1 “HUM” Biografema Eduardo Silveira1 O caminho... 1 Professor do Instituto Federal de Santa Catarina. Ator Profissional, licenciado em Ciências Biológicas pela UFPR, com mestrado em Educação também pela UFPR e doutorando em Educação pela UFSC. Atualmente dedica-se a pesquisas relacionando o palhaço, a improvisação e a educação, assim como experimentações de escritura. É líder do grupo de pesquisa Educatecnoarte.. E-mail: [email protected] ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 2 Aquele palhaço bandido matou duas pessoas. Uma com vida e a outra sem. Uma delas morreu asfixiada pelo riso, sorrindo. A outra, imune a ele, dormiu morrendo. Eram duas pessoas bem diferentes, mas o palhaço quis, deliberadamente matá-las. Ele tinha desejo pela morte. Aquele momento, somente um, em que o silêncio toma conta e não deixa de caber, era mágico. Era um palhaço cheio de tortuosidades e torturas. Matou sim, pelo silêncio, mas também – e isso nem ele sabia – pela incapacidade de decidir entre aquelas pessoas. Via nelas um caminho que ele não suportava. ERA descaminho. As duas pessoas cordas, diametralmente opostas, puxavam-lhe. Ele, decididamente indeciso, seguia em linha reta. Por isso matou. ...Acontessência ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 3 Levantou os braços, espalmando as mãos. Uniu-as acima da cabeça. O olhar fixo naquela montureira de gente que o engolia fincando-lhe olhos compulsivos. Nunca soubera o que faria. Simplesmente os braços começavam a erguer e ele os aceitava, erguendo-se. Era de uma generosidade doce com seu corpo naqueles momentos que causaria inveja a qualquer oriental auto-conhecedor. Os pés começaram a erguer-se. A massa humana desajeitada e patética suspendia-se na ponta dos dedos dos pés. Tentando inutilmente equilibrar aquele conjunto tosco, pendia. Ora para um lado, ora para outro. O olhar ainda fixo. A boca cerrada, regendo uma expressão séria. Tensão e. Ouvia-se já algum som, tímido e abafado. A epidemia ainda não havia se espalhado, talvez nem acontecesse. Mas sua cabeça decidiu continuar e abaixou-se levemente com um movimento sutil, fazendo o queixo, aos poucos, vir em direção ao ombro direito. Uma cascata e os pés, ainda elevados, desajeitadamente levaram em dois passos todo o conjunto para a direita. A epidemia espalhara-se. Risos. Titube(RR)ando... Hoje ele queria me vencer, mas não conseguiu, safado... Tive mais força e dei-lhe uma chave de braço na idéia. Entortei seus dedos e fiz sua negação tremer. Nunca tinha conseguido pegá-lo assim. Foi tão excitante. Logo senti o coração pulsando-me e minhas pernas tremelicando. Ele estava ali, inerte, entregue. Eu deveria fazer alguma coisa com ele. Como eu imaginei aquele momento... Já tinha ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 4 ensaiado tudo. Era ali, quando ele estivesse naquela posição vendida em que agora estava, lambendo o chão sujo com suas nuances que eu o tomaria conta. Entraria em suas entranhas, mastigando as vontades e arrancaria com as unhas – as teria deixado crescer por dois meses – todas as deliberações anteriores: a essência, a superficialidade, a inércia, a estrutura, a busca. Por certo deixaria partes minhas dentro dele, lógica. Eu me permitiria até sentir a dor de ter uma unha arrancada totalmente naquele ato selvagem. Mas ali, com ele na minha frente, entregue, ofegante mal cheiroso, eu fiquei estático. Maldição...! perdi para o risco ...Resolucionando Pegou uma caixinha vermelha. Arrumou-a. Tinha uma mesa plana de 3 por 4, uma cadeira sem encosto e sem braços, de escritório. Olhou para a caixinha vermelha. Tentou colocá-la de outra forma, mais virada para a direita. Olhou. Não era ali. Tornou a manipulá-la. Deslizou-a para a parte mais distante da ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 5 mesa, quando no canto superior direito. Olhou. Não. Ficava desequilibrado, muito longe. Deslizou-a novamente, bem no centro. Olhou. Ela parecia desaparecer. Tormento. Aquela caixinha não cabia na mesa de 3 por 4. Na cadeira, fez falta encosto e braços. Era vazio ao seu lado, ia cair. Tentou trazer a caixinha para perto de si, medianamente na mesa. Olhou. A mesa se agigantava mais ainda. Tormento. Suas mãos viveram. Dirigiram-se para a caixinha, abocanharam-na. Um beijo. Sua boca mastigava a caixinha e o vermelho vazava pelo canto de seus lábios. Tranqüilo. Vaziante... ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 6 Prazo: a vencer. Calma, estou pensando sobre, ainda não sei, mas vai acontecer. Já tenho dentro de mim o motivo, o lugar, e quem são. Só falta a conversa entre eles. Isso é o de menos, acontece, na hora. Prazo: vencendo. Ainda não tenho. Já destracei o motivo, destrocei o lugar e matei quem são. Não tenho nada. Não era muito bom mesmo. Mas já começo a pensar que não é um motivo, um lugar e quem são, mas sim um movimento. Ele vai iniciar na bacia, a bunda que se movimenta, desce para as pernas que somente acompanham e são o ponto de equilíbrio e terminar lá nas mãos vermiformes que escondem o rosto. É isso, falta só experimentar, depois. Prazo: vencido. Não tenho nada! O que eu fiz? Já foi o tempo! O movimento empacou, apaixonou-se pela inércia. Não conseguiu. Eu fiquei sem ter por onde, sem ter porque, sem ter por quem. Sente por onde? Sente por quê? Sente por quem? ...Encontrância ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 7 Quando eu tinha nove anos, fugi de casa. Eu era muito maduro naquela gelatina de imaturidade. Depois foi aos dezessete. Desta vez eu precisava encontrar o mundo, não cabia mais naquelas rotinas cubiculares. Aos vinte e um, nova fuga. Agora eu queria que me encontrassem, todos deveriam ser vistos em mim. Há pouco, com vinte e quatro, eu não sabia, mas já fugia outra vez, não conseguia acomodar a bunda na cadeira que me escolhi. Hoje, aos vinte e seis já não sei se consigo desfugir. As minhas casas, já não existem. Abertura significativa... ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 8 Eu sou uma mulher muito sofisticada. Adoro des-pender duas horas pintando minhas unhas. Busco a perfeição, os detalhes. Também me encanta viajar de chuva. Passos sutis, mas firmes. Tenho necessidade por ambientes limpos, mas desejo a limpeza que cheira. Nada de insossidades em minha vida. Não quero a pureza leviana, sou mais de ferroadas adocicadas. Uma vez ela, que era eu, quis perfurmar-se de solo e foi, meteu-se (ti-me) na lama quente. Foi bom, a sensação das minúsculas pedrinhas roçando-lhe (-me) o rosto suave. Minha sofisticação vaza-me os olhos, a boca, as mãos. Mas há algo de mim que não conheço. Ela tem pouco disso também, o asco, a ingenuidade que beira a podridão e a animalidade. Mas isso não faz desmerecer-me, pois sou abertura significativa. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br