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Havia muito tempo que não experimentava aquela sensação de ir dormir para, no dia
seguinte, acordar com o mundo transformado. Era uma sensação, um desejo baseado,
talvez, na antiga profecia da revolução.
Quarta-feira, 19 de junho. Acordei cedo e reuni na mochila tudo que a imaginação e a
experiência de outras manifestações me sugeriam. Saí na rua e a brisa, que soprava
refrescante, aumentou aquela sensação de euforia, de que algo tinha mudado ou
estava prestes a mudar.
Lembrei-me do que havia escrito um amigo acerca do centro do mundo. Dizia ele: “O
centro do mundo é móvel, no tempo e no espaço”.
A caminho da Praça da Gentilândia, para encontrar uns amigos antes de me dirigir ao
local da manifestação, lembrei também do quão inesperados eram os últimos
acontecimentos. Ironicamente me perguntava algumas semanas antes se poderia
ocorrer uma reviravolta nos ares, diante da onda pós-moderna a pairar sobre nossas
cabeças.
Distintos grupos se encontravam na Praça da Gentilâdia, lugar escolhido para as
grandes assembléias populares que se seguiriam. Tomei um ônibus ali próximo, junto
com outros manifestantes, em direção ao ponto de encontro. Ao longo de todo o
percurso se via gente se deslocando para o lugar marcado.
Desci do ônibus com o sol já escaldante. Dezenas, centenas, milhares convergiam para
as proximidades do viaduto distante mais ou menos uns quinhentos metros da
barreira policial. Aquela tropa enfileirada impediria os manifestantes de chegarem até
o Estádio Castelão, onde aconteceria o jogo entre Brasil e México pela copa das
confederações.
Não me lembro de ter participado de uma manifestação em Fortaleza que tivesse
reunido tanta gente. Era um clima de confraternização e de encontro. Era um desejo
de soltar o grito contido há muito tempo. A cada grande grupo que chegava pelos dois
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lados que dava acesso ao viaduto, a saudação era gritada e aplaudida. Era uma energia
apaixonante.
Bem depois da hora marcada para a saída, um grupo de manifestantes, à frente, se
deu as mãos e marchou em direção aos policiais, arrastando consigo um mar de gente.
Era só uma primeira barreira com grades de isolamento e policiais com capacete de
uma tropa motorizada. Paramos diante dos policiais. Não demorou muito, e depois de
algumas investidas, o primeiro cordão de policiais foi rompido.
A tropa seguinte, composta pelo choque e o Grupo de Ações Táticas Especiais - GATE
esperou nossa aproximação, só então conhecemos seu arsenal de gás lacrimogêneo e
bala de borracha. Tudo ao redor ficou tomado pelo gás. Recuamos asfixiados em busca
de algum oxigênio. Muita gente passando mal. Encontrei um amigo respirando com
dificuldade e pude compartilhar com ele meu vinagre. Era um coro de gente tossindo.
Recompomo-nos do primeiro ataque. Embebi meu lenço no vinagre e o amarrei firme
contra o rosto. Tirei da mochila minha segunda baladeira (estilingue), pois perdi a
primeira no desespero do gás. Preparei minhas bilas (bolinhas de gude), e a
contragosto de alguns “pacificadores” fui para frente de combate. Não tive dúvidas de
que minha violência era um gesto de libertação, de extravasamento da reação contra a
opressão dos poderes estabelecidos e sua injustiça reinante. Como disse: Raoul
Vaneigem: “Chega um momento em que o privilégio de morder como um cão excita o
desejo de revidar como um homem”.
A batalha se estendeu pela tarde. O gás já não incomodava tanto. A cavalaria avançava
e era forçada a recuar. As barricadas, o fogo e as pedras, contudo, não impediram a
tropa de nos empurrar de volta ao viaduto. Todos exaustos, fomos nos dispersando.
Confusão e quebra-quebra em um posto de gasolina. Um carro de transmissão afiliada
da TV Globo é apedrejado. Viaturas da Polícia perseguem manifestantes nos arredores
até o cair da noite.
No dia seguinte, já tinha outra manifestação convocada nas redes sociais. A
concentração seria na Praça Portugal. Quando alcancei a manifestação já era início de
noite. Uma multidão caminhava pelas ruas do bairro nobre de Fortaleza gritando
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palavras de ordem. Cerca de trinta mil pessoas. Marcadamente a alegria e a
irreverência estavam presentes. A ausência de lideranças mais efetivas e o
questionamento dos Partidos também era uma marca.
A população um tanto aturdida dava demonstração de apoio ao longo da caminhada.
Um grupo parou por algum tempo diante da Assembléia Legislativa e outro seguiu em
direção ao Palácio do Governo. Lá chegando, batucada, ciranda, e uma tentativa de
ocupar o Palácio detona o confronto. Um manifestante caído é amparado por um
grupo. Gás lacrimogêneo e bala de borracha até a dispersão.
Após a dispersão, a polícia perseguia e prendia qualquer um que estivesse nos
arredores. Numa moto com meu irmão, voltando para casa, quase fomos detidos por
uma tropa do GATE, simplesmente por estarmos levando um tambor. Arrancamos na
moto ziguezagueando entre os carros para escapar.
Até o dia 27 de junho, data da próxima grande manifestação, se seguiram várias
assembléias em praça pública. As pautas, a avaliação do movimento e os próximos
passos eram temas recorrentes. As assembléias encerravam características próprias
destas últimas manifestações e seus desafios. As pessoas evitavam os carros de som,
preferindo falar em voz alta ou no megafone. As falas eram respeitadas no mesmo pé
de igualdade, do estudante iniciado ao ativista mais antigo. Um interessante exercício
de Democracia Direta que não deixou de ter seus momentos de tumulto.
Foi um aprendizado mútuo. De um lado, os grupos e ativistas experientes que podiam
dar lições de confronto com a polícia, acerca de questões teóricas e algumas formas de
organização. De outro, aqueles que vinham de experiências distintas, com
questionamentos acerca das formas de organização tradicional, novas exigências
libertárias, domínio de novas formas de comunicação e mobilização em rede.
A capacidade de contrainformação que este novo movimento adquiriu por meio das
redes sociais, conferiu às últimas manifestações uma particularidade vantajosa frente
ao poder da opressão estabelecida. Antes de Vândalos, éramos Baderneiros. Quando
este termo ainda não tinha sido substituído por aquele, contestar as injúrias da mídia
oficial era como bradar entre surdos, e sob suspeita.
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O combate travado no decorrer das primeiras manifestações de junho não foi só físico,
foi também, em boa medida, de ordem ideológica. E o resultado desse combate foi
sentido na manifestação do dia 27. O recurso de enquadrar os manifestantes como
vândalos e criminosos já não tinha a mesma força de antes.
Uma das iniciativas práticas das assembléias, antes do dia 27, foi mobilizar a
comunidade do Bairro Serrinha para a manifestação. O ponto de encontro desta
manifestação foi marcado na frente da Universidade Estadual. Das três grandes
manifestações aqui tratadas, esta foi a que teve o menor número de manifestantes,
mas foi a que mais trabalho deu às forças da ordem.
Logo que o confronto se deu nas proximidades do Estádio Castelão, onde seria
realizado o jogo entre Espanha e Itália, foi possível ver uma legião dos temidos
mascarados. A ingenuidade presente na primeira manifestação já não era numerosa.
Os escudos, as luvas e os garrafões para anular as cápsulas de gás lacrimogêneo, as
baladeiras e a movimentação dos manifestantes era algo já orquestrado.
Tantas vezes a cavalaria avançava, tantas vezes tinha que recuar sob uma chuva de
pedras. A ponto de um policial acuado sacar sua pistola e atirar contra os
manifestantes. Por sorte, não atingiu ninguém. A batalha transcorreu por horas a fio.
Os jovens da comunidade se envolveram na batalha, destemidos, e à vontade em seu
território. Barricada na rua, carro da imprensa queimado, bala de borracha, bomba de
efeito moral e gás lacrimogêneo era o cenário local. Íamos sendo empurrados cada vez
mais para longe do Castelão, até que uma tropa consegue entrar por uma rua lateral e
encurralar uma parte nós.
Outros manifestantes eram perseguidos pelas ruas e muitos se refugiaram em casas da
comunidade, que foram atacadas pela polícia. Uma equipe de policiais motorizados
tratou de dispersar com bala de borracha o restante dos manifestantes. Muitos foram
presos, inclusive um jovem que simplesmente tinha saído de casa para comprar pão.
Escapei da prisão me refugiando numa residência próxima. Ao chegar em minha casa,
copiei as imagens da manifestação, gravadas em um celular que encontrei, antes de
devolvê-lo ao pai de um dos manifestantes. Este, apesar de um pouco preocupado,
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demonstrava seu apoio à rebelião. Em seguida, fui travar o combate da
contrainformação nas redes sociais.
Estive na manifestação do dia 7 de setembro aqui, e acompanhei as informações no
resto do país. Indignou-me a repressão policial, a sanha do Estado, e a farsa da mídia
oficial. Indignado, também, me deixa o papel da “Justiça”. Indignado, não iludido.
Aqui ainda ocupamos o Parque do Cocó, em sua defesa, contra o viaduto que a
Prefeitura quer construir passando pelo seu interior. Apesar das investidas e da
truculência do Estado, a resistência está firme em seus propósitos. Ontem, 11 de
setembro, saiu mais um resultado da “Justiça” favorável à construção do viaduto. Já
sinto cheiro de gás no ar.
Mas como diz a irreverente palavra de ordem nas manifestações por aqui, acho que
“estou viciado neste gás”. Nesse desejo de transformar a vida e o mundo. De recusar a
miséria imposta pelo mesquinho calculo econômico a que estão submetidos todos os
poderes. A rebelião está na rua. Em movimento.
C. M. - videomaker
Fortaleza, 12 de setembro de 2013.
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C. M.