MULHERES D’A CASA: VOZES FEMININAS QUE ATRAVESSAM GERAÇÕES Liliane Viana da SILVA (UERN)1 RESUMO: Sabemos que a condição feminina dentro da sociedade acarreta uma história de desigualdades, injustiças e sofrimento, levando a mulher a tentar se libertar da imagem inferior impulsionada por longo tempo; no entanto, é nesse mundo contemporâneo que autoras buscaram e buscam por meio de uma literatura feminina esse potencial de diferenciação, por uma produção literária que vem para quebrar esse “enclausuramento” dado às mulheres. Em uma pesquisa estritamente bibliográfica, nosso estudo propõe analisar como o gênero feminino se sobressai na escrita naterciana, e como os vários femininos vão ganhando espaço central tanto visto como personagens humanos como elementos simbólicos da natureza e da própria imaginação humana. O presente trabalho tem como base a linha de literatura e gênero com o objetivo principal de ressaltar como a voz(es) feminina(s) da casa é de extrema importância nessa obra, isto é, buscando ver como os pensamentos e vivências destacam as gerações femininas daquele ambiente e que por caminho de suas histórias as personagens são apresentadas. O foco narrativo está sempre em torno da casa, essa que transcende o tempo humano, sendo apresentada como uma casa antropomorfizada que não deixa perder na narrativa detalhes valiosos e fundamentais, ou seja, a autora cearense Natércia Campos provavelmente teve a intenção de dar vida e voz a uma casa do interior, porque é a partir dela que as demais vozes femininas aparecem na narrativa. Palavras-chave: Literatura. Gênero feminino. Voz narrativa. ABSTRACT: We know that the condition of women in society entails a history of inequality, injustice and suffering, causing a woman trying to break free of the lower image driven for a long time; however, is that the contemporary world which plaintiffs sought and seek through a women's literature this differentiation potential, a literary output that has to break this "enclosure" given to women. In a strictly literature, our study proposes to examine how the female stands in naterciana written, and how many women are gaining space both seen as central human 1 Mestranda em Estudos do Texto e do Discurso pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. E-mail para contato: [email protected]. 2 characters as symbolic elements of nature and the human imagination itself. This work is based on the line of literature and gender with the main objective of highlighting how the voice (s) female (s) of the house is of utmost importance in this work, that is, seeking to see how thoughts and experiences highlight the generations female that environment and that by way of his stories the characters are presented. The narrative focus is always around the house, that which transcends human time, being presented as an anthropomorphized house that leaves the narrative lose valuable and fundamental details, ie the author Ceará Natércia Campos probably intended to give life and a voice from inside the house, because it is from her that the other female voices appear in the narrative. Keywords: Literature. Females. Narrative voice. A mulher faz a sua própria história Revolucionando todo um passado de prisão sexual de gênero, a mulher surge na história em meio a uma das armas mais profundas que transforma gerações: a literatura. Esta foi e continua sendo uma das armas mais importantes para a emancipação intelectual da mulher; grandes nomes como Virgínia Woolf e Simone de Beauvoir estão em destaque entre as literatas de todos os tempos. Contrariando toda uma história de rígida submissão a papéis como esposa, mãe, dona de casa, a literatura foi escolhida pela mulher como a iniciação para essa libertação, e a pena como objeto escolhido para dar vida a desejos, opiniões e sensações que vinham sendo carregados desde a criação da humanidade. Se durante tempos a mulher procura deixar registrada sua voz em meio as suas ideias e pensamentos, a literatura foi a chave para este salto. De acordo com o Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras “A literatura, como sabemos, é um verdadeiro sismógrafo a registrar na nascente todos os movimentos de convulsão, revolução, imobilismo, etc., que através dos tempos, têm transformado as relações homem-mundo” (COELHO, 2002, p.17), e que para entendermos o hoje é preciso, primeiramente, entendermos o ontem, o tempo, as pessoas, as mulheres. Literatura é fonte de desejos, visões e, principalmente, reflexo de uma sociedade que busca a partir da força das palavras transformar, melhorar e reconstruir um cenário rico em pensamentos e sonhos. Há tempos a literatura oferece esse espaço aberto para refletir uma imagem da época, dando voz a autores que, a partir de seus escritos, deixem suas contribuições dentro da história da literatura; o que não poderia ser diferente para as mulheres e sua escrita de autoria feminina. 3 Todavia, como toda trajetória da mulher, a escrita de autoria feminina também esteve camuflada pelos pensamentos masculinos. É o que podemos ver nos estudos de Lúcia Branco e Ruth Brandão sobre tal questão: A figura feminina é fina voz retirada de um registro masculino, que se constrói de forma similar ao ventríloquo e seu boneco: confusão de vozes, perversa construção enganosa, enquanto fantasma consciente ou inconsciente, nestes tortuosos caminhos do desejo, que se mimetizam ou reduplicam nas linhas do tempo. (BRANCO & BRANDÃO, 1989, p. 22) Um conceito a ser explicado é que a escrita de autoria feminina dar-se em volta do passado, ou seja, enquanto a mulher é vista, desde o início, em obras que lhe consolide a um lugar de silêncio e interrupções, àquela que sempre viveu na submissão do pai e do marido, sob lágrimas e resignação; essa fase tendeu-se a mudar nas letras, onde com todo o conhecimento as mulheres escreviam e escrevem sob si próprias e sua “libertação”; sabendo que não é fácil recuperar um tempo e reconstruir uma identidade que, sobre os olhos de uma sociedade masculina, as adotaram como segundo sexo, o sexo frágil e inocente incapaz de possuir altas qualificações. No mundo contemporâneo observamos o grande número de autoras que têm levantado a bandeira contra a “penúria da condição feminina”. São autoras que pela força do movimento feminista demonstram ter, especificamente, uma escrita de autoria feminina e outras que dizem apenas escrever; “Não se trata em saber se a literatura „feminina‟ é melhor ou pior em relação à literatura „masculina‟, mas sim descobrir o que ela é, como se constrói e porque trilha determinados caminhos” (COELHO, 1993, p.12). Durante tempos o dominador mundo masculino resignou sempre para si o apoio, ideias e inovações femininas, sendo que estas mulheres após aceitarem e se redescobrirem perante a sua condição de mulher, abriram portas para expressões pessoais de suas autoras. É o que vemos no trecho abaixo falado pela autora Marina Colasanti: (...) somos mutantes, mulheres em transição. Como nós, não houve outras antes. E as que vierem depois serão diferentes. Tivemos a coragem de começar um processo de mudança. E porque ainda está em curso, estamos tendo que ter a coragem de pagar por ele. (...) Saímos de um estado que embora insatisfatório, embora esmagador, estava estruturado sobre certezas. Isso foi ontem. Até então ninguém duvidava do seu papel. Nem homens, nem muito menos mulheres. (...) Mas essa certeza nós a quebramos para poder sair do cercado. (apud COELHO, 1993, p.14). É através dessa perspectiva que as mulheres passam por essa fase de transição, que as ideias lançadas hoje são mais estruturadas, repercutindo, principalmente, na sua escrita. A 4 nova mulher, ou seja, a autora contemporânea, ela representa o amadurecimento, a preocupação com a sociedade, a consciência crítica bem estabelecida. A imagem da submissão foi deixada dentro de seu tempo e a auto-identificação consta para ser permanente. Diante do cenário de representações pelas quais passaram as mulheres nesses últimos séculos, redefinindo seu papel social, econômico e político, torna-se impossível não pensar que as vozes femininas dessas mulheres, sendo elas escritoras e/ou personagens, não repercutissem na literatura e no discurso delas mesmas. E como exemplo da força, imaginação e capacidade da escrita da mulher que destacamos a autora cearense Natércia Campos, entre as várias escritoras, para emprestarmos sua voz tanto dentro de seu premiado romance A Casa (1999) como também em forma de sua visão de mulher. Em seu romance premiado destacaremos tanto a visão de mulheres dentro do espaço privado e doméstico da casa, como também da escrita poética e lírica da própria autora. Natércia e A Casa: contadoras de histórias Natércia começou a escrever tarde em comparação às demais escritoras que temos em nosso rol da literatura; na verdade, seu primeiro escrito só veio a público quando a autora já tinha tido seus seis filhos e com o nascimento de seu primeiro neto. Natércia, na verdade, já nasceu entre os livros e sua paixão pelo Nordeste fez com que a autora surgisse e, em pouco tempo, ganhasse destaque entre os outros de sua categoria de escritor. Sua obra A Casa (1999), pode até ser vista por algumas pessoas como uma narrativa curta, por conta de suas 89 páginas, mas é justamente nessas poucas, porém, ricas páginas, que nos deparamos com um encontro fantástico e enriquecedor da escrita poética dessa autora cearense. O grande diferencial desse romance é o fato de a autora dar voz de narrador a um espaço físico (a casa) que na concepção de ser inanimado passa a ser um ambiente transformador, dando-lhe, assim, através do antropomorfismo, vida e memória. Temos ciência de tal atitude quando iniciamos a leitura da narrativa com a voz da própria casa; é ela que nos conta como se deu a sua criação. Fui feita com esmero, contaram os ventos, antes que eu mesma dessa verdade tomasse tento. Meu embasamento, desde as pedras brutas quebradas pelos homens a marrão aos baldrames ensamblados nos esteios, deu-me solidez. As madeiras de lei duras e pesadas com que me construíram até a cumeeira têm o cerne de ferro, de veios escuros, violáceos e algumas mal podiam ser lavradas. Todas elas foram cortadas na lua minguante para não virem a apodrecer e resistirem, mesmo expostas ao tempo: o estipe das carnaúbas, os troncos do jucá, os da ibiraúna, a braúna, a 5 madeira preta dos índios fechada à umidade por ser impregnada de resinas e tanino. (CAMPOS, 2004, p.7). A Casa, de nome Trindades e com o apelido de Casa Grande, é a narradora que vai abrindo suas memórias, demonstrando-se como uma verdadeira contadora de histórias. As primeiras histórias são as suas: sua criação, seu fortalecimento, seu ambiente e lucidez. Ao longo da narrativa encontramos seres da natureza que ganham voz e presença entre os humanos, como um tear que entrelaça seus fios, para aqui dar forma a toda narração. A casa vai citando-os como fonte de conhecimento e precaução. Acompanhamos junto com a Casa a história dos Ventos, o emudecimento das pedras, as lamúrias do açude, a transposição das águas e também a visita da Vida e da Morte em suas metamorfoses. Como uma sertaneja de expressões locais, linguagem poética e tessitura narrativa, a narradora vai apresentando a sua história e a dos seus viventes a partir de crenças, superstições, mito e religiosidade. A natureza nos é apresentada através do místico, do fabuloso, da imaginação, entrelaçando-se à fé e ao conhecimento humano. Elódia Xavier, em seu livro A casa na ficção de autoria feminina (2012), trabalha o imaginário das autoras brasileiras em relação à casa. A escritora escolheu um número considerável de narrativas que trazem em seu interior a imagem da casa, tanto como morada como refúgio do imaginário feminino. Baseando-se em estudiosos que abordam o tema e a partir de uma extensa análise, a escritora vai apresentando a autoria feminina em suas respectivas ficções, dando-lhe, assim, características próprias da casa. O romance A Casa, da escritora Natércia Campos, foi um dos escolhidos também para tal análise. Segundo Xavier, a Casa de nome Trindades é vista como a casa testemunha, àquela que presencia fatos e acontecimentos: “E, dessa forma, é testemunha silenciosa de muitos nascimentos e mortes, que se embaralharam na sua memória” (2012, p.108). A memória da Casa é remetida a de um humano, trazendo-a anseios de tal situação: “Essa, a casa testemunha, cuja convivência com o ser humano é uma experiência dramática e que, mal comparado leva aquele desfile dos séculos a que assiste Brás Cubas, de Machado de Assis, no seu delírio antes da morte” (2012, p. 109). A Casa de Natércia é vista primeiramente como narradora, apresentando sua criação a partir da sua própria voz; uma voz primeira, que conta fatos, apresenta detalhes e prende o leitor. Sendo a Casa como narradora ela é vista também como espaço e personagem da narrativa; um ser antropomorfizado que conta a vivência de gerações dentro de seu interior. Como um ser atemporal, ela possui uma duração de vida diferente dos humanos “O que vivi no longo tempo que me foi dado tornou-se um infindo círculo de viventes, gestos, vozes, 6 imagens, atos que surgem imprecisos de suas épocas e gerações” (CAMPOS, 2004, p.24); sendo capaz de relatar, julgar e até „pensar‟ sobre acontecimentos dentro de suas dependências, mostrando, assim, suas características humanas. Mesmo humanizada, há momentos que a própria Casa dá a entender que nem tudo conhece da vida dos humanos: A noite desceu rápida, engolindo toda a luz, quando houve um reboar que subiu das entranhas daqueles sertões e senti oscilar meu chão, como se estivéssemos plantados no dorso de um grande animal de porte que se pusera em trôpego e lento movimento tal qual o dos cágados (CAMPOS, 2004, p.20). A Casa não conhecia um terremoto, por isso não poderia descrevê-lo com propriedade; assim como tinha lucidez que sua memória não era igual a dos humanos. Como espaço físico ela é vista por seus moradores como um elo entre as gerações. Feita para durar entre as crenças e superstições trazidas tanto do além-mar como do ambiente local, sua estrutura é sentida como um verdadeiro coração de mãe, onde seus filhos um dia ganham liberdade e saem de suas dependências, mas sempre retornam a casa materna “Mas era na Trindades onde ele mais gostava de viver. Seu umbigo ali fora enterrado na soleira” (CAMPOS, 2004, p.36). Assim como Natércia Campos é vista por muitos como uma verdadeira contadora de histórias, encarregamos tal característica a nossa Casa narradora-espaço-personagem. Uma voz que pode ser considerada como feminina por representar características de mãe protetora, mulher sertaneja e um olhar específico às mulheres da própria casa, e que também reconta as histórias, testemunha os acontecimentos e analisa-os. Essas mulheres são maioria em toda sua existência, reservando-as espaço principal para sua vida, seus olhares, suas vozes e suas preocupações. É com as gerações dessas mulheres que a Casa se dedica a mostrar as suas vozes femininas. A nossa primeira e grande voz feminina humana da narrativa é a Tia Alma – ganhara tal apelido dos sobrinhos por ser muito devota. Fora batizada de Maria por sua mãe e por possuir o nome santo e ter boa mão era destinada a tarefa de semear a horta. Ela esteve junto a Trindades por quase cem anos e por esse longo tempo demonstrou sua veia religiosa sempre ligada as superstições da terra: “Sorria tia Alma ao dizer que não se deve passar a mão nos cabelos ao despertar de um bom sonho, pois este virá a se perder, esfumaçado e esquecido nas voltas da memória” (CAMPOS, 2004, p.27-28) e ainda dizia: “Não se deve pronunciar o nome de alguém que já morreu para não interromper seu repouso, fazendo-o voltar. Antes do 7 nome ponham a palavra – finado -, pois ele ao ouvi-la saberá sua nova condição” (CAMPOS, 2004, p.29). Tia Alma representa a mulher sensível que acolhe a todos, instruída sob as crenças e superstições do seu lugar, ela cria e ensina os sobrinhos e afilhados conforme sua trajetória de vida. Destinada a não casar, carregava consigo a sina de algumas mulheres naquele sertão: “Costumava tia Alma perguntar baixinho para si: - Oh minha mãe, que cousa é casar? – Chorar, parir e fiar. Serenava ao pensar que o Destino lhe reservara só a última das três penas” (CAMPOS, 2004, p.26); ela culpava os ventos por tal sina carregada: “Não me casei por culpa do vento (...) Não alcancei a graça de casar, mas são vocês, que protegi dos ventos, os filhos que não semeei” (CAMPOS, 2004, p.26 e 29). A Casa tinha um apego especial por tia Alma, pois foi com ela que aprendera sobre as festas religiosas anuais como Natal, Quaresma e Sexta-feira da Paixão para o Sábado de Aleluia. Sempre muito devota tia Alma mantinha o oratório sob seus cuidados e orações, e após a sua morte as suas duas tranças – assim ela gostava de usar - se tornaram as primeiras relíquias daquele sertão. Outra figura que mostra o papel feminino naquele sertão é o da velha Cosma, empregada há muito tempo nas Trindades, representa a mulher que carrega o fardo do casamento no corpo: “No tempo em que eu só usava meu rosário no pescoço era outra Cosma, mas desde que coloquei em mim o ouro da aliança de casamento, começou meu sofrimento” (CAMPOS, 2004, p.47). Assim falava a velha Cosma em relação aos imensos cuidados com filhos e marido, diferente do tempo em que era liberta, montando a cavalo sem as dores no corpo que insistiam em se manterem presentes dia a dia. A velha Cosma, assim como tia Alma, também carregava consigo algumas crenças passadas de geração a geração, dizia ela: “Filho com nome de santo não dá sorte, é uma afronta a Deus, pois para ser santo aquela criatura teve de padecer, então é mesmo que chamar sofrimento para o filho” (CAMPOS, 2004, p.47); a velha Cosma criara tanto os seus filhos como os dos outros. Um deles, de nome Francisco, quase não nasce por se manter atravessado na hora do parto, e com a sina de carregar um nome santo morreu estrepado nas águas assombradas do açude. Uma outra sina que os seus filhos carregavam, agora destinada às mulheres, eram de casarem muito cedo “Todas as minhas filhas tiveram sorte diferente da finada tia Alma, e como um castigo casaram menores de idade, na minha mesma sina” (CAMPOS, 2004, p.48). Um destino feminino real e bem torturador dentro do ambiente da Casa Grande foi o do ventre estéril. Maria, a mais bela moça que passara pela Trindades e que ali chegaste para 8 casar com um dos filhos homens que herdariam a Casa Grande, trouxe consigo a esperança trilhada às mulheres de parir e fiar. Com suas boas mãos fez surgir belas flores e jardins que encantavam e deixavam Trindades mais bonita, como também possuía o dom de arrumar, limpar e ajeitar objetos e cômodos da casa sempre com um prazer nunca visto pelos demais habitantes e pela própria Trindades. A Casa demonstrava um carinho por Maria e por seu gesto de mantê-la sempre arrumada e perfumada: “Na época em que a ordem sobre todas as coisas aqui se instalou, devido à cabeça desordenada da bela Maria, a Trindades esteve limpa, escovada, pintada e envernizada. Purifiquei-me nas mãos dela” (CAMPOS, 2004, p.53). Por algum tempo a bela Maria pôde alcançar todos os lugares da grande Trindades com seu poder de arrumação e felicidade, porém seu exagero de limpeza acabou por inquietar a alguns, levando até a pobre Maria o sofrimento de ainda não ter tido filhos: Seu marido dera para se inquietar com sua limpeza exagerada, seu constante lavar de mãos. Deixasse, pedira, esta mania de arrumação, melhor seria tivesse um filho para assim se dedicar. Ela o olhara espantada. Ansiava por ter uma criança, esta demora muito a constrangia e a infelicitava, já que para seus irmãos casados os nascimentos aconteciam todos os anos (CAMPOS, 2004, p.51). A jovem Maria passando por inquietações a partir de sua não gravidez um dia acorda com enjoos e, com o atraso de suas regras, lançou em toda a família a felicidade de estar grávida. Durante três meses os sintomas continuaram e Maria mantinha seus afazeres e limpeza na Trindades, no entanto, em uma noite específica, a Casa novamente entra como única testemunha da realidade e sofrimento destinado a bela Maria: Uma noite, sem o acúmulo de saias notei que sua barriga diminuíra. Acompanhei seu solitário e silencioso choro dentro daquele quarto, amordaçando os soluços no lençol (...) Em uma noite de luar, ela com extrema cautela saiu do quarto e retornou com o tamborete da cozinha. Surpreendi-me ao sentir que, ao voltar a bela Maria para o seu quarto, Ela viera na sua companhia. (...) O nó foi meticulosamente bem dado a quatro mãos. Perfeito. (...) Do quarto Ela saiu com aquela vida, deixando ficar seu rastro no torturado rosto de Maria (CAMPOS, 2004, p.54-55). Maria vendo as outras mulheres parindo a cada ano cria uma gravidez psicológica que logo se desenrola no seu suicídio, enforcando-se. Com a ajuda da Morte ela tira sua própria vida e a partir daquele momento criou-se na Trindades a história do quarto mal-assombrado, justamente o quarto de Maria, que com o tempo passou a ser usado para o despejo de coisas sem serventia onde nenhum humano adentrou mais seu espaço: “No final da tarde deste mesmo dia, enterraram-na noutro lugar sem ser no campo sagrado, mas nunca deste quarto ela 9 se libertou (...) Contavam os que persistiam em lá pernoitar que ouviam passos a noite toda, ruídos de canastras sendo abertas e sombras onde houvesse luz.” (CAMPOS, 2004, p.55). Uma figura constante na narrativa e bem conhecida da Casa, por causa de suas visitas metamorfoseadas, é a Morte. A palavra metamorfoses é utilizada dentro da narrativa para demonstrar as facetas e as situações que a Morte se posta na vida dos humanos. Vida e Morte são tratados como entidades sobrenaturais que ganham espaço dentro da narrativa, até porque fazem parte da existência humana na terra. Câmara Cascudo em seus estudos sobre o folclore, superstições e impressões do povo brasileiro mostra no seu livro Coisas que o povo diz que “O povo acredita que a Morte tenha forma e limitações somáticas” (2009, p. 105) e ainda ressalta que “A crendice fixa um conceito popular sobre a personificação da Morte. (2009, p. 106). A Morte é vista como aquela que invade as dependências da casa sempre com uma missão a realizar. Observemos a primeira vez que a Casa sentiu a sua visita: Lembro-me da primeira vez, e havia de ser nas Trindades, quando Ela aqui chegara em missão. Uma das portas abriu-se sem que ninguém a empurrasse e nem a frágil aragem a tocasse. Os ventos haviam me alertado que a Morte assim entra nas casas quando, silenciosas e inexplicáveis, as portas se abrem (CAMPOS, 2004, p. 15). Ela lhe daria o nome de Moça Caetana para designar-lhe o pavor e a sangrenta morte do sertão, uma figura feminina de longas garras que entra nas casas pronta a levar aquela Vida. A morte é também vista nos elementos da natureza sob a crença agoureira da Rasga Mortalha com seu pio estridente, o gemido do açude que prenunciava tristeza e luto futuro e o toque dos ventos que deixava marcas para uma vida toda. A Casa presenciou por diversas vezes quando Ela em missão deixava seu fardo após a visita da repentina Saúde: Presenciei durante várias gerações a chegada Dela abrindo portas, refletindo-se no grande espelho ao invadir meus espaços e muito aprendi sobre suas metamorfoses e disfarces. (...) Começa por envolver a vida por Ela escolhida em tormentos e vãs expectativas de melhoras e assim segue até o fim quando permite, na véspera, a enganadora e breve visita da simulada Saúde que tanto se ausentara. Todos, vencidos pelo cansaço das longas recaídas e vigílias, relaxam e Ela regressa quase sempre no fim da noite ou fim do dia, horas dos desequilíbrios na natureza, quando a Vida a Ela se rende num derradeiro suspiro (CAMPOS, 2004, p.17). No sertão a morte também vem acompanhada pelo flagelo da seca, que traz a fome como sua representante. Assim como a Morte possui um nome feminino para designá-la a Fome é conhecida como a Velha-do-Chapéu-Grande, esta que assiste o padecer dos viventes e leva os sertanejos em tempo de seca a tornarem-se retirantes, deixando sua moradia e só 10 voltarem quando os céus mandarem chuva. Tal situação também é percebida na narrativa, a Casa aos poucos fora entendendo o porquê de seu abandono: “Longo foi o tempo sem chuva e de estranha solidão de sons, pios e vozes. As cigarras eram as únicas a continuarem a cantar, chamando o sol e provocando o sono. Os vaga-lumes apagaram-se na Grande-Seca, e quando isto ocorreu, soube que fora abandonada.” (CAMPOS, 2004, p. 23). A Casa, com o auxílio da memória que difere da memória dos humanos, vai nos contando as histórias que, em grande parte, somente ela testemunhava: “Existe um tempo abaixo das minhas inúmeras telhas que persiste em voltar, como se sobre o tempo alguém tivesse nele posto rédeas e o trouxesse de volta” (CAMPOS, 2004, p.43); histórias essas que a própria Trindades nos relata como um elo para o futuro. É o caso do acontecido da menina-bebê que crescera com receio de animais peludos e com medo do escuro pelo fato de ter sido mordida pelo um morcego na virilha, à noite, na hora de dormir, em que ninguém soubera o porquê do choro incessante da criança, somente a Casa fora sua testemunha. E também do nascimento de Custódio, que pelo parto sofrido e custoso, levou a mãe a amaldiçoar o filho pelas dores desumanas que a vinda do filho a causava. Custódio viera marcado, um sexto dedo nas mãos “Se Deus o marcou, alguma coisa lhe achou” (CAMPOS, 2004, p.44) e crescera distante dos irmãos e com um sentimento bem aflorado pela mãe. Esta, não gostando das atitudes do filho, logo o separou de sua companhia e o menino crescera arredio, com a maldição lançada pela mãe e a benção dada pela madrinha na tentativa de remediar tal infelicidade. Custódio casara-se com Eugênia, uma moça ainda menina de um ar de leveza que desceu da Serra dos Ventos, um lugar de belas orquídeas e nascente das águas; ficara encantada com os olhos azuis de Custódio e não demorou para se tornar sua esposa e lhe dá filhos. Eugênia teve três filhas – Ana, Beatriz e Elvira –, mãe e filhas brincavam juntas, até pareciam quatro crianças. No tempo em que sua caçula, Elvira, alcançou seus dez anos Eugênia esperava seu primeiro filho homem e não entendia o silêncio e o choro que cada filha vinha apresentando. A Casa em tal situação nos revela o comportamento inadequado que o pai mantinha com as filhas; molestava-as quando alcançavam seus dez anos de idade e assim persistiu sem que as irmãs confessassem umas a outras. Somente a Casa fora a testemunha de tais gestos libidinosos que o pai mantinha com as filhas, decepcionando-se: “Novamente só eu assistira. Pela primeira vez desejei findasse para mim ter de assistir ao viver de cada dia e noite entre os homens. Vontade de que meus sentidos só abrangessem a vida acima dos meus telhados na rota das estrelas. (CAMPOS, 2004, p.63). 11 A Casa como protetora, sabe da sua incapacidade perante as injustiças dos homens, mas isso não a impede de dá sua opinião em relação aos seus viventes. Segundo ela os homens tem muito o quê aprender entre os seus e muitos não sabem o que acontecem em seus domínios. Durante a transição de gerações a Casa presenciou gestos, imagens, vozes e atos que emaranhavam-se nos fios da sua memória; muitas histórias de Trancoso eram contadas à noite pelas mulheres da casa para seus sobrinhos e afilhados. Um morador especial que ali nascera e seu umbigo fora enterrado na soleira para que àquela casa retornasse, ganha, por parte das memórias da Casa, a sua história sendo contada. Bisneto nascera gêmeo com uma menina porque sua mãe comera uma fruta inconha, mas só ele nascera com vida, roubando ainda na barriga tanto as forças da irmã como também sua natureza delicada e sensível. As relações de gênero são fortemente marcadas na narrativa, o personagem homossexual, Bisneto, proprietário da casa, pode ser considerado um ser feminino, sendo denominado de “invertido” pela narradora: “Era o Bisneto ainda um menino quando com um primo mais velho, embaixo do vão da escada, praticaram a posse inversa. Ninguém os viu, só os ventos e eu testemunhamos. Era o Bisneto o invertido” (CAMPOS, 2004, p.32). A “inversão” relatada pela narradora deixa transparecer que, mesmo por sua opção sexual, o personagem homem não é julgado e nem criticado, mas quando criança o pai, os irmãos e primos lhe causaram sofrimento por sua natureza. As atitudes de proteção, companheirismo e presença de Bisneto faz com que seja sempre citado e ganhe um espaço fixo na voz narrativa, transformando-se em um filho materno da própria Casa. Observamos, portanto, que o criador dessa voz primeira também é feminina, assim como sua narradora. Não se trata em dizer que o fato de a casa se constituir um substantivo feminino ganhe essa designação de narradora feminina, mas porque a partir de sua narrativa percebemos uma voz materna, de acolhimento, que observa, sente e opina as ações humanas; sentindo-se impotente diante das mesmas e com sentimentos ligados ao mundo feminino. Sabemos que muitos autores não seguem uma regra para a criação dos seus personagens, e que estes esbarram principalmente na questão do narrador, porque sem narrador não existe uma voz regente. Brait (2000) em seu estudo sobre a personagem ao resumir as possibilidades de construção da mesma relata que “a sensibilidade de um escritor, a sua capacidade de enxergar o mundo e pinçar nos seus movimentos a complexidade dos seres que o habitam realizam-se na articulação verbal” (p.66), e que é nesse mundo de palavras que o leitor, após análise, conhecerá o porquê dessa criação. 12 Diante das transformações pelas quais passaram as mulheres nesses últimos séculos, redefinindo seu papel social, econômico e político, torna-se impossível não pensar que as vozes autoras dessas mudanças não repercutissem na literatura e no discurso delas mesmas. REFERÊNCIAS: BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Editora Ática, 2000. BRANCO, Lúcia Castello; BRANDÂO, Ruth Siviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Casa-Maria Editorial: LTC-Livros Técnicos e Científicos Ed., 1989. CAMPOS, Natércia Campos. A Casa. Fortaleza: Editora UFC, 2004. CASCUDO, Luis da Câmara. Coisas que o povo diz. 2ª ed. São Paulo: Global, 2009. COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Sciliano, 1993. _________. Dicionário crítico de escritoras brasileiras: (1711-2001). São Paulo, Escrituras Editora, 2002. XAVIER, Elódia. A casa na ficção de autoria feminina. Florianópolis: Mulheres, 2012.