Mircea Eliade
(1907-1986)
Pessoa incómoda, com uma enorme sede de conhecimento,
Mircea Eliade é uma personalidade ímpar na cultura romena. Não teve
receio de revolucionar o mundo cultural e, pela sua “ressacralização”,
fundou o espaço da grande revolução espiritual, certamente um dos
momentos mais marcantes do século XX.
Eliade foi um dos maiores estudiosos da religião, um escritor
prolífico de ficção e não-ficção, com mais de 1300 títulos/artigos
publicados ao longo de 60 anos.
Nascido em Bucareste a 13 de Março de 1907, filho de
Gheorghe Eliade, um oficial do exército que mudou o seu apelido de
Ieremia para Eliade devido à admiração que tinha pelo escritor EliadeRadulescu.
Na escola, interessava-se por Biologia e Química e teve até um
pequeno laboratório. Lia muito.
Depois de se licenciar em Filosofia, em Bucareste (1928), viaja
até à Índia para estudar sânscrito e filosofia com Dasgupta, um professor
emérito na Universidade de Calcutá.
Eliade era um bom aluno, mas a sua relação com Dasgupta
deteriorou-se quando se apaixonou pela filha deste, Maitreyi, altura em
que escreveu a novela erótica "Isabel si apele diavolului“ (1930).
Regressa a Bucareste e, em 1933, apresenta com êxito a sua
tese de doutoramento dedicada ao Yoga.
Vai para Londres em 1940, como adido cultural da embaixada
romena, desempenhando também as funções de secretário de imprensa
em Lisboa, entre 1941 e 1944. Na capital portuguesa, interessa-se pelos
clássicos, como Sá de Miranda, Camões e Eça de Queiroz, organiza
tertúlias e empenha-se em reforçar os laços entre os latinos do Ocidente e
do Oriente, promovendo traduções, conferências e concertos.
Além da sua actividade diplomática e jornalística, Eliade elabora,
entre 1942-1943, uma introdução à história da cultura romena, que é
publicada em 1943, sob o título Os Romenos, Latinos do Oriente. Nesta
obra, Eliade parte da ideia de que a missão do povo romeno consiste em
manter aberta a foz do Danúbio para a Europa. Os romenos – povo
pioneiro à margem da Europa – cumpriram esta missão durante séculos,
primeiro na luta contra os turcos e mais tarde contra a Rússia bolchevique.
Em Lisboa, escreveu Salazar e a Revolução em Portugal, livro
em que defendia que o general Antonescu, no poder na Roménia, se
poderia inspirar no regime português para criar um Estado autoritário,
mas não totalitário.
Esta obra não surtiu, todavia, os efeitos pretendidos: não só
Antonescu não adoptou o modelo português, como Salazar não gostou
da "heterodoxia" da sua interpretação, o que levou a que o livro não fosse
traduzido para a língua de Camões, autor sobre o qual queria também
escrever.
Nas suas Memórias Eliade descreve com luxo de detalhes a
génese deste livro, que lhe valeu uma entrevista com o próprio Salazar:
“Na tarde de 6 de Julho telefonou-me António Ferro para me
anunciar que no dia seguinte ia ser recebido por Salazar às cinco da
tarde: Como não encontrei um táxi, cheguei lá quase correndo. O porteiro
do Palácio de São Bento perguntou-me para onde ia. “O Senhor
Presidente”, respondi. Ele mostrou-me a escada do fundo e disse:
“Segundo andar, à direita”. Assim se entra no gabinete do ditador
português… Durante aqueles cinco minutos de espera engoli sem fôlego
um copo de água: A minha garganta ficara tão seca que receei não poder
falar.”
Em 1945, vai para Paris, onde o facto de ter conhecido Georges
Dumézil, um importante académico de Mitologia Comparada, lhe garante
um emprego na Sorbonne, a ensinar Religião Comparada. Lecciona ainda
em outros locais e, a partir desta altura, quase todos os seus trabalhos
académicos são escritos em francês.
Publicado em 1949, O mito do eterno retorno. Arquétipos e
Repetição, em que efectua uma interpretação dos símbolos e iconografia
religiosos, foi o título que lhe trouxe o reconhecimento internacional.
Eliade morreu em 1986, aos 79 anos, em Chicago, nos Estados
Unidos, onde residia desde 1958, data em que foi convidado para dirigir o
departamento de Religião da Universidade daquela cidade, tendo-se
posteriormente naturalizado norte-americano.
Reuniu todos os Deuses num só lugar e, assim, escreveu a História das
Religiões.
Mas uma experiência absolutamente definitória para Eliade foi o
tempo vivido em Lisboa (1941 – 1944):
“…E, de repente, surgiram na minha memória as imagens dos parques na
província portuguesa. Lembro-me da sua melancolia terrível. Mundos há
muito mortos que só aguardam o punho vigoroso do bárbaro para se
descomporem”. Diário 7-II-1965)
Em 1941 Mircea Eliade foi nomeado secretário de imprensa na
capital portuguesa. Esta impressionou-o bastante:
“Lisboa conquistou-me desde o primeiro dia (…). No último ano da minha
estadia em Calcutta tinha começado a aprender o português com método e
paixão”.
Durante a sua estada na Índia (1928-1931) Mircea Eliade apaixona-se
pel’Os Lusíadas, paixão que o levou a conhecer a obra do poeta nacional:
“O meu desejo secreto era de me concentrar no estudo da vida e da
obra de Camões. Pouco a pouco comprei todas as edições anotadas dos Sonetos
e de «Os Lusíadas» e, numa tarde de primavera, tive a sorte de encontrar na loja
dum alfarrabista a famosa monografia de Carolina Michaelis de Vasconcellos, há
muito esgotada. A minha paixão por Camões tinha ainda um outro motivo: a sua
biografia e a sua poesia estão ligadas a uma região da Índia que eu não
conhecera – Goa e a Costa de Malabar. Tinha o propósito de escrever um livro
sobre Camões e a Índia portuguesa. Achava interessante (e dalguma maneira
simbólico) o facto de que um romeno que vivera e estudara no Bengala
apresentasse o maior poeta lusitano que tinha vivido – há três séculos – na outra
costa, a costa ocidental da Índia. Este livro, porém, como muitos outros, não
passou dum projecto inacabado.”
O primeiro resultado do interesse de Eliade em torno do universo
camoniano foi um artigo intitulado «Camões e Eminescu» no jornal Acção
(3-IX-1942):
“A literatura deve a Camões a descoberta estética do oceano, até
à data uma «terra incógnita», ao passo que Eminescu, o poeta nacional
romeno, descobrira uma província considerada até então como bárbara
pelos romanos: a Dácia. Uma terra privada de cultura, como a definiu
Ovídio, foi assim descoberta pelo génio de Eminescu, que deu um valor
universal aos seus mitos.”
Além dos seus trabalhos sobre Camões e Eminescu, Eliade
apresentou ao público português, em jornais como A Voz e Acção, uma
série de personalidades romenas como o hispanista Alexandru PopescuTelega o historiador Nicolae Iorga ou o romancista Liviu Rebreanu.
Os últimos dois anos em Lisboa (1943-1944) foram para Eliade um
verdadeiro calvário. O que mais o abalou foi a morte da sua mulher, Nina
Mares, que passou dois meses na Casa de Saúde e Repouso da Lousã.
A impressão da tristeza dos parques portugueses de província,
que Eliade evoca em 1965, provém com certeza deste período na Lousã.
Nina Mares morreu no dia 20 de Novembro de 1944, e Eliade partiu para
Paris, rumo ao exílio definitivo. Nos últimos anos da sua vida relembrou a
imagem da casa em Cascais:
“A casa em que morávamos desde há seis semanas ia ser derrubada até ao
dia 1.º de Outubro. Vivíamos rodeados de escombros, com um lenço na
mão para tapar a boca quando o vento levantava o pó da rua. Esta imagem
parecia-me o símbolo duma Europa no fim da Segunda Guerra Mundial.”
(in Diário)
Na literatura romena, Portugal é uma espécie de planeta
desconhecido, uma «terra incógnita» que fica longe de mais para caber
dentro de um horizonte real e palpável.
A «Ocidental praia lusitana» torna-se, por isso, um pretexto ideal
para evocar um Finisterrae, um limiar entre a realidade e o sonho, entre
terra e água.
Mircea Eliade, ao lado de Nicolae lorga (1871-1940) e Lucian
Blaga (1895-1961) foi um dos poucos romenos que tiveram no século XX
um conhecimento directo do país. Ainda assim, revelou-se incapaz de se
subtrair a esta visão mítica.
Ao escrever nos anos cinquenta o seu romance Bosque Proibido
(Noite de São João), Eliade escolheu como cenário Portugal.
No prefácio da edição portuguesa, Eliade fala-nos desta escolha:
«Creio que, mais do que qualquer outro trabalho literário meu,
este romance poderá interessar o leitor português. Passei cerca de cinco
anos em Portugal, e uma parte da acção do romance decorre em Lisboa,
Cascais e Coimbra (…) Se os compreendi bem, os Portugueses têm uma
determinada concepção do Tempo, da Morte e da História, que lhes
permite pressentir o tema central (e «secreto») do romance (…). Pareceme que para os Portugueses (como aliás para os Romenos), o Tempo, a
História, a Morte e o Amor conservam o carácter misterioso»
Do ponto de vista da ciência das religiões, os anos que Mircea
Eliade passa em Portugal não lhe trouxeram grandes conquistas, e nem o
tempo para elaborar o ambiciado projecto: a aplicação do seu ensaio sobre o
simbolismo aquático à epopeia de Camões.
Porém, Portugal significou para Eliade uma vivência crucial: um
adeus à pátria, à própria cultura, à primeira mulher. Mas só nos últimos anos
da vida ele reconstruiu este “episódio” nas suas Memórias.
Por outro lado, aos portugueses, ofereceu Eliade uma síntese
original da história romena: Os Romenos, Latinos do Oriente pode
considerar-se, sem dúvidas, um primeiro esboço do que seria, anos mais
tarde, a obra De Zalmoxis a Genghis-Khan (Paris, 1970), onde o autor aborda
os temas fundamentais da mitologia popular romena.
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Mircea Eliade - Centro de Língua Portuguesa de Bucareste