O TEMPO DO “ERA UMA VEZ” DAS HISTÓRIAS: REFLEXÕES SOBRE UMA PRÁTICA NA SALA DE AULA DE CRIANÇAS NA FASE INICIAL DA ALFABETIZAÇÃO LILANE MARIA DE MOURA CHAGAS (UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS (UFAM)). Resumo O presente texto apresenta algumas reflexões em relação à narração de histórias como parte do trabalho com a linguagem, focalizando o ensino da Língua Portuguesa para crianças na fase inicial da alfabetização. As atividades de ensino analisadas são parte de uma pesquisa de doutorado e nesta comunicação apresentamos os desdobramentos teórico–práticos sobre o processo de observações e discussões em relação à narração de história na sala de aula. Algumas questões foram se apresentando: o que significa “a hora do conto”? O conto tem “hora marcada no ensino”? Narrar com livro ou não? A partir dessas questões, registraram–se os momentos em que as professoras e os estudantes utilizaram ou narraram histórias na sala de aula, com auxílio de um livro ou não e, igualmente, quando se realizaram atividades de ensino utilizando a palavra poética. O que interessa e vale ressaltar é que, tanto o registro oral como o escrito, transformam–se pelo próprio movimento que constitui a linguagem e a função da narrativa, fornecendo possibilidades múltiplas de imaginação em uma experiência de aprendizagem. No processo das observações e nas atividades registradas surgiram algumas subcategorias ― narração, leitura, criação de histórias e palavra poética ― que configuraram aproximações mais apuradas no movimento daquilo que denominamos narrativa cotidiana e literária. Desse modo, e para fins deste texto, abordamos duas modalidades de narrativa: uma é a ficcional, quando a professora utiliza ou narra histórias na sala de aula, com auxílio de um livro ou não e outra quando a atividade solicitada pela professora requer que os estudantes narrem os acontecimentos dentro e fora da escola. Observou–se também o lugar e o tempo narrativo. Pelas observações, pode–se constatar que as narrativas possuíam um tempo e, portanto, um lugar específico nas atividades de ensino da língua materna, o que indicava o grau de importância atribuído pelos professores. Palavras-chave: Narração de histórias, Linguagem, Alfabetização/crianças. Introdução Este texto apresenta algumas reflexões sobre a narração de histórias, focalizando o ensino da língua portuguesa para as crianças na fase inicial da alfabetização. As atividades de ensino analisadas são parte de uma pesquisa de doutorado[1] e nesta comunicação apresentamos os desdobramentos teórico-práticos sobre o processo de observações e discussões em relação à narração de história na sala de aula. No decorrer da pesquisa, algumas questões foram se apresentando: o que significa "hora do conto"? O conto tem "hora marcada no ensino"? Narrar com livro ou não? Para fins deste texto, abordamos uma das modalidades de narrativa: a ficcional, quando a professora utiliza ou narra histórias na sala de aula, o que ela denominou juntamente com as crianças de a "hora do conto" e a "hora das pequenas histórias". A partir destes momentos analisados, ressaltam-se possibilidades múltiplas de imaginação em uma experiência de ensino e de aprendizagem. A narração de histórias na sala de aula: Era uma vez... e por que não a hora do conto? A pergunta que norteia nossa reflexão neste texto é que significa narrar histórias no espaço escolar? Hoje com o acesso ao cinema, à televisão e a internet a história deixou de ser uma alternativa importante para as crianças. No entanto, compreendemos que as histórias têm que ser centro de interesse e motivação na complexa tarefa de educar. Defendemos o argumento de que contar e ouvir histórias ajuda a desenvolver a imaginação, enriquece o vocabulário, completa experiências, entre outros aspectos. Mas, não basta saber contar; é preciso saber a quem contar, quando contar e como contar. Desta maneira, o tempo do "Era uma vez" das histórias permite-nos pensar em uma experiência além do tempo cronológico. Narrar traz um acúmulo de situações e de sentimentos que mostram partes da vida e da cultura dos tempos passados. Mas a narração também incorpora elementos do presente como uma necessidade inerente à projeção e ampliação da vida. Assim, a forma objetiva que apresenta o conto, com todos os nexos e desdobramentos implicados nessa forma de comunicação, tem uma intencionalidade, uma finalidade, da qual cada pessoa, ao escutar, assimila, imagina, apropria-se de maneiras diferentes. A observação sobre a atividade narrativa em sala de aula foi realizada no primeiro ano do Ensino Fundamental, em uma escola pública na cidade de Florianópolis. Uma das perguntas norteadoras foi sobre o significado da hora do conto, e se o conto tem uma hora marcada no processo do ensino, como também os suportes da narração, isto é, narrar com livro, sem livro, e o que isso muda no momento da narração. Uma das professoras entrevistadas salientou que, para que a narração de histórias acontecesse na escola era necessário arriscar fazer "coisas diferentes" daquelas que enrijecem a prática pedagógica. Há que se explorar muitos outros espaços da escola e fora dela. A professora explicou que, desde o primeiro dia, para motivar as crianças, planejava em suas aulas alguma ação que lhe permitisse o desencadeamento de outras ações. Explicou que muitas vezes apresentou diversos materiais que poderiam ser trabalhados ao longo do ano letivo e que essa organização se deu através de uma espécie de "banquete" com os diversos materiais oferecidos para as crianças. Segundo nosso entendimento, esse "banquete" corresponde aos múltiplos recursos ou elementos potencializadores que complementam a atividade narrativa e são "alimentos" da imaginação. Nas suas próprias palavras: [...] já no primeiro dia de aula eles entram na sala e a aula começa com vários materiais que vão compor a sala da primeira série: jornal, livros de poesias, gibis, livros de histórias [...]. Nesse primeiro dia, tem de tudo espalhado pela sala, numa toalha de mesa [...] (PROFESSORA Y, 2004). Também vimos que, nessa apresentação dos recursos ou suportes narrativos, as crianças começaram a interessar-se, a perguntar, a comparar, a diferenciar os diversos textos. A professora explicou que as crianças queriam escutar tudo de uma só vez, e uma de suas intencionalidades era que elas percebessem a necessidade de se ter no espaço da sala de aula momentos futuros mais sistemáticos. E foi assim que surgiu, por uma decisão coletiva, a "hora do conto, da poesia, do gibi" não como momentos estanques, mas articulado ao planejamento do tempo e espaço escolar daquela sala de aula. Os estudantes, apesar de saberem que havia um tempo mais específico, denominado de "hora do conto", no decorrer da semana, demandavam da professora momentos de mais e mais histórias (nem que fosse uma história pequena, como eles diziam). Contar histórias em algum momento da aula era realizado somente com "narrativas mais simples" ou com as "pequenas histórias". Explica a professora que essas histórias eram lidas todos os dias e a hora do conto era realizada apenas uma vez na semana com uma organização própria da "roda de histórias". No plano diário da professora observada, estava incorporado o lugar para a narração de histórias, fosse esse momento no início, no meio ou mesmo no final da aula. Mas, se esse momento para a narração não pudesse ser desenvolvido por algum motivo, era retomado posteriormente, pois essa ação não se constituía como algo rígido (só porque estava previsto no plano), a ponto de tornar-se mecânico e sem prazer (tanto para a professora como para as crianças). Em relação à narração de uma "história pequena", assim denominada pelas crianças, o diálogo sobre as histórias lidas encaminhava algumas discussões sobre temas diversos, como por exemplo: conflito que estavam vivenciando, a importância da amizade na escola, a necessidade da brincadeira com os amigos; as diferenças que cada um tem ao agir, entre outros. Observamos que a narração de história não era tratada com o pretexto apenas para cobrir espaço de tempo entre uma atividade e outra e/ou aguardar a hora do lanche e saída para casa como ainda é uma prática entre muitos professores. Nesse episódio, e em muitos outros momentos da narração/leitura das "pequenas histórias", manifestou-se explicitamente a intencionalidade da professora em alcançar um dos objetivos do ensino da língua materna que é o desenvolvimento da linguagem oral ─ a organização do pensamento por meio da fala, bem como a capacidade de ouvir ─ proporcionado pelo debate suscitado pelas "pequenas histórias". Também por meio da narrativa as crianças entram em contato com um universo de vocábulos em diferentes contextos, uma linguagem encadeada e ritmada, com uma estrutura que apresenta início, meio e fim. Assim, aos conteúdos "programáticos" do ensino da língua materna mesclam-se temáticas diversificadas por meio das "pequenas histórias". É nesse sentido que também entendemos que a narrativa literária pode ser compreendida como mediadora de finalidades muito mais amplas, fazendo parte do complexo mundo da linguagem. Nos episódios de narração das "pequenas histórias" verificamos que ela compõe o movimento do ensino da língua materna, em um bailado entre a intencionalidade da atividade de ensino e o que a história pode provocar, por mais simples que seja a narrativa. Nessa direção, a atividade narração/leitura das histórias na sala de aula também foi uma ação que se desdobrou em muitas outras. No relato da professora Y, ela destacou que: [...] têm histórias que eu lia, e depois eu dizia: vamos fazer o que aconteceu na história. Era uma dramatização sem fala, só com gestos, uma espécie de mímica. [...]. A imaginação somente acontece a partir da experiência das crianças, isto é, na relação com o real. Na fala da professora percebemos uma idéia de imaginação que vai ao encontro daquilo que Vygotski (2003: 9) denominou de acepção vulgar. Isto é, uma concepção de imaginação ou de fantasia como algo irreal, que não se ajusta à realidade. Mas, como a criança poderia imaginar algo que não existe na história? Na verdade, a imaginação não surge de uma ausência de nada; são as experiências que elas têm que permitem imaginar. Recordemos que a atividade humana, além da reproduzir os fatos e os acontecimentos, também cria novas imagens e ações, e essa possibilidade Vygotski denomina de função criadora ou combinadora. A imaginação e a fantasia consistem em atividade criadora baseada na combinação: [...] tudo o que nos circunda e tem sido criado pela mão do homem, o mundo da cultura diferenciando-se do mundo da natureza, tudo isto é produto da imaginação e da criação humana, baseado na imaginação (VYGOTSKI, 2003: 10). Como mencionamos, outra atividade de ensino desenvolvida foi a "Hora do Conto", que acontecia uma vez por semana. Nessa atividade encontramos uma interação bem diferente da realizada nas pequenas histórias. Uma das diferenças observadas foi que nenhuma intencionalidade didática, nem mesmo a discussão sobre o conteúdo implícito ao conto era solicitado posteriormente. Destaca a professora Y que o conto ─ como era considerado pelas crianças histórias longas ─ "era lido, só pelo prazer de ler, de ouvir. Ao fazer a leitura eu percebia que eles se deliciavam" (PROFESSORA Y, 2004). No máximo, segundo ela, era realizado um comentário ou outro pelos estudantes. Valorizando ter esse lugar para a narração de história no sentido acima mencionado, Girardello e Fox (2004: 116) pensando na escola pública na qual existe carência de matérias destacam que a narração "[...] é uma forma de vivência artística plena que podemos oferecer às crianças - seja como espectadoras, seja como contadoras - sem precisarmos de nada além de nosso corpo, nossa voz, nossa imaginação e o fundo ‘mar de histórias'". Para favorecer um clima propício à "Hora do conto" as crianças mobilizaram-se para criar algumas regras, pois elas foram percebendo algumas necessidades para que a narração de história se tornasse mais prazerosa e sem interrupções. Os incômodos, como, por exemplo, simples interrupções de outras pessoas da escola no momento da narração, ou a claridade que entrava pela janela da sala, impediam-lhes de concentrar- se. Essas "exigências/regras" foram formuladas coletivamente pelos estudantes no decorrer da atividade como uma maneira de garantir a atenção no momento da história e, ao mesmo tempo, uma forma de as crianças cooperarem/participarem daquele momento coletivo específico. Ao escutarem as histórias concentrados, manifestavam que estavam "sonhando" e a interrupção da narração da história ─ seja para qualquer coisa, até mesmo para a professora mostrar a ilustração ─ era como se se cortasse o sonho. Eles diziam: "Ai não! professora, não pára! Continua lendo! Depois tu mostras tudo, se tu quiser. Mas no meio da história não!" (PROFESSORA Y, 2004) Essa situação de elaboração e debate das regras entre a professora e as crianças na busca de soluções dos problemas manifestos na atividade "Hora do Conto" revela quão importante é, para os sujeitos envolvidos na atividade, compreender as relações entre o motivo e o objetivo da atividade que estão realizando (narrar e ouvir a história), contribuindo para o desenvolvimento da consciência dos sujeitos da atividade. Cabe assinalar que, no momento do conto, as crianças tinham consciência de que muitas palavras desconhecidas para elas poderiam aparecer, mas interromper a história para explicá-las quebraria aquele momento denominado por eles de "mágico, de sonho". Acreditamos que as crianças compreendiam que o momento do conto não podia ser igual ao "momento das aulas" da professora, embora esta atividade fosse desenvolvida na sala de aula. Por exemplo, na narração de "pequenas histórias" existia uma explícita intencionalidade de fazer desdobramentos dos conteúdos sobre a língua materna. Também diferenciavam a hora do conto das "pequenas histórias" que eram lidas diariamente destacando que [...] o conto era geralmente triste porque sempre havia uma morte ou um pai brabo, madrasta má, rei e rainhas, havia cenários de castelos, bosques, descrição dos detalhes dos personagens em que permitia eles imaginarem, sempre finalizava com "ficaram felizes para sempre".. as ruindades eram perdoadas. Havia o belo, a mágica... Já as pequenas histórias não eram assim. (PROFESSORA Y, 2004) No momento do conto, as crianças destacavam que a narração era diferente do diálogo que se dava no movimento da aula. As crianças compreendiam e indicavam na forma como foram organizando a "Hora do conto" que a narração tinha uma outra lógica, um outro ritmo, um outro tempo. As crianças manifestavam que "o conto é pra gostar de ouvir, é pra sonhar! [...]; [...] o conto parece assim que a gente tá indo pra outro lugar!" (PROFESSORA Y, 2004). E o que significa esse "outro lugar" que o conto pode nos levar? Machado R. (2004: 24) destacou que esse "lá" onde a pessoa se transporta [...] é o lugar da imaginação enquanto possibilidade criadora e integrativa do homem. Quando experimento estar dentro da história, experimento a integridade individual de alguém que não está nem no passado nem no futuro, mas no instante do agora onde encontro em mim não o que fui ou o que serei, mas a minha inteireza no lugar onde a norma e a regra - enquanto coerção da exterioridade do mundo - não chegam. Onde eu sou rei ou rainha do reino virtual das possibilidades, o reino da imaginação criadora. Nesse lugar encontro não o que devo, mas o que posso; portanto, entro em contato com a possibilidade de afirmação do poder criador humano, configurado em constelações de imagens. Nessa mesma linha de pensamento, Abramovich (1997: 120) explica sobre os contos de fadas, que estão envolvidos no maravilhoso, um universo que detona a fantasia, mas partindo sempre de uma situação real, concreta, [...] lidando com emoções que qualquer criança já viveu.... porque se passa num lugar apenas esboçado, fora dos limites do tempo e do espaço, mas onde qualquer um pode caminhar....porque as personagens são simples e colocadas em inúmeras situações diferentes, onde têm que buscar e encontrar uma resposta de importância fundamental, chamando a criança a percorrer e a achar juntos uma resposta sua para o conflito....porque todo esse processo é vivido através da fantasia, do imaginário, com intervenção de entidades fantásticas (bruxas, fadas, duendes, animais falantes, plantas [...]. E nessa linha de pensamento, Girardello (1998: 103-104), assinala também que a experiência da arte exige um tempo, que é em geral outra condição benéfica para a vivência imaginativa da criança, e acrescenta que o trabalho da imaginação é [...] "quieto e sub-reptício"; ele se dá bem com a calma, a concentração, o isolamento, e mesmo com certo tédio, [...]. A imaginação é a capacidade de olhar ‘através das janelas do real' viabilizando na experiência o plano das possibilidades [...]. Entendendo esse tempo da imaginação na narração de uma história, as crianças ao criarem suas próprias regras destacavam que não cabem expressões predicativas próprias do diálogo, porque na narração existe uma maior complexidade "em um dizer algo para outro que escuta", porque quem escuta precisa de clareza a respeito daquilo que está sendo narrado para poder imaginar o acontecido (as ações, o contexto, o tempo, as emoções, entre outras questões). Embora a narração oral de uma história utilize a linguagem oral, que é quase sempre dialogada, na narração temos a possibilidade de ver o interlocutor, sua mímica facial e gestual, escutar seu tom de voz. Mas retomando a fala das crianças, podemos afirmar que ao narrar uma história não se pode confundir e misturar elementos do diálogo que interrompem a estrutura narrativa. Consideramos que aqui está à base da solicitação, por parte das crianças, para que não houvesse quebra, para que não existissem interrupções, e neste sentido, se mantivesse o clima de uma relação especial com a história, e, portanto, com o desenvolvimento da imaginação criadora. Talvez as próprias crianças estivessem indicando o que Shedlock (2004: 27-28) apontou como artifícios necessários no momento da narração de uma história. Por exemplo, é o narrador o responsável por todo o drama e também pela atmosfera que o cerca. E para que isso aconteça, destaca a autora, "ele precisa viver a vida de cada personagem e entender a relação de cada um com o todo". Em relação a esse narrar com um ritmo, um tempo da própria história, Shedlock menciona que a pausa é uma das "formas de capturar instantaneamente a atenção do público". Pensamos que esse recurso seja válido tanto para a narração oral com ou sem o recurso do livro. Outro artifício também necessário no momento da narração de histórias que serve como um dos meios para cativar a atenção das crianças e ajuda a expor os pontos da história é o "uso dos gestos", obviamente com moderação para não "distrair" as palavras e a atenção da narração da história. Aliado a esse uso dos gestos, pode haver "o uso da mímica - a imitação das vozes dos animais e dos sons em geral" (SHEDLOCK, 2004: 30-31). Considerando tais aspectos, o relato da professora Y parece sinalizar que as crianças então faziam questão de diferenciar esses tipos de narrativas (diferenciavam o momento da história e o da hora do conto). Talvez o que as crianças tenham percebido seja o conteúdo inserido nas "pequenas histórias" e a intencionalidade dessa atividade de ensino com o intuito de discutir temas pontuais. Por exemplo, temas ambientais, sociais, de ficção científica, policiais e religiosos, que após a leitura serviram para desdobramentos didáticos sobre a temática abordada. Das falas registradas, depreende-se que o mundo do "era uma vez" está mais ligado ao universo dos contos de fadas, dos contos maravilhosos. Devemos entender, e concordando com Góes (1991: 131) que o "conto fantástico ou maravilhoso é todo conto que, pelo tema, situação, atmosfera, linguagem, leva o leitor a um mundo igualmente fantástico, isto é, um mundo que não é o nosso". E acrescenta: "Tanto as crianças de outrora, como as de hoje e o homem primitivo se sentem presos de encantamento ao ouvir histórias maravilhosas que começavam com as palavras mágicas ‘antigamente', ‘era uma vez'[...]" (GÓES, 1991: 67). Deste modo, e por ser esse "momento mágico, momento do sonho", as crianças "sentiam-se dentro do contexto, passando por todos os momentos e envolvimentos que o texto trazia. Sabiam que teriam um quase sempre final feliz [...] Eles manifestavam isso através das palavras ou através de suas próprias expressões corporais", destaca a professora. Igualmente as expressões das crianças em relação ao conto remetem-nos a Vygotski (2004: 359), ao assinalar que o conto de fadas se baseia "nas peculiaridades sumamente compreensíveis da idade infantil". Na interação entre o organismo e o mundo - explica o autor -, em que se reproduz todo o comportamento e o psiquismo, "encontra-se a criança no estágio mais delicado e inacabado e por isso sente de modo especialmente agudo a necessidade de algumas formas que organizam as emoções". Todo tipo de arte, e a narrativa também favorece e ajuda a organizar as emoções dos seres humanos e em especial das crianças, e cabe ao conto de fadas "o sentido saneador e saudável na vida emocional da criança" (VYGOTSKI, 2004:360). O autor também tece algumas considerações a respeito dos contos de fadas, reconhecendo o valor estético de uma obra fantástica. Destaca: [...] Em arte tudo é fantástico ou tudo é real, porque tudo é convencional, e a realidade da arte significa apenas a realidade daquelas emoções a ela relacionadas. De fato, não se trata de modo algum de saber se na realidade pode existir similar ao que é narrado no conto de fadas. Para a criança é mais importante saber que tal coisa em realidade nunca houve do que saber que se trata apenas de um conto de fadas, e que ela aprendeu a reagir a isso como a um conto de fadas; logo deixou de surgir por si mesma a questão de saber se na realidade tal ocorrência é ou não possível. Para se sentir satisfação com o conto de fadas não há qualquer necessidade de acreditar no que nele é narrado. Ao contrário, a crença na realidade do mundo desse conto estabelece relações puramente cotidianas com tudo que exclui a possibilidade da atividade estética. (VYGOTSKI, 2004: 358-359). Nesse sentido, constatamos que a narração dos contos de fadas provoca o estado já mencionado pelas crianças observadas. Ao perceberem a emoção envolvida na narração dos contos de fadas, elas confirmam que, nesse mundo fantástico, "independentemente de ser real ou irreal a realidade que nos influencia é sempre real a nossa emoção vinculada a essa influência" (VYGOTSKI, 2004: 359). Também Benjamin (1994:.215) explica que o conto de fadas, [...] é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador dos contos de fadas. [...]. Tomando as palavras de Vygotski e Benjamin acima mencionadas que revelam a função do conto de fadas, podemos dizer que as manifestações das crianças acerca do que sentiam e pensavam foi possível, dentre outros elementos, devido às ações empreendidas pela professora na organização e realização da atividade de ensino, em especial da intencionalidade impressa na atividade "Hora do Conto". Desse modo, se o professor fosse outro, provavelmente a intencionalidade seria outra. E, mais, as ações que foram desencadeadas pelas crianças e o objeto da atividade de aprendizagem das crianças provavelmente também seriam outros. Considerações finais Na "Hora do Conto", a intencionalidade era realizar uma atividade visando o simples prazer de escutar histórias sem realizar nenhuma atividade didática depois dela. O objetivo central era vivenciar com as crianças o espaço mágico e do sonho através do conto. Vemos que a "Hora do Conto" não foi desenvolvida com a finalidade didática de aprender a escrever. Aspecto importante no primeiro ano, mas que na hora da roda de histórias objetivava-se exprimir as potencialidades que as narrativas, [tradicionais ou não] têm. Assim sendo, a narração de histórias tem uma função educativa. O conto reflete uma estrutura essencial e poderosa através da qual atribuímos sentidos ao mundo e à experiência. Talvez, a escola, e muitas vezes os professores, no afã de ensinar a ler e escrever esqueçam tal importância ou desconsideram alguns aspectos para efetivar essa atividade na sala de aula. Para Egan (1998: 101) a prática regular de ouvir e contar histórias pode estimular um conjunto de capacidades cognitivas, favorecendo a interpretação de histórias cada vez mais sofisticadas, e a história, como um conteúdo a ser considerado pela escola, não é apenas um recurso para ilustrar outros conteúdos da aula. A Hora do Conto - como parte da atividade literária - inclui e contém em si mesma conteúdos e desdobra múltiplos elementos potencializadores que favorecem a educação, em geral, e a educação estética, em particular. Desse modo, defendemos que a narração de histórias deve compor o trabalho com a linguagem na sala de aula e os professores devem cada vez mais se qualificar para desenvolver essa atividade. Referências ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil. 5. ed. São Paulo: Editora scipione, 1997. BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed.. 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