Era uma vez “Lipe”: o nascimento de um amigo imaginário na Educação Infantil Me. Tony Aparecido Moreira FCT/UNESP – Campus de Presidente Prudente – SP [email protected] Comunicação Oral Pesquisa finalizada RESUMO EXPANDIDO Este estudo representa um dos recortes de uma investigação de mestrado realizada em duas instituições de Educação Infantil de dois municípios do interior do Estado de São Paulo. A pesquisa teve origem a partir da necessidade de aprofundar a compreensão da linguagem imaginativa infantil por parte dos sujeitos das duas instituições investigadas. Deste estudo maior pautado na imaginação das crianças no contexto da Educação Infantil, surgiu a necessidade de perseguir um tema identificado como muito significado no campo de estudo da imaginação na infância, os amigos imaginários. Esta pesquisa teve como principal objetivo: compreender o fenômeno dos amigos imaginários a partir da promoção da criatividade das crianças por meio do contar de histórias, construção conjunta de roteiros e personagens. O estudo foi desenvolvido a partir da metodologia da investigação-ação, definida por Benavente, Costa e Machado (1990), como uma análise sociológica, abordagem reflexiva sobre as relações sociais de intervenção, observação e produção de conhecimentos teóricos e operatórios. Foram realizadas intervenções semanais alicerçadas na ação-observação-reflexão-nova ação (CONTRERAS-DOMINGO, 1994), com as crianças e professoras das duas instituições de Educação Infantil. Dentro das intervenções foram desenvolvidas brincadeiras de fantasia e diversas atividades pautadas na valorização do imaginário, em especial, o contar de histórias, em formato aberto à participação ativa das crianças. Como forma de fomentar a criação fantástica, afirmamos para as crianças que tínhamos um amigo das histórias, um menino do Pré que gostava muito de brincar. Não apresentamos imagens ou características mais especificas, para que as crianças trabalhassem com suas imagens mentais. Escolhemos um nome que não fosse de nenhuma 1 delas: “Lipe”. Esse recurso surgiu a partir do encontro com as crianças, em meio as falas e as histórias percebemos uma possibilidade de abordagem que não encontramos em outros estudos, tal novidade nos pareceu eficaz, e obtivemos um êxito além do esperado. Ao iniciar o contar de histórias, relembrávamos que tínhamos um companheiro de aventuras e os roteiros aconteciam em torno dele. As crianças se apropriaram rapidamente do nome, propunham passeios, coisas a fazer. Além disso, diziam ser amigas dele, saber onde mora e brincar com ele de muitas coisas. Entre as falas mais comuns ouvimos: “- Eu brinquei com o Lipe em minha casa!” (Samuel); “- A gente fez uma espada e enfrentou os monstros!” (Paulo P.); “O Lipe é meu vizinho!” (Margarida); “- Não! O lipe mora em Cambé!” (Tiago H.) (DIÁRIO DE CAMPO II, 2012 e 2013). No decorrer das intervenções, as falas referentes ao amigo imaginário se tornaram mais frequentes. Lipe era um amigo da turma, mas que também estava à disposição de cada criança em particular. Em certa intervenção, uma das crianças nos questionou por não termos ido a sua casa para brincar com ela, isso era comum, especialmente as crianças que não tinham muitos amigos próximos de seus lares e ansiavam por companheiros de brincadeiras, explicamos que não era possível. Semanas depois, após falarmos mais sobre o Lipe, Clara afirmou: - Deixa! Vocês não foram! O Lipe foi, e a gente brincou um monte, ele é muito legal! (DIÁRIO DE CAMPO, 2012). Para Harris (2005), o compromisso que a criança tem com a fantasia permite que um personagem possa ser transformado em um tipo de companheiro. A personificação pode ser estabelecida a partir de um colega, um boneco, um objeto, ou um ser invisível. Harris (2005) retrata que as primeiras pesquisas sobre esse fenômeno sugeriam que as crianças que tinham um amigo imaginário sofriam de alguma dificuldade social. Estudos posteriores como as pesquisas de Marjorie Taylor (1999), afastaram-se desse apontamento e demonstraram que há poucas evidências consistentes no temperamento ou personalidade entre as crianças que inventam um personagem imaginário e as que não o fazem. No estudo dessa pesquisadora, referencial para a temática, foi comprovado que dois terços das crianças norteamericanas pesquisadas com menos de sete anos possuem um amigo imaginário. As professoras das duas instituições entenderam essa motivação para os amigos imaginários como um recurso inovador, ainda não tinham vivenciado esse tipo de experiência e expressavam que as crianças durante os outros dias da rotina, afirmavam ter brincado com o Lipe em casa, no parque, na rua, na cidade. Elas nos 2 ajudaram a perceber a repercussão das intervenções na vida das crianças e identificar possibilidades temáticas para as intervenções, demonstrando “[...] que as crianças são capazes de se (re)construir e (re)inventar a realidade, de acordo com as suas vontades e necessidades...eliminando os constrangimentos reais com as possibilidades que a fantasia lhes apresenta” (FERREIRA, 2008a, p. 254). Além das professoras afirmarem ter evidenciado a evocação do personagem imaginário em outros momentos da rotina, os pais e responsáveis ao nos encontrar relatavam que seus filhos estavam “fantasiando muito” em casa, contavam as histórias vividas e falavam de um tal de Lipe. Patrícia, mãe de Isabella, disse-nos acompanhar a filha em suas brincadeiras, e percebia que ela dava nomes para todas as bonecas e passava muito tempo brincando assim, juntava todas elas e cantava as músicas aprendidas na escola. Patrícia disse se interessar pelas brincadeiras da filha e fazer o possível para contribuir com histórias e brinquedos, entende que essas atividades são muito importantes para a vida dela e que a fazem gostar mais da escola. Taylor, Cartwright e Carlson (1993), consideram a criação de amigos imaginários é comum na infância, mas tendo em vista as diferentes realidades que podem ser encontradas, entendem que são necessárias mais pesquisas para determinar porque há tamanha variedade de amigos imaginários. Na perspectiva da Sociologia da Infância, principal alicerce teórico deste estudo, podemos relacionar muito bem esse fato aos diferentes contextos sociais em que as crianças estão inseridas, dos quais percebemos as repercussões nas formas de viver a infância. Entre as crianças das duas instituições, percebemos que após a introdução do personagem Lipe, elas passaram a afirmar sua existência no plano real. Aumentaram também as representações com objetos, mas não necessariamente como personagens, majoritariamente como acessórios para os protagonistas das histórias construídas. Podíamos escutar outros nomes além de Lipe sendo evocados, mas as crianças não necessariamente os repetiam na semana seguinte. Lipe era sempre citado como um acompanhante fiel, as crianças ficavam por longo tempo expressando as aventuras, elas mesmas se questionavam sobre determinados fatos e compartilhavam certas idéias sobre o que Lipe gostava de fazer, as brincadeiras que ele preferia e detalhes sobre seu jeito de ser. Por meio das falas infantis percebemos que as crianças compartilham o amigo imaginário. As crianças nos convenceram sobre a importância desse fenômeno por meio da intensa repercussão percebida. As falas constantes sobre Lipe denunciavam que seria necessário ter uma atenção especial a essas 3 manifestações. Para Harris (2005), as atividades que são trabalhadas com as crianças dentro de intervenções repercutem em suas vidas e isso não necessariamente ocorre após um longo tempo, pode ser apenas algumas semanas. Dependendo do grau de significado, de satisfação para a criança, perceberemos mudanças, elementos novos sendo apresentados, histórias inéditas sendo contadas e novas formas de brincar acontecendo. Pais e responsáveis, professoras e outras profissionais auxiliaram a enxergar as repercussões dessa atividade de criação que foi entendida como um procedimento pedagógico, o que compreendemos como um dos principais resultados do estudo. Podemos concluir que precisamos nos importar mais os estudos da infância, imaginar mais, fantasiar mais, acreditarmos mais na criança como sujeito social ativo e capaz, favorecer espaços potenciais de vida, suscitar o sonho, acreditar na transformação que juntos podemos realizar. Esperamos que essas experiências motivem novos estudos sobre os amigos imaginários, especialmente no Brasil. Professores, pais e responsáveis devem conhecer as criações das crianças durante o brincar, como meio de aproximação e valorização de suas capacidades criativas, sobretudo, estímulo ao sonho e a busca por um mundo mais feliz para grandes e pequenos, adultos e crianças, famílias e escolas inteiras. PALAVRAS-CHAVE: Crianças; Amigos imaginários; Imaginação; Sociologia da Infância; Educação Infantil. REFERÊNCIAS BENAVENTE, Ana; COSTA, Antônio Firmino da; MACHADO, Fernando Luís. Práticas de Mudança e de Investigação: conhecimento e intervenção na escola primária. Revista Crítica de Ciências sociais, [s.l.], v. 29, p. 1-28, fev. 1990. CONTRERAS-DOMINGO, J. ¿Como se hace?. Cuadernos de Pedagogia, Barcelona, n. 224, p. 14-19, abr. 1994. FERREIRA, Margarida Rosa Ramos. Cresce e desaparece...nos enredos da (re) construção dos Amigos Imaginários na Infância. 2008a. 416 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Educação da criança) – Instituto de Estudos da Criança, Universidade do Minho, Braga. 4 HARRIS, Paul L. El funcionamento de la imaginación. 1. ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005. 248 p. TAYLOR, Marjorie; CARTWRIGHT, Bridget S.; CARLSON, Stephanie M. A developmental investigation of imaginary companions. Developmental Psychology, [s.l.], v. 29, n. 2, p. 276-285, jun./1993. TAYLOR, Marjorie. Imaginary companions and the children who create them. New York: Oxford University Press, 1999. 216 p. 5