Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º.
Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop,
2009. ISBN: 978-85-288-0061-6
Mircea Eliade entre a Fenomenologia e a História das Religiões
Sabrina Mara Sant’Anna∗
Andreza Cristina Ivo Pereira
(...) na expressão “história das religiões”, a ênfase deve ser dada à palavra
religião, e não à história. Pois, se existem várias maneiras de se praticar a
história – desde a história das técnicas até a história do pensamento humano
–, só existe uma maneira de se abordar a religião: atentar para os fatos
religiosos. (ELIADE, 1991: 25)
Antes de adentrarmos no cerne da discussão desse artigo, apresentaremos ao
leitor um mapeamento cronológico da vida e da produção literária de Mircea Eliade.
Nossa intenção não é apenas relatar dados biográficos e bibliográficos, mas buscar
apreender por meio da trajetória pessoal de Eliade sua formação acadêmica, sua atuação
intelectual, seus pilares teóricos, suas escolhas temáticas e metodológicas, bem como o
seu lugar entre os historiadores das religiões. Entendemos que a busca pela
reconstituição de um tecido social e cultural abrangente – com o objetivo de elucidar os
múltiplos fios que ligam o indivíduo ao seu contexto – é preocupação da História. Nesse
sentido, em conformidade com a argumentação de Sabina Loringa e de Benito Bisso
Schmidt, procuramos resgatar o percurso individual de Mircea Eliade com o intuito de
“iluminar questões e/ou contextos mais amplos” (SCHMIDT, 1997:14).1
1. Biografia e produção bibliográfica
Mircea Eliade nasceu em Bucareste, Romênia, em 1907 e faleceu em Chicago, Estados
Unidos, no ano de 1986. Sua brilhante carreira de escritor, iniciada ainda na
adolescência, inclui a produção de vários gêneros literários: novelas, romances, contos,
diários, ensaios, tratados, livros e artigos científicos para enciclopédias, dicionários e
revistas especializadas em história das religiões. A maioria de suas narrativas ficcionais
foram redigidas em romeno e, desse conjunto, poucos textos tiveram versões
lingüísticas diferentes do original. Por outro lado, quase a totalidade de sua obra

Sabrina Mara Sant’Anna é mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais e Andreza
Cristina Ivo Pereira é graduada em História pela Fundação Educacional de Divinópolis/UEMG. Esse
artigo é resultado de pesquisas desenvolvidas para o projeto Escrita Hibrida, o passado entre a história e
a filosofia em História das crenças e das idéias religiosas de Mircea Eliade, orientado pelo Professor Dr.
Mateus Henrique de Faria Pereira e financiado pela FAPEMIG.
1
Cf. também (LORIGA, 1998).
1
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dedicada ao estudo das religiões comparadas foi escrita em francês (após 1945) e em
inglês (a partir de 1956), sendo sucessivamente traduzida para outros idiomas.
Aos quatorze anos, Mircea Eliade ganhou um concurso literário e publicou seu primeiro
texto: um conto intitulado Cum am gasit piatra filosofala2. Entre 1922 e 1923 ele
publicou trinta e dois artigos na revista juvenil Ziarul stüntelor populare3. Durante os
anos 1925 e 1928, período em que cursava Filosofia na Universidade de Bucareste,
escreveu dois artigos por semana para um importante periódico romeno denominado
Cuvântul4 – tarefa que continuou a executar por bastante tempo. Em 1927 publicou
Itinerariu spiritual. I: Linii de orientare5 que, segundo especialistas, é o mais notável
dentre os textos que produziu na juventude.
Durante os meses de abril e junho de 1928, Mircea Eliade residiu em Roma, Itália, para
terminar sua monografia sobre o pensamento filosófico do Renascimento Italiano (de
Marsílio Ficino a Giordano Bruno). Em novembro do mesmo ano, após retornar a
Bucareste e concluir sua graduação, estabeleceu-se na Índia para estudar sânscrito e as
filosofias do sudeste asiático na Universidade de Calcutá. Em 1930, sob orientação do
célebre professor Surendranath Dasgupta (1885-1952)6, Eliade analisou textos de
Patañjali7 e elegeu a história comparada das técnicas do yoga como seu tema de
doutorado. Ainda em 1930, ele publicou na Romênia sua primeira novela intitulada
Isabel si apele diavolului8 e praticou o yoga por seis meses em Rishilkesh, Índia. Em
dezembro de 1931, Eliade regressou à sua terra natal para cumprir obrigações militares.
Após defender seus estudos doutorais na Faculdade de Filosofia da Universidade de
Buracareste, Mircea Eliade foi nomeado, em 1933, professor de Lógica e Metafísica na
instituição em que se graduou. De acordo com Douglas Allen (1985:24), os cursos que
o pesquisador romeno ministrou nesse período versavam sobre “‘o problema do mal na
2
“Como descobri a pedra filosofal” (Tradução conforme GARCÍA, 2003: 225).
“Revista de ciências populares” publicada na Romena. (Tradução conforme ALLEN, 1985:23).
4
“A palavra” (Tradução conforme ALLEN, 1985:23).
5
“Itinerário Espiritual. I: Linhas de orientação” (Tradução conforme ALLEN, 1985:23).
6
Professor emérito da Universidade de Calcutá e autor de cinco volumes sobre a História da Filosofia da
Índia (A History of Indian Philosophy. 5 vols. Cambridge: Cambridge University Press, 1922-55.)
7
Autor ou compilador do Yoga-Sutra, antigo texto que estabelece a filosofia e a prática do yoga.
8
Isabel e as águas do diabo. (Tradução conforme título publicado em português). Entre 1930 e 1940,
Mircea Eliade publicou quatroze novelas. Dentre as obras literárias destaca-se La Nuit bengali (título
original: Maitreyi) e Forêt interdite (título original: Noaptea de Sanziene).
3
2
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filosofia indiana’, ‘a docta ignorantia de Nicolás de Cusa’, ‘as Upanishads e o
budismo’, ‘a idéia de salvação nas religiões orientais’, ‘a metafísica de Aristóteles’, ‘o
simbolismo religioso’ e ‘a história do budismo’”. Em 1936 Mircea Eliade publicou sua
tese de doutorado na França sob o título: Yoga, essai sur les origines de la mystique
indienne9. No ano seguinte lançou em romeno Comologie si Aalchimie Babiloniana10 e
em 1938 presidiu a Zalmoxis, revue des études religieuses.11
Em 1940 Eliade foi nomeado Adido Cultural da Embaixada da Romênia em Londres,
Inglaterra, e no ano seguinte em Lisboa, Portugal. Em 1945 estabeleceu-se na França,
onde lecionou na École des Hautes Études de Paris e viveu até 1956. Durante esse
período participou de diversos congressos internacionais e publicou numerosos artigos
sobre história das religiões. Entre 1949 e 1956 ele redigiu e editou as seguintes obras:
Traité d’histoire des religions (1949), Le mythe de l’éternel retour (1949), Le
Chamanisme et les techniques archaïques de l’extase (1951), Images et symboles
(1952), Le Yoga. Immortalité et Liberté (1955) e Forgerons et alchimistes (1956).
Em 1956 Mircea Eliade ministrou palestras sobre o tema “Esquemas de Iniciação” 12 na
Universidade de Chicago e, no ano seguinte, foi nomeado professor titular e diretor do
Departamento de História das Religiões da mesma instituição. Nas décadas que se
seguiram até a sua morte, Eliade residiu nos Estados Unidos e continuou escrevendo
inúmeros artigos, ensaios e livos científicos. Em 1957 publicou Mythes, rêves et
mystères, uma coletânea de textos escritos entre 1948 e 1956. Le sacré et le profane foi
publicado na França em 1965, embora a tradução alemã dessa obra tenha sido editada
oito anos antes sob o título Das Heilige und das Profane. Em 1966 Eliade recebeu o
título de Doctor Honoris Causa da Universidade de Yale e foi eleito membro da
American Academy of Arts and Sciences.
9
A obra intitulada Le Yoga. Immortalité et Liberté, publicada na França em 1955, é a a versão corrigida e
ampliada da tese de doutorado redigida por Mircea Eliade.
10
Cosmologia e Alquimia Babilônicas (Tradução conforme GARCÍA, 2003: 246).
11
Zalmoxis, revista de estudos religiosos.
12
O texto referente a esta conferência foi publicado nos Estados Unidos em 1958 sob o título Birth and
Rebirth. A tradução francesa – Naissances mystiques. Essai sur quelques types d’initiation – data de 1959
(Paris: Gallimard). A versão espanhola foi publicada em 2000 (Barcelona: Editorial Kairós) sob o título:
Nacimiento y Renacimiento: el significado de la iniciación en la cultura humana.
3
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Na década de 1970 Mircea Eliade continuou a receber distinções acadêmicas e a
participar de importantes congressos internacionais. Foi nomeado Doctor Honoris
Causa pela Universidade Loyola de Chicago (1970), Boston Colege (1971), La Salle
College de Filadélfia (1972), Oberlin College (1972), Universidade de Lancaster (1975)
e Universidade de Paris (1976). Foi eleito membro correspondente da Academia
Britânica (1970), da Academia Austríaca de Ciências (1973) e da Academia Real da
Bélgica (1975). Em 1976 publicou o primeiro volume de sua célebre obra Histoire des
croyances et des idées religieuses, tendo editado os outros dois tomos em 1978 e em
1983, respectivamente. Já bastante doente, Eliade registrou no prefácio do supracitado
livro (3 t. /1983):
O atraso na publicação deste terceiro tomo deve-se principalmente a razões
de saúde: já há algum tempo minha visão vem diminuindo e uma artrite
rebelde dificulta-me o manejo da pena. Vejo-me assim obrigado a concluir
minha última parte da História das Crenças e das Idéias Religiosas com a
colaboração de vários colegas, escolhidos dentre meus ex-alunos.
A enfermidade não significou decadência intelectual. Em 1985 Mircea Eliade finalizou
The Encyclopedia of Religions – um importante trabalho dirigido por ele e publicado em
dezesseis volumes (Nova York: Macmillan Publishing Company, 1987). Nos últimos
dias de vida, mesmo debilitado fisicamente, Eliade continuou trabalhando. Assim
escreveu seu discípulo Ioan P. Couliano no prefácio do Dictionnaire des Religions:
De 23 de março de 1986 até sua morte, ocorrida em 22 de abril daquele
mesmo ano, vi Mircea Eliade todos os dias. Até 13 de abril, nossas
discussões de trabalho geralmente tinham por objetivo este dicionário.
Apresentei-lhe todos os tipos de notas bibliográficas, mas nenhuma das
partes fora ainda redigida. Como a Enciclopédia das Religiões já estava no
prelo e Mircea Eliade vira todos os seus verbetes, confiou-me a tarefa de
escrever o texto do dicionário a partir dos três primeiros volumes de sua
Histoire des croyances (História das Crenças), do quarto tomo (obra coletiva
da qual ainda esperávamos vários capítulos) e da enciclopédia.
Evidentemente ele teria revisto e modificado meu manuscrito antes de
entregá-lo ao editor. (ELIADE; COULIANO, 1990).
Os estudos desenvolvidos pelo romeno Mircea Eliade ainda hoje suscitam discussões
acadêmicas. Muitos são os seus críticos, assim também como os seus defensores.
Doravante, ressaltamos que o legado bibliográfico deixado por Eliade, sem dúvidas,
constitui-se em referência importante para os que se debruçam sobre a História das
Religiões. Sua relevante contribuição nesse campo de pesquisas deve-se às análises e
4
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interpretações que desenvolveu acerca da estrutura dos fenômenos religiosos, da
dialética e morfologia do sagrado, bem como suas manifestações (Hierofanias).
2. A História das Religiões e o pensamento de Mircea Eliade
A Ciência das Religiões – criada inicialmente com o objetivo de analisar os elementos
comuns entre as diversas manifestações cultuais da humanidade e, sobretudo, de
determinar a forma primeira da religião e suas leis de evolução – foi instituída como
disciplina autônoma no século XIX. Ao alemão Max Müler (1823-1900) atribui-se a
responsabilidade de ter empregado e definido, em 1867, o termo denominativo dessa
área de estudos: Religionswissenschaft.13 Segundo ele, tal disciplina deveria ser
absolutamente descritiva, científica e livre de todas as considerações normativas
comumente empregadas pela Teologia e pela Filosofia das Religiões. Mircea Eliade,
refletindo sobre o desenvolvimento e a situação da História das Religiões desde sua
fundação, escreveu (1991: 24-25):
Quisemos a todo custo apresentar uma história objetiva das religiões, sem
perceber que o que chamávamos objetividade seguia as modas do
pensamento do nosso século. Há quase um século, esforçamo-nos para erigir
a história das religiões em disciplina autônoma, em vão. A história das
religiões, como se sabe, continua a ser confundida com a antropologia, a
etnologia, a sociologia, a psicologia religiosa e até com o orientalismo.
Desejando a todo custo obter o prestígio de uma “ciência”, a história das
religiões também sofreu todas as crises do espírito científico moderno: os
historiadores das religiões foram sucessivamente, e alguns continuam sendo,
positivistas, empiristas, racionalistas ou historicistas.
Segundo Eliade, a história das religiões divide-se entre duas vertentes com orientações
metodológicas distintas e, ao mesmo tempo, complementares. Para ele, enquanto alguns
estudiosos dedicam-se a desvendar as estruturas dos fenômenos religiosos, outros
preferem reconstituir o contexto histórico desses mesmos fenômenos. “Os primeiros
esforçam-se por compreender a essência da religião, os outros trabalham para decifrar e
apresentar sua história.” (ELIADE, 1992: 11). Mircea Eliade adverte que os resultados
obtidos pelas pesquisas etnológicas e sociológicas devem ser utilizados pelo historiador
das religiões, entretanto, é preciso completá-los para que possam assumir “uma
13
Antes de Max Müller outros estudiosos empregaram esporadicamente o mesmo termo – Prosper
Leblanc em 1852, por exemplo – mas somente com ele tal terminologia assumiu um sentido rigoroso e
tornou-se amplamente aceita nos meios científicos para designar a “Ciência das Religiões” ou “Ciência
Comparada das Religiões”. (Cf. ELIADE, 1992:5 / ALLEN, 1985: 34).
5
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perspectiva diferente e mais ampla.” Em seu texto sobre os “Esquemas de Iniciação”,
artigo que apresenta o conteúdo da conferência proferida na Universidade de Chicago
em 1956, Eliade distingue categoricamente o trabalho do historiador das religiões da
tarefa investigativa dos etnólogos e sociólogos (ELIADE, 2000: 8):
El etnólogo sólo se ocupa de las sociedades que denominamos primitivas,
mientras que el historiador de la religión incluirá en su campo de
investigación toda la historia religiosa de la humanidad, desde los primeros
cultos de las eras paleolíticas de que se tienen noticias, hasta los movimientos
religiosos modernos. (…)
El historiador de la religión también se separa del sociólogo, ya que su
principal preocupación es comprender la experiencia religiosa de la
iniciación e interpretar el significado más profundo del simbolismo presente
en los mitos y ritos iniciáticos. En definitiva, la ambición del historiador de la
religión es llegar a la situación existencial asumida por el hombre religioso
durante la experiencia iniciática, y hacer que esa experiencia primordial
resulte inteligible para sus contemporáneos.
De acordo com a concepção de Mircea Eliade – explicitada em sua obra Imagens e
Símbolos – o historiador das religiões, no exercício de seu ofício, deve considerar e
enfatizar a palavra religião. Para ele, o estudo das origens e desdobramentos de mitos,
ritos e símbolos é tarefa relevante e necessária, contudo a análise das estruturas dos
fenômenos e experiências religiosas deve constituir a primeira preocupação dos
historiadores das religiões. Conforme sua premissa: “antes de fazer a história de alguma
coisa, é muito importante compreender bem essa coisa, em si mesma e por si mesma.”
(ELIADE, 1991: 25).
Mircea Eliade defende que os fenômenos religiosos, “pelo simples fato de serem
fenômenos, ou seja, de se manifestarem, de se revelarem a nós, são cunhados como uma
medalha pelo momento histórico que os viu nascer”. (ELIADE, 1991: 27). Segundo ele,
o fenômeno religioso só se revela como tal quando é apreendido dentro de sua própria
modalidade, isto é, quando é examinado à escala religiosa. Por essa razão, adverte que
para se descortinar os aspectos que envolvem a manifestação do sagrado (hierofania),
bem como as experiências do homo religiosus, é necessário munir-se de princípios
metodológicos que não estejam limitados apenas à reconstituição dos fatos históricos.
Nas palavras do romeno (1991: 29):
O que distingue o historiador das religiões de um simples historiador é que
ele lida com fatos que, embora históricos, revelam um comportamento que
vai muito além dos comportamentos históricos do ser humano. Se é verdade
que o homem sempre se encontra inserido numa ‘situação’, nem por isso essa
situação é sempre histórica, ou seja, unicamente condicionada pelo momento
6
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histórico contemporâneo. O homem integral concebe outras situações além
da sua condição histórica. Conhece, por exemplo, o estado de sonho, ou de
devaneio, ou o da melancolia ou do desprendimento, ou da contemplação
estética, ou da evasão etc. – e todos esses estados não são ‘históricos’,
embora sejam, para a existência humana, tão autênticos e importantes quanto
a sua situação histórica. Aliás, o homem conhece vários ritmos temporais, e
não somente o tempo histórico, ou seja, seu próprio tempo, a
contemporaneidade histórica.
Em sua própria definição, Eliade não identifica-se com um fenomenólogo, mas como
um historiador das religiões. Munido de conceitos provenientes de diversas áreas do
conhecimento
–
Filosofia,
Filologia,
Fenomenologia,
Psicologia,
Lingüística,
Hermenêutica, Sociologia, Etnologia e História – Mircea Eliade analisou e comparou
manifestações do sagrado em diversas tradições religiosas. Para melhor entendermos
essa liberdade interdisciplinar e metodológica do romeno Eliade, há que se ter em conta
que os pesquisadores atuantes na área da Ciência Comparada das Religiões, ainda no
terceiro quarto do século XX, não tinham entrado em consenso sobre a unidade da
metodologia e da terminologia adequada para essa disciplina. Muitas eram as
divergências sobre o uso da expressão História das Religiões, sobretudo em casos como
o de Eliade, cujos estudos privilegiavam a investigação sobre os fenômenos religiosos.
Dessa maneira, organizações internacionais de especialistas, com o intuito de colocar
ordem e não ser excludente, optaram, já naquela época, por utilizar denominações que
evocavam o termo alemão Religionswissenschaft. Esse termo, que não tem equivalente
exato em outras línguas, designava a emergente “Ciência Comparada das Religiões” –
disciplina que originalmente comportava as seguintes áreas do conhecimento: “Estudo
Geral das Religiões”, “História das Religiões”, “Fenomenologia das Religiões” e
“Sociologia das Religiões”. Nesse sentido, comungamos com a posição de Douglas
Allen, autor da obra Mircea Eliade y o fenomeno religioso (1985: 36):
El mismo Eliade se considera “historiador de las religiones”, y éste es el
término con que lo designaremos. Pero hay que tener presente que la palabra
“historia” não debe entenderse en el sentido estricto y reducido del término, y
que en este caso nos referimos al conjunto de la metodología y de la
disciplina conocidas con el nombre de “ciencia de las religiones”.
Para Mircea Eliade: “existem várias maneiras de se praticar a história – desde a história
das técnicas até a história do pensamento humano –, só existe uma maneira de se
abordar a religião: atentar para os fatos religiosos.” (ELIADE, 1991: 25). Não por
acaso, o estudioso romeno dedicou sua vida à análise da estrutura e morfologia dos
fenômenos religiosos, afirmando que “a empresa do historiador das religiões é muito
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mais ousada do que a do historiador que se propõe reconstituir um acontecimento ou
uma série de acontecimentos à custa dos escassos documentos conservados” (ELIADE,
2008: 11-12). Ele justifica tal “ousadia” pelo fato de que além de traçar a história de
determinados ritos, mitos, deuses ou símbolos, cabe ao historiador das religiões, em
primeiro lugar, compreender a modalidade do sagrado que se revela através de uma
determinada hierofania.14
O conceito de História das Religiões defendido por Mircea Eliade, sem dúvidas, está
alicerçado em sua experiência pessoal e também em sua vivência coletiva, ou seja, em
sua formação intelectual, em seus relacionamentos acadêmicos, intercâmbios culturais,
leituras e pesquisas que realizou ao longo dos anos. Sabemos que o pensamento de
Eliade é fruto de sua época – em uma perspectiva histórica alargada, inclui não só o
tempo em que viveu, mas também o período que o antecedeu, pois ele partiu de estudos
e bibliografias precedentes; leu, concordou, discordou, revisou, discutiu e deixou-se
influenciar por teorias de vários autores. Portanto, ressaltamos que a História das
Religiões praticada por Eliade – cuja característica marcante é o privilégio dos
fenômenos religiosos – está em conformidade com o pensamento vigente no século XX.
Vale lembrar, conforme demonstramos na primeira parte desse artigo, que Mircea
Eliade conheceu o sucesso de sua produção científica (conferências, artigos e livros) e
foi homenageado em vida com títulos honoríficos por diversas instituições de pesquisa e
ensino superior. É claro que ele também recebeu, e ainda hoje seu trabalho recebe,
críticas contundentes. Entretanto, nossa intenção não é dar voz aos seus opositores ou
críticos, mas ouvir o próprio Eliade. Por essa razão, registramos na segunda parte desse
artigo uma série de trechos redigidos pelo romeno. Para tanto, consultamos as seguintes
obras de sua autoria: História das Crenças e das Idéias Religiosas (tomos I, II e III);
Imagens e Símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso; O Sagrado e o
Profano; Tratado de História das Religiões; seu artigo intitulado Nacimiento y
Renacimiento:
el significado de la iniciación en la cultura humana, bem como o
Dicionário das Religiões – obra idealizada por Eliade e concluída por seu discípulo Ioan
P. Couliano.
14
Para Mircea Eliade as hierofanias (ritos, mitos, símbolos, etc), além de serem manifestações do
sagrado, são também documentos históricos que revelam essa manifestação no universo mental daqueles
que o receberam. (Cf. ELIADE, 2008: 17).
8
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Sem a pretensão de esgotar a temática, terminamos esse artigo na esperança de ter
contribuído, mesmo que minimamente, com as discussões sobre o lugar de Mircea
Eliade entre os historiadores das religiões. Ressaltamos que a resposta para o problema
que nosso título coloca – Mircea Eliade entre a Fenomenologia e a História das
Religiões – não pode ser dada sem levar em consideração a opinião dele e as nuances da
origem e do desenvolvimento da disciplina História das Religiões.
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Cristiandad, 1985.
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Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
______. História das Crenças e das Idéias Religiosas. Tomo I, vol. 2. 2º ed. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1983.
______. História das Crenças e das Idéias Religiosas. Tomo II, vol. 1. 2º ed. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1983.
______. História das Crenças e das Idéias Religiosas. Tomo II, vol. 2. 2º ed. Rio de
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______. História das Crenças e das Idéias Religiosas. Tomo III. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1984.
______. Imagens e Símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo:
Martins Fontes, 1991.
______. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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1999.
______. Nacimiento y Renacimiento: el significado de la iniciación en la cultura
humana. Barcelona: Editorial Kairós, 2000. Título original: Birth and Rebirth.
______. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias - historiadores e jornalistas:
aproximações e afastamentos. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 10, n. 19, 1997.
p. 3-21.
10
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Os estudos desenvolvidos por Mircea Eliade, sem dúvidas, ainda