos E aliMEntos Concentrados de um ou mais canabinoides estão disponíveis em soluções, óleos ou pastas, para consumo via oral ou vaporização. Eles também podem ser adicionados em alimentos. Produtos com CBD, apenas, não causam efeito psicoativo. Onde: Em Israel e nos Estados dos EUA que autorizam o uso medicinal. sativEx® (nabixiMol) Extrato natural de maconha em spray, para uso oral e nasal. Dos medicamentos aprovados, é o único com todas as substâncias da planta. Sua formulação permite a administração da mesma proporção de THC e CBD. Onde: Venda aprovada em 24 países para alívio de sintomas da esclerose múltipla. Marinol® (Dronabinol) Remédio em cápsulas com THC sintético. Onde: Nos EUA, para pacientes em quimioterapia e para anorexia em pacientes de aids. cEsaMEt® (nabilona) Remédio em cápsulas com nabilona, molécula sintética similar ao THC. Sua eficácia é menor que a dos canabinoides naturais. Onde: Aprovado no Canadá (desde 1985) e nos EUA (2006), para náusea e vômito em pacientes de quimioterapia. d Tenho esclerose múlTipla, Parece que a cannabis foi feita Para a esclerose múltiPla. É imPressionante: assim que você fuma, a Paz volta. b GilbErto castro, 40 designer S ã o PA U l o ( S P ) uma doença sem cura e progressiva. Tudo o que a medicina sabe, atualmente, é prolongar o tempo de vida de quem tem essa enfermidade. Eu estou no grau 4 da doença, de uma escala que vai até 10, quando o paciente está morto. Os médicos não chegam a falar em morte comigo, mas consideram que mais cedo ou mais tarde eu fique acamado. Quando recebi o diagnóstico, me disseram que isso aconteceria em dez anos, no máximo. Mas isso já faz 15 anos e sigo bem. Para os médicos, eu sou “ganhador da Sena”. Para mim, se estou assim, é por causa da maconha. Comecei a usar pouco depois de descobrir a doença, em 1999. Em uma consulta, depois de relatar o que sentia, o médico virou para mim em voz baixa e disse: “Se você fumar um ‘baseadinho’ vai ajudar”. Desde então, faço o que se faz em vários lugares do mundo, mas é proibido no Brasil. E não sou o único: conheço muita gente que também recebeu a recomendação dos médicos para fazê-lo, “por baixo dos panos”, claro. Os sintomas mais comuns que sinto são dormência, choques, sensação de quente-frio, cansaço e formigamento. Tudo isso melhora quando uso maconha. Os choques e espasmos praticamente desaparecem e as dores caem pela metade. Nas duas vezes em que passei períodos prolongados sem maconha, os sintomas progrediram rapidamente. Parece que a cannabis foi feita para a esclerose múltipla. É impressionante: assim que você fuma, a paz volta. Tem muito paciente de esclerose múltipla que não sabe disso e está na cama, desesperado, sem saber o que fazer. Fico pensando: A maconha é só uma planta. Não pode ter uma planta em casa? { SAúDE } d Abril de 2007. Nessa data comecei uma luta para viver. Foi quando soube que teria de fazer quimioterapia, radioterapia e cirurgia para tratar um câncer. Foi também quando comecei a usar maconha medicinal. Ao pedir aos médicos, não encontrei resistência. Eles não podem receitar, mas apoiaram. Só pediram que não abandonasse o tratamento convencional, e foi o que fiz. Minha diferença para os outros pacientes logo tornou-se visível. Eu comia melhor, dormia melhor, meu humor era melhor e minhas dores eram bem menores. O problema foi quando fiz a cirurgia. Nesse período, fiquei 15 dias internada e não pude usar a erva. Sentia dores muito fortes, que os médicos tentavam controlar com morfina, não tinha apetite e o soro que me injetavam machucava ainda mais minhas veias, frágeis por causa da quimioterapia. Após o tratamento contra o câncer, parei de usar maconha. Mas dois anos depois comecei a sentir uma dor insuportável. Tinha fibromialgia. Propuseram o tratamento com antidepressivos, vitaminas e analgésicos muito fortes. Comecei seguindo-o, mas os efeitos colaterais estavam me fazendo tão mal que resolvi tentar a maconha mais uma vez. De novo, consegui dormir melhor e os sintomas amenizaram muito. Com acompanhamento médico, aos poucos parei com os outros remédios e fiquei só com a planta. Os problemas para conseguir a maconha seguem. Tenho muito medo de ficar sem ela e ter de voltar ao tratamento convencional e aos seus efeitos colaterais. Sei que é proibido, mas minhas dores são maiores do que a lei. Sei que é proibido, maS minhaS doreS São maioreS do que a lei. b Maria antonia Goulart, 65 artista plástica S ã o Pa u l o ( S P ) composição e qualidade garantidas, autorizado por agências regulatórias para condições médicas específcas e feito por farmacêuticos”, diz Mark Rogerson, representante da GW Pharmaceuticals, dona do Sativex (marca do genérico nabiximol), extrato de canabinoides vendido em 24 países para o tratamento de esclerose múltipla. O Sativex é hoje uma das maiores promessas da cannabis medicinal. Ele sai na frente da planta porque a empresa já fnanciou na última década diversos estudos clínicos que nunca foram feitos com a erva em si. “Não existem patentes no mundo da cannabis”, diz Raphael Mechoulan, explicando que não se pode ter patentes sobre produtos naturais. “Então, se uma empresa gasta 500 milhões de dólares com um teste clínico, ela não vai ter retorno”. Como esse problema não acontece com o Sativex, não falta dinheiro para investir em suas pesquisas. Ele está passando por teste clínico de fase 3 – o último antes de um remédio ir para as prateleiras – para ser aprovado nos EUA. Se isso acontecer, a empresa deve ganhar bilhões de dólares com um remédio que é, basicamente, um extrato natural da planta, com todos os seus canabinoides, não apenas THC e CBD. O fabricante também já solicitou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) um registro para importá-lo para o Brasil, em 2011, mas até hoje não obteve resposta. Mas, como acontece com qualquer remédio patenteado, o Sativex é relativamente caro. Um estudo publicado em 2012 constatou que isso inviabiliza seu custo-benefcio no tratamento de esclerose pelo sistema de saúde do Reino Unido. Lá, a terapia com o remédio sai 17 vezes mais cara do que a oferecida pelo Ministerio da Saúde da Holanda, que regulamentou a venda de Bedrocan – maconha de qualidade controlada. Desde 2001, o país tem um programa federal que hoje atende Foto Rafael Jacinto cerca de 2 mil pacientes. “Os médicos prescrevem cannabis da mesma forma como fazem com outros medicamentos”, informa Catherine Sandvos, da Agência Holandesa para a Cannabis Medicinal. Os pacientes recebem uma receita normal, com a frequência e o tipo de cannabis que devem fumar ou inalar – existem três tipos, cada um mais adequado para um tipo de doença. Um pote com cinco gramas da droga sai por cerca de R$ 130. É bem mais cara que a dos famosos cofee shops do país, mas tem as concentrações de THC e CBD controladas, com certifcação do Ministério da Saúde. Em Israel, onde Raphel Mechoulan pesquisa canabinoides há cinco décadas, são mais de 14 mil benefciados. Além da for para inalar, são vendidos alimentos e óleos contendo maconha, para quem tem a prescricão de um dos 20 médicos cadastrados no programa do governo. O Ministério da Saúde de Israel defende sua posição num comunicado em seu site: “Mesmo que ela não seja um medicamento ofcial ou um remédio reconhecido ao redor do mundo, pode reduzir o sofrimento de diversos pacientes”, defendeu o órgão em comunicado ofcial. No Canadá, outro pioneiro da cannabis medicinal, ela é usada por mais de 30 mil pacientes. O programa nacional está mudando para reduzir desvios de pequenos produtores para o mercado negro. A partir de 31 de março, só empresas cadastradas pelo governo terão autorização para cultivo, mas o paciente não precisará mais se registrar no governo – basta a receita médica. Quem plantava não gostou da novidade. Mas a situação deles ainda é bem melhor que a do Brasil. Pé atrás brasileiro “A maconha e o THC são proscritos no país porque estão na lista 1 da Convenção de Psicotrópicos da ONU, que diz que seu uso é proscrito, exceto para fns médicos e científcos”, diz a farmacêu- maconha | 57 { sAúde } tica Renata Souza, chefe da Coordenação de Produtos Controlados da Anvisa. É seu departamento que controla a lista das substâncias proibidas no País. A exceção citada por Souza também está na Lei de Drogas brasileira (11.343/2006), que diz: “Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fns medicinais ou científcos, em local e prazo predeterminados, mediante fscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.” Então por que não se pode plantar cannabis com fnalidade medicinal no País? “O entendimento é de que o artigo só se aplica para fns de pesquisa. O fm medicinal de que o artigo trata só é efetivo na forma de medicamento. E como não há remédio registrado no Brasil à base da planta, não há justifcativa para mudar”, diz Souza. Para Luciana Boiteux, professora de direito e coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política de Drogas e Direitos Humanos da UFRJ, a posição da agência deve ser contestada. “A Anvisa não pode ignorar ou ir contra a lei. Cabe à agência analisar os pedidos, e não negar de maneira genérica dizendo que a lei proíbe. Isso não se sustenta legalmente”. A representante da Anvisa diz que a questão até poderia ser reavaliada. “Mas nunca houve um pedido. Por que vamos mudar algo se não tem demanda?”, diz Souza. Katiele Fischer, mãe da menina Anny, contratou um advogado para importar o extrato de CBD legalmente e pode se tornar a primeira brasileira a contestar a agência na Justiça. Apesar de o canabinoide não ser tóxico nem psicoativo, e de não constar na lista de substâncias controladas, ele é proibido, segundo a coordenação de substâncias controladas, porque a regulamentação vigente proíbe “todas as substâncias obtidas a partir das plantas” da lista negra. Ou seja, qualquer coisa que a cannabis contenha é proibido no país, mesmo que não seja conhecido ou que não haja 58 | MACONHA evidência de que faça qualquer mal. Interpretada ao pé da letra, a portaria da Anvisa proíbe até água. Emílio Figueiredo, consultor jurídico do Growroom, fórum de internet que agrega cultivadores da erva e reúne dezenas de pacientes clandestinos de maconha medicinal, lamenta a posição da agência. “Tenho a impressão de que no Brasil é mais fácil conseguir autorização para pesquisar urânio ou plutônio do que para usar cannabis medicinal.” O cientista brasileiro Elisaldo Carlini, psicofarmacologista da Unifesp que pesquisa a maconha desde a década de 1960, defende a criação de uma agência reguladora específca para a cannabis medicinal. Em 2010, ele organizou um seminário internacional sobre o assunto e seus participantes encaminharam ao Ministério da Saúde uma proposta de criação da agência. “Tenho a impressão de que nem examinaram os argumentos. O fato é que não se mexeram”, diz. “Bastaria colocar a maconha no mesmo patamar da morfna e de outros opioides, que podem ser prescritos com receita amarela. Já criaria uma possibilidade para os pacientes”, diz o médico Eusébio, que faz extratos para seus pacientes, observando que não seria necessário mudar a lei. “Como médico, quero ter acesso a todas as ferramentas possíveis para trabalhar. Se eu sei que tem um tratamento disponível no mundo, vou aonde for para aprendê-lo. Seja uma técnica cirúrgica, seja um remédio como esse. É muito ruim saber que isso acontece lá fora, e aqui, não.” Além dos médicos, cada vez mais pacientes estão informados sobre o potencial terapêutico da maconha e gostariam de recorrer a essa opção para aliviar seu sofrimento. “A gente sabe disso”, diz Renata Souza, da Anvisa. “No cenário nacional, pessoalmente, tenho visto essas histórias nas reportagens. A primeira demanda que vier será o ponto de partida para começar essa discussão.” Foto Pierry Aires voltei a trabalhar e a ter vida social. tomava três tipos de antidepressivos e agora não uso nenhum. b Marco antônio, 26 comerciante Governador va l a d a r e s ( M G ) d A maconha me beneficia duplamente, pois tenho doença de Crohn, uma inflamação crônica do intestino, e epilepsia. Chegava a ter até quatro crises epiléticas num único dia, com desmaios e convulsões. Em 2011, cheguei a ter uma parada cardíaca. Com a maconha, elas quase acabaram – em 2013, tive apenas uma crise. Mas o efeito é bem maior na doença de Crohn. Quando ela surgiu, há quatro anos, cheguei a perder 20 quilos. Tinha muitas dores abdominais, diarreia, fadiga extrema, dores nas articulações, febre e falta de apetite. Um dia antes do vestibular, acabei internado. Não tinha mais condição nenhuma de trabalhar ou estudar. Passei 40 dias no hospital e por duas cirurgias para colocar uma bolsa no meu intestino. Usava maconha de vez em quando desde os 16 anos e quando descobri a doença decidi parar de fumar, com medo de piorar. Qual não foi minha surpresa quando busquei o assunto na internet e vi que ela era um tratamento indicado para a doença que eu tinha! O uso regular me fez melhorar muito. Meu médico sabe e acompanha os resultados: há quase dois anos não sou internado e a doença de Chron está em remissão. Voltei a trabalhar, tenho um emprego de meio período na parte da tarde, e voltei a ter uma vida social. Antes não saía de casa com vergonha de que os outros não entendessem minha doença. Tomava três tipos de antidepressivos e agora não uso mais nenhum. Quando descobri que a cannabis me ajudava, fiquei muito feliz. Mas isso não passa na mídia, e nem todo mundo que tem minha doença vai ter essa mesma descoberta. { pOlítiCA } O começo do fm Primeiro país do mundo a ter um mercado legal de compra e venda de maconha, Uruguai pode servir de exemplo para uma reviravolta nas políticas globais de drogas. por Ta rso a r aujo, de montev idéu ilustr ação indio san 28 | MACONHA maconha | 29 { política } Fim de tarde na rambla, como os uruguaios chamam o calçadão de Montevidéu, capital do país “na esquina do Oceano Atlântico com o Rio da Prata”. Três jovens com idades de 22 a 24 anos assistem ao pôr-do-sol, enquanto bebem chimarrão, andam de skate e fumam maconha tranquilamente. No Uruguai fuma-se a erva na rua sem muita cerimônia porque o uso nunca foi criminalizado. A reportagem da SUPER pede uma entrevista. Vocês pretendem fumar a maconha do governo? “Não”, diz Alberto Costa, enquanto pede isqueiro a um dos amigos. “Não vou entrar numa lista de maconheiros. O governo vai colocar isso na minha carteira de identidade.” O cadastro exigido para comprar ou cultivar a droga é um dos pontos mais polêmicos da lei. “Esse cadastro é completamente sigiloso, protegido por uma lei já existente de dados sensíveis. Mas as pessoas não sabem e informá-las sobre isso é um dos nossos desafos”, diz Julio Calzada, secretário-geral da Junta de Drogas. Os detalhes sobre o funcionamento da carteirinha ainda não estão regulamentados, mas a ideia é que ela seja usada para controlar a compra de maconha na farmácia, legalmente. Há dois anos, ninguém diria que isso seria possível num país da América Latina. Mas é o que vai acontecer no Uruguai a partir do segundo semestre. Costa, sua turma do skate e as 120 mil pessoas que vivem no país e fumam maconha regularmente terão duas opções para comprar a droga. A primeira é a de sempre: recorrer aos trafcantes. A segunda é a novidade: registrar-se de graça no Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (Ircca) e adquirir a erva legalmente em farmácias tradicionais – sem necessidade de receita, algo que só usuários medicinais precisarão ter. O balconista confere no sistema se a identidade do comprador corresponde ao sujeito registrado. O usuário pode comprar qualquer quantidade dentro do limite de 40 gramas por mês. Quem não tiver a carteirinha – menores de idade e turistas, por exemplo – não terá acesso ao comércio legal. Em vez de comprar, os usuários também poderão cultivar até seis plantas por vez, em cada casa. Também será necessário registrar-se no Ircca, antes de jogar a primeira semente na terra (veja na página 32). Mas nem todos estão felizes. “Planto em casa e quero continuar. Mas, como eu moro com outra pessoa que fuma, seis plantas não se- rão sufcientes. Vou acabar tendo que comprar na farmácia”, diz o usuário e cultivador Diego Sanchéz, 32. A droga comercializada legalmente vai ser bem diferente da que existe no mercado negro. O governo pretende oferecer em torno de cinco variedades, com concentração de THC semelhante à que os uruguaios estão acostumados, de cerca de 5%. Mas enquanto a droga clandestina geralmente chega do Paraguai prensada e com mofo (veja na página 36), a do governo será feita e armazenada com controle de qualidade – provavelmente orgânica, como defendem representantes dos cultivadores. A regulamentação detalhada desse sistema fca pronta no fm de abril e começa a funcionar em agosto ou setembro. O Uruguai será o primeiro país do planeta a ter um mercado legal para a produção, a distribuição e o comércio de maconha. A reviravolta que pode mudar para sempre a política global de drogas começou a tomar forma no primeiro semestre de 2012, no meio de uma onda inédita de violência. Várias execuções ligadas a disputas por pontos de venda de drogas ou a dívidas entre trafcantes aconteceram em Montevidéu. De janeiro a abril, o número de assassinatos aumentou 60% em relação ao mesmo período do ano anterior. O motivo mais comum eram os “ajustes de cuentas” (29%). Apesar de o país ter o segundo menor índice de homicídios do continente – só perde para o Chile –, os casos criavam uma sensação de insegurança generalizada. O governo tinha que tomar uma atitude, mas ninguém esperava tanta ousadia. O presidente José “Pepe” Mujica convocou uma coletiva de imprensa e anunciou, entre outras medidas, que o Poder Executivo encaminharia ao Congresso um projeto para regulamentar a maconha e diminuir o poder do tráfco, que tem na cannabis sua principal fonte de receita. A ideia surgiu numa longa reunião de Mujica com seus ministros mais próximos. A primeira pessoa a pronunciá-la foi o ministro da Defesa, Eleutério Fernandéz Huidobro. E convenceu todos os presentes. “Havia um consenso de que a guerra às drogas adotada em outros países é um fracasso. Se queríamos diminuir o uso de drogas e combater o tráfco de modo efcaz, precisávamos de outra estratégia”, diz Diego Cánepa, prosecretário da presidência da República Oriental do Uruguai – braço direito de Mujica e espécie de chefe da Casa Civil. Àquela altura, nem os Estados norte-americanos de Colorado e Washington tinham aprovado seus plebiscitos para fazer o mesmo (veja na página 38). Era a primeira vez que um governo desafava a Convenção Única de Entorpecentes da ONU, que desde 1961 entregou o mercado de maconha aos trafcantes. Choveram críticas, é claro. O consumo vai aumentar. A percepção de risco vai diminuir. O tráfco não vai acabar. A maconha estatal vai parar na mão de menores e turistas. Pior: uma pesquisa de opinião mostrou que a maioria da população era contra o projeto de lei. Mas o governo estava decidido. “Como dizia Albert Einstein: ‘Estúpido é aquele que sempre faz o mesmo e espera resultados diferentes’”, diz Cánepa. “E não podemos ser estúpidos quando estamos no governo. Se não deu certo nas últimas décadas, vamos tentar algo diferente.” Luta econômica A maioria das histórias de violência de Montevidéu vem de Casavalle, bairro humilde a 20 minutos do centro da capital. Além dos homicídios, a região concentra o maior índice nacional de uso de pasta base de cocaína, cujo uso dobrou no país entre 2005 e 2006. No Uruguai, não existem cracolândias. Mas, numa incursão pelas redondezas, a reportagem da SUPER chegou a ver um pequeno grupo fumando a droga, rente ao muro do cemitério local, enquanto crianças de 10 anos jogavam bola do outro lado da rua. Apesar de não haver favelas, com casas de madeira ou sem saneamento básico, os moradores desaconselhavam entrar nos conjuntos habitacionais baixinhos que, como aqui, são chamados de pombais – “los palomares”. Contrastando com a simplicidade das casas, duplas de jovens com roupas e tênis de marca passavam a bordo de motos novas. Iam e voltavam, de capacete, vigiando o jornalista estrangeiro. “Todos malandros”, diz Lurdes Silva. Diarista, ela fechou o pequeno bazar que mantinha em fren- Imagens Shutterstock, AFP, Corbis/Latinstock te de casa, depois de uma sequência de assaltos. Mostra um tiro de bala na porta da lojinha fechada e conta que nos últimos anos a coisa piorou. “A pasta base entrou demais no bairro”. Ela conta que expulsou o flho de casa há seis anos, depois que ele passou a andar com trafcantes – justamente na época em que o consumo da droga aumentou no país. E agora teme pela segurança das duas netas, de 9 e 10 anos, que moram com ela e sua flha. “Outro dia, uma amiga morreu com um tiro nas costas, a duas quadras daqui. Os trafcantes brigam e paga quem não tem nada com isso.” Ao longo da década de 2000, a disputa entre os cartéis mexicanos por rotas de drogas para os EUA se acirrou. Os trafcantes colombianos passaram então a diversifcar suas rotas de distribuição na América do Sul, para fazer sua cocaína chegar à Europa. A passagem – e o consumo – de derivados de coca aumentou em todo o continente, inclusive no Uruguai. “Nosso mercado é pequeno, mas não é desprezível para os locais. Quando nos tornamos um país de trânsito, houve um aumento associado do tráfco interno”, diz Cánepa. Daí surgiram os “ajustes de cuentas”, com execuções à luz do dia. A novidade assusta os pacatos uruguaios, que antes só viam “estúpido é aquele que faz sempre o mesmo e espera resultados diferentes. não podemos ser estúpidos no governo. vamos fazer diferente.” maconha | 31 { pOlítiCA } controle geral Todo o mercado fica sob supervisão do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (Ircca), que emite licença para os envolvidos e fiscaliza suas atividades. riscos Tráfico Se os usuários não aderirem à maconha estatal, o mercado negro pode continuar forte. riscos Consumo coisas assim nos jornais brasileiros. “O aumento desse tipo de violência está associado ao tráfco, que rompeu códigos existentes dentro da própria criminalidade. E a repressão não solucionou esse problema em nenhum país”. Em vários aspectos, o fenômeno é parecido com o que aconteceu em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo nos anos 80 e 90, quando surgiram facções como Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital, respectivamente. A diferença está na solução proposta para o problema. “Vamos disputar esse mercado e roubá-lo deles”, diz Júlio Calzada. Com 57 anos e três flhos adolescentes, ele fala calmo e devagar, mas cheio de confança. “Hoje, o prensado custa 1 dólar, em média. Vamos vender a esse preço. Se eles baixarem, vamos diminuir o preço. Vamos tirar ao menos uma boa parte desse dinheiro do crime organizado.” Enfraquecer os trafcantes é um objetivo básico da lei, mas ela também pretende reduzir os danos associados ao consumo. Por exemplo, separando os mercados de erva e pasta base, muito mais viciante e perigosa. “Hoje o sujeito vai à boca comprar maconha, o trafcante lhe diz que não tem, mesmo quando tem, e lhe oferece pasta. Vamos acabar com isso”, diz o coordenador de prevenção da Junta Nacional de Drogas, Augusto Vitale. A lei também cria uma disciplina de educação sobre drogas nas escolas e prevê que o lucro obtido com a droga seja usado em campanhas de prevenção e educação. Todas as cidades com mais de 10 mil habitantes deverão ter centros de informação sobre drogas e assistência para dependentes. Além disso, a regulamentação da maconha faz parte de um conjunto de medidas polêmicas que o governo de Mujica colocou em prática para ampliar as liberdades civis – como a legalização do aborto e do casamento gay. DEvEr DE CASA Regular o mercado de drogas ilegais é uma proposta feita por quem defende a legalização há décadas. Mas como fazer isso, na prática? O governo não sabia e foi fazer o dever de casa. Organizou conferências com especialistas em direito, política, economia e saúde de diversos países. Fez reuniões semanais com representantes de diferentes ministérios e de grupos de direitos humanos, redução de danos e usuários. “Havia uma 32 | MACONHA O acesso legal e a queda na percepção de risco podem causar uma alta no uso e no número de usuários. MACONHA ESTATAL cadeia produtiva Empresas uruguaias poderão se candidatar a ter licenças para produzir e distribuir a droga. As farmácias licenciadas também serão escolhidas pelo Ircca. os usuários Para usar maconha legalmente será preciso ter cadastro no Ircca. A privacidade é protegida por lei já existente. Cada usuário terá um número de registro intransferível: emprestá-lo é crime, segundo a lei. Proibido dirigir sob efeito de maconha. Proibido para menores de 18 anos. Projeto uruguaio regulamenta a cadeia produtiva, da plantação ao comércio varejista, e todos os usos da cannabis. r$ 70 miLhões por ano Faturamento anual do mercado negro de maconha no Uruguai, segundo estimativa do governo. produção Empresas com sede no Uruguai podem se candidatar a produzir maconha ou derivados e cânhamo. A variedade e a quantidade de plantas permitidas nestes cultivos em larga escala serão determinadas por decreto. varejo Nada de coffee shops. A venda no varejo será feita em farmácias tradicionais. Não em todas, mas em algumas, licenciadas segundo critérios específicos de segurança definidos na regulamentação. riscos Assaltos riscos Lucro educativo O dinheiro arrecadado com os usuários que compram nas farmácias vai bancar o Ircca e as empresas da cadeia produtiva. O lucro será investido em prevenção e educação sobre os riscos do uso de maconha. transporte Empresas terceirizadas serão responsáveis por distribuir a produção de maconha. Seu perfil será semelhante ao de uma transportadora de valores, já que o grama de maconha é mais caro que o de prata, por exemplo. Contrabando O desvio de quantidades significativas de droga para o tráfico, principalmente de grandes produtores e de clubes canábicos. A exportação dessa maconha pode dar briga com países vizinhos. Farmácias e plantios residenciais ou de clubes podem se tornar alvo preferencial de ladrões. Proibido qualquer tipo de publicidade. compra Usuários registrados poderão comprar até 40 gramas por mês. A cota será controlada pelo mesmo sistema usado para remédios controlados. Vai custar cerca de U$ 1 por grama – preço atual do mercado negro. Mas pode cair, se traficantes baixarem seu preço. cultivo Quem quiser fumar recreativamente também poderá se registrar para plantar sua própria erva, dentro do limite de seis plantas fêmeas em floração por residência e 480 gramas por ano. Plantas machos ou sem flores, que não têm efeito psicoativo, não entram na conta. clube canábico Outra opção de acesso são os clubes canábicos, que também precisam ser autorizados pelo Ircca e podem ter de 15 a 45 sócios, todos formalmente cadastrados. Sua lavoura coletiva poderá ter uma quantidade de plantas proporcional ao número de sócios. ciência e saúde O Ministério da Saúde vai controlar o fornecimento de maconha para pesquisas científicas e pacientes do sistema público de saúde, que não vão precisar comprar a droga. Proibido prensar maconha. riscos Desvios Existe a possibilidade de a droga comprada ou produzida legalmente ser revendida para menores de idade e turistas. maconha | 33 { pOlítiCA } preocupação muito grande em não escrever uma lei ingênua, descolada da realidade”, diz Vitale, que organizou esses encontros e atualmente é um dos responsáveis pela regulamentação da lei. “Foi interessante ver como era importante para os cultivadores se associar, por exemplo, e trazer isso para a lei”. Esses grupos já estavam no radar do governo por causa de outro projeto de lei que estava em discussão no Congresso desde 2011, para autorizar o cultivo pessoal e a criação de clubes com esse fm. Apesar de bem menos audacioso, ele já poderia ser considerado uma revolução sobre o tema na América Latina. Mas quando Mujica anunciou seu plano, ele foi naturalmente engavetado. Seus autores, os deputados Sebastian Sabini e Julio Bango, assumiram a tarefa de redigir o projeto de lei que seria aprovado na Câmara dos Deputados, em agosto de 2013, e no Senado, em dezembro do mesmo ano. Ano passado, Vitale e outros envolvidos com a regulamentação ainda foram aos EUA conhecer a experiência dos Estados de Washington e Colorado – a essa altura, os eleitores norte-americanos já haviam aprovado a legalização do uso recreativo e a regulamentação já estava sendo desenhada. Uma das polêmicas que apareceram ano passado foi a contribuição da ONG americana Drug Policy Alliance para alguns intercâmbios feitos durante a gestação do projeto. O jornal El País, que pertence a integrantes da oposição ao governo, publicou que George Soros – investidor bilionário que banca a ONG por meio da fundação Open Society – estava usando o Uruguai para legalizar a maconha e lucrar com o cultivo da droga como sócio da Monsanto, fabricante de sementes transgênicas. A fundação fnancia projetos e organizações que defendem a legalização das drogas no mundo inteiro, e Soros realmente se declarou a favor da iniciativa. Mas a teoria da conspiração foi abandonada depois de alguns esclarecimentos. “Soros sequer tem participação na Monsanto. Mesmo que tivesse: as atividades da fundação não têm ligação com os negócios dele”, diz Pedro Abramovay, diretor da Open Society para a América Latina. nada de “liberou geral” A lei do Uruguai também não deve ser um bom negócio para quem pensa em lucrar milhões. A Frente Ampla, partido de Mujica e da base governista, é uma coalizão de esquerda formada por di- 34 | MACONHA versos partidos de orientação socialista. E, como tal, não quer que o mercado seja controlado por megacorporações multinacionais. Ao contrário: por lei, apenas empresas uruguaias poderão explorar a produção e a distribuição. E pelo menos uma dezena de licenças de produção devem ser concedidas, para descentralizar a safra e o poder econômico dos benefciados. Assessorado pelo Ircca, o Poder Executivo vai controlar toda a cadeia produtiva. Inclusive, e principalmente, os preços. Ou seja, um cenário bem diferente do livre empreendedorismo que costuma atrair investidores bilionários e é a marca da legalização nos EUA (veja na página 38). “O governo entende que não podemos abrir mão do controle de certos setores estratégicos, como habitação, segurança, saúde e educação”, diz o deputado Julio Bango, coautor da lei. “A política de drogas tem grandes consequências sobre a segurança e a saúde, então faz sentido trazer isso para a responsabilidade do Estado, assim como estamos regulando estritamente o comércio de tabaco desde a década passada”. Essa pegada estatal também explica por que o governo diz que não está legalizando, mas regulamentando a maconha. Para alguns, o segundo termo é apenas um eufemismo para o primeiro. Para Cánepa, a diferença vai muito além da retórica. “A maconha não será um artigo de comércio qualquer, como batata. Estamos criando um mercado regulado, com licenças a particulares e controle estrito do Estado sobre o preço e a quantidade que se pode comprar e produzir. Não é algo que vai estar na mão do mercado”, diz. Esse cuidado com as palavras também é importante para mudar a percepção da população sobre a lei. Pesquisas de opinião mostraram que “legalização” remete à ideia de um “liberou geral”, enquanto “regulamentação” soa mais organizado e restritivo. E acertar na comunicação é especial- mente estratégico porque essas mesmas pesquisas mostram que boa parte dos uruguaios contra a lei ainda não a entenderam direito. Um exemplo disso vem de um levantamento feito em outubro de 2013 pelo Instituto Factum. Quando se perguntava: “O que você acha da legalização da maconha?”, 63% se diziam contra. Mas as mesmas pessoas foram questionadas se os usuários deveriam comprar maconha em “farmácias controladas pelo Estado” ou com a “máfa das drogas”. Nesse caso, 78% das pessoas se disseram a favor da venda em farmácias, exatamente como estabelece a lei. “Aos poucos, passamos da caricatura ao retrato. Quando entenderem a lei, as pessoas vão apoiá-la”, diz Vitale. da teoria À prática Dia 10 de dezembro, de 2013, uma terça-feira, o Senado uruguaio estava lotado. Um ano e meio depois de José Mujica anunciar seu plano de regular a maconha, o mundo inteiro estava de olho no Uruguai. Sob pressão, o presidente admitiu numa entrevista à TV local: “Totalmente, não estamos preparados. Mas é preciso ter coragem e audácia, e buscar caminhos novos na luta contra o narcotráfco”. O debate entre os senadores começou às 10h30 da manhã e durou mais de 12 horas e alguns minutos. O médico e senador Alfredo Solari disse que “se a lei for aprovada, vamos nos converter em um foco regional para o turismo de cannabis”. O senador Blanco Jorge Larrañaga, provável candidato da oposição nas eleições para presidente que acontecem em outubro, disse que o projeto “é uma enorme improvisação do governo, o mercado pode tornar-se incontrolável.” Mas de nada adiantou, e os senadores da coalizão governista aprovaram a medida. O que parecia impossível há menos de dois anos – um país contrariar a ONU e criar um mercado completamente lícito de maconha – tornara-se realidade. A pressão também vinha de fora. “O Uruguai está contrariando as convenções internacionais de controle de drogas”, declarou a Junta Internacional de Fiscalização de Estupefaciantes da ONU, em comunicado ofcial. A nota foi divulgada no dia seguinte à sessão do Senado e provocou uma resposta imediata de Mujica: “Eles têm dois discursos. Um para o Uruguai e outro para os fortes”, disse o presidente a um canal de televisão. “Hoje vão à boca comprar maconHa, o traficante diz que não tem, mesmo se tiver, e oferece pasta base. vamos acabar com isso.” “Somos um país que respeita muito o direito internacional. Mas assinamos muitos tratados, e alguns deles são contraditórios”, diz Diego Cánepa, revelando não se preocupar com a possibilidade de sanções. “Se houver algum problema, então vamos discutir qual direito prevalece. Para nós, é o direito à vida, um valor supremo.” É claro que a lei também despertou reações positivas. A revista britânica The Economist, que há alguns anos defende a legalização das drogas, elegeu o Uruguai “o país do ano”. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso mostrou-se otimista em entrevista à SUPER: “Certamente, será um espaço de teste para novas políticas que poderão ser analisadas e inspirar mudanças nos países vizinhos. É importante que cada país possa experimentar diferentes alternativas”, disse, incluindo-se na lista de pessoas que vão estar de olho no Uruguai, com aquela grande dúvida na cabeça: Será que vai dar certo? “Nunca temos 100% de garantia que uma política vai dar certo. Mas temos a convicção de que precisamos mudar”, diz Cánepa. “O único critério da verdade é a prática. Então deixemos de teoria e façamos o necessário.” maconha | 35 { pOlítiCA } Em janeiro de 2002, o trafcante A nova guerra do Paraguai Maior produtor de maconha da América do Sul, país tem suas fronteiras e plantações disputadas por traficantes locais e brasileiros. por Ta rso a r aujo ilustr ação indio san 36 | MACONHA paraguaio Carlos Cabral, conhecido como “Líder”, foi vítima de uma emboscada fulminante. Sua fazenda foi invadida por 20 homens encapuzados, armados de fuzis, metralhadoras e granadas. Morreram 11 pessoas, incluindo seu flho de 3 anos. Seu algoz seria o trafcante brasileiro Fernandinho Beira-Mar. Em represália, o paraguaio matou 22 pessoas – o dobro – ligadas ao líder do Comando Vermelho. Foi um dos meses mais sangrentos da guerra que há mais de uma década se desenrola no país vizinho, pelo controle do contrabando de maconha para o Brasil. A fronteira do Paraguai é estratégica para o crime organizado brasileiro desde a década de 1990, quando a região se tornou uma das maiores produtoras de maconha do mundo. Em 1994, 2,8 toneladas da droga foram apreendidas no Brasil. Em 2000, esse número aumentou 55 vezes, para 156 toneladas, segundo a Polícia Federal. Noventa por cento do volume de fagrantes vinha de dois Estados: Mato Grosso do Sul (75%) e Rio de Janeiro (15%). Apreensões refetem um aumento na produção ou na fscalização. Seja qual for o caso, é claro que havia uma conexão forte entre os morros cariocas e o país famoso pelas muambas. A conexão entre o Comando Vermelho e o Paraguai começou a bombar em 1997, quando Beira-Mar fugiu de um presídio de Belo Horizonte para lá. Ele recebeu cobertura da família Morel, que produzia maconha desde a década de 1970 e era seu maior fornecedor de erva. O brasileiro comprou fazendas, passou a fnanciar o plantio e a usar o país para receber e exportar cocaína da Bolívia. Em 2001, decidiu assumir de vez o controle da situação e mandou matar o patriarca João Morel – crime pelo qual está preso – e seus dois flhos – execuções que confessou ligando para uma rádio local. “Ele levou ao Paraguai sua expertise e uma rede de contatos e logística que facilitava o escoamento da droga até a venda no varejo”, diz Marcelo Botelho, chefe da Delegacia de Repressão ao Tráfco de Drogas da Polícia Federal de Mato Grosso do Sul. Desde então, o Paraguai virou uma zona de guerra entre trafcantes paraguaios e brasileiros – do Comando Vermelho e dos paulistas do Primeiro Comando da Capital, que se associaram para explorar a região. “Os trafcantes brasileiros usam o Paraguai para tudo. Para produzir e contrabandear drogas, lavar dinheiro e se esconder da polícia”, diz o juiz federal Odilon de Oliveira, que já condenou dezenas de integrantes das duas facções em seu despacho na capital do Mato Grosso do Sul. O Brasil tenta controlar o problema, mas o desafo é grande. “O Paraguai tem muita fronteira seca com o Brasil”, diz Botelho, explicando a difculdade. “A droga entra por uma grande quantidade de estradas vicinais, que estão dentro de fazendas e não são nem catalogadas.” Hoje, o Paraguai fornece a maior parte da maconha que se consome na Argentina, no Brasil, no Chile e no Uruguai. As apreensões de maconha da PF em 2012 dão uma pista da importância do vizinho para o mercado brasileiro: 70% vieram dos dois Estados que fazem fronteira com o Paraguai, Mato Grosso do Sul e Paraná. Os camponeses vendem cada quilo de maconha, que rende pelo menos R$ 4 mil no varejo, por apenas R$ 150. Para não perder peso, compactam o produto antes de estar bem seco, com galhos e sementes. A umidade favorece o crescimento de bactérias e fungos, que impregnam a droga de amônia. É o “prensado paraguaio” que domina as bocas das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste – além de todo o Mercosul. A guerra da maconha não leva só violência ao Paraguai. Assim como a disputa por rotas de cocaína para EUA e Europa desestabilizam a democracia em toda a América Latina, a produção de erva transforma um dos países mais pobres da região num típico “narcoestado”, afogado em corrupção. Até o presidente Horácio Cartes, eleito em 2013, é suspeito. Em 1986, ele foi detido, acusado de lavar dinheiro. Em 2000, um avião com 343 quilos de maconha e 20 de cocaína foi apreendido em sua fazenda e, em 2010, o Wikileaks mostrou que ele era investigado pela agência antidrogas dos EUA por usar seu banco para lavar dinheiro do tráfco. Nos dois casos, ele não foi indiciado. Em julho, seu tio Juan Cartes foi detido no Uruguai com 478 quilos de maconha – está preso. Questionado sobre as suspeitas numa entrevista, Cartes disse: “Se tudo isso fosse verdade, eu não seria presidente.” A reportagem da SUPER insistiu por uma entrevista com Luís Rojas, ministro da Secretaria Nacional de Drogas do Paraguai. O pedido foi negado – ele estava envolvido num escândalo na imprensa local, por incluir o gerente geral do banco de Cartes na investigação de uma operação que deu errado. Senadores e deputados protestaram, mas a polêmica não deu em nada. E a guerra continua. Fontes Polícia Federal; Jornais ABC Color (Paraguai) e Folha de S.Paulo; Comissão Parlamentar de Inquérito do Narcotráfico. Imagens Shutterstock, AFP, Corbis/Latinstock maconha | 37