Violência e racismo Roda de conversa da Semana Sérgio Arouca da ENSP Durante a comemoração do 59º. Aniversário da Escola Nacional de Saúde Pública organizaram-se no dia 05 de setembro, pela manhã e de tarde, duas Rodas de Conversa [1], uma intitulada “Serviço Civil obrigatório na Saúde”, organizada pelo Fórum dos Estudantes da ENSP, e outra “Violência e racismo”, pela Articulação do Fórum da ENSP com os Movimentos Sociais. Relatamos a seguir as provocações iniciais, a intervenção de um convidado e o debate desta segunda roda. Provocações iniciais: - Carla Moura Lima Carla iniciou a Roda ressaltando o caráter democrático da atividade, não só pela origem do método em si, a Educação Popular, quanto pela opção política pela ampliação do diálogo democrático entre a ENSP e os Movimentos Sociais. Essa iniciativa insere-se no bojo de esforços de materialização da perspectiva política da valorização do saber popular. Algumas pessoas antes do início da Roda expressaram preocupações com a possibilidade de poderem abordar determinadas questões acerca de problemas em seus territórios, ou mesmo a verbalização de críticas que tem sobre a própria Fiocruz. Carla esclareceu que o espaço dessa Roda de Conversa prescindia de "mordaças e de antolhos", ou seja, pretende-se um espaço sem censura a quaisquer posicionamentos dos participantes. "Se uma Roda de Conversa não prima pela reflexão crítica, pela possibilidade de denúncias de situações consideradas injustas e de anúncios do novo identificado, em curso e/ou a ser inventado e trilhado, ela não cumpre o seu objetivo que é contribuir para a libertação das opressões sofridas pelos que se encontram em condição de maior vulnerabilidade social." Ressaltou a pertinência da realização de uma Roda de Conversa sobre Violência e Racismo, em um momento histórico no qual as forças que representam o estado do Rio de Janeiro agem violentamente contra manifestantes que vão para as ruas lutar pelos seus direitos. Sabe-se que a truculência policial é uma das faces da violência que é exercida de diferentes formas como: sociais; simbólicas; psicológicas e físicas. Devido a contundência em que o aspecto da violência física se manifesta no cotidiano, Carla optou por apresentar provocações utilizando alguns dados acerca dos homicídios no Brasil . Mesmo sendo de conhecimento geral de que os números oficiais acerca de homicídios são influenciados por contextos de subnotificação, estes mostram-se alarmantes e oferecem subsídios para reflexões. Informou que houve um aparecimento tardio do tema raça nos relatórios sobre violência - a partir de 2005, pois só a partir de 2002, havia informação suficiente, já que 92,6% das vítimas de homicídios a raça é informada. "Será que a cor das vítimas já era presumida, por isso é que não se notificava antes?" O Mapa da Violência apresenta como resultado das análises, a tendência geral a queda de número absoluto de homicídios da população branca e forte crescimento da vitimização negra. Sendo que na população negra jovem a taxa dobra, de 36% a 72%. Chama a atenção de que além da Região Sudeste figurar como campeã de homicídios, sendo que o RJ, com 3.393 homicídios com 15.993.583 habitantes, ultrapassa São Paulo, com 2.319 homicídios, com 41.252.160 hab., em 2010. Ou seja, no Brasil, muitas pessoas são assassinadas, sendo que o estado do Rio de Janeiro assassina-se mais do que a média nacional. Somos provocados a refletir sobre como enfrentar o cenário ruim que acontece no Rio de Janeiro. Quais são as estratégias? Quais são os nossos planos? Vê-se uma tendência crescente dessa mortalidade seletiva, o que é preocupante. O próprio Mapa da Violência alerta que se não houverem políticas públicas voltadas para a redução drástica desses índices de homicídios, em pouco tempo seremos o país de maior extermínio de jovens negros no mundo. Os nossos números já superam muitos outros países em conflito armado interno, ou seja, em guerra civil e envolvidos em conflitos externos. O Brasil apresenta uma taxa maior 500 vezes do que a Inglaterra e quase 300 vezes maior do que o Japão. A nossa situação é muito crítica. Foi lançado o Plano Juventude Viva em 2012, e espera-se que contribua para o enfrentamento dessa situação. O índice de vitimização da população negra, cujos dados demonstram que o Nordeste é onde se vitimiza mais, sendo elevados percentuais em Paraíba e Alagoas com 1938,7% e 1797,2%, respectivamente. Apontam-se como causas dessa cultura da violência a nossa tradição escravocrata de solução violenta de conflitos e a certeza da impunidade. Essa população que está sendo exterminada tem características em comum, pois além de ser negra, é moradora de periferias e favelas. Houve no ano passado um mutirão para apuração de 200 mil inquéritos e só se conseguiu a abertura de apenas 6% dos inquéritos. Neste sentido, o futuro o acesso a Justiça pelas famílias das vítimas dos outros 188 mil inquérito não parece ser mais possível. A partir desse quadro foram propostas para debate as seguintes questões: Diante da tendência crescente dessa mortalidade seletiva apresentada anteriormente, que políticas públicas temos observado para o enfrentamento desse desafio? E as outras violências relacionadas ao racismo nos nossos territórios? Que experiências podem ser citadas? Quais são as respostas na sociedade civil de caráter coletivo e individual? Temos propostas? Quais? Como acham que a ENSP poderia contribuir para o enfrentamento desse desafio nacional? Será que temos o que dizer? A intervenção de um convidado: Fransergio Goulart de Oliveira Silva. [2] Em resposta às questões propostas por Carla Moura e das informações que ela apresentou, Fransergio chamou atenção para o fato de que a cor das vítimas da repressão policial não era, até 2002, notificada. A partir de 2005 começam a aparecer os dados e fica evidente que a taxa de mortalidade dos negros é maior do que a taxa de mortalidade geral e que a de jovens i negros é o dobro da gera l. Há um discurso de que a taxa de homicídios diminuiu. O problema é que reduziu entre os brancos, mas triplicou entre os negros. E quanto a ter diminuído nas favelas com UPP’s, contrapõe pesquisa do NECVU - Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ, coordenada por Michel Misse, que constata o aumento do número de 1 desaparecidos . Para Fransergio, o racismo é “mola” do sistema capitalista e tem um recorte de classe. Houve um debate no Observatório de Favelas no qual se constatou que ¼ da população mundial vive abaixo da linha da pobreza. Perguntou: qual é a situação da maioria da população negra? Respondeu: é aquela cantada nos versos de Mama África, de Chico Cesar: Mama África A minha mãe É mãe solteira E tem que Fazer mamadeira Todo dia Além de trabalhar Como empacotadeira 1 [Para maior conhecimento ver http://www.necvu.ifcs.ufrj.br/index.asp?ChvMn=58] Ignacio Cano e Thais Duarte, do Laboratório de Análise da Violência da UERJ, tentam desvendar o problema no caso das favelas controladas pelas milícias, como relatado no livro “No sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011)”. Nas Casas Bahia. Hoje trancam negros e pobres nas favelas, sob o controle das Unidades de Polícia Pacificadoras e abre-se caminho para a “nova classe média” participar no consumo. Mas quem garante o direito à vida? Nas manifestações populares de junho ouvia-se muito a frase de que “o Gigante acordou”, numa alusão ao Brasil, mas era o país da classe média que despertava. Como disse Rafael Calazans no debate de 17 de julho na Escola Politécnica, “O Gigante acordou? A favela nunca dormiu!” No entender de Fransergio, para enfrentar o genocídio da juventude negra é necessário superar a ideologia que encobre este genocídio. Isso significa romper com a ideologia: 1) de que somos um “país pacífico”, tendo claro, como disse o Calazans, que as Unidades de Polícia Pacificadoras são “unidades de porradaria em preto e pobre”; e 2) que somos um país no qual as raças vivem harmoniosamente. Esse discurso a respeito da paz serve para neutralizar a luta. Nesse diálogo sobre o genocídio impossível não perguntar: para que serve a Polícia Militar do Rio de Janeiro? Então que fazer? Reforçar movimentos, responde. Cita a Rede de Comunidades e Movimentos 2 3 contra a Violência e Favela Não se Cala que desenvolvem ações concretas. Fransergio cobrou do Governo Federal: O Plano Juventude Viva [da Secretaria Nacional da Juventude, órgão vinculado à Secretaria Geral da Presidência da República. A respeito ver http://www.juventude.gov.br/juventudeviva/o-plano] já desenvolveu alguma ação contra a letalidade? Articulou vários programas, mas de concerto nada fez. Os debates Lembrou-se que a política de segurança pública baseada nas UPP’s teve um impacto de redução da violência nas favelas ocupadas, mantendo o tráfico de drogas sob controle e o restabelecimento de uma vida relativamente normal. Não viver à mercê do tráfico e sobressaltado pelo confronto constante entre polícia e bandido e entre as facções de bandidos restabeleceu o sentimento coletivo de normalidade. Simone, uma moradora de Manguinhos presente na roda de conversa expressou esse sentimento na frase “Eu só quero ser feliz, andar na favela em que eu nasci.” A ocupação resultou, por outro lado, no “espraiamento” do tráfico para a região metropolitana. Na sequência da ocupação que tem muito a ver com os megaeventos deste ano de 2013, com a Jornada Mundial da Juventude e a visita do Papa, a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, os preços dos imóveis no “asfalto” em torno das favelas subiram vertiginosamente, não deixando de ter efeitos nos “morros”. 2 3 [para conhecer clique em http://www.redecontraviolencia.org/] [http://favelanaosecala.blogspot.com.br/] Ainda que a ENSP e a Fiocruz tenham buscado o diálogo com o “território” de Manguinhos mais acentuadamente a partir da época da criação do Fórum Social de Manguinhos, em 2007, a atitude predominante durante muito tempo foi puramente defensiva. Foram citados os exemplos da blindagem do prédio da ENSP (duas vezes, aliás) para viabilizar a frequência de trabalho dos pesquisadores em meio a episódios de tiroteio entre polícia e bandidos e o do episódio do assassinato de dois guardas de segurança do prédio de Expansão da Fiocruz por uma das facções criminosas do tráfico de drogas que disseminou o medo na instituição. Todos entenderam que o debate – como este que estamos realizando nesta roda de conversa da Semana da ENSP – fortalece o enfrentamento da violência e do racismo. Mas é fundamental aprofundar a reflexão. Nesse sentido vale destacar ainda outras contribuições surgidas na roda, bem como apontar outras nas quais se apresentam posições contrastantes, como na entrevista promovida pela Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos., 4 Um dos pontos destacados foi a violência estatal contra as manifestações populares ocorridas desde junho e a criminalização dos movimentos sociais. A Polícia Militar, composta por uma força que age para combater um inimigo, um “inimigo interno” que se encontra em “territórios hostis” e funciona como uma instituição completamente contrária à idéia de um serviço público consoante com os direitos de cidadania. A denúncia da violência policial tem como foco a PM. Nas faixas podia-se ler: “A polícia que mata nas favelas é a mesma que reprime nas ruas”. Neste momento leu-se um trecho da matéria “Desmilitarização, um debate inadiável” publicado 5 na revista Fórum na qual se chamou atenção para o fato de uma parcela muita alta dos soldados era favorável à desmilitarização da força, ao contrário dos oficiais, amplamente favoráveis a esta característica da PM. Para Fransergio, a estratégia de segurança baseada nas UPP’s tem por modelo a guerra do Vietnã, momento em que o governo dos EUA criou o conceito de “ilhas de pacificação”. Qual era a estratégia? Ocupar o território, depois conquistar almas e mentes. Esse é o discurso da secretaria de segurança do Rio de Janeiro: depois da ocupação vem a política social. Para ele, a UPP não é política de segurança pública, mas instrumento de um modelo de cidade de negócios, na qual após a pacificação vem o aumento da conta de luz, vem a ética do capitalismo: se a conta aumenta de 80 para 400 reais, quem puder pagar continua morando na favela, quem não puder terá de sair de lá. Ademais, favela também virou negócio, inclusive com baile funk. Enquanto isso se oferece cursos de capacitação técnica para pobres, com o de garçons, mas não para aprender a usar o programa AutoCad. O silêncio dos moradores das favelas em relação às UPPS não quer dizer necessariamente aprovação, principalmente por parte dos jovens. Basta referir-se à dificuldade que têm de chegar em casa às 22 ou 23 horas. O medo de que tudo acabe após 2016 continua ainda muito forte entre os moradores. 4 disponível em http://www.surjournal.org/conteudos/getArtigo16.php?artigo=16,artigo_10.htm 5 Disponível em: <http://revistaforum.com.br/blog/2013/09/desmilitarizacao-um-debate-inadiavel/> É fundamental, portanto, não ficar prisioneiro da oposição entre a UPP e o tráfico, como se ouve no momento em que se questiona a política de pacificação: então vocês querem o tráfico? Superar esse modo de situar a questão implica em pensar em vários aspectos, dentre os quais se levantaram os seguintes: - a questão geracional nas favelas; - a elaboração de cartilha sobre segurança pública e os direitos de cidadania; - a desmilitarização da Polícia Militar; - a segurança comunitária; - a descriminalização do consumo de drogas. [1] O objetivo das Rodas de Conversa é promover um debate e reflexão acerca dos temas emergentes que têm mobilizado a sociedade brasileira, principalmente a partir de junho, quando foram iniciados os protestos populares. Além de uma proposta de dinâmica, as rodas são um modo de conduzir processos educativos baseados nas Pedagogias Libertadoras, da qual a Educação Popular, sistematizada por Paulo Freire, é uma das mais conhecidas. Esse tipo de atividade é considerada uma derivação dos Círculos de Cultura Freirianos ao promover, a partir de breve intervenção inicial, um debate livre de questões, ideias e relatos entre os participantes. [2] Fransergio Goulart de Oliveira Silva – Historiador. Trabalha em ONG´s há mais de dez anos, em especial em projetos relacionados com e para jovens moradores de favelas do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Fórum Social de Manguinhos, Colaborador do Fórum de Juventudes RJ, Conselheiro Nacional de Juventude, Interlocutor do Forum Nacional de Movimentos e Organizações Juvenis no Espaço Ibero Americano, e Consultor em Politicas Públicas para as Juventudes. i [Essas informações estão disponíveis no Mapa da violência 2013: Homicídios e Juventude no Brasil]