Modernidade religiosa globalizada e fluxos do sagrado: o campo pentecostal-carismático brasileiro e seus pesquisadores Emerson José Sena da Silveira1 e Nina Rosas2 Resumo: A perda da capacidade regulatória das instituições religiosas e a emergência de um sujeito peregrinando por um mercado de crenças com enorme gama de possibilidades vêm redefinindo as fronteiras simbólicas entre as religiões, fazendo-as sustentar discursos de interesse geral e situarem-se de modo distinto no espaço público, abrigando tanto novas expressões de fé quanto fundamentalismos e radicalidades. Este artigo aborda a partir do intercâmbio entre religião e modernidade alguns impasses da relação entre pesquisador e pesquisado, chamando atenção para a tarefa de constantemente trocar as lentes de análise do fenômeno religioso, buscando conter o descompasso nas inúmeras tentativas de estabelecer terminologias e classificações que por vezes caducam frente aos muitos alinhamentos e ao desenvolvimento exponencial das opções de fé. Desse modo, o presente trabalho traz ainda dois relatos da experiência de campo na Igreja Universal e na Renovação Carismática, apontando pistas importantes sobre a relação sujeito/objeto que devem ser reevocadas frente às atuais perspectivas do que é local e global no âmbito do religioso. Palavras-chave: Modernidade. Metodologia. Igreja Universal. Renovação Carismática. Não é nova a preocupação entre a relação religião e modernidade. Desde muito, é notória a calorosa querela sobre a secularização, o espaço do religioso na esfera pública moderna, a laicidade do Estado, e assim por diante. Os debates decorrentes geram incomensuráveis controvérsias que são absolutamente imprescindíveis para tratar de religião, apesar de conseguirem provocar tédio significativo em muitos pesquisadores. Como ponto de partida, interessa-nos destacar que a polaridade que já havia sido sustentada por Casanova em 1994 – a saber, a de que, grosso modo, todas as teorias sobre a secularização situam-se entre as defesas de, por um lado, o fim ou esmaecimento da religião (argumento razoavelmente abandonado) e por outro, o da privatização da religião – se atualizou a partir dos contraexemplos americanos (latino e estadunidense), suscitando concepções sobre “desprivatização”, “ressacralização”, “dessecularização”, “religião pública”, entre outros, tornando a dividir opiniões (Zepeda, 2010). Dos limites da crescente perda da identificação religiosa e do “reencantamento”, depreendeu-se grande quinhão de textos, artigos, teses e dissertações a tratar do papel da religião na sociedade contemporânea, de modernidade radicalizada (Giddens, 2002). Nos 1 Emerson José Sena da Silveira é antropólogo, doutor em Ciência da Religião e docente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato: [email protected] 2 Nina Rosas é socióloga e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Contato: [email protected] últimos onze anos, está na ordem do dia3 a religião globalizada e as formas recentes de transnacionalização do religioso, as novas modalidades de emergência no espaço público de grupos cuja identidade se dá em torno da fé, a relação entre religião, internet, mídia e novas tecnologias (Bunt, 2009). Assim como dito sobre a secularização, os debates sobre globalização são caros à sociologia e a antropologia da religião, e já se propôs que funcionassem como “instrumento metodológico de pesquisa e de compreensão da realidade social” (sobre Wallerstein, em Pace, 1999, p. 26), desconsiderando as sociedades como unidades de análise isoladas e ajustando as perspectivas para focar relações globais, planetárias, interdependentes. Pace, por exemplo, defendeu que a linha de pesquisa norteadora do debate daqueles que optam por considerar as perspectivas teóricas da globalização, necessita revisar a noção de sincretismo, favorecer a análise comparada das religiões e compreender os sistemas religiosos como modalidades de comunicação que justapõem o “local” e o “global”. De fato, olhando por alto o vasto volume dos trabalhos mais referenciados sobre a religiosidade pentecostal, vê-se, por exemplo, uma constante aplicação ao menos de um desses paradigmas. Como mostra de tal: Emerson Giumbelli e o seu O fim da religião (2002), evocando o paralelo com o contexto francês, as discussões sobre as seitas e os novos movimentos religiosos; Clara Mafra (2000) e a conversão comparada entre brasileiros e portugueses; Cecília Mariz e as comunidades brasileiras no exterior (2009); Paul Freston e a política dos evangélicos (2001); Ari Pedro Oro e os países do Cone-Sul (1999); MarshallFratani e André Corten, “Between Babel and Pentecost” (2001); além de outros trabalhos já consagrados na literatura4. Isto posto, tais estudos mostram cada vez mais o processo de individualização do 5 crer e o enfraquecimento das instituições eclesiásticas, sublinhando o fato de estas já não conseguirem arbitrar um significado último para organizar o cotidiano, nem interferir 3 Fazendo um “estado da arte” dos trabalhos de religião no Brasil, Marcelo Camurça explicitou a agenda recente dos estudos de religião, que incluía além das questões mencionadas, as relações da religião com o corpo e a saúde (observações proferidas em grupo de trabalho no III Congresso ANPTECRE, realizado em São Paulo, entre 02 e 04 de maio de 2011). 4 Uma abordagem interessante feita por Banaggia (2009) pode ser evocada para chamar atenção para que tipo de comparação (o menos etnocêntrica possível) essa mudança paradigmática deve implicar. O autor ressalta o fato de muitos textos antropológicos que abordam a conversão de indígenas tenderem a dicotomizar as culturas, enfatizando a intocabilidade nativa e deixando pouco espaço para a discussão das mudanças na cultura “invasiva”, cujo contato, em função do desejo de fazer prosélitos, pode significar uma alteração substancial até mesmo no “cânone da religião missionária”. Esse raciocínio nos parece aclarador do que Pace defende ao apontar para a dissipação da separação simbólica das religiões, que nos dias de hoje, ficam propensas a aproximar seu discurso ético e moral de temas de interesse global, e, acrescentamos, tendem a deslocar, evitar e até mesmo erradicar as noções de “pureza” e “territorizalização” da religião. 5 Atentemo-nos, porém, ao fato de que o individualismo religioso, como aponta Hervieu-Léger (2008) é anterior ao próprio individualismo moderno, não se configurando como uma consequência exclusiva da modernidade, salvo o fato de ter nela deitado raízes mais profundas. significativamente na constante diferenciação6 das esferas da vida. Os indivíduos modernos se convertem, “peregrinam”, pertencem e deixam de pertencer, revisam as noções de memória e tradição, mudam os contextos de análise; percorrem suas trajetórias de modo tão rápido, que vez ou outra confundem bons pesquisadores. O movimento da religião na modernidade é tão mais veloz que o dos estudiosos, envolvendo-os num emaranhando de classificações e tentativas de compressão do fenômeno, que, tão logo os pesquisadores apresentem a resolução de alguns conflitos produzindo argumentos e recortes, acabam por sugerir “terminologias e classificações” que precocemente envelhecem. Frente a esse cenário, no presente artigo, voltamos nossos esforços para a tentativa de compreender alguns dos impasses que cercam os métodos de estudo em religião – tarefa auto-referida e também vítima das condições dos campos (acadêmico e religioso). Para tanto, dividimos essa abordagem em duas partes. Na primeira, trataremos alguns aspectos da relação religião e modernidade, que consideramos importantes como paradigmas que devem estar à vista no horizonte que se abre da relação pesquisador/pesquisado. No segundo tópico, daremos um salto em direção ao exemplo de pesquisa de Max Weber, momento em que enfocaremos sua capacidade para compreensão do religioso e como seu modo de observação ainda hoje nos põe questões fundamentais. Assim, não esperamos com esse pequeno artigo exaurir ou contemplar todo o intrincado conjunto de possibilidades de compreensão da relação sujeito/objeto (binômio aqui empregado na falta de melhores termos para tais definições). Nosso objetivo é, a partir desse diálogo, oferecer um retorno a certas indagações que por vezes são esquecidas e que entendemos não só perpassarem os estudos da religião, mas os constituírem enquanto tal. Fluxos individuais, fluxos globais: alguns impasses O primeiro impasse que aqui citamos diz respeito ao fato de poder haver uma distância considerável entre as definições do pesquisador e do pesquisado. À parte a instrumentalização do religioso própria à análise sócio-antropológica do social, grandes certezas textuais e as sofisticadas acepções que circundam as noções de religião, crenças, práticas, ritos, conversões etc. produzidas pelas ciências sociais, muitas vezes se distanciam e/ou se confrontam com indivíduos que narram experiências diversas e aparentemente contraditórias. Por vezes, os relatos dos crentes contemporâneos são de extrema efervescência religiosa e fraca vinculação institucional, por outras, as declarações 6 É necessário lembrar que a separação das esferas é vista muitas vezes como recurso analítico, não obstante o fato de ser considerada imprópria por alguns pesquisadores, em nome da imbricação dos campos político e religioso, por exemplo. são de pertencimento nominal e frequência apenas em rituais de passagem, demonstrando assim enorme variação de conduta, distintos entendimentos quanto aos preceitos balizadores de fé e pertencimento, e a questionável autonomia das dimensões do religioso; suscitando-nos a redefinição constante dos problemas e o revisar periódico dos instrumentos de análise. É útil voltar aos argumentos de Pace sobre a utilização da religião como um meio de comunicação, a fim de auxiliar-nos a fugir de ardilosas buscas por definições essencialistas, ou pela superação de grandes entraves nos estudos de religião, como as dicotomias “modernidade” e “tradição”, “primitivo” e “evoluído”, “simples” e “complexo”. Segundo o autor: É preferível, ao contrário, considerar as religiões como sistemas vivos que evoluem – nascem, crescem e morrem – conforme se mostram capazes de traduzir a energia externa em informação inteligente interna, ou seja, capazes de dominar a variedade, a multiplicidade e a imprevisibilidade dos ambientes sociais nos quais os sistemas de crença religiosa nascem e se inserem sucessivamente, se extirpam e se transplantam, se adaptam com menor ou maior eficiência a diferentes ambientes (Pace, 2009, p. 11). Observar as religiões a partir deste prisma pode diminuir as distâncias entre as definições do religioso, e com isso traz então uma dupla tarefa. Primeiro, a de abandonar certas dicotomias produzidas e articuladas pelos próprias sistemas de crença quando estes se comparam a outros (noções como as de puro/impuro, bom/ruim, certo/errado, racional/irracional). Segundo, a de adotar a maneira como as religiões observam a si mesmas no sentido de que nenhum sistema de crença se vê isolado dos “ambientes sócioreligiosos” dos e nos quais emergem; toda religião está circunscrita num conjunto de relações que pode jogar luz no modo como as percebemos7. Outra possível saída para a lacuna que há entre as concepções do religioso para o pesquisador e para o pesquisado pode ser encontrada na observação do desdobramento das peculiaridades da religião na modernidade globalizada a partir da afirmação da destotalização da experiência humana, da crise da transmissão religiosa e na figura do peregrino e do convertido (Hervièu-Leger, 2008). Segundo Hérvieu-Leger (2008), o peregrino sintetiza as experiências de fé da modernidade quando, por meio de uma construção biográfica, resolve as aparentes contradições8 dos variados percursos religiosos que realiza; podendo ser desde aquele 7 Enzo Pace acrescenta que deve fazer parte do modo de análise do estudioso das religiosidades a distinção entre a fundação de um sistema de fé (improvisação originária de ressignificação de diversas crenças) e o processo de “sistematização sucessiva” das práticas e valores de uma religião. 8 Almeida e Montero (2001, p. 92) notaram que essas incongruências aparentes e a intensidade do trânsito religioso no Brasil, por exemplo, mostram que o conceito de conversão de Weber, de mudança de credo e adoção de novas práticas de fé, já não explica suficientemente a complexidade indivíduo que planeja a viagem a Taizé, na colina de Borgonha na França, e se reúne com jovens de todo o mundo no verão europeu para participar de um encontro, experiência mística, turística ou cultural, até o crente que peregrina na Igreja Universal do Reino de Deus no Brasil, buscando exorcizar seus demônios e obter sucesso na vida – ocasiões como estas em que predomina a religiosidade móvel e individualizada, voluntária, variável e fortuita. Por outro lado, ainda segundo Hèrvieu-Leger (2008), o convertido, concomitantemente, se refere a um modelo de adesão individual, cuja filiação institucional (não necessariamente implicada numa vivência comunal) se dá: como um fim de caminhos tortuosos, na busca de um sentido para a vida, no preenchimento espiritual, ou no interesse material ou na validação conjunta de um sistema de crenças. Mas daí, pertencer a uma religião, então, abre um segundo dilema de pesquisa: o de não só considerar, mas ter que se apropriar do fato de que a não heteronomia dos indivíduos a sistemas fechados aferidores de respostas últimas implica num complexo processo de “bricolagem”, e também e analogamente, em exclusivismos religiosos; ambos os fenômenos são quase indissociáveis na contemporaneidade e que caracterizam uma variedade de opções e percursos ainda mais diversos e que devem ser detidamente incluídos nas análises do movimento do religioso. Assim, o corolário da modernidade globalizada pode ser olhado de duas formas: como a desmonopolização da religião, que passou no ato de sua descentralização a pluralizar-se compondo um distinto cenário de opções de fé9, atuando de maneira diferenciada no espaço público, e como a identidade e o movimento fluido dos fiéis em um vasto repertório de práticas e crenças, posições que trazem para o debate acadêmico as novas formas de solidariedade, identidade e memória, criadas e recriadas por esses crentes. Quanto a isso, em conferência de 1998, Höllinger já mostrava que era necessário certo refinamento no modo de analisar as práticas religiosas frente aos fenômenos de secularização, pluralização e globalização (esta última que inclui a circulação das próprias práticas religiosas). Segundo ele, a aparente ausência ou expressão exacerbada da religião no espaço público, o aumento ou a diminuição de dada filiação religiosa, bem como as distintas participações de indivíduos em rituais, não poderiam ser explicados levando em conta apenas uma das teorias sobre a religião na modernidade; pensar na secularização, no mercado religioso competitivo ou num “ressurgimento” do religioso separadamente, não explicaria o movimento diferenciado de práticas e crenças em várias regiões. do campo religioso. Nem por isso os autores se contentam apenas em caracterizar o movimento religioso no Brasil apenas como contínuo ou sincrético, chamando atenção para a necessidade de compreendê-lo em seus pormenores e apontar tendências. 9 Isso mostra como a religião não sai de cena na modernidade e sim se reformula uma vez que lhe foram impostos limites de atuação e organização da vida social (Ortiz, 2001). Desse modo, acrescenta-se ainda um ponto de vista que deve ser incorporado à segunda questão que levantamos: o de que a relação das sociedades com a “Igreja” (fé institucionalizada) ou com expressões do religioso são função do papel da religião na sociedade ao longo da história. Como exemplo, Höllinger (1998) atribuiu a maior religiosidade norte-americana ao desenraizamento cultural advindo da imigração, à liberdade religiosa constitucionalmente assegurada e ao denominacionalismo, acentuando a alta valorização da religião no processo de formação do Estado. Abarcar certo perspectivismo histórico não significa reduzir o leque comparativo, mas, como lembra Segato (1997) ao questionar se nas ciências sociais o discurso da globalização não estaria sendo incorporado de modo quase acrítico, faz parte do labor de pesar os lados da balança, medir os próprios relativismos. Os contextos das expressões religiosas somam-se a outras conjecturas de peso também considerável que formam o que apontamos aqui como um terceiro dilema, a saber, o das experiências, dos percursos e das diversas crenças pessoais dos próprios pesquisadores. Este é um dos maiores embaraços dos estudos de religião. Antropólogos e sociólogos produzem e reproduzem “cosmologias”, experiências das quais chamamos atenção para duas possibilidades. Especificamente a tratar do fenômeno do religioso, de um lado, cientistas sociais são nativos e pesquisadores de suas crenças e pertenças, atracando-se consigo mesmos pelo incômodo que geram tanto nos acadêmicos quanto nos pesquisados. Outras vezes, incorre-se num risco distinto, o de reproduzir a “doxa corrente” 10, as óticas já estabelecidas, em nome de aceitações, acomodações e interpretações consolidadas. Quanto a esta defesa de pontos de vista, verdades, conclusões, Mariz alertou: A capacidade dos pesquisadores de ver fatos que desmintam seus trabalhos anteriores (as teorias que defenderam em congressos e textos publicados) pode variar bastante. Aí o pesquisador tem interesses e valores tão fortes para defender quanto os que professam alguma crença religiosa (Mariz, 2000, p. 34). E podemos acrescentar: se os pesquisadores há muito se debruçam sobre os tênues limites entre a aproximação e o estranhamento, entre a subjetividade e a intersubjetividade, entre as crenças dos outros e seus limites de verdades; os pesquisados de hoje, em contrapartida, vem cada vez mais conhecendo e falando a língua de seus observadores, fazendo deles também “seus macacos” 11 , invertendo prismas. Em tempos de modernidade, em que se questionam não apenas as verdades religiosas, mas a própria a 10 Perez (2010). Ver o texto de Guilherme José da Silva e Sá que traz uma rica discussão sobre a percepção dos nativos. 11 ciência, discussões como essas não são apenas importantes ou revigorantes, mas são condições prévias de qualquer experiência com religiosos, de experiências religiosas (Mariz, 2000). Lembremo-nos que o pesquisador é “ao mesmo tempo, o seu próprio cronista e historiador”, fato que faz da exposição das condições nas quais são realizadas as coletas de dados, a única chance de minimizar a distância entre o “material bruto” e as conclusões de pesquisa (Malinowski,1998); ademais, a própria noção do que é pesquisa, assim como expusemos no primeiro impasse considerado, passa por fluxos e refluxos, definições e redefinições de limites, fronteiras, conceitos12. Nesse sentido, uma boa pista é deixada por Gilberto Velho (1986) ao lembrar que a antropologia (e por que não a sociologia e outras áreas afins) por vezes se mostra com o etnocentrismo contra o qual luta, representando um ponto de vista externo, quase caindo na tentação de se pôr como exclusivamente conhecedora e definidora do que é religião, cultura, local/global, nativo/estrangeiro. Isto posto, vejamos o exemplo weberiano. Weber: contribuições ao debate Talvez seja interessante fazer um breve mapeamento intelectual a respeito de Weber e perceber que as mudanças na forma de mapear os fenômenos e o modo de compreender a posição do pesquisador, não são novas, mas emergem nos contextos epistemológicos e políticos da modernidade, desde suas origens e história desenvolvimental13. Dentre os textos weberianos, “As seitas protestantes e o espírito do capitalismo” 14 , em sua versão primeira, é o que mais se distancia de uma linguagem sociológica impessoal, pois lança mão da locução pessoal, transmitindo ao leitor a nítida sensação das observações vividas. Não está no escopo explícito, uma discussão metodológica e uma comparação cultural detalhada, embora uma das vértebras do pensamento weberiano se esgueire pela comparação, entre traços e formações culturais e religiosas; muito embora, a perspectiva comparativa tenha levado o trabalho weberiano a minúcias e a detalhamentos em função da pergunta pela singularidade do desenvolvimento histórico12 A título de exemplo, ver Giumbelli (2002). Antes é preciso uma observação. As vivências de uma época histórica só podem ser entendidas, e de novo avivadas com sentido e significado, a partir das leituras e vivências do presente, cuja velocidade e fluxo de mudanças aceleram-se, cruzam-se em inesperadas combinações, estão em rede. São leituras e vivências cultivadas e consumidas, num mercado, entendido aqui como um campo de esportes, o local do jogo entre oferta e procura (Bauman, 2010). 14 A análise sobre Max Weber será feita partindo e retornando principalmente ao texto As seitas protestantes e o Espírito do capitalismo, originalmente publicado como: Die Protestantischen Sekten und der geist des Kapitalismus, Desammelte Aufsaetze zur Religionssoziologie, vol. 1, p. 207236. 13 cultural da modernidade ocidental, cujo fulcro pode ser identificado, sob a forma de afinidades eletivas, em determinadas regiões geográficas da Europa e dos EUA. Uma pergunta parece sempre estar por trás do esforço comparativo weberiano: Porque em tal local, essa, e não outra conjuntura de fatores, religiosos e não-religiosos, engendrou tal arranjo que não pôde ser verificado em nenhum outro lugar? Sua incansável comparabilidade buscava encontrar a conjuntura “ideal” que tivesse levado à ruptura irrevogável. No pequeno texto sobre as seitas nos Estados Unidos da América, Weber lança mão de uma comparação indutiva e implícita, a partir de uma concepção sobre desenvolvimento histórico não-teleológico. O rastro da história só pode ser entendido a posteriori, daí o recurso à noção de afinidade eletiva e tipo ideal, no âmbito do projeto weberiano – a especificidade e a singularidade do ocidente e de seu comportamento religioso e social, mas em face de outros comportamentos e sociedades. As trajetórias múltiplas dos desenvolvimentos históricos da cultura ocidental podem ser investigadas e ressaltadas num jogo de linguagem em que a dimensão interpessoal e social combina-se de forma intensa. As imagens que surgem dessa perspectiva experiencial são muito instigantes, pois Weber narra uma sucessão de experiências vividas: a viagem por território índio ao lado de um caixeiro-viajante, o médico alemão habitante de uma cidade do rio Ohio que, espantado, narra a fala de seu primeiro paciente, ou um ritual batista de batizado na Carolina do Norte realizado entre seus parentes e comentado com desdém por um deles. Todo o texto contém densas observações, e as mais caudalosas notas de rodapé enlaçadas a conceituações histórico-sociológicas e pessoais: desde as sessões da Suprema Corte Americana que invocam o nome de Deus às sessões laicas na Alemanha, até as indagações feitas pessoalmente sobre o seu comparecimento ao culto religioso na cidade de Portree e a resposta dada às senhoras que o abordaram. Weber nos oferece um panorama cambiante que vai da observação de gestos e atitudes, como a de um serviço de culto num colégio da Pensilvânia a observações históricas sobre o exército de Santos de Cromwell (Weber, 2002, p. 222-223). Mas não são fragmentos soltos, antes estão alinhavados e afinados a temáticas mais universais, como a disciplina moral rigorosa dos protestantes e a admissão ao culto da ceia do Senhor. E isso, a nosso ver, talvez seja esta uma das maiores contribuições do texto weberiano que consegue estar no tênue limite entre a adoção do modo de ver a religião segundo o próprio sistema de crença e o abandono das dicotomias diversas produzidas por estes mesmos sistemas 15. As observações perspicazes e comparadas lançam luz sobre fenômenos a partir de ângulos que evidenciam uma sutil combinação de sociologia e sensibilidade de cunho antropológico. Assim, percebendo uma realidade em viva mudança, Weber usa a expressão “secularização” diversas vezes, constatando os laços de afinidade eletiva entre comportamento sectário protestante (as seitas batista, metodista e outras são citadas) e o mundo dos negócios, altamente racionalizado, do capitalismo e de suas relações instrumentalizadas. Percebendo um jogo de estratégias e ações, um comportamento que alterna a “cartelização” das seitas a códigos tácitos de cooperação entre as mesmas, Weber articula motivações pessoais dos agentes envolvidos com camadas cada vez mais amplas de compreensão do fenômeno estudado. Em compensação, se de um lado nosso autor brilhantemente concatenou processos locais e globais, pessoas e sociais, demasiado humano, é influenciado por categorizações teológicas e vivências religiosas imersas nas disputas internas do campo protestante16. Em termos antropológicos, “comeu corda dos nativos”, no caso alguns teólogos calvinistas, interessados em forçar o contraste identitário com os luteranos. Por outro lado, alguns dados históricos e empíricos citados Freitas (2010), apontam que tal contraste não era abissal, sendo, na verdade, pouco nítido, senão contrário ao que foi argumentado por Weber. É como se, indiretamente, espiássemos os bastidores da construção dos tipos ideias, a grande pedra de toque da metodologia weberiana, e constatássemos que faltou conjugar o tratamento histórico e o empírico das fontes de construção de algumas tipologias básicas ao longo do tempo. Em outras palavras, Weber, ao acessar fontes - no caso, teólogos e documentos (manuais e livros devocionais) - para construir sua tipologia contrastante do novo e do velho, não se apercebeu (será?) que na verdade tudo isso era apenas a ponta de uma imensa rede de dados, agentes e informações interconectados e extensos, pois se desdobram por um período de tempo muito lato. Ou, ao contrário, na busca do melhor posicionamento no oceano da realidade empírica, Weber escolheu determinadas conexões 15 A tradução portuguesa, a partir de uma tradução inglesa do alemão, nos mostra uma alternância de estilos linguísticos. Um Weber escrevendo ora no modo plural, ora no impessoal e ora no pessoal. Contudo, as observações em primeira pessoa, a partir de experiências pessoais, se não chega a ser uma etnografia no sentido estrito, deixa um aroma de cunho antropológico em um pensamento de alto fôlego comparativo. 16 A intensidade das transformações na sociedade norte-americana, em que pese à tipologia ideal, que nunca poderá ser encontrada em plenitude na realidade, o faz afirmar: “Hoje o tipo de congregação a que alguém pertence é irrelevante. Não importa que seja maçom, cientista cristão, adventista, quacre ou qualquer outra coisa” (Weber, 2002, p. 215). E o novo e o velho, são aproximados e contrastados. Mas o que é o novo e o velho? O novo e o velho em Weber são pares de oposição usados para caracterizar os antigos e novos empreendedores, os luteranos e calvinistas, os judeus e os calvinistas, mas não são contrastes, ao fim das contas, autoevidentes (Freitas, 2010). e atores, documentos e reflexões que julgava expressar melhor as afinidades eletivas e os processos históricos que constituíram os fenômenos religioso-culturais. Mas não é isso o que todo pesquisador deve fazer, se não quiser se perder num dos labirintos ao estilo de Jorge Luís Borges e como imposição metodológica e não como injunção de contingências sociais e culturais? Por outro lado, escolher a forma, o trajeto e o material da pesquisa não escapa das injunções de valor de um contexto histórico, bem como das hegemonias interpretativas que determinados paradigmas possuem em determinadas épocas. Weber tentou equacionar em sua reflexão sobre a diferença entre juízos de valor e relação com valores, o que parece ter escapado ao argumento de Freitas (2010) e Sérgio da Mata (2011), pesquisadores brasileiros que apontaram vias alternativas de leitura, novamente recortando um aspecto da vida e obra weberiana. Nesse sentido, é preciso atentar para as passagens das esferas valorativas, nas quais todos nós estamos imersos, ao rigor metodológico, como pontuamos ao nos referirmos ao terceiro dilema de pesquisa dentre os muitos possíveis na modernidade religiosa globalizada. Nesse sentido, juízos de valor expressam o desejo e a crença investida no que a comunidades de cientistas ou de crentes, afirmam o que uma realidade, sociedade ou fenômeno deveria ser; mas os valores enquanto objeto de estudo não são proibidos à reflexão científica (Saint-Pierre, 1991). As relações que os homens e mulheres reais travam com os valores é um elemento fundamental das ciências da cultura. É em função dos valores, possuidores de uma determinada sociogênese histórica passível de intensas transformações, que o comportamento humano histórico e empírico se recobre de significação para o cientista que o estuda (Saint-Pierre, 1991). E é essa relação com os valores é que são os trilhos nos quais se move o interesse científico no “necessário recorte do infinito e incessante fluir das ações humanas, de suas manifestações e realizações, para dessa maneira, construir seu objeto de conhecimento” (Saint-Pierre, 1991, p. 33). Por meio da diferenciação entre “juízos de valor” e “relação com os valores”, Weber pretendeu diferenciar o papel do cientista e do homem de ação. Por meio do juízo de valor, o agente político se reafirma politica e moralmente, enquanto que a relação com os valores oferece um procedimento de seleção e organização do objeto ao cientista. Apesar de pesadamente criticada, esse pressuposição weberiana diz que a significação objetiva é relativa ao valor que orienta a investigação, mas não como uma aposta na universalidade de determinados valores. Observe-se que, misturando observações objetivas com posições valorativas, Weber nunca chegou a obter a clareza meridiana em dois postulados decorrentes de sua própria metodologia: por um lado, a clareza de consciência do autor e do leitor acerca dos critérios adotados para mensurar a realidade e obter a partir deles os juízos de valor; por outro lado, a clareza rigorosa que o autor devia buscar tanto para si mesmo e para o leitor, quando o investigador e o homem como sujeito de vontade falam e quando silenciam (Saint-Pierre, 1991). No entanto, o propósito weberiano é, entre outros, tornar inteligível como chegamos a ser o que somos, mas sempre em traços parciais, ou como a famosa analogia usada por Weber para caracterizar sua relação com a dimensão religiosa: como notas musicais de uma partitura para sempre inconclusa (Saint-Pierre, 1991). Assim, isso repõe um quarto dilema aos pesquisadores da religião na cultura, ou da cultura na religião: quais fontes deverão ser privilegiadas, e como deverão ser tratadas, já que se torna cada vez mais difícil abarcar a totalidade das fontes e da rede política, cultural e social com as quais elas interagem? Montero (1993), falando dos dilemas da etnografia numa sociedade em processo irreversível de mundialização, desconstrói a idílica imagem do pesquisador, no caso o antropólogo, isolado, de preferência em alguma ilhota da Melanésia, numa tribo remota da África ou do Amazonas: um pesquisador que conseguiria “isolar” os fenômenos, estabelecer relações de significado como se estivesse em uma espécie de “laboratório ao ar livre”. Pergunta-se então: se estamos mergulhados em uma rede, cujas múltiplas direções e fluxos combinam e opõem posições e estilos, agentes individuais e instituições coletivas, valores e discursos, como escolher fontes e dados empírico-etnográficos, ou documentais e fazer análises sem considerar essas injunções e a forma como elas afetam o trabalho do pesquisador? Sem mencionar, é claro, as questões postas pela vertente pós-moderna da reflexão antropológica, que a partir de James Clifford (1998), questionam a autoridade e a autoria do texto? Afinal, desde Weber já se pode afirmar que a modernidade não só põem em cheque as verdades religiosas, mas as próprias certezas da ciência (Mariz, 2000). Da forma como apresentadas idealmente por Weber, as seitas já não existiam mais na Alemanha de sua época, embora sua mãe pertencesse a um movimento de fortes tendências sectárias, o pietismo. A referência empírica weberiana eram as seitas norteamericanas cujos cultos teve a oportunidade de frequentar e cujos membros teve a oportunidade de conhecer ao visitar os Estados Unidos em 1904 (Freitas, 2010). E isso, para Freitas (2010), alegrou Weber. Porém, na problematização do modus weberiano, Freitas (2010) introduz uma sutil adjetivação ao dizer que Weber se alegrava com a existência dessas seitas nos Estados Unidos, fornecendo enfim, a contraprova empírica a sua argumentação sobre o novo e o velho17. Isso nos conduz a outros sutis detalhes da escrita e do argumento que são esculpidos nos textos de análise sobre religião, a saber, outro impasse que se abre a nós pesquisadores. A adjetivação, mesmo que sutil, leva o argumento rumo a uma imputação de sentido que se confronta com a assumida amusicalidade weberiana para o fenômeno religioso, algo que seus familiares e amigos comentaram, e também foi retratado pelos sociólogos norte-americanos publicadores da obra de Weber nos EUA. É possível oferecer outros ângulos de intepretação, indo à letra do texto. Observemos o que nos diz Weber (2002, p. 219): A opinião de que os deuses concedem riquezas ao homem que os agrada, através do sacrifício ou pelo seu comportamento, difundiu-se por todo mundo. As seitas protestantes, porém, estabeleceram conscientemente uma ligação entre essa ideia e esse tipo de comportamento religioso, segundo o princípio do capitalismo inicial: „a honestidade é a melhor politica‟. Essa ligação se encontra, embora não exclusivamente, entre essas seitas protestantes, embora somente entre elas se observem continuidade e coerências características em tal ligação. Em 1904, Weber tinha redigido uma parte do clássico, “A ética protestante e o „espírito‟ do capitalismo”, quando, em companhia de sua mulher, Marianne e seu amigo teólogo, Ernest Troeltsch, para conhecer a Exposição Universal de St. Louis, uma viagem longa que ficou marcada em sua memória, a qual fará constantes remissões em suas pesquisas. Uma parte das impressões foi publicada, e é o texto ao qual este artigo se refere. Por outro lado, a partir de seu retorno da viagem aos EUA, se formou na casa do casal Marianne e Max Weber um círculo intelectual muito importante, reunindo nomes como Simmel, Lukàcs, Ernest Bloch e Karl Jaspers. Nessa breve remissão, retomando a questão do velho e do novo posta por Freitas (2010), as questões das redes e da globalização estão colocadas: as exposições universais do século XIX colocavam em contato amplos setores da sociedade e os círculos intelectuais podem ser pensados como redes de relacionamento e debate fundamentais na consolidação de ideias e trajetórias intelectuais. É certo que Weber esforçou-se por traçar finas fronteiras entre a atuação como investigador e agente político-civil atuante, norteadas por uma concepção, hoje superada 17 Por outro lado, Freitas (2010) elege uma analogia com a física aristotélica para aclarar o jogo entre o velho e o novo em Weber, este sendo movimento, e aquele, imobilidade. Uma interpretação muito válida, mas que deve ser sempre contrastada em diversas escalas e nunca sendo tomada como uma “ultimidade”, mas sendo submetida a tarefas interpretativas como aventado por Becker (2001). e criticada, de neutralidade axiológica. Assim, muito escassas são as informações sobre as concepções religiosas e/ou teológicas de Weber entre o “início de sua crise nervosa (1897) e a publicação da primeira parte do artigo sobre „A ética protestante e o espírito do capitalismo‟” (Da Matta, 2011, p.41). O texto em questão neste artigo é substancialmente diferente das duas versões do clássico “A ética protestante e o Espírito do capitalismo”, as versões de 1904-5 e de 1920. Entre 1893 e 1894, Da Mata (2011) diz que Weber empenhava-se em promover a reflexão sobre a questão social e operária nos meios evangélicos, o que, segundo o pesquisador brasileiro demonstrava sua insatisfação face ao que acreditava ser a tendência quietista do luteranismo, reencontrado, mais tarde, como o subtexto da Ética Protestante. Será essa uma das causas pela qual Weber carregou as tintas na distinção entre o velho e o novo, no caso, entre luteranismo como tradição e calvinismo como inovação? (Freitas, 2010) O novo em Weber significa uma tomada de posição? Da Matta (2011) diz que Weber defendeu os participantes dos Congressos Evangélico-Sociais de uma das mais intensas críticas dos conservadores, qual seja, o desprezo a um clero “engajado” na problemática social, condenado ao diletantismo. Em 1894, numa palestra no Congresso EvangélicoSocial, Weber afirma que a igreja protestante não poderia ficar alheia aos problemas sociais, pois “a luta de classes está aí e é uma parte integrante da sociedade atual” (Da Matta, 2011, p. 13). Da Matta (2011) ainda afirma que “ninguém jamais duvidou” de sua postura luterana olhando a “concorrência calvinista”. Mas, o quanto sua obstinação pela comparação e detalhamento da singularidade da modernidade ocidental, seu recorte próprio de fontes e sua adjetivação aferidora de sentido são decorrentes de tal postura, pouco se pode afirmar com exatidão. Preferimos ficar com a concepção boasiana, ao comentar sobre a questão da universalidade de certas ideias, e mais ainda sobre duas indagações básicas da antropologia sobre as mesmas (quais são suas origens e como elas se afirmam em várias culturas), quando conclui: “as ideias não existem idênticas em toda parte: elas variam” (Boas, 2004, p. 27), e há intervenção de fatores internos e externos, múltiplos, e nem sempre congruentes, na causalidade e nos efeitos. E aqui, rompe-se com o padrão aristotélico de lógica que atribui causas idênticas ou similares quando se observam efeitos iguais ou similares. Nossos dilemas de pesquisa A partir da digressão que realizamos sobre o trabalho intelectual de Weber, abrimos um breve espaço para a exposição de nossas pesquisas de campo, exposição esta limitada e aqui retratada segundo a ótica de alguns dos impasses anteriormente apontados. Pretendemos, por meio dela, auxiliar os leitores deste texto na árdua tarefa de minimizar os eminentes limites entre as abstrações teóricas e as tarefas de aproximação e inserção no meio dos ditos "nativos"; mesmo que a nossa ambição de assim o fazer possa deixar mais dúvidas que soluções. Durante o período de aproximadamente um ano, observei18 os membros da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) no ministério de ação social por eles desenvolvido. Talvez a maior dificuldade no intuito de "traduzir" tais práticas se encontrava no desconhecimento de muitos dos voluntários a respeito do conjunto de iniciativas filantrópicas e sociais que eles mesmos organizavam. No ano em que desenvolvi o trabalho de campo, o pastor que havia coordenado as obras sociais durante ao menos dois dos anos que antecederam a minha inserção, tinha sido direcionado a outra tarefa, conforme a regularidade do "rodízio de pastores", comum na Universal. Deste modo, o coordenador atual pouco pôde me informar de imediato sobre a rotina das benesses e, mediante minhas indagações, acabou pesquisando muitas das coisas das quais vim a relatar ao final da pesquisa. Descortinou-se então, desde o primeiro contato com o programa de assistência da IURD, um fato que marcaria todo o percurso da observação que pretendi: a contínua mudança dos diversos voluntários das ações sociais alterou e altera periodicamente o cenário das observações, de um lado, dificultando o estabelecimento do que se torna duradouro e do que se faz contingente na pesquisa (Segato, 1997); de outro, obrigando aquele que os observa a aumentar as camadas de sua análise, estabelecendo conexões e buscando o sentido geral das obras que eles praticam. Mediante tal provocação, é preciso não ceder à tendência de impor lógicas impróprias ao objeto. Um exemplo: antes mesmo da finalização do trabalho e logo um pouco depois, através do contato com outros pesquisadores, surgiu o questionamento a respeito do uso terminológico de distintas designações e definições sobre a prática religiosamente motivada19 e direcionada ao próximo. Intencionalmente mencionei em vários textos (Rosas, 2011) a palavra "caridade", assim como "filantropia", "assistência social", "solidariedade", entre outras. Assim o fiz, pois me deparei com enorme intercâmbio 18 Este primeiro relato refere-se à experiência de campo de Nina Rosas. A distinção entre prática social de motivação religiosa e não religiosa é certeiramente pouco clara, haja vista que o próprio campo da assistência leiga profissionalizada luta ainda por essa distinção. 19 e uso de diversas nomenclaturas como as acima citadas, além das de “cidadania”, “responsabilidade social”, “inclusão” etc., atraindo muitos pesquisadores a uma apropriação quase inadvertida de tais noções, imputando lógicas e diferenciações entre elas a partir de outros campos semânticos, por vezes não coincidentes com as concepções e noções empregadas por muitos dos envolvidos. Tratando-se de uma liderança estrategista e astuciosa como é a da Igreja Universal não é possível, entretanto, desconsiderar que alguns de seus pastores e bispos, bem como empresários, políticos e administradores que dela fazem parte desconheçam os caminhos de instrumentalização de ações sociais com vistas a aumentar a adesão dos crentes, competir com outras instâncias de assistência, arrastar uma massa de eleitores, mediar contratos e contatos com demais organizações de cunho nacional e transnacional. Mas, lembremo-nos que, mesmo que o percurso das obras sociais muitas vezes seja menos decorrente de disputas circunscritas exclusivamente ao campo religioso e seja mais relativo ao amplo escopo do social (permeando conflitos, interlocuções e articulações); as práticas em prol do próximo devem ser entendidas dando voz ao falar nativo, nunca desconsiderando as consequências não premeditadas que emergem das motivações e intenções dos envolvidos. Daí destaca-se um corolário ao qual é preciso atenção: na busca por encontrar o limiar entre "oposição" e "identificação" (Velho, 1998, p.12), não cedamos ao risco de ora tornar os objetos demasiado exóticos, ora de congelá-los (Velho, 1998, p. 16), tendenciosos que somos por confirmar dados já explorados e assim produzir algo mais propenso a ser aceito no meio acadêmico; ou ainda, superar observações precedentes e assim galgar um lugar ao sol. Expor sua experiência numa arena científica é complexo, polêmico, sujeito a deslegitimações e encarceramentos na metodologia e epistemologia peculiares à fenomenologia, a filosofia, à teologia e as ciências sociais. É verdade que esses desejos e valores interferem a todo o momento na escolha, na visão de mundo, como lembra Weber, ao discordar da metodologia positivista. Nesse sentido, a pesquisa sobre o movimento carismático tem sido feita por mim20 há pelo menos uns dez anos, desde a dissertação, passando pela tese e pela pesquisa de pós-doutorado. E o caminho é mais complexo quando, sendo eu egresso de um movimento religioso católico de tendência exclusivista e tido como conservador, volto o olhar para a construção de um novo objeto, indissociável da própria experiência de vida. Uma das coisas que me incomodavam era o uso de categorias sociológicas como estratégias de territorialização política, ao mesmo tempo em que se dissimulavam os 20 Este relato refere-se à experiência de campo de Emerson José Sena da Silveira. efeitos de ontologia e de fixação do sujeito na diferença. Assim, os carismáticos eram enfocados como ideologicamente conservadores, comprometidos com uma catolicidade institucional, clerical e sacramental, moralistas extremados, entre outros. Ao entrar em campo investigando os grupos de oração do movimento carismático, seus rituais, as práticas de cura, a produção de subjetividade, a relação com os meios de comunicação de massa e cibernéticos, marketing, consumo e juventude, essas categorias sociológicas era apropriadas por outros movimentos e grupos de dentro e de fora da igreja como categorias de ontologização. Isso ficava claro quando, ao entrevistar padres e leigos com formação universitária, tanto os que eram ligados ao movimento carismático, quanto os que eram de movimentos contrários, algumas passagens de estudos sociológicos eram citadas como uma espécie de alerta ou mesmo de localização ontológica (eles são assim), a favor ou contra. Já entre os adeptos carismáticos de outras classes sociais e escolaridades, o dilema colocado era outro, relativo à experiência religiosa e a sua abordagem êmica e ética, a autoridade e a legitimidade da experiência e da racionalidade simbólico-interpretativa usada para compreender essa experiência. Lembro-me uma vez, durante a pesquisa de campo para a dissertação de mestrado, ao assistir uma reunião de massa em que os dons espirituais se manifestavam com veemência e necessitar anotar em um pequeno e discreto bloco, um dos membros e colega me cutucou no ombro, mesmo sabendo da minha posição ali como pesquisador e o porquê de minha presença, disse: “confie no Espírito Santo que ele te revelará tudo!”. Em outras passagens as lideranças do movimento carismático recorriam a livros de psicologia para explicar o recurso aos dons como falar em línguas, espécie de linguagem emocional assintática em divergência com outros membros do movimento que recorriam a metáforas mitológicas como a expressão “língua dos anjos”. Na literatura acadêmica sobre o movimento havia também os sociólogos de determinada orientação política que pareciam reduzir o significado dessas experiências, equivalendo-as a simples reavivamentos conservadores em convergência com tomadas de posição eclesiásticas desfavoráveis ao movimento. No campo, esses dilemas se sobrepunham e levavam-me a duvidar de intepretações e, mais ainda, do uso de categorias sociológicas e antropológicas de análises, ao mesmo tempo em que percebia o objeto de campo cambiante se mover entre categorias morais, éticas e simbólicas, na medida em que era observado e se relacionava ao longo do tempo com os campos religiosos, acadêmicos e não-acadêmicos, e a se constituir como se fosse uma esfinge. Categorias êmicas e éticas, nativas ou sócio-antropológicas nunca são puras, pois são ao mesmo tempo simbólicas e políticas, interagem entre si atreladas que estão a campos de forças, num interminável processo de construção e desconstrução de fronteiras e identidades, passagens e conflitos, atores e agentes, objetos e estruturas. Aqui quatro referências teóricas que aproximadas, resultam em ângulos convergentes e divergentes simultaneamente, podem render reflexões interessantes, Latour (1994) e Segato (1991), de um lado, e Velho (1986) e Bourdieu (2004) de outro. Estes dois realizando uma investigação antropológica de si na abordagem de um prédio de conjugados no bairro Copacabana (cidade do Rio de Janeiro) e uma objetivação radical dos processos subjetivos e a vigilância epistemológica como condição sine qua non de uma sociologia crítica; aqueles outros “desontoligizando” o processo de construção de sujeitos e objetos, propondo-os como ator-rede e o apontando o paradoxo da racionalidade antropológica diante da experiência inabalável do sagrado. Considerações finais Por fim, é preciso atentar para as dimensões das releituras de textos clássicos e “autores-minoria”. Tal perspectiva pode ajudar a abrir horizontes e manter as ciências numa trilha crítica e esclarecedora das injunções entre as dimensões micro e macrossociológicas, em constante desacordo e assimetria. Como “autor-minoria”, sugerimos Paul Feyerabend (1989). Postulando não apenas o pluralismo metodológico, o autor sugere a utilização de contrarregras para neutralizar a tendência dos pesquisadores a preservar tudo o que é antigo e familiar, “vício acadêmico” denominado “condição de coerência” e porque não, de concorrência. Pensador de extremos, ele defende que, quando novas hipóteses são obrigadas a se ajustar a teorias já aceitas, cria-se ambiente propício para à dogmatização. Crítico extremo do meio acadêmico ao qual atribui rituais similares a seitas religiosas, ele sugere que de nada adianta buscar fatos novos sem mudança de olhar, pois virão à tona somente aqueles que demonstram coerência com a teoria então vigente. Na base do anarquismo epistemológico está a descoberta de uma ciência que não pode fornecer respostas eternas, pelo contrário, está em constante processo de crescimento. Os paradigmas são ultrapassados, ou relidos e reinterpretados, quando os métodos acadêmicos tradicionalmente aceitos são reposicionados como “minorias cognitivas” e não, “maiorias hegemônicas” (Feyerabend, 1989). Ao invés do monoteísmo científico, é preciso o entre-lugar. Para isso, será necessário operar distinções e articulações entre, pelo menos, três dimensões: as perspectivas observacionais de onde se observam os fenômenos religiosos – do lugar social, institucional e político; as perspectivas sujeito-objetais – quem observa e quem é observado, em termos socioeconômicos, intersubjetivos, morais e éticos; por fim, as possibilidades de perspectivação – produção de alternativas de compreensão a partir da necessária conjugação de posturas de confiança e de desconfiança em relação aos sistemas interpretativos hegemônicos e minoritários. Referências ALMEIDA, Ronaldo; MONTERO, Paula. Trânsito religioso no Brasil, São Paulo em Perspectiva, vol.15, n.3, julho a setembro de 2001, p. 92-101. BANAGGIA, Gabriel. Conversão, com versões: a respeito de modelos de conversão religiosa, Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, vol.29, n.1, 2009, p. 200-222. BECKER, Alton. The linguistics of particularity: Interpreting superpordination in a Javanese text. In: ______. 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