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Violência, Democracia e black blocs
Nildo Avelino1
Para o grego da era clássica, as cidades possuíam função ética: o bem do indivíduo era
idealmente o bem da cidade, a virtude de um era a inspiração do outro. Como
associação ética, a cidade não existia apenas para o viver juntos, mas para o bem viver
juntos – dizia Aristóteles (2006, p. 53). É significativo que a modernidade tenha
substituído o problema ético da cidade antiga por um modelo urbano que estabelece a
mobilidade como paradigma. Obstinado em regulamentar a circulação a partir do
espaço aberto pelo mercado, o mercantilismo colocou em operação, nas cidades
comerciais do século 17, controles sociais infinitos sobre os fluxos migratórios, de
mendicantes, vagabundos, criminosos etc. O viver juntos torna-se objeto de polícia.
Desde então, a expansão comercial passou a produzir a dissolução do espaço urbano
enquanto lugar do bem viver: relações pessoais dão lugar a transações monetárias, rios
são transformados em esgotos, vegetações são destruídas, construções históricas
demolidas para a abertura de grandes avenidas; o tráfego torna-se rastejante, o ar
pestilento e venenoso, as habitações superlotadas e favelizadas, a vida social
atravessada por violências. Segundo Munford, a industrialização, saudada como a
principal força criadora do século 19, “produziu o mais degradado ambiente urbano
que o mundo jamais vira; na verdade, até mesmo os bairros das classes dominantes
eram imundos e congestionados” (Munford, 1998, p. 484). Além do escuro vômito das
chaminés nos céus e das correntes de dejetos líquidos nos rios, as cidades industriais
também instauraram enormes chiqueiros humanos. Um relatório de 1845 sobre a
condição urbana da cidade inglesa de Manchester dizia que as necessidades de 7.000
habitantes eram atendidas por apenas 33 latrinas – uma latrina para cada 212 pessoas.
Nesses novos galinheiros, criou-se uma raça de indivíduos defectivos. A
pobreza e o ambiente de pobreza produziram modificações orgânicas;
raquitismo nas crianças, por causa da ausência de sol, deformações da
estrutura óssea e dos órgãos, funcionamento defeituoso das glândulas
endócrinas, por causa de uma dieta mesquinha; doenças epidêmicas por
falta de higiene elementar da água; varíola, febre tifoide, escarlatina,
1
Nildo Avelino é doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
professor no Departamento de Ciências Sociais e no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), campus João Pessoa.
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septicemia da garganta, por causa da sujeira e dos excrementos;
tuberculose, estimulada por uma combinação de dieta pobre, falta de sol e
congestionamento habitacional, para não falar das doenças ocupacionais,
também parcialmente ambientais. (Munford, 1998, p. 505).
Estas foram algumas consequências provocadas pela aventura comercial moderna ao
sacralizar nas cidades a circulação, renunciando a outras funções urbanas essenciais à
coexistência social. Tais consequências foram, no entanto, imediatamente percebidas
pela economia política como “obstáculo positivo ao crescimento da população”.
Malthus, por exemplo, sustentou “que a pressão da miséria sobre uma parcela da
comunidade [os pobres] é um mal tão profundamente arraigado que nenhuma
habilidade humana pode atingi-lo” (Malthus, 1983, p. 297). Impedir a miséria entre os
pobres estava, portanto, “além do poder do homem” (Malthus, 1983, p. 297). Mas o
que a economia apresentava em termos de fatalidade, os anarquistas logo
denunciaram como a “organização do homicídio”. Proudhon chamou o princípio
econômico de Malthus de teoria do “assassinato político”: para ele a condenação à
morte de quem nada possui deveria ser a conclusão necessária e fatal, não da miséria,
mas dos princípios teóricos da economia política (Proudhon, 1996, p. 118). Ao ser
investida do direito de deixar morrer uma parte da população para aumentar no
conjunto o número de pessoas felizes2, a economia política produziu a inversão do
antigo direito soberano de fazer morrer (Foucault, 1993, p. 127-149).
Não apenas a economia, mas a urbanização e o direito produziram uma reorganização
e, em certa medida, uma intensificação da violência política na modernidade. Processo
de remanejamento do regime normativo e não, como se crê frequentemente, de
pacificação. Na modernidade, se o encarceramento e o policiamento substituíram
amplamente as possibilidades de confronto aberto e armado entre os indivíduos
(Giddens, 2008, p. 205), foi também para inaugurar esse “grande internamento” que
colocou 1% da população parisiense no interior do Hospital Geral, poucos anos após
sua fundação, e atingiu bruscamente “seu limiar de manifestação na segunda metade
do século XVII” sob a forma da exclusão pelo internamento como fato maciço
2
Se os princípios da economia tivessem sido praticados, diz Malthus, “embora pudesse ter havido vários
momentos de cruel miséria, o conjunto de pessoas felizes na população, entretanto, teria sido muito
maior do que é atualmente.” (Malthus, 1983, p. 302).
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(Foucault, 1999, p. 55). É sob essa perspectiva que é preciso compreender as revoltas
ocorridas recentemente no Brasil: foram respostas diretas à intensificação da violência
produzida pelo assalto privado dos lugares públicos. Respostas à capitalização dos
lugares e ao poder de polícia sobre o espaço urbano. As revoltas brasileiras indicam
uma situação intolerável, um ponto de saturação. Muitas análises as descreveram em
termos de “crise da representação”. Ora, a palavra crise induz a considerar como falha
aquilo que, no fundo, deveria ser visto como a emergência e a culminância da
dominação política. Crise é um termo inadequado na medida em que simplifica a
análise e nos impede de perceber a efetiva eficácia das relações de poder.
As manifestações que têm ocorrido no Brasil não são o sintoma da crise da
democracia, mas de seu excesso. Sustentar o contrário seria supor que na demokratia
o kratos, isto é, o poder do demos, desarma sua violência apenas por estar a serviço do
povo. Tal suposição foi uma quimera que as últimas manifestações de rua desfizeram
dolorosamente. Que a violência do poder na democracia seja a mesma que a de
qualquer regime, basta lembrar-se do que diz Hobbes aos que identificaram seu deus
mortal de poder ilimitado, o Leviatã, apenas com o Estado Monárquico: “*...+ o poder é
sempre o mesmo, sob todas as formas de governo, se estas forem suficientemente
perfeitas para proteger os súditos.” (Hobbes, 2003, p. 157, grifo meu). E o grande
Locke confirmaria a tese hobbesiana ao definir o poder político como “o direito de
fazer leis com pena de morte [...] e de empregar a força da comunidade na execução
de tais leis” (Locke, 1973, p. 40). Poder-se-ia insistir e dizer que mesmo teorias como as
de Benjamin Constant e de Thomas Paine confirmam a sentença de Hobbes sob
pretexto de contestá-la. Em se tratando de segurança pública, diz Constant, a
autoridade política segue ilimitada tanto na “punição das transgressões” quanto na
“resistência à agressão”. Ou seja, dentro dos limites ofensivos e defensivos, o poder da
autoridade política segue ilimitado: é investido de força policial para impor leis penais
contra os inimigos internos, de força armada contra os inimigos externos e de força
fiscal para exigir dos indivíduos o sacrífico de suas riquezas individuais para financiar as
despesas (Constant, 2007, p. 92).
Teve razão Proudhon ao dizer que os “pacíficos” Estados Constitucionais organizaram a
letra de suas constituições sob a forma de uma “aliança ofensiva e defensiva”, isto é,
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como “pacto de raiva” e “sermão de guerra social” (Proudhon, 1979, p. 95).
É que a
letra da lei e a linguagem do direito são também formas de violência. Sabemos, desde
os sofistas, que a linguagem não foi feita para ser acreditada, mas obedecida. A
linguagem não comunica, emite ordens, ela é performativa. Durante as manifestações
de junho, a professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e
conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil, Janaína Paschoal, fez a seguinte
declaração ao jornal Folha de São Paulo: “Resistência e manifestação devem ser feitos
através da palavra. Não acredito no direito de pegar em armas. Crime político é ser
perseguido pelo que se fala e pensa.” O argumento é kelseniano: na medida em que as
sociedades modernas não vivem mais sob o domínio de pessoas, mas sob o domínio
de constituições dotadas de poderes que são intelectuais e impessoais; e visto que o
Direito não é nem força nem violência, mas letra, então, conclui Paschoal, a única
resistência cabível é através da palavra, jamais por meio da violência.
A questão é, em todo caso, mais complexa. Se é verdade que a instauração da lei não
responde à violência de uma dominação, isso se deve ao fato de que sua instauração
em si já é uma forma de violência sem fundamento. É preciso ser wittgensteiniano e
admitir que a fala não é mera comunicação: é ordem, afirmação, interrogação. A
linguagem possui uma força que performa, que constrói seu objeto; não é jamais
meramente representação do objeto. Uma linguagem violenta faz mais do que
representar a violência: ela é uma forma de violência. Do mesmo modo que os
discursos da dominação não são apenas o reflexo de relações de dominação: são e
realizam uma forma de dominação. Discursos de poder não são simplesmente
significações verbais do poder, são modos de ser do poder. Judith Butler enfatizou a
dimensão somática da linguagem em relação aos discursos de ódio: são discursos que
produzem feridas corporais. Certas palavras, como as racistas ou sexistas, produzem
feridas físicas, atingem o bem-estar corporal contra quem são dirigidas. É como a
ameaça de agressão que sempre prefigura um ato corporal e estabelece sobre o corpo
ameaçado um ato que virá: a ameaça afirma a iminência do ato (Butler, 2004). Assim é
o Direito: sua violência deve ser procurada na própria letra da lei, na própria palavra da
lei como força performativa, como potência do agir. Uma história do Direito faria ver
que sua lei não foi destinada a apaziguar; ao contrário, como diria Foucault, o Direito é
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“o sangue prometido”, “permite relançar ininterruptamente o jogo da dominação; *...+
encena uma violência minuciosamente repetida” (Foucault, 1993, p. 24). Como resistir
pela palavra se é precisamente a palavra o que domina? Como protestar pela palavra
se a palavra é ela mesma o suporte por meio do qual o Direito exerce violência?
Ainda que variável em relação ao seu objeto, a violência é endêmica ao poder
governamental. E a democracia pode ser tão ou mais letal que a ditadura. Uma crítica
meramente moral da violência, além de ingênua, é justificadora do Estado. Como
observou Benjamin (2011), não é a violência em si que é condenável pelo Estado, mas
apenas aquela orientada contra seu Direito. Já a violência conforme o Direito, ao
contrário, é sancionada como meio justificado. Derrida (2007) retomou a proposição
de Benjamim para afirmar a existência de uma essência jurídica em toda violência. Mas
para percebê-lo seria preciso distinguir entre o que seria uma violência fundadora e
outra violência conservadora: a primeira instaura um sentido, um direito; a segunda
conserva o direito anteriormente instaurado3. A violência do Estado é da ordem desta
última. Se o Estado separou cuidadosamente violência e direito foi por saber que a
violência fora do Direito tende a portar com ela um sentido político oposto ao seu.
Aquilo que o Estado teme efetivamente não é a violência, mas o fato da violência
fundar uma visão de mundo não estatal ou antiestatal. O que ameaça o Estado é a
violência revolucionária, fundadora de outro direito: violência efetivamente
incompatível com a existência do Estado que não tem outra escolha a não ser eliminála, pura e simplesmente, por meio de sua violência conservadora.
O fato de ainda não possuirmos instrumentos teóricos para pensar a coimplicação
entre Direito e violência atesta o quanto pensamos conforme o Estado. Em todo caso,
é preciso rejeitar o moralismo liberal e admitir que não apenas a democracia como
também a própria letra da lei não passam de formas objetivadas da dominação
política, e que a única violência que o assim chamado Estado de Direito não suporta é
a que funda um sentido oposto à sua dominação. Em última análise, violento é sempre
o Estado. Hannah Arendt mencionou “o abismo entre os meios de violência do Estado
e o que o povo consegue juntar por si mesmo – de garrafas de cerveja a coquetéis
3
Uma distinção que aparece também em René Girard, para quem a violência fundadora é invisível:
(Girard, 1990).
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Molotov e revólveres” (Arendt, 2006, p. 126). Um abismo que, segundo ela, “sempre
foi tão grande que melhorias técnicas não fazem quase nenhuma diferença. [...] Num
confronto de violência com violência a superioridade do governo sempre foi absoluta”
(Arendt, 2006, p. 126).
Pior ainda: na violência estatal se encontram unidas as duas violências. No Estado
desaparece a fronteira entre violência fundadora e conservadora. A violência estatal é,
neste sentido, ilimitada, pois os limites que a separa são indetermináveis. É o que faz
sua ignomínia, segundo Derrida.
Essa ausência de fronteira entre as duas violências, essa contaminação entre
fundação e conservação é ignóbil, é a ignomínia (das Schmackolle) da
polícia. Antes de ser ignóbil em seus procedimentos, na inquisição
inominável à qual se entrega, sem nenhum respeito, a violência policial, a
polícia moderna é estruturalmente repugnante, imunda por essência, em
razão de sua hipocrisia constitutiva. Sua ausência de limite não lhe vem
apenas de uma tecnologia de vigilância e de repressão [...]. Ela provém
igualmente do fato de que a polícia é o Estado, é o espectro do Estado, e que
não se pode, rigorosamente, atacá-la sem declarar guerra à ordem da res
publica. (Derrida, 2007, p. 98-99, grifo do autor).
A polícia é para o Estado o que o corpo é para a alma, é o Estado em ação. Mas com
uma particularidade: é o Estado em sua face ignóbil, agindo fora de toda justiça e
impondo-se como necessidade para além de qualquer ordem legal. É a ação estatal no
momento em que a alteração da normalidade fizer a eficácia da lei escapar ao
judiciário para ser garantida com exclusividade pela tropa de choque. A manifestação
do poder de polícia será sempre a suspensão da legalidade, do direito civil, dos direitos
fundamentais. A polícia é esse momento em que o Estado age extraordinariamente e
contra todo o direito comum para a salvação da ordem estatal e em nome da
segurança pública. Como o cirurgião que amputa braços e pernas para salvar o doente,
a polícia deve atuar permanentemente para decepar do corpo do Estado os membros
enfermos a fim de conservar o todo saudável: excessus juris communis propter bonum
commune, como definiu Gabriel Naudé no século 174. A polícia é, em uma palavra, o
golpe de Estado permanente. O que Maquiavel havia pensado como resposta
extraordinária do Príncipe aos acasos da fortuna – mentir, dissimular, enganar, praticar
4
“Suspensão do direito comum para o bem comum”. Cf. Thuau, 2000, p. 324.
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todo tipo de maldade – o Estado das democracias modernas tornou ordinário pelo
poder de polícia.
É preciso saber distinguir a violência conservadora e ignóbil do Estado e do Direito das
múltiplas formas de violência fundadoras de direitos. Recentemente, a professora Alba
Zaluar, reagindo ao meu artigo sobre as revoltas de junho5, afirmou na sua página
pessoal do facebook ser uma perspectiva que “pode acabar com o pouco que temos de
democracia”6. Ora, não seria precisamente o contrário? Se por democracia
entendermos o regime no qual os cidadãos participam da política, para que essa
participação não seja uma mentira ou um devaneio não há outra garantia fora do
fortalecimento ético de seus partícipes. E por mais que se estremeça de vertigem, fato
é que em toda luta política, em todo conflito social, há sempre uma dimensão
irredutível de impulso e estímulo para ação que em seguida transforma-se sem
desaparecer. Trata-se daquele momento, como enfatizou Guyau, em que a luta “passa
do domínio das coisas físicas para o domínio intelectual, sem nada perder do seu ardor
e da sua embriaguez” (Guyau, 1919, p. 125). Na luta se adquire consciência da
sublimidade da própria vontade e se experimenta o prazer do perigo e do risco. Essa
intrepidez que se apodera do mais humilde e do mais médio dos indivíduos quando
colocado face ao perigo, exigirá dele quase sempre atos sublimes. Daí Guyau afirmar
que “dever-se-ia oferecer sempre um certo número de empresas perigosas àqueles
que estão desalentados de viver” (Guyau, 1919, p. 133-134).
Pode-se dizer o mesmo a respeito das recentes manifestações no Brasil: quando jovens
aceitam o perigo de oporem seus corpos pálidos às balas e às bombas da polícia, se
está diante de uma transformação ética de grandes proporções, capaz de inaugurar
um novo movimento da história que escapa às determinações da política. Trata-se de
um movimento irredutível no qual os indivíduos passam a aceitar os riscos das ruas em
vez do conforto e da tranquilidade de uma obediência segura. Camus tinha razão ao
5
Nildo Avelino. “As revoltas de junho no Brasil e o anarquismo”, Blog da Revista Espaço Acadêmico, Ano
XI. Disponível em: <http://espacoacademico.wordpress.com/2013/07/17/as-revoltas-de-junho-nobrasil-e-o-anarquismo>. Consultado em outubro/2013.
6
Disponível em <https://www.facebook.com/alba.zaluar/posts/770902369592937>. Consultado em
outubro/2013.
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falar da existência de uma “ascese na revolta” (Camus, 1999). É que nela se encontram
implicadas duas formas de recusa:
[...] recusa-se um estado de coisas, uma exploração etc.; mas recusa-se
igualmente e ao mesmo tempo papéis, funções, percepções e afetos que
organizam o estado de coisas. A ascese, portanto, provoca uma dobra, abre
uma fenda na subjetividade dos indivíduos suspendendo no si aquilo que é
habitual e já constituído. Nesta fratura reside as possibilidades do devir
revolucionário: no momento em que o indivíduo é arrancado de si mesmo e
em que cessa a tirania do eu; neste momento de vitória sobre a própria
subjetividade, é ali que se abre um processo de singularização no qual a
ação política se dá não como simples reconhecimento, imitação ou filiação,
mas como processo de invenção que rompe com as normas, regras e
hábitos que conformam os indivíduos e a sociedade. (Avelino, 2010, p. 160).
Foi também nessa direção que, em um escrito instigante, Daniel Colson chamou a
atenção para os aspectos da revolta. Tomando o acontecimento da Revolução de
1848, em Paris, analisou as transformações subjetivas a partir das narrativas de três
escritores que vivenciaram seus efeitos: Proudhon, Bakunin e Coeurderoy. Segundo
Colson, as três narrativas:
[...] falam da perda de si mesmo, ou melhor, no fogo dos acontecimentos,
da perda de sua individualidade em proveito de subjetividades novas e
indeterminadas que têm como tripla característica, primeiramente, a de
impulsionar sua potência e sua realidade para um fora e uma alteridade
desconcertante e assustadora; segunda característica, a de ser, ao mesmo
tempo, um interior e um outro de si mesmo; e, terceiro, de abolir todos os
limites e todos os quadros de ação e de identidade até então constitutivos
do ser dos narradores. (Colson, 2013, p. 228).
O mais importante, portanto, está na transformação ética dos indivíduos que a revolta
é capaz de provocar: nela, a revolução deixa de ser promessa estéril e imobilizadora
para tornar-se devir. Ignorar isso é desconhecer a dinâmica política da revolta. Em tais
acontecimentos, como assinalou Kant, o que importa é o entusiasmo ou, na sua
definição, aquele tipo de participação conforme o desejo cuja manifestação coloca o
participante em perigo. Para ilustrar esse entusiasmo, Kant utilizou o seguinte verso da
Eneida: diante dele a espada mortal quebra-se como frágil gelo (Kant, 1993). Parece
que esse aspecto a intelligentsia brasileira foi incapaz de compreender, ora chamando
os black blocs de fascistas ora vendo neles apenas uma tática de destruição. Foi o caso
do célebre cientista político Wanderley Guilherme dos Santos ao afirmar, em artigo
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publicado no jornal Valor Econômico, que as ações dos black blocs – ou as crises de
identidade mencionadas por Colson – estabelecem uma “atração fatal à anomia, ao
niilismo, ao negativismo militante” propugnados por “minorias insidiosas de sempre:
um nazismo renascente, protofascistas” que têm infestado as manifestações. Essa
“informal coalização de celerados”, diz Santos, são os defensores de uma semântica
política que “é niilista, reacionária, antidemocrática”. “A conjuntura é fascistoide”,
alardeia o prestigioso politólogo (Santos, Valor econômico, 26/07/2013).
O juízo de Marilena Chaui não foi menos implacável. Falando para uma audiência de
cadetes e oficiais da Academia da Polícia Militar do Rio de Janeiro, a célebre filósofa de
esquerda não se constrangeu em apresentar os black blocs como fascistas. “Temos
três formas de se colocar. Coloco os ‘blacks’ na fascista. Não é anarquismo, embora se
apresentem assim. Porque, no caso do anarquismo, o outro [indivíduo] nunca é seu
alvo. Com os ‘blacks’, as outras pessoas são o alvo, tanto quanto as coisas” (Chaui,
Folha de São Paulo, 27/08/2013). Além disso, diz Chaui, tampouco sua violência seria
uma violência revolucionária, ou fundadora no sentido que empreguei aqui. “Ela *a
violência revolucionária] só se realiza se há um agente revolucionário que tem uma
visão do que é inaceitável no presente e qual a institucionalidade futura que se
pretende construir” (Chaui, Folha de São Paulo, 27/08/2013).
Conhece-se bem a imagem do revolucionário de Chaui: é o velho missionário do
Partido empenhado em divulgar a promessa de esperança do novo evangelho da
Revolução. Trata-se da retomada do slogan leninista, segundo o qual sem estratégia
revolucionária não há Revolução. O problema é que toda estratégia necessita de um
estrategos, um general, que no leninismo será a vanguarda, responsável por elaborar a
teoria revolucionária mais eficaz na tomada do Estado para a construção da
“institucionalidade futura”. Conhece-se o final dessa história...
Não há maior insensatez e irresponsabilidade política do que apresentar os black blocs
como fascistas. Fazê-lo, além de ir contra todo rigor analítico, é também legitimar a
fúria repressiva e judicial que tem se abatido sobre centenas de jovens. Que um jovem
casal de manifestantes tenha sido enquadrado recentemente na Lei de Segurança
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Nacional pela polícia paulista, este é um fato que deveria sensibilizar a racionalidade
de aço dos nossos doutos ilustres.
Em todo caso, quero argumentar que as práticas black blocs não sendo obviamente
fascistas, tampouco são simples táticas de violência. Trata-se de uma atitude, de um
gesto cuja história seria possível retraçar a partir de um tipo de ação que foi muito
praticada pelos anarquistas nas últimas décadas do século 19: a chamada propaganda
pelo fato. Uma modalidade de ação que surge para suprir certa insuficiência da
propaganda oral e escrita num contexto em que a prática eleitoral ganhava cada vez
mais influência e atraía até mesmo velhos militantes socialistas e anarquistas. A
propaganda pelo fato respondeu a um processo de colonização da linguagem: naquela
ocasião, “propagar pelo fato” não era uma mensagem ideológica, não era a linguagem
presa no interior de uma representação; era uma multiplicidade maciça de atos que
apresentavam a fala bruta sem mediação e representação das coisas. A propaganda
pelo fato foi a realização de um gesto na maioria das vezes extremamente dramático,
como o praticado pelo anarquista francês Auguste Vaillant ao atirar uma marmita
cheia de pólvora e pregos durante uma sessão da Câmera dos Deputados de Paris em
1893. Nenhum deputado se feriu, mas Vaillant foi decapitado. No dia 18 de janeiro de
1894, sua jovem filha, Sidonie, envia para a primeira dama francesa, Sra. Carnot, uma
carta suplicando pela vida do pai. Mas o presidente da república, Sr. Sadi Carnot,
recusa clemência, e Vaillant é guilhotinado em 5 de fevereiro de 1894, aos 33 anos, e
sob o grito de “Viva a anarquia! Minha morte será vingada”7.
O gesto de Vaillant inaugurou o que ficou conhecido pelos historiadores como a “era
da dinamite” do anarquismo, quando a espiral dos atentados atinge o próprio vértice
da pirâmide política pelas mãos de um jovem anarquista italiano de vinte anos, Sante
Geronimo Caserio. Padeiro em Sète, no sul de Montpellier, na manhã do dia 23 de
junho de 1894, Caserio provoca inexplicavelmente sua demissão e recebe do seu
patrão o pagamento de 20 francos. Pouco depois, compra um punhal pelo valor de 5
7
Condescendente, a duquesa de Uzès se oferece para adotar Sidonie, mas Vaillant recusa, entregando-a
ao anarquista Sebastién Faure que a educou até a juventude. A tumba de Vaillant, no cemitério de Ivry,
foi local de grande peregrinação. Um poema, deixado entre as folhas de uma palmeira, dizia: “Porque
fizeram beber a terra/Na hora do Sol nascente/Rosado, augusto e salutar/As santas gotas do teu
sangue/Sob as folhas desta palma/Que te oferece o direito ultrajado/Dormes teu sono soberbo e
calmo/Ó mártir!... Tu serás vingado”. Cf. Maitron, 1975, 235.
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francos e se dirige a Lyon. O pouco dinheiro que lhe resta não era suficiente para
alimentar-se e pagar a viagem, decide então fazer parte do trajeto a pé, de Vienne a
Lyon, cerca de 27 quilômetros. Alcança finalmente Lyon na noite de 24 de junho. A
cidade está em festa por ocasião da visita do presidente da República, Sadi Carnot, à
Exposição Universal de Lyon. Caserio mistura-se na multidão portando no bolso o
punhal envolvido por um jornal. O presidente, que tinha dado ordem expressa para
deixar a população aproximar-se, estava ébrio com o entusiasmo popular. No seu
depoimento à polícia, diz Caserio:
[...] no momento em que os últimos homens da escolta passaram por mim,
desabotoei a jaqueta, o punhal estava com cabo para cima no bolso direito.
O agarrei com a mão esquerda; num único movimento desloquei os dois
jovens que estavam à minha frente e, num salto, colocando a mão sobre a
janela da viatura, golpeei gritando: Viva a Revolução! A minha mão tocou a
roupa do Presidente, a lâmina estava afundada até o cabo. [...] O Presidente
me olhou, em seguida abandonei a viatura e gritei: Viva a anarquia! Certo
de que seria finalmente preso. (Maitron, 1975, p. 158).
Com efeito, foi esse último gesto que causou sua prisão, pois, até então, imaginava-se
que o jornal no qual havia envolvido o punhal continha flores ou um pedido de súplica.
O golpe de Caserio perfurou em onze centímetros o fígado de Sadi Carnot, que morreu
três horas depois. No dia seguinte, a viúva, Sra. Carnot, recebe uma carta contendo
uma foto do anarquista guilhotinado Ravachol, onde se lia: “devidamente vingado”.
Anos depois, foi a vez do Rei Umberto Primo, morto em Milão pelos disparos do
anarquista Gaetano Bresci, no ano de 1900. E no ano seguinte, o presidente americano
William McKinley morre assassinado, em Buffalo, pelo anarquista polonês radicado nos
EUA, Leon Czolgosz (Masini, 1981).
Não se trata de exaltar a violência nesses gestos dramáticos. Os anarquistas bem
sabiam, ao contrário de Sorel, dos perigos resultantes de uma apologia à violência.
Basta ler o que escreveu Errico Malatesta a propósito do regicídio de Milão, e que
pode ser considerado o coração da tática anarquista:
Sabemos que o essencial, o indiscutivelmente útil é, não matar a pessoa de
um rei, mas matar todos os reis – das cortes, parlamentos e fábricas – no
coração e na mente das pessoas; isto é, erradicar a fé no princípio de
autoridade a qual presta culto uma enorme parcela do povo. (Malatesta,
1900).
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Em todo caso, nada seria mais tolo e estéril que a condenação moral de tais gestos
supondo que não há neles nada mais além de simples violência. São, sobretudo, atos
de resistência ao poder, nos quais o indivíduo passa por uma transformação ética
importante. Revelam esse momento que Foucault chamou de “o ponto mais intenso
da vida, aquele em que se concentra sua energia, [...] ali onde ela se choca contra o
poder, debate-se contra ele, tenta utilizar suas forças e escapar de suas armadilhas”
(Foucault, 2001, p. 241).
Pode-se compreender o que Malatesta chamou de “erradicar a fé no princípio de
autoridade” como suspensão da legalidade. Quando se olha as coisas fora do âmbito
moral, percebe-se que se trata bem mais do que vandalismo. Não é a ode ao crime
tampouco a apologia ao delito. É uma disposição que se apodera dos ânimos e se
torna o alimento mais precioso da vida política. A legalidade não é uma ordem exterior
aos indivíduos, ela integra sua própria subjetividade por meio da qual opera e se
manifesta. Ela se instala nos espíritos antes de erguer fortalezas. Romper com a ordem
da legalidade é um ato político da maior importância. No limite, não há transformação
política concreta fora dessa ruptura. Na tática da propaganda pelo fato dos anarquistas
do século 19 existe esse gesto corajoso de enfrentamento com o poder ao qual parece
possível remeter a ação dos black blocs do século 21, e que se poderia resumir nas
seguintes palavras: não se impõe a lei a quem está disposto a arriscar a vida.
Hoje, trata-se de responder especialmente aos processos de apodrecimento da
linguagem e da comunicação que produzem uma degradação da subjetividade sem
precedentes por meio de violências semióticas televisivas e jornalísticas. O poder
político não produz apenas a miséria econômica dos trabalhadores; impõe igualmente
uma miséria subjetiva, é produtor de subjetividades: ele produz os indivíduos, seu
pensamento, seus corpos, as formas pelas quais sentem e percebem o mundo. Se
durante todo o século 18 até o século 20 o poder político produziu uma ordem
econômica que atirava na miséria milhões de trabalhadores, a partir da segunda
metade do século 20, parece-me que o processo de pauperização do capitalismo se
deslocou da ordem da economia para a ordem da subjetividade. Hoje o capitalismo
não produz, ao menos nas mesmas proporções, os mesmos níveis de miséria material
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do passado. Porém, produz uma miséria subjetiva atroz e que é, tanto quanto era a
miséria econômica, extremamente violenta.
Talvez aquilo que estamos assistindo possa ser lido, também, como revoltas contra a
pauperização da subjetividade. Não seria por acaso que um dos alvos preferidos, senão
o mais visado pelos manifestantes, além dos bancos, tenha sido a grande mídia: TV
Globo, Record, Folha de São Paulo etc. Se isso ocorre é por que hoje a grande mídia é a
principal responsável por essa violência simbólica destinada a degradar a subjetividade
das pessoas. Mas não só: em nossos dias, quase tudo se encontra configurado como se
fosse um programa de auditório. Basta pensar nas comemorações do 1º de maio com
direito a show de cantores populares e sorteio de bens de consumo. Os sindicatos se
transformaram em vetores de pauperização subjetiva, como também os partidos
políticos, as instituições governamentais e muitas outras organizações da esquerda. O
que se encontra é sempre a disseminação desse modelo do programa de auditório,
com sua plateia interagindo com aplausos ou vaias conforme orientação da assistência.
Tudo isso nos leva a pensar que a miséria que toca o intolerável hoje, para grande
parte das pessoas, não seja mais produto de uma economia material, mas de uma
economia subjetiva que provoca a pauperização da subjetividade.
Face ao apodrecimento da semântica político-democrática é preciso, e eu diria que é
mesmo urgente, criar novas formas de comunicar. Os black blocs podem ser uma
delas, desde que saibam evitar que a violência se transforme em retórica e em teoria.
A história nos mostra que a violência pode ter um efeito inverso ao pretendido, na
medida em que ela torna o poder ao qual se dirige ainda mais tirânico. No fundo,
poder e violência vivem uma espécie de eterna simbiose, se admitirmos, com Deleuze
e Guattari (1999), que é precisamente a impotência do poder que o faz tão perigoso: a
perseguição meticulosa, a desmedida das punições, a grandiloquência judiciária, a
magnitude da repressão, a onipresença dos controles etc., tudo isso não é nada além
do poder buscando tomar, fixar, deter aquilo que o ameaça.
Portanto, será fundamental saber transformar a violência conservando o que nela
pode haver de estímulo para a luta contra o poder.
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