UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – UFPB
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – CCHLA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA – PROLING
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO – LINGÜÍSTICA E ENSINO
LINHA DE PESQUISA – PRÁTICAS INSTITUCIONAIS E NÃO-INSTITUCIONAIS
DE LEITURA E ESCRITA
O ENSINO DA LEITURA E A LEITURA NO ENSINO:
reflexão sobre as práticas de leitura de professores de língua portuguesa de
escolas da rede municipal de Juazeiro do Norte – CE
Maria Cleide Rodrigues Bernardino
João Pessoa – PB
2008
MARIA CLEIDE RODRIGUES BERNARDINO
O ENSINO DA LEITURA E A LEITURA NO ENSINO:
reflexão sobre as práticas de leitura de professores de língua portuguesa de
escolas da rede municipal de Juazeiro do Norte – CE
Dissertação apresentada como requisito parcial
à obtenção do grau de Mestre, à Coordenação
do Programa de Pós-Graduação em Lingüística
– PROLING, da Universidade Federal da
Paraíba – UFPB, sob a orientação da Profª Drª
Maria Ester Vieira de Souza.
Orientadora: Profª Drª Maria Ester Vieira de
Souza
João Pessoa – PB
2008
Ficha Catalográfica elaborada por Ariluci Goes Elliott – CBR 3/815
B523e Bernardino, Maria Cleide Rodrigues
O Ensino da leitura e a leitura no ensino: reflexão sobre as práticas de
leitura nos professores de língua portuguesa de escolas da rede municipal de
Juazeiro do Norte - CE. / Maria Cleide Rodrigues Bernardino. João Pessoa, 2008.
70p.
Orientadora: Profª. Drª. Maria Ester Vieira de Sousa.
Banca Examinadora: Profª Drª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa
(PROLING/UFPB), Profª Drª Francilda Araújo Inácio (CEFET/PB).
Dissertação (mestrado) Programa de Pós Graduação em Lingüística /
Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
1. Leitura. 2. Ensino da Leitura. I. Bernardino, Maria Cleide Rodrigues
II. Título: O ensino da leitura e a leitura no ensino.
CDD 372.4
TERMO DE APROVAÇÃO
MARIA CLEIDE RODRIGUES BERNARDINO
O ENSINO DA LEITURA E A LEITURA NO ENSINO:
reflexão sobre as práticas de leitura nos professores de língua portuguesa de
escolas da rede municipal de Juazeiro do Norte – CE
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no
Programa de Pós-Graduação em Lingüística – PROLING, da Universidade Federal
da Paraíba, pela seguinte banca examinadora:
Banca Examinadora:
ORIENTADOR: Prof. Drª Maria Ester Vieira de Souza
PROLING/UFPB
Examinador 1: Profª Drª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa
PROLING/UFPB
Examinador 2: Profª Drª Francilda Araújo Inácio
CEFET/PB
João Pessoa – PB
2008
DEDICATÓRIA
A minhas filhas Aline e Carine motivo e inspiração constante de conquistas.
A minha mãe Alzira.
A meu Deus todo poderoso.
AGRADECIMENTOS
À todos que direta ou indiretamente, contribuíram para a realização desse
trabalho.
Meu agradecimento especial a todas as pessoas que colaboraram como seus
depoimentos para esta pesquisa.
A
Profª Drª Maria Ester Vieira de Sousa, por sua imensa colaboração e
paciência nas horas dedicadas a leitura e orientação desse trabalho.
As
Profª Drª Maria de Fátima Almeida e Drª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa,
pela grande contribuição e incentivo a este trabalho.
A
Profª Drª Joselina da Silva, pela sua leitura e seu olhar primeiro.
À
Grande amiga e companheira compreensiva Cleide Pereira, pela paciência e
disponibilidade constantes.
RESUMO
Esta dissertação se propõe a analisar as práticas leitoras junto aos professores das
séries iniciais das escolas da rede pública municipal da cidade de Juazeiro do Norte,
Ceará. A motivação deu-se a partir da afirmação corriqueira de que os professores
não lêem e partiu dos questionamentos sobre as práticas leitoras dos professores.
Tem como objetivo principal desenvolver uma investigação junto aos professores de
língua portuguesa, de forma a descobrir sua relação com a leitura, verificando
principalmente a imagem que esses professores têm do aluno leitor e a imagem que
constroem de si mesmo como leitor. A metodologia utilizada é teórico-analítica de
base qualitativa e foram utilizados, como instrumento, entrevistas, respaldadas por
questionário pré-elaborado, e observação de campo, junto a uma amostragem de 4
escolas, totalizando 10,25% das escolas da zona urbana e 12 dos professores da
disciplina de português. Para a segunda fase da pesquisa, foram observadas 4 salas
da antiga 4ª série, hoje 5º ano. O primeiro capítulo traz uma breve história da leitura,
do leitor e do ensino desta. No segundo capítulo, o enfoque é dado ao discurso
sobre leitura no âmbito pedagógico. No terceiro capítulo são analisadas as
entrevistas sob a óptica do professor e que imagem ele tem do aluno leitor; e no
quarto capítulo a imagem tem ele tem dele mesmo enquanto leitor, enfocando
inclusive sua prática pedagógica. Na fase de observação faremos um confronto
sobre o que foi dito nas entrevistas e o que é feito em sala de aula, na prática.
Finalizando, uma análise entre o dito e a prática pedagógica, ou seja, entre as
entrevistas e a observação das aulas, de forma a conhecer as práticas de leitura dos
professores e seu método de ensino.
Palavras-Chave: Leitura. Ensino da Leitura. Leitura – Práticas Discursivas.
ABSTRACT
This dissertation is concerned to analyze the readering practice of primary school’s
teachers of public municipal schools in the town of Juazeiro do Norte, Ceará State.
The research’s motivation started in the usual affirmation that teachers do not read
and began with questionnaires about the teacher’s reading practice. The main goal is
developing an investigation with the Portuguese teachers to discover about their
relationship with reading and verify the image these teachers have got about the
student-reader and the image they build about themselves as readers. The
methodology is theorical and analytical in a qualitative basis and were used, as an
instrument, interviews based on a pre-elaborated questionnaire, and observation in
the area, four schools altogether, in the overall of 10.25% of schools in the urban
area and thelwe teachers of Portuguese. For the research’s second phases, four
classrooms of the old fourth grade were observed, nowadays known as fifth grade.
The first chapter brings briefly the history of the reading, the reader and teaching of
reading. In the second chapter, the slant is to the discourse about reading in the
pedagogical ambit. In the third chapter, the interviews are analyzed under the
teachers’ view and the image they have got of the student-reader, in the fourth
chapter, the image they have got about themselves as readers, focusing their
pedagogical practice. In the observation phase we will make a confrontation about
what was said in the interviews and what is done in the classroom, in the practice.
Finally, one analyze between the speech and the pedagogical practice, that is,
between the interviews and classrooms’ observation, to know the reading practice of
teachers and their teaching methods.
Keywords: Reading. Teaching of Reading. Reading - Discursive Practice.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
9
1
A INSTITUIÇÃO DA LEITURA NA HISTÓRIA
12
1.1
Os Gestos e o Ensino da Leitura
14
2
O DISCURSO DA LEITURA NO ÂMBITO PEDAGÓGICO
27
3
A IMAGEM DO ALUNO LEITOR PELO PROFESSOR
34
4
A IMAGEM DO PROFESSOR LEITOR POR ELE MESMO
41
4.1
Esses Professores Leitores: conhecendo suas memórias
46
de leitura
4.2
Conhecendo Suas Leituras: prazer ou obrigação
49
4.3
Revelando o Tempo Dedicado a Leitura
51
4.4
O Professor Como Formador de Leitor e o Seu Método de
54
Ensino
4.4.1
O Método na Prática
57
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
62
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
67
ANEXOS
70
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, pesquisas revelam, de maneira mais sistemática e
continuada, uma preocupação com a leitura e seu ensino. O Programa Internacional
de Avaliação de Alunos – PISA, realizou pesquisa em 2003, em que o Brasil ficou
em 37º lugar em leitura, abaixo de países como a Tunísia e a Venezuela. Em 2000
numa avaliação semelhante, ficou em último lugar entre 31 países, sendo que foram
avaliados, ao todo, 250 mil alunos, de 15 anos, independentemente da série em que
estavam matriculados. A amostragem total brasileira foi de 4.452 estudantes da rede
pública e da privada. Estes resultados forçaram o Ministério da Educação a reavaliar
seu programa de educação, visto que nem se podia utilizar a velha desculpa da
pobreza, pois países bem mais pobres que o nosso tiveram rendimento superior.
Kramer (1995) realizou uma pesquisa junto a uma turma de graduandos do
Curso de Pedagogia da UERJ, em que perguntava se esses graduados se
consideravam capazes de desenvolver em seus alunos o desejo pela leitura e se
eles enquanto futuros professores gostavam de ler. O resultado após a análise das
entrevistas foi que uma maioria afirmava não gostar de ler e atribuía isso a vários
motivos, como por exemplo, a falta de tempo ou ainda os altos preços dos livros e,
em alguns casos, os textos lidos até então eram muito profundos e difíceis.
Outra pesquisa nacional, intitulada Retratos da Leitura 2, realizada pelo
Instituto Pró-Livro, sob a coordenação do IDEALL (Instituto de Desenvolvimento de
Estudos Avançados do Livro e Leitura, que pretende revelar o comportamento dos
leitores e cujos resultados deverão ser divulgados em março de 2008. Esta pesquisa
deverá mapear os leitores do Brasil, e que é baseada em Projeto Piloto realizado em
Ribeirão Preto em 2004, que revelou uma média de 4 livros por habitante, maior que
a própria média nacional, que é de 1,8 livros por habitantes; e outro realizado no Rio
Grande do Sul em 2007, revelando uma média de 5,5 livros por habitantes, ambos
baseados em método utilizado no México e na Colômbia. Entretanto, a Retratos do
Brasil 2 contempla apenas o mercado livreiro e na relação de suposta equivalência
entre leitura e venda de livros.
E finalmente o Projeto de Pesquisa Projeto Práticas Escolares de Leitura e
Discursos sobre Leitura, coordenado pela Profª Drª Maria Ester Vieira de Sousa, do
CHLL, que investigou as práticas leitoras dos professores do ensino fundamental e
médio.
Embasando-nos em pesquisas sobre leitura e ainda em experiência
profissional, de 10 anos de trabalho em bibliotecas, observamos o desinteresse dos
professores com relação à leitura e ao espaço que ela ocupa em suas vidas. Essa
constatação suscitou o desejo de descobrir a razão dessa possível falta de interesse
pela leitura dos professores. Dessa forma, foram escolhidos como sujeitos da
pesquisa os professores de língua portuguesa da rede municipal de ensino da
cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará.
Essa pesquisa foi motivada a partir da afirmação corriqueira de que os
professores não lêem. Partimos dos seguintes questionamentos: os professores
desenvolvem práticas leitoras? Se não desenvolvem qual o motivo? Se os
professores não lêem, como podem provocar em seus alunos o interesse pela
leitura?
Nesse sentido, a pesquisa tem como objetivo geral investigar junto aos
professores de língua portuguesa das escolas da rede municipal de Juazeiro do
Norte – Ce de forma a traçar um perfil de referência acerca da sua relação com a
leitura, verificando a imagem que esses professores têm do aluno leitor e a imagem
que constroem de si mesmo como leitor. Como objetivos específicos, pretendemos
investigar se os professores da rede municipal de ensino desenvolvem práticas
leitoras; investigar, caso se verifique, as razões falta de leitura; e pesquisar como se
dá o processo de ensino da leitura nas escolas da rede municipal de ensino de
Juazeiro do Norte.
A pesquisa é de cunho teórico-analítica de base qualitativa e foram utilizados
os instrumentos de entrevistas, respaldado por questionário pré-elaborado e
observação de campo. A amostragem corresponderá a cerca de 10,25% das
escolas da zona urbana e 100% dos professores da disciplina de português das
escolas escolhidas. Na fase de observação, foram contempladas apenas as salas de
ensino da antiga 4ª série, hoje 5º ano, um total de quatro.
O primeiro capítulo traz uma breve história da leitura, do leitor e do ensino
desta. Dividimos em três momentos considerados importantes dessa história: a
leitura oral, como primeira manifestação enquanto ato físico; o surgimento do códex,
que deu um formato ao livro parecido com o que conhecemos hoje e com isso trouxe
um novo gesto de leitura; e era tecnológica, com seu livro eletrônico, que também
traz consigo mais um novo olhar sobre a leitura e institui novos gestos.
Em seguida, no segundo capítulo, focalizamos a pesquisa propriamente dita.
O enfoque é dado ao discurso sobre leitura no âmbito pedagógico, e são analisadas
as entrevistas sob duas ópticas: que imagem o professor tem do aluno leitor, o que
ele diz sobre esse aluno; e que imagem tem dele mesmo.
No terceiro capítulo, enfocamos a prática pedagógica, a partir da observação
de aulas de professores que participaram das entrevistas, sendo que nesta primeira
versão do trabalho traremos aqui apenas a observação de duas salas de aula em
duas escolas. Faremos, portanto, um confronto sobre o que foi dito nas entrevistas e
o que é feito em sala de aula.
Finalmente traçamos no último capítulo umas breves considerações finais,
com o propósito de contribuir de forma efetiva para a pesquisa, de achar algumas
respostas aos questionamentos primeiros e quem sabe traçar algumas estratégias
de
forma
a
sanar
algumas
lacunas
consideradas
importantes
para
o
desenvolvimento de uma política de leitura em nossa cidade.
Acreditamos que somente com uma política de leitura forte, que não se
restrinja a simples distribuição de livros, onde é focalizada a posse do livro enquanto
objeto, mas em programas sistematizados e respaldados por pesquisas, que visem
suprir a lacuna educacional que a leitura pode deixar no nosso ensino e
principalmente, no ensino fundamental, visto que é a base da educação primária.
21
1 A INSTITUIÇÃO DA LEITURA NA HISTÓRIA
Podemos dizer – mesmo com todo o risco de cair no óbvio, visto que
este não é um tema novo, muito já se disse sobre e muito poderá ser dito – que
a história da leitura começa no momento que o homem criou possibilidades de
leitura, e foi a partir dessas possibilidades que se chegou à necessidade de
instituir a escrita, como a conhecemos hoje.
A leitura também esteve associada à oralidade como manifestação
artística, como espetáculo. O mundo da oratória e do desempenho oral é um
pouco diferente da leitura como a conhecemos hoje, em seus objetivos, por
exemplo, na leitura oral o leitor/autor incorporava o texto, numa performance
para uma platéia que assistia passivamente. Neste sentido, a leitura oralizada
tinha um caráter performático.
Essa prática, inclusive, tinha uma função terapêutica, uma vez que era
prescrita pelos médicos da Antiguidade a seus pacientes (FISCHER, 2006,
p.47) como um exercício para estimular a mente. Nesta perspectiva, ler
significava, muitas vezes, escutar a leitura, a performance de alguém, sob a
entonação que o outro dava. Em função das dificuldades de publicar e divulgar
as obras escritas, o leitor era um ouvinte e tinham mais contato no sentido de
ressignificar os textos.
De acordo com Chartier (2003, p. 34), a história da leitura registra duas
mudanças essencialmente primordiais: uma, a física, própria dos gestos de
leitura, da passagem da leitura predominantemente oral para a visual,
silenciosa:
A longa história da leitura nos fornece elementos essenciais.
Sua cronologia se organiza a partir da identificação de duas
mutações fundamentais. A primeira enfatiza a transformação
da modalidade física, corporal, do ato de leitura. Ela insiste
sobre a importância decisiva da passagem de uma leitura
necessariamente oralizada, indispensável ao leitor para a
compreensão do sentido, a uma leitura silenciosa e visual.
Essa primeira mudança imprime regras aos gestos de leitura, exige o
uso da visão e da concentração, cria espaços em que prevalescem a
tranquilidade e o silêncio. Segundo Abreu (2002, p. 24) “a leitura silenciosa
22
permitiu um relacionamento com a escrita que era potencialmente mais livre,
mais íntimo, mais reservado” e era esse caráter reservado que atribuia à leitura
status também de ato solitário, e que durante muito tempo nos relacionava
diretamente com a igreja .
Com a leitura silenciosa (CHARTIER, 2003), a história ressalta a
importância dos mosteiros e do ensino da leitura dentro deles. A igreja detinha
total poder sobre o ensino da leitura, visto que a leitura tinha um caráter
religioso, não tendo obrigação de ensinar a ler aqueles que não fossem seguir
a vocação religiosa. Assim, a igreja passou a monopolizar e a censurar as
obras que seriam transcritas. O livro tornou-se um símbolo sagrado, com isso,
a igreja veiculou a idéia de que os indivíduos laicos tinham que respeitar sem
contestar os ensinamentos sagrados, devendo apenas escutá-los e memorizálos.
A partir do século XV, aprender a ler e a escrever tornou-se
praticamente uma “obrigação cívica” (FISCHER, 2006, p. 175). A burguesia
mercantil do norte da Itália incorporava à leitura e à escrita aos direitos civis,
gerando uma verdadeira onda de educação cívica, que logo se espalhou pela
Europa. Esse movimento foi corroborado pela invenção da imprensa e a
publicação e difusão de obras impressas.
A segunda mudança que sofreu a leitura foi a importância dada a escrita,
a cultura letrada e intelectualizada, através da “industrialização da produção do
livro” (ABREU, 2002, p. 24), a chamada “era da impressão”. O surgimento da
imprensa aumentou o número de livros e de leitores e a natureza da leitura
desprendeu-se um pouco de seu caráter religioso, conforme nos conta Battles
(2003, p. 86):
O número de livros cresceu dramaticamente do século XV ao
século XVII, engendrando um misto de excitação e de
ansiedade que não estava, de maneira alguma, restrito ao
Vaticano. A fascinação humanista com a Antiguidade, que
antes era apenas uma fantasia subversiva de acadêmicos,
transformou-se num instrumento efetivo de autoridade.
A grande revolução da leitura se deu concomitantemente ao surgimento
da imprensa, entretanto, o livro, tal como hoje o conhecemos, não surgiu nesse
23
momento, ele emergiu da cultura impressa, mantendo, porém as mesmas
características e estrutura do livro manuscrito.
Com a invenção de Gutenberg, assistimos ao que podemos chamar de a
primeira revolução da informação, visto que a igreja que monopolizava o texto
escrito, através dos monges copistas, foi perdendo terreno e a facilidade
quanto à edição de livros ajudava a difundir a leitura, antes restrita a poucos.
De acordo com Belo (2002, p. 79), durante muito tempo a história do
livro ficou associada à história das origens da tipografia, negligenciando a
própria história da leitura e da escrita, que data de tempos anteriores ao texto
impresso. A xilografia, técnica que consistia na gravura em madeira de
caracteres para impressão através de fruição, até hoje utilizada pelos xilógrafos
para fazer capas de literatura de cordéis e xilogravuras em geral.
A imprensa instaura um novo poder. O poder da palavra escrita, o poder
da informação, constituindo naqueles que a usavam um desejo pela leitura.
Hoje a leitura ganha novos rumos, novos hábito, mas imbuídos do
mesmo objetivo e caráter, o da disseminação da informação e da cultura. A
facilidade da introdução da Internet, do livro eletrônico e das novas
comunidades de leitores, que surgem a cada dia, colabora para que a história
da leitura e da escrita possa também continuar a fazer história à medida que
evoluem.
Com a Internet os gestos de leitura mudam e mudam inclusive seus
espaços. A própria sala de aula ganha um novo formato, com a introdução do
computador, enquanto suporte para a leitura, e os sujeitos envolvidos no
processo de ensino da leitura têm que adquirir habilidades para o uso das
ferramentas que a máquina exige. É sobre as mudanças sofridas pelo ensino e
os gestos de leitura que falaremos a seguir.
1.1 Os Gestos e o Ensino da Leitura
Os hábitos e gestos de leitura sofreram várias mudanças ao longo da
história. Antes, essencialmente oral, a leitura era praticada em espaços
públicos e inaugurava um modelo de ensino baseado na oralidade. A essa
mudança somou-se a sucessão de um modelo monástico de ensino para um
24
modelo escolástico e a partir daí torna-se preocupação de estudiosos e
profissionais de ensino. O modelo monástico consistia na leitura ensinada nos
mosteiros, de caráter religioso e para religiosos e aspirantes ao clero.
A um modelo monástico de escritura sucede, nas escolas e
universidades, um modelo escolástico da leitura. No mosteiro,
o livro não é copiado para ser lido, ele conserva o saber como
um bem patrimonial da comunidade e tem usos antes de
tudo religiosos: a “ruminação” (ruminatio) do texto,
verdadeiramente incorporada pelo fiel, a meditação, a prece.
Com as escolas urbanas, tudo muda: o lugar de produção do
livro, que passa do scriptorium à loja do comerciante; as
formas do livro, com a multiplicação das abreviações, das
descrições, das glosas e dos comentários, e o próprio método
de leitura, que não é mais participação no mistério da Palavra,
mas decifração regrada e hierarquizada da letra (littera), do
sentido (sensus) e da doutrina (sententia). (CHARTIER, 2003,
p. 35-36) (grifos meus)
Além do gesto solitário de leitura, o modelo monástico carrega uma outra
característica que é a cópia do livro e o seu caráter patrimonial, de
conservação da cultura e do saber, sem esquecer da finalidade quase que
estritamente religiosa. Em contraponto ao modelo escolástico, instaurado
principalmente nas universidades, na Idade Média, quando da ascensão delas,
que exigia uma leitura mais crítica, uma preocupação com o sentido da leitura,
porém também de caráter culto, mas com a maior socialização do saber e um
desvinculamento do clero.
A história da leitura aqui inaugura um novo modelo de ensino e de sua
prática. Diferente dos objetivos do modelo monástico, o modelo escolástico traz
a instituição do sentido à decifração dos códigos lingüísticos. E os gestos de
leitura mudam juntamente com os seus objetivos. Durante a segunda metade
do século XVIII, o leitor intensivo era substituído pelo extensivo. A leitura
deixava de aprisionar o leitor, com seus textos indicados pela igreja, lidos,
relidos e decorados, marcados fortemente pelos preceitos religiosos e se
apoderava do leitor uma ânsia de ler, ao mesmo tempo em que este exerce
uma atividade crítica perante o texto escrito.
Este momento, conforme nos fala Chartier (2003), instaura uma nova
revolução da leitura. De proibida, restrita aos monges religiosos, a leitura passa
a fazer parte do cotidiano de pessoas mais humildes, transforma-se em prática
25
social, se sobrepõe à memorização e marca novos gestos legitimados pela
comunidade de leitores. A leitura se populariza e chega aos menos abastados
e incorporava novos gestos e hábitos, como a leitura em família. Era a leitura
no ambiente familiar que instituía o ensinamento religioso e de boas maneiras
às moças e rapazes das famílias de classes sociais diversas, onde geralmente
ficavam ao redor de um que lia em voz alta.
A leitura silenciosa favorecia a individualidade, proporcionava rapidez e
valorizava a leitura propriamente dita e não a forma, a estrutura do texto e da
performance, como a leitura oral.
Porém, enquanto o silêncio favorecia à concentração, a leitura em voz
alta, ajudava na retórica, na desinibição e pronúncia, por isso a escola retoma
essa prática, enquanto método de ensino, em meados do século XIX e início do
século XX.
A leitura em voz alta volta ao cenário, visto que ajudava a formar o
estudante para o uso da língua e da concepção da retórica, que dominava a
escola formal, entretanto, também era um meio de “publicar” uma obra,
tornando-a pública. Portanto, ler em voz alta tinha uma função pedagógica, de
formar o leitor e também contribuir para a divulgação da obra do autor.
Desde a Antiguidade, ler em voz alta tem, basicamente, dois
propósitos. De um lado, uma função pedagógica: demonstrar
que se é um bom leitor, lendo em voz alta, constitui um ritual
de passagem obrigatório para os jovens que exibem, assim,
seu domínio da retórica e do falar em público. Por outro lado,
um propósito literário: ler em voz alta é, para um autor, colocar
um trabalho em circulação, “publicá-lo”. (ABREU, 2002, p. 21)
Permeada por esses dois modos de ler, um introspectivo, concentrado,
silencioso, outro, performático, com ênfase na interpretação cênica, de
valorização da obra escrita e da retórica, a leitura construiu sua história e impôs
seus gestos e os modelos de ensiná-la também foram mudando, seguindo uma
demanda pré-estabelecida.
As mudanças ocorridas nos séculos XII e XIII, com relação à leitura e à
escrita substituíram o modelo monástico de leitura, associado ao ato solitário,
silencioso e de escrita, enquanto preservação da memória pura e simples pelo
modelo escolástico, que transformava a leitura e o livro em instrumento de
26
educação para o trabalho intelectual, dissociando de sua função enquanto
norteador da cultura individual e senso crítico. Inclusive, pensadores como
Platão e Schopenhauer, (Cf. ZILBERMAN, 2002, p. 16), rejeitavam o ato da
leitura, por acreditar que esta era uma barreira entre o homem e o
conhecimento e que ao praticar a leitura assumiríamos o pensamento de outra
pessoa, em geral ,o autor, impedindo-nos assim de formular nossas próprias
idéias. A idéia era que se aprende a ler, lendo, o que não é de todo uma
mentira, apenas temos que primeiro definir de que tipo leitura estamos falando.
A leitura escolarizada, alfabetizada, requer realmente o domínio da estrutura da
língua portuguesa, do código e da habilidade de manipulá-lo; porém, a leitura
enquanto prática e gosto, essa só se adquire praticando.
Sobretudo na França, os leitores iam se transformando a medida que se
transformavam o ensino e a importância dada a leitura e por sua vez os gestos
também se modificavam.
A história da leitura é também a história do leitor, uma vez que foram
necessários os dois: objeto e sujeito para a instituição das práticas leitoras e a
configuração da leitura como prática social. Para Lajolo (1998, p. 14), ser leitor
“é função social, para a qual se canalizam ações individuais, esforços coletivos
e necessidades econômicas.”
Essa história do leitor (LAJOLO, 1998, p. 14) iniciou na Europa, por volta
do século XVIII, quando convergiram fatores que vinham tendo um
desdobramento autônomo, ou seja, quando as obras escritas deixaram de ser
um trabalho meramente artesanal.
A participação do leitor ao longo da história foi sendo
registrada em sua mecânica física dos olhares, da
movimentação dos lábios e da fonação, além das posturas do
corpo, sem qualquer conexão com o exercício da
interpretação. (YUNES, 2002, p. 55)
Que história é essa? Claro, sem a participação efetiva do leitor, a história
da leitura seria amputada em seu sentido, uma vez que é o sujeito que dá o
verdadeiro sentido. Tanto o leitor que lê para os outros e o que escuta, quanto
o que lê para si, imbuído de seu silêncio e clausura, todos são sujeitos dessa
história.
27
Chartier (2004, p. 173) enfatiza que, oriundos das práticas urbanas do
impresso, a leitura não se institui apenas como “uma variante histórica”, mas
num gesto seja ele individual ou coletivo, mas que seja “dependente das
formas de sociabilidade, das representações do saber ou do lazer, das
concepções da individualidade”, tanto a leitura oralizada como a silenciosa
garantem
essas
concepções
individuais,
serviram
a
padrões
sociais
estabelecidos naquele momento específico e traduz as representações do
saber de uma determinada época.
A função social do leitor sofreu mudanças a partir da popularização do
gênero romance, quando esse leitor era tomado enquanto sujeito, vivenciando
a leitura, se importando com ela, se identificando com ela. As práticas e os
gestos de leitura sofreram inúmeras mudanças, nas diferentes comunidades
leitoras, constituídas em sua maioria de mulheres e para quem o gênero
romance era feito.
A multiplicidade de análises e conclusões enfatiza que as
práticas de leitura, sendo um aspecto cultural, estão em
permanente mudança. Um leitor do século XXI não lê um
romance ou um texto filosófico da mesma maneira que alguém
o fazia décadas ou séculos atrás. Da mesma forma, diferentes
sociedades atribuem a um mesmo texto valores distintos. (EL
FAR, 2006, p. 62)
Neste período o romance se torna popular e sua maior platéia eram as
mulheres, o que acabou por exigir dos autores, que fizessem histórias
especialmente
dedicadas
a
esse
público.
Criou-se
aqui um
público
diferenciado, com necessidades especiais, oriundos das características
enquanto gênero, e criou-se também uma prática social, e por ser um aspecto
cultural sofre mudanças à medida que também o sofre o seu leitor.
A transformação da leitura em prática social se deveu essencialmente à
valorização da família. A leitura ganha status social e se constitui enquanto
ritual e onde prevalecem a leitura de textos religiosos, sendo que o gosto pela
leitura se intensifica enquanto atividade adequada ao ambiente doméstico.
Conforme Lajolo (1998, p. 15) “Para a leitura se expandir a ponto de se
transformar em prática social, foi também necessária outra mudança: deu-se
uma até então inédita e a partir daí permanente valorização da família”. Sobre
28
a leitura do gênero literário, Abreu (2006, p. 81) fala da humanização do leitor,
que, ao identificar-se com o texto lido, sofre ou ri junto com o texto, alterando
sua postura de sujeito leitor, enquadrado num processo de cultura econômica
capitalista, favorecendo por vezes à alienação e ao conformismo, por outro
pode nos tornar mais humanos, sábios e tolerantes no que diz respeito a nossa
realidade social e até mesmo política.
Neste momento aos antigos hábitos de leitura foram incorporados uma
nova forma de ler. Os romances tomavam conta do leitor, que citava e
memorizava o texto, e até o aprisionavam, como nos fala Chartier (2003, p. 37),
de forma não muito diferente do que faziam os textos religiosos:
[...] é no momento mesmo da “revolução da leitura” que, com
Rousseau, Goethe ou Richardson, se desenvolve a mais
“intensiva” das leituras, aquela pela qual o romance se
apodera de seu leitor, aprisiona-o e o governa como antes
fazia o texto religioso.
A leitura do romance ganha força e se apodera de seus leitores,
transformando esse gênero literário no mais popular até hoje.
Essa ruptura na forma de ler e em sua finalidade também institui o leitor
enquanto sujeito, numa atitude que em nada lembrava a passividade atribuída
anteriormente, alcançando uma sensibilidade e humanidade não vistas no
modelo monástico nem no escolástico de leitura.
Com relação ao leitor e a leitura de romances, Abreu (2002, p. 25) diz
ainda que:
Toda sua sensibilidade estava engajada nessa nova forma de
leitura intensiva. Leitores (que eram freqüentemente mulheres)
eram incapazes de controlar suas emoções e suas lágrimas e,
com freqüência, tomavam de suas penas para expressar seus
próprios sentimentos ou para escrever ao autor como diretor
de consciência e guia de suas vidas.
Essa era uma manifestação que podemos chamar hoje de interacionista,
visto que o leitor interagia com o autor, expressando sua opinião acerca do que
foi lido ou consigo mesmo, se inspirando pelos sentimentos suscitados pela
leitura e escrevendo ele mesmo seu texto, em geral poesias.
29
A partir do século XIX, novas categorias de leitores foram incorporadas à
cultura impressa levada pela ideologia da chamada sociologia das diferenças
(ABREU, 2002). A escola instituía modelos controlados de leitura, que
contrastava com à própria diversidade dos leitores da época, tanto os que já
estavam habituados como aqueles que estavam iniciando-se na leitura, o que
compactuou com a diversificação das práticas de leitura na sociedade.
Neste momento a leitura deixa seu caráter puramente escolar, associado
à decifração corrente dos signos lingüísticos e assume um caráter que requer
uma participação efetiva do leitor, como enfatiza Jouve (2002, p. 61): “A leitura,
de fato, longe de ser uma recepção passiva, apresenta-se como uma interação
produtiva entre o texto e o leitor”. Aqui o leitor assume o papel principal e
efetivo no processo da leitura, como bem descreve Chartier (1999b, p. 77): “A
leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados. Segundo a
bela imagem de Michel de Certeau, o leitor é um caçador que percorre terras
alheias”. (grifo meu).
Neste sentido a leitura se consolida como prática social e mais uma vez
a história da leitura computa uma espécie de ruptura, em contraponto à
sociedade capitalista e de consumo e às demais práticas sociais instituídas até
então. Aqui o chamado não leitor, aquele que insiste em se categorizar como
tal, sofre preconceitos e prejuízos oriundos da sua condição instituída, é
colocado à margem e fica cada vez mais distante do idealizado. Para
Zilberman (2007, p. 17) isto se deu a partir da emergência da sociedade
capitalista quando a intelectualidade tornou-se tão importante quanto o
acúmulo de bens financeiros.
Leitura então consolidou-se como prática, nas suas várias
acepções. Produto da escola e critério para ingresso e
participação do indivíduo na sociedade, veio a ser valorizada
como idéia, por distinguir o homem alfabetizado e culto do
analfabeto e ignorante. A leitura passou a distinguir, mas
afastou o homem comum da cultura oral; nesse sentido,
cooperou para acentuar a clivagem social, sem, contudo,
revelar a natureza de sua ação, pois colocava o ato de ler
como um ideal a perseguir. O ainda não leitor apresenta-se na
situação primitiva de falta, que lhe cumpre superar, se deseja
ascender ao mundo civilizado da propriedade, por
conseqüência, do dinheiro e da fortuna.
30
É o verdadeiro status social da leitura, que é medido pelo acervo cultural
do leitor e sua prática na sociedade em que vive, e o classificou em camadas
que o distinguiam um do outro. Isso contribuiu mais ainda para a
marginalização do não culto e o condenou ao que consideramos o início de sua
decadência no que diz respeito à intelectualidade, eternizado pela história a ser
ignorante.
Nas décadas de 1920 e 1930, a Escola Nova entra neste cenário,
consolidando atitudes político-filosóficas à educação, no sentido de popularizála, torná-la acessível a todos e a leitura passa a ter um caráter mais efetivo no
combate às desigualdades sociais. A partir daí inúmeros livros de leitura foram
produzidos. As editoras se especializavam no livro didático.
A Escola Nova influenciou a reflexão aos métodos de ensino da leitura
instaurados até então e provocou a inserção de novos métodos de ler e
inovadores papéis foram atribuídos à leitura na escola, ao mesmo tempo em
que se abolia a leitura puramente oral, em voz alta e prescrevia-se a leitura
silenciosa.
Surgiram, novas práticas leitoras permeadas pela escola, entrando em
cena uma concepção de leitura que normatizava os métodos utilizados para a
apropriação do lido em seu sentido, também uma preocupação muito grande
com o livro. Porém, como enfatiza Vidal (2001, p. 96):
O discurso escolanovista não se ocupava apenas em
normatizar o livro, atentando para seu aspecto material e
conteúdo. [...] A leitura prazerosa, muitas vezes identificada
com a literatura, podia ser reencontrada no trabalho e na
escola.
A literatura foi extensamente utilizada na escola neste período e a leitura
voltada para o prazer valorizada e trabalhada para formar leitores ao mesmo
tempo conscientes e que gostassem de ler.
O ideal escolanovista, que ganhou impulso por volta da década de 1930
no Brasil, após a divulgação do Manifesto da Escola Nova, em 1932, defendia
a universalização da escola pública, gratuita e laica. A leitura era uma
manifestação política para o ensino livre e aberto, com o objetivo de formar um
cidadão consciente. Como o próprio nome diz uma escola nova, diferente dos
moldes até então configurados.
31
O livro, que carregou durante décadas um cunho sagrado em sua
materialidade, passou a ser preocupação de educadores e políticos, de forma
que fossem vistos como meio de acesso ao conhecimento e formador do senso
crítico, com uma roupagem analítica, principalmente na escola infantil,
considerada a base da educação para a conscientização do cidadão.
De acordo com Vidal (2001, p. 93):
Leituras e livros eram preocupação de educadores e políticos.
De simples depositários da cultura universal, o livro passava a
ser visto como fonte de experiência. [...] A leitura destacava-se
na formação intelectual dos educandos: “meios” de acesso à
informação e “elemento” formador da mente infantil. (grifo da
autora)
A leitura e a escrita, enquanto norteadores da sociedade letrada,
constituíam-se aqui como status social do sujeito coadjuvante na sociedade
capitalista. A leitura era fonte de poder e manipulação efetiva do poder.
É exatamente dessa forma que se percebe a proposta de alfabetização
imposta tanto à escola como a própria sociedade, desde o século XIX, onde se
evita relações entre sujeito leitor e a escrita de uma forma mais elaborada,
fazendo da escrita um privilégio social de alguns, tidos como leitores, em
contraponto aqueles considerados meros decifradores, em conseqüência, mal
sucedidos e fracassados academicamente.
É o poder de fazer uso do leque de opções que a leitura oferece, não
apenas decifrando de forma mecânica, enquanto um código apreendido e
ensinado, mas incorporando os sentidos construídos pelo leitor. Chartier (2004,
p. 247) diz que: “Saber ler é outra coisa, não somente poder decifrar um livro
único, mas mobilizar, para a utilidade ou o prazer, as múltiplas riquezas da
cultura escrita.” Ou seja, incorporar as imagens cognitivas contidas no texto, de
forma a proporcionar o prazer de conhecer, fazendo parte da sociedade
letrada.
Não é de hoje que o conhecimento, a manipulação e o acesso à
informação instauram um status de poder a quem o detém. Foi assim na época
das grandes guerras e revoluções, no cenário econômico e político, nas
grandes empresas e é assim na sociedade contemporânea e, claro, na escola.
32
Entre as décadas de 1950 e 1970, cada vez mais se desenvolviam
métodos alternativos de ensino. Foi neste período que surgiram as escolas
experimentais e a idéia de um ensino centrado no aluno e nas suas
necessidades. A expansão da rede pública de ensino era rápida, cada vez
mais, as camadas populares ingressavam na escola. Embora muitas escolas
continuassem a adotar antigos comportamentos e métodos tradicionais,
tornando desagradáveis e temidos os momentos em que as práticas de leitura
se davam, um número significativo passou a adotar as novas posturas
socialmente construídas. Nesse período, aumentaram também os meios de
acesso à leitura: bibliotecas populares, inclusive ambulantes, foram criadas em
muitas cidades do país e o número de livrarias também aumentou
significativamente.
Foucambert (1994), Smith (1999) e Solé (1998) defendem que a leitura
não pode ser ensinada e que a responsabilidade dos professores e da família é
facilitar o acesso, através de uma variedade de textos. Segundo esses autores,
a habilidade da leitura é desenvolvida através de práticas leitoras e de escrita e
que essas não podem ser ensinadas de forma isolada das práticas sociais.
Entende-se por facilitar o acesso, possibilitar exercícios de formação leitora
baseada na prática social, ou seja, ler, como diz Ferreira (2002, p.41) lendo:
[...] um ensino de leitura no qual se aprende a ler lendo, onde
o aprendiz pode estar em contato com os mais diversos tipos
de textos sociais dos quais precisa e se utiliza no cotidiano, e
no qual o único pré-requisito para este aprendizado é a
capacidade de questionar sobre as coisas do mundo. (grifo
meu)
Na proposta de alfabetização que foi imposta à escola e à sociedade
desde o século XIX, foram evitadas as relações mais elaboradas entre o
sujeito-leitor e a escrita. Fazendo da escrita um privilégio social de poucos,
que, por sua vez, tornam-se leitores em contraposição aos decifradores, vistos
com leitores mal sucedidos.
Com a facilidade do texto impresso para publicação através da Internet,
podemos dizer que chegamos em uma segunda revolução da informação, visto
que a Internet cria estratégias e possibilidades de publicação, que barateiam a
impressão do texto literário e científico, ao mesmo tempo em que contribui para
33
uma efetivação das práticas leitoras vigentes, e que alteram largamente o
processo editorial e de leitura.
A sociedade informática é a explosão tecnológica que exige de todos a
utilização de suas ferramentas e transforma em verdadeiros Ets, aqueles que a
desconhecem ou não tem habilidade em seu uso. Adam Schaff (1990) dizia
que esse impacto seria bem mais visível no campo da educação e do trabalho.
Abreu (2002, p. 27) diz que a inserção do texto eletrônico possibilitou ao
leitor uma maior interferência de ação dentro da leitura, tornando-se inclusive
co-autores.
O mundo dos textos eletrônicos também remove a rígida
limitação imposta à capacidade do leitor de intervir no texto. O
objeto impresso impunha sua forma, estrutura e espaços ao
leitor e não supunha nenhuma participação material física do
leitor. Se, contudo, quisesse inscrever sua presença no objeto,
ele só poderia fazê-lo clandestinamente, ocupando com seu
manuscrito as margens ou as páginas em branco. Tudo isso
muda com o texto eletrônico. Não apenas os leitores podem
submeter o texto a uma série de operações [...], mas podem
também tornar-se co-autores.
O leitor tem a possibilidade de se tornar também autor e exige deste a
habilidade de manipulação correta das ferramentas eletrônicas, ao mesmo
tempo em que populariza a escrita e a leitura. Não podemos nos esquecer que
essa co-autoria pode ter uma outra margem, como a crescente onda de
plágios, pois, à medida que o texto eletrônico abre espaço para o leitor intervir,
também possibilita que ele copie e manipule o texto como seu. O que instiga
uma outra discussão, inclusive no âmbito do ensino da leitura, que se for
respaldada pelos moldes tradicionais das fichas de leitura, por exemplo, abrem
enormes precedentes para os chamados resumos veiculados pela Internet e
colocam em cheque a leitura e sua finalidade.
Com a informática novos gestos são atribuídos à leitura:
Na tela de um computador, a disposição do texto e a relação
com a palavra impressa oferecem uma nova dinâmica de
leitura. Em vez de virar as páginas, o cursor pode navegar por
qualquer parte da obra e, por meio de atalhos, encontrar
rapidamente os trechos ou as palavras-chave desejadas pelo
usuário. (EL FAR, 2006, p. 63)
34
Claro, ler um livro de forma interativa, com uma infinidade de imagens,
janelas e mais janelas que se abrem para novos textos, torna a leitura mais
empolgante e emocionante. Entretanto, tira do leitor o seu próprio poder de
imaginação, criatividade e interatividade com o texto.
Por outro lado, esta é uma fase tão importante quanto às demais fases
da história da leitura. Não podemos esquecer que, embalados pelo jargão:
“quem lê viaja”, os amantes da leitura eletrônica podem construir slogans
como, quem lê “navega por mares nunca dantes navegados”, numa clara
alusão a Camões. Sabemos que o livro impresso foi herdeiro direto do
manuscrito e que o livro eletrônico, uma conseqüência da revolução
tecnológica, mas que conserva características similares ao impresso, apesar
de suportes diferentes. É possível folhear as “páginas” de um livro, também no
formato eletrônico.
A partir daqui, temos dois questionamentos: um a ameaça ao livro
impresso, tradicional e o outro a liberdade do leitor do livro impresso. Sobre o
primeiro ponto Belo (2002, p. 19) nos diz que:
De acordo com esse sentimento, o livro digital poria em risco a
sobrevivência do livro impresso, com a sua história de séculos,
com a sua importância na transmissão da cultura, com as suas
características físicas que aprendemos a amar. Essa
inquietação veio juntar-se a uma outra, que já existe há várias
décadas, pelo menos no mundo ocidental: a de que existem
cada vez menos leitores.
É possível que o livro eletrônico não ameace o livro impresso de
extinção, exatamente pelo segundo questionamento, a liberdade do leitor. Uma
liberdade que permitirá o livre arbítrio para escolher o suporte que mais esteja
de acordo cm suas necessidades.
O livro impresso também permite ao leitor igual liberdade, uma vez que é
permitido ao leitor começar de qualquer ponto uma leitura. Inclusive há livros
que oferecem essa condição de forma explícita, como é o caso de “O Jogo da
Amarelinha”, de 1963, de Júlio Cortazar. Como o jogo da amarelinha, que dá
título ao livro sugere, o leitor pode iniciar sua leitura de qualquer capítulo, e
fazer sua própria trajetória do romance, sendo que, em cada uma das
possibilidades de leituras, o sentido fica inabalável. O próprio autor diz: esse
35
livro é muitos livros. Essa liberdade experimentada no livro impresso, de forma
explícita e orientada pelo autor, acontece também na obra do brasileiro Ignácio
de Loyola Brandão, “Zero”, de 1976, que inaugura um novo modelo de texto,
fragmentado, repleto de slogans publicitários, permitindo ao leitor intervenção
quanto à sua leitura de forma também explícita.
Portanto, supomos que o livro eletrônico não ameaça o livro impresso,
do mesmo jeito que o último também não ameaça o primeiro, e que a liberdade
experimentada na leitura do texto eletrônico, também está presente no texto
impresso, principalmente a mais importante delas, que é a liberdade de viajar
nos múltiplos caminhos que a leitura oferece.
A história da leitura, da escrita, do livro e do leitor caminha
simultaneamente, entrelaçadas e uma completa a outra, uma encontra a outra
na e dentro história. A revolução tecnológica que trouxe o livro eletrônico pode
ser mais um aliado, mais que uma ameaça, por que, como dizia o bibliotecário
e matemático indiano Ranganathan, (1892-1972) em suas leis: para cada livro
seu leitor e para cada leitor seu livro. Nunca essa lei de Ranganathan quanto
ao uso do livro e da leitura foi tão atual, pois, baseado no livre arbítrio do leitor,
podemos dizer que, independente do suporte em que o texto se apresente,
haverá sempre um leitor, e a tal “morte anunciada” não passa simplesmente de
conjecturas.
Todo esse levantamento histórico visa situar o contexto a partir do qual
analisaremos o discurso do professor. No capítulo a seguir, trataremos do
discurso pedagógico da leitura, embasados por teóricos como Foucault (1986)
e Sousa (2002, 2005), investigando a imagem que o professor tem do seu
aluno e de si mesmo.
36
2
O DISCURSO DA LEITURA NO ÂMBITO PEDAGÓGICO
A leitura é um processo complexo (JOUVE, 2002) que implica na
construção de sentidos, por envolver processos de percepção, memória,
inferência, dedução, processamento e análise, ou seja, a leitura é uma
atividade cognitiva por excelência. Na produção de sentidos, o leitor
desempenha papel ativo, sendo as inferências um relevante processo cognitivo
referente a esta atividade. Esta ação promove uma interação recíproca entre
leitor e texto.
Definir leitura não é uma das tarefas mais fáceis, mas se pensarmos a
partir de uma perspectiva individual, como sendo resultado de um certo período
de escolarização, a leitura se constitui como uma prática não inata, como algo
adquirido, ensinado. E, dentro dessa perspectiva, a leitura e o exercício dela
dependem também do funcionamento e da integração de fatores como a
escrita e a alfabetização.
Para a leitura do texto escrito, vale explicitar, dado o dinamismo e
multiplicidade de opções que a leitura oferece, o domínio do sistema escrito.
Porém, vista por um âmbito social, enquanto prática social e socialmente
construída, a leitura, sobretudo por seu caráter plural e dialógico, constitui-se
em um precioso instrumento no processo de produção do conhecimento, isto
por possibilitar ao leitor o contato com as diferentes formas de vivenciar e
compreender o mundo.
Discutir a leitura é perguntar-se sobre as condições e possibilidades
desta e dos efeitos e potencialidades que a leitura pode produzir no sujeito
leitor. A discussão da leitura passa pelo âmbito político, educacional, cultural e
social.
Orlandi (1988) realça que os determinantes sociais que atuam sobre as
condições de ensino de leitura, representam a vontade de uma minoria
dominante que produz e controla a política de leitura na sociedade capitalista.
Sem dúvida alguma, a produção da leitura está vinculada à sociedade que a
produz, resultando em interações sociais, políticas, econômicas, lingüísticas e
culturais, que são estabelecidas pelos sujeitos no seu percurso histórico.
37
A escola e, conseqüentemente, os professores trabalham com as muitas
interfaces da leitura. Há a leitura que se detêm na busca de informações, a
leitura de natureza puramente funcional, a leitura de natureza ficcional, que
funcionam como fonte de prazer, mas que pode ao contrário, se constituir em
um desagradável exercício de obrigação e autoritarismo que vem ao longo da
história marcando nosso sistema educacional, anulando qualquer possibilidade
de fruição de leitura.
A leitura assim como a educação é um processo que requer
engajamento dos sujeitos envolvidos, para que ocorra a revolução intelectual
necessária ao desenvolvimento cultural da sociedade. A leitura é uma
conseqüência de nossa convivência social, das nossas situações vividas dentro
da escola, dentro da biblioteca e na família.
Barthes (2006, p. 20) define a leitura de prazer e a leitura de fruição:
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia;
aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a
uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele
que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez
até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais,
psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus
valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação
com a linguagem.
O que caracteriza a leitura de fruição é o questionamento, a dúvida,
entretanto o ensino obriga e encapsula o leitor fazendo com que eles deixem
de lado suas experiências de vida em sociedade na sala de aula,
transformando a leitura numa “tarefa” rotineira e estafante. Silva (2003, p. 57)
diz que os “professores despreparados para a orientação da leitura e dos
leitores em processo de formação, é o pior fator a considerar, pois muitas
vezes o aluno que tem potencial e que deseja aprender a ler se vê diante de
um profissional que é, ele próprio, um não leitor.”
A escola é o espaço onde prevalecem os discursos sobre leitura e as
práticas leitoras, uma vez que a escola é um dos lugares sociais de acesso à
leitura, isto coloca os professores como protagonistas desta história,
participantes e ativos, especialmente os professores alvos desta pesquisa,
aqueles que trabalham e ensinam ou pretendem ensinar, leitura.
38
Tudo isto nos coloca também frente a outros questionamentos. São os
professores leitores? Se enquanto fomentador da leitura há também nos
professores práticas leitoras? Os professores são capazes de motivar seus
alunos para a leitura?
Esses questionamentos por sua vez nos remetem para velhos discursos
sobre leitura e seu ensino, sobre uma possível crise da leitura e dos leitores.
Máximas construídas no âmbito pedagógico, que colocam o ensino da leitura
como deficitário e capenga.
Não podemos nos esquecer de que para quem ensina a ler, e tem por
obrigação formar leitores, são necessárias condições sociais de leitura, visto
que algumas pesquisas apontam para o seu afastamento do livro e das
bibliotecas, apesar de que ainda acreditamos que não os afastam da leitura
propriamente dita, apenas desvia ou cria outros espaços de leitura, porém isto
requer uma outra discussão.
O que se tem em mente quando falamos de habilidades de leitura? As
pesquisas do MEC, bem como o PISA, avaliam a leitura com base em
parâmetros de decodificação e interpretação da escrita. Esbarramo-nos na
discussão acerca das concepções de leitura. O ensino da leitura vive entre
paradoxos e revela um sistema impotente na formação de leitores.
Foucambert (1994) defende o ensino da leitura no qual se aprende a ler,
lendo, praticando, onde o aprendiz possa estar em contato com os mais
diversos tipos de textos sociais, literários, fictícios ou não, mas em sintonia com
o cotidiano e usando como pré-requisito a capacidade de questionar. E este
questionamento se constitui como um ato político e revela ao sujeito leitor o
poder de transformação a partir da percepção de mundo, saindo da resignação
coletiva e construindo idéias e conceitos.
Mais ainda, se aprende a ler e a gostar de ler, lendo e gostando, é aí
que se encontra o papel mais importante, e porque não dizer fundamental do
professor e da Escola, dar a leitura uma roupa agradável e bonita, instruindo
aquele que a veste para um andar elegante. Em outras palavras, colocar a
leitura na vida dos alunos de forma necessária, que só é possível se ela for
realmente necessária a quem a ensina.
De acordo com Ferreira e Dias (2002, p. 44):
39
O professor, nesta perspectiva, apresenta-se como aquele que
confere um modelo de leitura para o aluno-leitor, servindo-lhe
de espelho, especialmente quando os pais deste aluno não
desenvolveram uma atitude positiva frente a leitura nem
encorajam este tipo de atitude em seus filhos. (grifo meu)
Se o professor deve ser considerado como espelho para o aluno, implica
que o professor também tenha suas práticas leitoras e que as coloque a
serviço dos alunos no cotidiano da sala de aula.
O discurso pedagógico a respeito da leitura teve suas variáveis
situacionais construídas historicamente e culturalmente. Da mesma forma que
se tornou senso comum dizer que o professor é mal remunerado, se tornou
uma “verdade” falar que os jovens, que os alunos não gostam de ler; e uma
outra máxima ainda mais preocupante: que os professores não lêem.
Acreditamos ser leviano reproduzir essas falas sem um embasamento
aprofundado em pesquisas e sem uma discussão acerca do que é considerada
leitura. Se apenas os textos literários, ou qualquer outra manifestação escrita e
não escrita. Sem inclusive nos preocuparmos com os prejuízos do alcance
desse discurso para o ensino.
Sobre o discurso como prática social, nos respaldamos em Foucault
(1986, p. 56), quando ele diz que o discurso é produzido em razão das relações
de poder, que se implicam mutuamente, sendo que este não é um contrato
entre a língua e uma realidade, e que ao serem analisados, se desfazem “os
laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas”, e que destacam
um conjunto de regras, que são próprias da prática discursiva.
A teoria de Foucault ajudará na análise dos discursos dos professores
sujeitos desta pesquisa, à medida que dá suporte teórico para se chegar a um
resultado analítico das entrevistas. O sujeito social do discurso aqui é o
professor e o objeto da pesquisa, o seu discurso, coletado através de entrevista
facilitada por questionário preestabelecido. Baseamos-nos em Foucault (1986),
quando fala da autonomia do discurso e deste como prática social, para isto é
necessário trabalhar exaustivamente o dito, deixando de lado as inferências,
que podem remeter a interpretações errôneas, porém sem esquecer, do que
Foucault chama de interdiscurso, ou seja, as outras margens do discurso.
40
Sousa (2002, p. 71) fala que o discurso pedagógico é autoritário, ao
mesmo tempo em que questiona essa autoridade, uma vez que esta precisa
ser reconhecida tanto pela escola, como pelo aluno e a sociedade. Porém,
ainda de acordo com Sousa (2002, p. 74), a “noção de discurso autoritário
poderá levar a supor a aceitação de uma concepção de linguagem como
produto”, portanto, a linguagem será sempre igual e homogênea, completa. Se
o discurso é constitutivo e construído historicamente para e pelo sujeito,
transformando sua vida social, podemos incorrer em constatações duvidosas.
Daí a necessidade do cuidado apurado na análise do discurso, na interpretação
dos dados coletados, para se chegar o mais próximo possível da verdade
cientificamente aceita.
Leitura, antes de qualquer coisa, é um processo de interlocução, o
imaginário pessoal e coletivo se desenvolve a partir do convívio com o grupo
social e por força das experiências prévias de mundo de cada um. Leitura e
escrita apresentam, evidentemente, características que demandam uma
preocupação lingüística e pedagógica, e dessa forma a escola precisa, sem
dúvida alguma, além de trabalhar a fruição, cuidar dos modos de produção da
leitura e da forma pela qual o indivíduo constrói sua atividade de leitor.
Geraldi (2005, p. 82) fala de leitura em momentos de crise social e
acaba por convocar a todos, leitores, autores e professores para juntos articular
esforços de forma a construírem uma compreensão de sociedade de forma a
conceber mudanças.
Falar em “momento de crise social” no Brasil e articular a este
momento a questão da leitura exige um exercício de amnésia
para esquecer o que já se disse, recolhendo no já-dito
fragmentos que iluminem o que está sempre por dizer, neste
esforço continuado e tenso de ir construindo compreensões
novas nos cada vez menores intervalos do já-dito,
rearticulando estes dizeres para construir o ainda por dizer. O
que se vai tecendo, pouco a pouco, em cada ponto, em cada
nó, é uma resposta atual a uma sucessão histórica de
momentos de crise social, já que em nossa história a
expressão momento de crise social somente tem sentido de
atualidade por força de muita boa vontade.
Pode ser que o melhor a fazer para se articular uma política de forma a
atingir a essa chamada crise social seja construir um discurso contrário que de
41
tanto ser dito acabe por se tornar uma verdade e como discurso legitimado
possa ser real na vida dos nossos professores e alunos.
Kleiman (1996) diz que ensinar a ler é criar uma atitude de expectativa
prévia com relação ao conteúdo referencial do texto, ou seja, quanto mais a
criança puder prever o conteúdo ou construí-lo, maior será sua compreensão;
ensinar a ler é ainda possibilitar a auto-avaliação constante e a utilização de
múltiplas
fontes
de
conhecimento
para
que
possam
proporcionar
o
relacionamento dos sujeitos envolvidos e ao mesmo tempo a construção e
desconstrução dos seus significados.
Esta relação da leitura com o leitor colabora para a incorporação de uma
imensa responsabilidade do professor perante este processo. Ele acaba por se
tornar o principal responsável pelo sucesso ou não do processo de
aprendizagem da leitura. Sobre a presença do professor diante do ensino da
leitura, Silva (1995, p. 19), diz:
Se refletirmos bem, veremos que o professor é o intelectual
que delimita todos os quadrantes do terreno da leitura escolar.
Sem sua presença atuante, sem o seu trabalho competente, o
terreno dificilmente chegará a produzir o benefício que a
sociedade espera e deseja, ou seja, leitura e leitores assíduos
e maduros.
Essa afirmação de Silva (1995) deixa claro a posição do professor no
que diz respeito ao ensino da leitura escolar e nos leva a refletir sobre a
necessidade do conhecimento e da prática da leitura por parte desse
profissional, uma vez que é uma ação necessária e óbvia para a execução
satisfatória de sua práxis educacional. Neste sentido, talvez possamos dizer
que a afirmação de que o professor não lê faz parte do senso comum, da
imagem que se tem do professor. Porém só é considerado como leitura a que
se faz do texto literário? É preciso então definir o que é ser leitor e que tipo de
leitura estamos falando. E ainda se não é leviano afirmar tão categoricamente
que o professor não lê. Dizer que o professor não lê, como pergunta,
incomoda, enquanto afirmação, agride.
Para colocar um pouco mais de fogo sobre a discussão, pesquisas sobre
o processo de letramento demonstram que nas sociedades industriais, hoje,
qualquer pessoa, ainda que analfabeta, tem conhecimento sobre a escrita e
42
usa esse conhecimento no dia-a-dia. E é, portanto, um leitor. Isto, além de
ampliar o sentido de leitura e leitor, também abre precedentes para uma nova
discussão sobre o conceito de leitor.
Sobre o conceito de leitor, Britto (1998, p. 63) diz ainda:
O conceito de leitor, então, para ter razão de ser e poder
avaliar e distinguir comportamentos intelectuais dentro de uma
sociedade letrada, deve supor mais que conhecer o código
escrito ou mesmo ter o domínio de certos protocolos sociais de
base escrita. Ele é sustentado por impressões vagas,
conceituações imprecisas, tácitas, que, por sua vez, se
constituem a partir de representações de leitura historicamente
estabelecidas.
Na perspectiva do letramento, o leitor, por mais que não seja
alfabetizado, é considerado um leitor, por estar inserido nesta sociedade
letrada. Desta forma, fica um pouco difícil conferir a alguém o estigma de leitor
ou não leitor. Contudo, no sub-item a seguir, buscaremos abordar que imagem
de leitor o professor tem do aluno.
43
3 A IMAGEM DO ALUNO LEITOR PELO PROFESSOR
Pesquisas revelam que o professor queixa-se de que o seu aluno não lê
e que não importam o que façam em sala de aula, quais os métodos que usem,
o aluno continua sem nenhum ou quase nenhum interesse para a leitura,
conforme pesquisa realizada por Sousa (2005), os dados revelam uma
contradição, “de um lado, os professores reclamam que os alunos não lêem e
não gostam de ler, do outro lado, os alunos afirmam que gostam de ler”,
inclusive “explicitam suas preferências de leitura e reclamam dos professores
que não assumem a função de incentivador da leitura”.
Apesar de nossa pesquisa não contemplar dados que apontem para a
leitura dos alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental, por não fazerem
parte do corpus investigativo, não podemos deixar de concordar com a
afirmação de Souza (2005), tendo em vista que este é um discurso recorrente
do professor.
Ao analisar as entrevistas, 12 no total, que corresponde a 10,25% do
total de escolas da zona urbana da cidade de Juazeiro do Norte, percebemos
algo que nem estava em nosso foco de pesquisa: toda a pesquisa e seu sujeito
social é composto por professores do sexo feminino. As chamarei aqui de P1,
P2, P3 e assim sucessivamente.
Quando indagadas sobre as práticas leitoras de seus alunos, a análise
mostra que 58,33% das entrevistas apontam que os alunos não lêem, não
possuem práticas leitoras, enquanto 41,67% afirmam que os alunos lêem.
Contudo, numa mesma entrevista, é possível identificar opiniões que se
contradizem.
P1, por exemplo, afirma que seus alunos não lêem, depois
aponta que “lêem mais por obrigação, quando são submetidos a provas, não
por prazer ou por gostarem”. Já P2 afirma: “Eles ainda não encaram a leitura
como um prazer e sim como uma imposição da escola para obtenção de nota”.
E o que é ler por obrigação ou imposição, senão ler? A leitura, seja ela
obrigatória ou não, continua a ser leitura. Continua a envolver tanto o sujeito
quanto o texto, o que muda é a intenção, o objetivo com que se lê. Nos
exemplos citados, o aluno lê para obter êxito numa avaliação escolar.
Constatamos um viés em seu discurso no que diz respeito à idéia que
essa professora tem a respeito de leitura, visto que se contradiz quando afirma
44
que os alunos não lêem, para posteriormente constatar que eles lêem, mas por
obrigação, para a realização de provas. Para essa professora, provavelmente a
leitura dos conteúdos abordados, feita pelos alunos, para as suas avaliações
não é considerada leitura, por não proporcionar o deleite ou o prazer que ela
(P2) acredita que a leitura carregue.
Dessa forma, constatamos que o
aprendizado, sob sua ótica, não é uma prática prazerosa.
Verificamos que quando o professor reconhece que o aluno lê, em geral,
tece crítica quanto aos gêneros lidos. Vejamos um exemplo:
P10: “Eles (os alunos) lêem, mas é uma leitura voltada para o consumo,
moda por exemplo, é o que de fato lhes interessa”.
Vejamos que para essa professora uma leitura que trata de moda não
seria uma leitura reconhecida, autorizada ou digna de ser valorizada e
incentivada. Será que este tipo de leitura não proporciona prazer, que é um
referencial bastante importante para essa professora? Na realidade, o que lhe
interessa não é o prazer propriamente dito, mas o que ela entende por prazer e
por leitura. O que observamos até aqui é que o julgamento que as professoras
fazem do aluno acerca do ato de ler é totalmente carregado de suas próprias
idéias sobre o que é leitura e o que é ler.
Se há a constatação de que os alunos não só lêem por obrigação e que
só se interessam por leituras que tratam de assuntos voltados para o consumo,
o que essas professoras fazem para mudar esse quadro? Por esse motivo,
torna-se importante trazer para a discussão o que elas afirmam sobre sua
prática com a leitura em sala de aula.
P1: “Trabalho com vários livros e histórias infantis, revistas em
quadrinhos. Acho que estimula o prazer pela leitura.”
P2: “O método que utilizo desperta atenção por parte deles. Incentivo,
valorizo, brinco, utilizo a leitura paragrafada”.
P3: “Utilizo dinâmicas, práticas pedagógicas como a dramatização, o
conto a poesia, os textos narrativos, descritivos, e na maioria obtenho
resultado positivo”.
P4: “Acredito que o método é eficiente, trabalho com textos, recortes de
revistas, leituras visuais, dentre outros”.
45
P7: “Trabalho com jogos, histórias contadas e interpretadas, enfatizo
bastante a oralidade, apesar de ainda se encontrarem no início do
processo de aprendizagem da leitura, esse método é bastante eficaz”.
P9: “O método que utilizo transforma a sala de aula em um ambiente
motivador, lemos tudo e todos os dias. Lemos cartazes, livros didáticos,
paradidáticos, revistas, avisos, jornais etc. Acredito que é preciso o ser
humano se tornar global, isto é, um cidadão inserido na sociedade, por
ser capaz de dominar os símbolos da comunicação humana”.
P11: “Sim, considero o método eficiente. Trabalho com cartazes, fichas,
gravuras etc”.
Notamos que o discurso do professor sobre sua prática contradiz a
imagem que as professoras revelam sobre o aluno leitor. Observemos que o
professor trabalha a leitura de forma eficaz, estimula a leitura, acredita que o
aluno se sente motivado, mas conclui que ele não lê e que a escola não é
responsável por isso, o professor não é responsável, só resta a família para
assumir a culpa. Quando a professora (P9) diz que: o método que utiliza
“transforma a sala de aula em um ambiente motivador” e que proporciona a
leitura a seus alunos em seus diversos suportes bibliográficos, ela se isenta da
responsabilidade das falhas que aponta anteriormente. É como se dissesse:
meu método é eficaz, não sei o que acontece, mas o problema não é meu. Ao
mesmo tempo, outra professora (p11), diz que trabalha com material
bibliográfico e visual e que seu método é eficiente.
Mesmo acreditando ter um método eficaz de ensino e incentivo a leitura
e a formação de práticas leitoras, mesmo constatando que seus alunos
praticam leitura, como verificamos na análise onde 41,67% afirmam que seus
alunos lêem, seja com qualquer finalidade, as professoras entrevistadas,
recaem no velho discurso que os alunos não lêem. E atribuem isso a falta de
incentivo na família. O mais interessante disso é que se talvez fossemos
investigar a família, esta diria que o incentivo deveria partir da escola e que os
alunos não o encontram nesta.
Como veremos na fala de três professoras um exemplo bastante claro
desse tipo de discurso, onde apontam a família como a principal responsável
pela falta de incentivo para a leitura. Observemos ainda que apenas uma das
46
entrevistadas se coloca também enquanto responsável quando assume a falha
por parte da escola:
P6: Não há incentivo em casa para a leitura.
P5: Eles (os alunos) vivem numa família que a maioria é analfabeta e com
isso não há muito incentivo e fica para a escola o trabalho de incentivar e
torná-los leitores.
P4: Poucos alunos têm a prática da leitura. Além da escola a família é esse
alicerce e vemos que a maioria mantém-se distante desse incentivo.
Em algumas falas, observamos um discurso construído pela própria
prática em sala de aula, motivado pela condição de educadora e ainda pelo
espaço ocupado que é regido pela política e a ética. Não queremos aqui
afirmar que a política ou até mesmo a ética leva a mentira, porém, em escolas
do município, os cargos e empregos amarrados à vontade política deixam
nossas entrevistadas pouco a vontade para responder sobre certas questões
que poderiam colocar em risco a competência da escola como instituição
educadora.
A fala das professoras é um discurso construído pela própria profissão,
cuidadoso com suas palavras. Vejamos aqui alguns exemplos:
P8: A equipe de gestão trabalha dentro de uma metodologia de projetos
onde visam ampliar o universo da prática leitora, seja em trabalhos
expositivos u em atividades em sala.
P9: [...] a leitura é um dos instrumentos básicos para o ingresso e a
participação na sociedade letrada em que vivemos. Eles (os alunos)
trazem de casa, a leitura de mundo, na sala de aula, garante-se a
interação significativa e funcional. [...] somos incentivados a trabalhar a
leitura no dia-a-dia, ao fazer essa mediação. A escola criou um clima
favorável à leitura com o projeto: o desafio de alfabetizar e letrar, os alunos
estão em contato com a língua escrita, exercendo efetivamente a leitura no
dia-a-dia.
P5: Através do universo que cada um traz de casa, com essa bagagem eu
uso a imaginação e a criatividade e faço acontecer. [...] temos um projeto
Viajando com as Palavras e a revista do Sesinho, onde são entregue todos
os mês com temas bem interessantes e com isto nós educadores
procuramos trabalhar na integra com esse temas, a preocupação da
escola para melhorar nossa prática.
P4: [...] através de projetos pedagógicos, inclusive estamos (a escola) com
o projeto Desafio de Alfabetizar e Letrar, no qual o objetivo é viabilizar a
leitura, através de um ambiente letrado e prazeroso.
47
Isto basicamente acontece com qualquer grupo social politicamente
construído. O que pode ser preocupante é a recorrência ao discurso repetitivo
e sem um embasamento ou respaldo científico. Sem contar no cuidado com o
que dizer e como dizer, sem ferir a administração da escola ou Administração
Municipal.
Esse cuidado também foi observado quando perguntadas sobre o
desenvolvimento de políticas de incentivo a leitura por parte da escola. Apenas
a P6, disse que não havia políticas de incentivo por falta de interesse da
coordenação e da administração municipal. Porém, as demais foram unânimes
em afirmar que existem políticas de incentivo à leitura em suas escolas, e citam
projetos de leitura e o apoio dado ao trabalho dos professores.
Neste ponto da entrevista, baseada na observação da postura e
principalmente no que não foi dito, mas que se pode compreender pela
entonação, ênfase ou hesitação, podemos dizer que há um certo receio em
falar da administração da escola ou da cidade, falar da vontade política ou do
que falta em se tratando de incentivos reais. Para tanto, é muito mais usual
escorregar pela via mais fácil e apontar incentivos que na realidade são
exigências legais, como por exemplo, a implantação e uso das bibliotecas
escolares ou mesmo a distribuição de livros através de políticas do governo
federal. Como podemos observar em alguns exemplos, abaixo:
P7: [..] a biblioteca implantada na escola está na ativa, dando oportunidade
ao alunado para enriquecerem sua prática leitora.
P1: [...] as crianças fazem empréstimos na biblioteca [...] e os professores
trabalham muito com a leitura.
P12: [...] observo a presença de cartazes que incentivam a leitura, a
distribuição de livros aos alunos de forma gratuita, bem como a
preocupação do corpo docente em desenvolver leitura.
P10: [...] a nossa biblioteca, a qual desenvolve projetos de leitura para as
crianças.
Porém, quando perguntamos sobre a biblioteca e seu uso por parte dos
professores e alunos, quatro das doze entrevistadas (P4, P8, P9 e P12)
informaram que não existe Biblioteca em sua escola e que, portanto, não
desenvolvem nenhuma atividade nesse espaço, fazendo todas em sala de
aula. P2 afirmou que não freqüenta muito o ambiente da biblioteca com seus
alunos, mas que uma vez por semana eles vão à Biblioteca para fazer
48
empréstimos de livros. Para a professora, esta não é uma boa atitude, visto
que somente algumas histórias são dramatizadas, ou seja, para ela, o que
garante a certeza de que o livro foi lido é se ele foi dramatizado. Conforme
podemos examinar na sua fala:
P2: Não muito. Temos um dia na semana (cada turma dispõe de um dia
determinado) para pedirmos emprestado qualquer livro e são lidos em
casa. Somente a apresentação de algumas histórias é dramatizada ou
contada em sala.
Para a P5, visitar a Biblioteca permite aos alunos utilizar o computador,
jogos pedagógicos e livros infantis e com isso tornar a aula mais prazerosa.
Todas as demais entrevistadas afirmaram que utilizam o espaço da biblioteca
para leitura e escrita, produção de textos, leitura de poesias e contos, além do
empréstimo domiciliar.
O que constatamos quando perguntamos sobre a freqüência à biblioteca
dentro do ambiente escolar ou não e sobre as atividades desenvolvidas na
biblioteca, é que as escolas que a possuem, a utilizam bem, proporcionando
inclusive aos professores recurso didático necessário de forma a complementar
as aulas e incentivando a interação com a leitura, tendo em vista os jogos,
oficinas e dinâmicas que as entrevistadas afirmaram desenvolver neste
ambiente. Do universo entrevistado 58,33% possuem e freqüentam a biblioteca
com seus alunos e 41,66% não a possuem, sendo que mesmo assim,
encontramos falas como a de P8
P8: No momento estamos sem um espaço como este na escola, porém
temos um pequeno acervo de livros, onde cada professor tem a liberdade
de utilizá-los em sala ou no pátio, isso depende da proposta didática.
P12: [...] procuro realizar atividades na sala de aula para desenvolver a
curiosidade dos alunos diante de um livro, fazendo com que estes tomem
gosto pela pesquisa, garantindo novos conhecimentos.
A seguir iremos discorrer sobre que imagem o professor tem si mesmo,
como ele se vê. Pretendemos igualmente analisar sua fala verificando o que diz
sobre o ensino da leitura, sua prática pedagógica, visto que nesta pesquisa
estamos falando de professor e faz-se necessário investigar que leituras
efetivas esses professores fazem. Segundo Galvão (2001, p. 77), se tornou
lugar comum afirmar que os professores não lêem e esse discurso parte do
que se espera que eles leiam, parte ainda das leituras consideradas como
49
legitimas pela sociedade letrada. Portanto, tanto o item anterior, como o que
vem a seguir parte de uma pergunta básica: Quais as leituras autorizadas pelo
cânone intelectual? Porque, conforme vimos quando o professor fala do aluno,
dizendo que ele não lê e depois retoma que ele faz leituras por obrigação, para
realizar avaliações e que não lê por prazer, notamos que há um conflito entre o
que as professoras encaram como leitura, o que nos leva a pensar em leituras
autorizadas. Ler um best seller, um livro de auto-ajuda ou um livro de Paulo
Coelho, por exemplo, não é considerado leitura, pois não faz parte do cânone
intelectual.
Antes porém de responder a essas questões, é leviano afirmar
categoricamente que os professores não lêem. Por outro lado, não podemos
fechar os olhos para o quadro de leitura do país e não enxergar as claras
deficiências do ensino de leitura e mais ainda, se essas deficiências
encontram-se no professor ou no próprio sistema educacional. Esse quadro um
tanto quanto negativo a respeito da leitura e do ensino da leitura é baseado,
por sua vez em pesquisas do MEC e de outras instituições, apresentados em
vários trabalhos em Congressos e eventos pelo país. Para explicitar qual a
imagem que os professores têm si mesmo enquanto leitores é que
analisaremos a seguir de acordo com suas falas.
50
4 A IMAGEM DO PROFESSOR LEITOR POR ELE MESMO
Após verificarmos a imagem que o professor tem de seus alunos e
observar em seu discurso que ele não se responsabiliza por qualquer falha e
deixa claro isso, ao falar de seu método, segundo eles (os professores)
considerado como eficaz, passaremos a observar a auto-imagem do professor
leitor. Para investigar essa problemática, dividimos a pesquisa em dois
momentos distintos, a imagem que o professor tem do aluno leitor, e isso traz
reflexões sobre o seu trabalho em sala de aula e o que veremos a seguir, a
imagem que o professor tem dele mesmo enquanto leitor, trazendo reflexões
sobre as suas memórias e práticas leitoras.
Como foi visto no item anterior, 41,67% dos professores afirmam que
seus alunos lêem, que possuem e desenvolvem práticas leitoras, o que acaba
por desmistificar um pouco os discursos informais de que não há leitura por
parte dos alunos. Entretanto, o que iremos abordar neste item são as práticas
leitoras dos professores, analisando como eles se auto denominam, partindo a
princípio de suas memórias sobre leitura e de suas preferências atuais.
O professor se vê muitas vezes como um pobre coitado que joga pedra
na lua ou dá murro em ponta de faca, no que diz respeito a suscitar em seus
alunos o desejo pela leitura. Entretanto, o que chamamos a atenção é que suas
percepções sobre leitura e sobre ele mesmo passam pelas suas memórias de
leitura, pela alfabetização e seu adentramento no mundo letrado e passeiam
nas práticas leitoras de hoje, como leitor efetivo.
As lembranças de leitura funcionam como um ponto que separa dois
eixos, de um lado o leitor aprendiz, a descoberta e do outro o leitor de hoje, que
carrega toda a experiência e o conhecimento de mundo desse leitor anterior,
juntamente com as memórias que a todo momento podem ser recolhidas.
Lembrar desse processo para muitas das entrevistadas foi uma verdadeira
visita à infância, uma oportunidade de reviver tanto as coisas boas, como as
que não foram boas.
Assim o sujeito parte da memória do acontecido, das lembranças para
construir o real. Essas professoras partem de suas experiências e de suas
memórias, interligando-as com a imaginação para construir seus sentidos e
suas histórias de leitura.
51
E sobre essas memórias, também constatamos ora vozes apaixonadas,
ora doloridas, a exemplo da caracterização apresentada por Sousa (2005). O
responsável pelo adentramento no mundo letrado mais recorrente foi a escola,
sete das entrevistadas atribuem à instituição escolar seu letramento e cinco, à
família, mais especificamente a mãe, e são nessas falas que destacamos o
vislumbre de um tom apaixonado, como no exemplo que mostraremos a seguir,
de P8:
Minha mãe sempre procurou repassar o valor da leitura para
cada um de nós lá em casa. Lembro-me de vê-la lendo a
Bíblia para nós, revistas de modas, manchetes de jornais.
Pedia que lêssemos os enunciados das questões da escola,
fazia ditados em pedaços de papel, pedia que fizéssemos
leitura enquanto ela cozinhava lavava roupas (choro). Aprendi
a ler logo cedo e lia de tudo que via... com certeza a escola foi
responsável pela minha formação como leitora, mas mamãe
me ensinou a gostar de ler.
A escola foi a responsável por sua alfabetização, mas a mãe pelo gosto,
pela paixão por ler. A escola foi responsável pela alfabetização, mas a figura
materna que ensinou a ler foi responsável pelo desenvolvimento do gosto.
Vimos uma bela imagem da leitura nesta fala. Uma imagem apaixonada e um
pouco saudosa, embargada e intercalada por lágrimas.
Observamos, em outra entrevista, o oposto dessa fala, quando P5 diz
que seu letramento se deu a partir do método tradicional, que sofreu muito para
aprender, e atribui a essa fase sua timidez de ontem e de hoje. Ela repassa no
seu discurso o cansaço do dia-a-dia do professor, muitas atribuições, afazeres
e pouco tempo para se dedicar à leitura. Vejamos sua fala (P5):
Aprendi a ler no método tradicional, onde o professor era o
dono do saber e via o aluno como uma folha em branco. Sofri
muito, pois não entendia muito e ficava num canto da sala era
muito tímida (baixa a cabeça) e com isso não tive estímulo
nenhum pra ser alfabetizada. Era na base da cópia e a
pedagogia do escreve e escreve. Não tive bom sucesso e fui
reprovada na primeira série. Sofri muito...
Essa mesma professora fala, em outro momento, quando indagada
sobre suas práticas de leitura hoje, que tem pouco tempo, visto que trabalha os
três expedientes, mas que “após as 23:00h, mesmo cansada, muito trabalho
52
pra fazer, procuro sempre estar a par dos acontecimentos mundiais”. Aqui ela
não revela se faz alguma leitura de revista ou jornal para se atualizar sobre
esses acontecimentos de que fala, apenas que procura se atualizar.
Quanto ao método de ensino, todas foram unânimes em falar da Cartilha
de ABC, e mesmo nas falas onde era a mãe a responsável pela alfabetização,
a escola esteve presente, como podemos destacar na fala de P3 e P4,
respectivamente:
“O início foi em casa, com mamãe... ao longo do tempo a escola teve um
importante papel de lapidação e de descoberta de leituras que mamãe não
conhecia”.
“Aprendi em casa com minha mãe, mas a compreensão deu-se na
alfabetização com minha professora que admirava e elogiava muito quem
lia”.
Há por parte das entrevistadas um reconhecimento da escola como
responsável por seu aprendizado da leitura e muitas vezes por sua formação
enquanto leitor ativo e principalmente por um gosto e prazer pela leitura.
Quanto a sua prática de leitura hoje e o tempo dedicado, todas afirmam
que lêem e mais ainda, quase todas, que gostam, porém queixam-se da falta
de tempo, das muitas atribuições que a profissão exige, mas não observamos
nenhuma fala que tratasse a leitura como mera obrigação da profissão de
professor. Umas dedicam mais tempo, outras menos, mas todas se vêem como
leitoras, como veremos a seguir na fala de algumas delas:
P7: “Hoje tenho pouco tempo dedicado a leitura, devido a profissão que
toma bastante tempo. Leio apenas 1 hora por semana, aos domingos,
procuro temas que abordem situações do cotidiano escolar”.
P12: “Hoje com o surgimento de algumas obrigações, como domésticas,
não tenho muito tempo para a leitura. Porém, como o meu trabalho exige o
conhecimento, procuro dedicar os finais de semana a leitura de revistas e
alguns livros”.
P8: “Apesar da rotina de professor... sempre procuro ler o que gosto, tiro
tempinhos para textos não significativos ao meu trabalho e sim aquilo que
busco para mim. Tento me disciplinar, colocando sempre um livro preferido
próximo a mim... e leio de cinco a dez páginas por noite”.
53
P11: “Leio bastante... livro, revista, jornais, panfletos... dedico as vezes uma
hora... principalmente quando vou fazer meus projetos de aula”.
P3: “Leio assuntos que me despertam curiosidades, também livros que
ajudam na prática pedagógica, no meu crescimento pessoal e também
histórias infantis, motivada por meu filho... não sei o tempo exato que
dedico, mas estou sempre lendo algo”.
P4: “Procuro manter uma leitura assídua, dedico meu tempo a leitura
dividindo-o com o trabalho, com minha filha e inclusive com sua formação
como leitora”.
Observamos ainda, em algumas falas, a busca pela leitura enquanto
descoberta e prazer pessoal, além das atribuições de professor, uma leitura
intrínseca ao cotidiano como algo vital, que faz parte da vida delas e que elas
gostam disso. Como vemos nas falas que mostraremos a seguir:
P2: “Procuro ler sempre, diariamente, além da preparação das aulas, estou
procurando o “novo”, fazer descobertas”.
P6: “Leio sempre... estou sempre lendo. Leio jornais, revistas, livros
diversos... não tem algo assim... que goste mais... leio tanto o informativo,
como o de entretenimento... estou lendo sempre... adoro ler e leio de tudo”.
P9: “A leitura é fundamental na vida de um professor, leio sempre, é um
prazer... me sinto motivada a ler todos os dias e ainda acho pouco, gostaria
de ter mais tempo. Gosto de ler romances... no entanto, é raro, o tempo é
pouco”.
P1: “Ah!... Sempre estou lendo... ou um livro ou uma revista... minha Bíblia,
o que menos leio são os jornais... gosto de ler contos”.
Acreditamos ser este o ponto mais importante da pesquisa, quando
constatamos que o professor se reconhece como um sujeito leitor. As falas
mostram claramente como a leitura está situada na vida de cada uma delas.
Observamos a presença da prática leitora, seja com o objetivo de obter
conhecimento direcionado à preparação das aulas ou para puro deleite.
Chartier (1999) declara que a leitura não é apenas uma operação
abstrata de intelecção, mas que há a necessidade do leitor engajar todo o
corpo num espaço em relação consigo e com os outros, criando assim um
vínculo quase passional, senão vicário.
Foi esta relação quase vicária com relação a leitura, que observamos em
algumas falas das entrevistadas, conforme podemos observar nestes
exemplos:
54
P6: Leio sempre. Livros, jornais etc, tanto informativos como o de
entretenimento. Estou ledo sempre. Adoro ler e leio de tudo.
P8: Apesar da rotina de professor onde tenho que estar ligado a leitura
quase todo o tempo, sempre procuro ler o que gosto, tiro “tempinhos” para
textos não significativos ao meu trabalho e sim aquilo que busco para mim.
Tento disciplinar meu hábito colocando sempre um livro preferido próximo
a mim, onde leio de cinco a dez páginas por noite.
P9: A leitura é fundamental na vida de um professor, leio sempre, é um
prazer, me sinto motivada a ler todos os dias e ainda acho pouco, gostaria
de ter mais tempo para dedicar-me à leitura [...].
Mesmo quando afirmam que lêem motivadas pela obrigação da
profissão, pela condição de educadoras, a leitura se faz presente na vida delas
de forma intensa e vibrante. Como na fala de P9 acima e de outras que
citaremos a seguir:
P2: Procuro ler sempre, diariamente, além da preparação das aulas, estou
procurando buscar o “novo” – fazer descobertas.
P3: Leio assuntos que me despertam curiosidades, também livros que
ajudam na prática pedagógica no meu crescimento pessoal e também
histórias infantis, motivada por meu filho, não sei o tempo exato, mas
sempre estou lendo algo.
P11: Leio bastante livro, revista, jornais, panfletos etc. Dedico às vezes
uma hora. E principalmente quando vou fazer meus projetos de aula.
Diante de depoimentos como esses só podemos afirmar que as
professoras não somente se vêem como leitoras, como também como leitoras
apaixonadas.
Quando
afirmam
que
lêem
para
obter
conhecimentos,
preparação de aulas ou para o entretenimento, ou até que se dedicam à leitura
de romances, contos, enfim, mas que as professoras entrevistadas nesta
pesquisa se classificam como leitoras. Diante disso, sentimos a necessidade
de investigar as memórias de leitura das professoras alvo dessa pesquisa e é
sobre isso que falaremos no próximo item.
4.1 Esses Professores Leitores: conhecendo suas memórias de leituras
A figura do professor protagonista desta pesquisa é funcionário público
municipal, que trabalha os dois expedientes, manhã e tarde com turmas que
variam entre 40 a 50 alunos. Que trabalha com escassez de material, de
recursos e em comunidades carentes. Carentes não simplesmente de recursos
materiais e financeiros, mas muitas vezes carentes de afeto, de carinho ou do
55
aconchego que a leitura possa proporcionar quando feita em família, como foi
relatado muitas vezes por eles na conversa inicial, antes da gravação da
entrevista propriamente dita e conforme revelam algumas falas a respeito das
práticas leitoras dos alunos:
P4: [...] a família é o alicerce e vemos que a maioria mantêm-se distante
desse incentivo.
P5: [...] eles vivem em uma família que a maioria são analfabetos e com
isso não há muito incentivo.
Em seus depoimentos retratam sua experiência ao afirmarem que “a
maioria” não têm incentivo na família e justificam suas condições sociais e o
analfabetismo como a principal razão por essa falta de incentivo. Ora é
reconhecidamente esmagador o percentual da população das classes C e D no
ensino público nas séries iniciais. Porém, este não é o enfoque de nossa
pesquisa, nem o tema central dela, entretanto, nos coloca frente a uma outra
constatação: esses professores entrevistados também estudaram em escola
pública, pelo menos em uma Universidade Pública, a Universidade Regional do
Cariri (URCA) que até o ano de 2006, era a única na região. Esses professores
estudaram em seus primeiros anos em escolas chamadas por eles mesmos de
tradicionais e tiveram suas práticas leitoras associadas à textos muitas vezes
impostos pela escola e pelo professor, e que somente tiveram consciência
enquanto leitor na universidade, como nos remete as falas de P7 e P9:
P7: Estudei em escolas tradicionais, lendo textos decorativos e
repetitivos. Me tornei realmente leitora quando cursei a faculdade, foi
[ininteligível] que comecei a ter uma visão crítica do que lia, capaz de
refletir e questionar o conteúdo do estudo. (grifos meus)
P9: Todo processo aconteceu na minha alfabetização, foi a bastante
tempo, por isso lembro-me vagamente, mas sei que ler era uma
imposição, tinha que soletrar com a maior rigidez, na base da palmatória
e do castigo. (grifos meus)
Quando a professora (P7) fala que aprendeu a ler com textos
decorativos e repetitivos e não explicita que textos são esses, podemos
deduzir, devido a sua retórica, que essa professora quando estava no papel de
aluna não gostava de ler o que lhe era imposto, não escolhia suas próprias
56
leituras e portanto, não gostava do que lia. O método ao qual foi alfabetizada
não lhe agradava. O mesmo ocorre com P9, como podemos notar nas palavras
em destaque: imposição, rigidez e castigo, que o método ao qual foi submetida
durante o seu processo de alfabetização não lhe agradava, causava um certo
desconforto.
O que é que pode nos dar essa certeza? Quando P7 diz que só se
tornou realmente leitora quando ingressou na faculdade, isto nos leva a crer
que os textos acadêmicos e didáticos são o que realmente interessam a essa
professora leitora e é a finalidade que esta se apresenta por estar voltada para
o estudo e aquisição do conhecimento. Isto torna-se claro, quando ela
completa seu pensamento a respeito do que lê hoje:
P7: [...] Leio apenas uma hora por semana (aos domingos) procurando
temas que abordem situações do cotidiano.
Já a professora seguinte (P9) separa o processo de decodificação e a
prática da leitura e se coloca como uma consumidora de romances, quando
completa seu depoimento:
P9: [...]na adolescência lia muitos romances e ai despertou o meu prazer,
costumava ler vários romances e a minha imaginação... eram fantásticas
as minhas leituras.
No tocante ao seu aprendizado, ressalta a rigidez do sistema,
enfatizando a soletração e a leitura na escola como imposição deste sistema. A
resposta ou o resultado para esta imposição é o uso da palmatória que vem
instituir castigo e punição.
Porém essa professora tem seu entendimento de leitura ligado a outra
finalidade, que é a leitura prazerosa, de lazer, de entretenimento, que se utiliza
das inferências do leitor e de sua criatividade para se instituir enquanto sentido
e significado. Por isso, castigo e imposição não devem e nem podem existir
para quem ler com essa finalidade.
Em outra entrevista, a professora (P5) discorre sobre o processo de sua
própria aprendizagem, abordando o papel do professor, tido como o detentor
do saber, e conseqüentemente o aluno encarado como uma tabula rasa, isto a
incomodava bastante:
57
P5: o professor era o dono do saber e via os alunos como uma folha em
branco. Sofri muito pois não entendi muito e ficava lá num canto da sala.
Era muito tímida. E com isso não tive estímulo nenhum para ser
alfabetizada.
As memórias da aprendizagem de leitura dessa professora carregam as
dores e mágoas do sistema ao qual foi imposta e poderá refletir inclusive em
seu método de ensino.
P5: No método tradicional [...] era na base da cópia e a pedagogia do
escreve e escreve, não tive bom sucesso e fui reprovada na 1ª série. Sufri
[sic] muito.
Entretanto, essas professoras que se assemelham quando ao espaço de
trabalho, o público em que atuam, em idade até, também podem ser diferentes.
Existem outros depoimentos que traçam uma trajetória bonita de leitura em
processos associados e entrelaçados pela escola e pela família:
P4: O início foi em casa com mamãe, lembro-me da cartilha do alfabeto e
do seu empenho para que eu iniciasse minha trajetória escolar
alfabetizada, isso ela conseguiu.
Esse depoimento é bastante interessante, quando fala da mãe e de seu
emprenho para que ela iniciasse sua trajetória escolar alfabetizada,
provavelmente a mãe dessa professora deve ter sido uma incentivadora
ferrenha no processo das práticas leitoras da filha. E ela foi a principal
responsável pelo seu aprendizado, que a entrevistada conclui com: “isso ela
conseguiu.” Neste ponto nossa entrevistada se coloca na categoria de leitora
ativa. Ela atribui a mãe a sua inserção no mundo letrado, entretanto, foi a
escola que a apresentou outras
leituras, que a fez descobrir outras
possibilidades de leitura, conforme podemos ver quando conclui sua colocação:
P4: [...] Ao longo do tempo a escola teve um importante papel de lapidação
e de descoberta de leituras que mamãe não conhecia, lembro-me também
que sempre que podia comprava uma revistinha ou um cordel. Posso dizer
que mamãe teve um papel importantíssimo em minha formação como
leitora.
58
Além do reconhecimento da escola e da mãe como responsáveis por
sua inclusão nas práticas leitoras, essa fala ainda revela o tipo de leitura que
fazia: revistinhas e cordel. Outros tipos de documentos que fazem parte do
universo explorado por esses professores são: a Bíblia, romances, livros
didáticos, auto-ajuda etc, é o que vamos discorrer no próximo item.
4.2 Conhecendo suas leituras: prazer ou obrigação
As leituras mais recorrentes para essas professoras, são textos
religiosos e a própria Bíblia, revistas e literatura em geral. Lêem com mais
freqüência tudo o que desperta a curiosidade e a criatividade.
Esses professores nos conduzem a frase de Michael de Certeau: “o
leitor é um caçador que percorre terras alheias”. Buscam leituras que o levem
para outros universos, outros mundos, outras terras e que apresentem outras
realidades. Refletem também a religiosidade, o que não poderia deixar de ser,
devido ao ambiente externo da própria cidade de Juazeiro do Norte, que se
insere em um universo macro coberto de fé e devoção.
As falas a seguir demonstram claramente o tipo de leitura que essas
professoras fazem:
P4: Revistas, títulos literários, Bíblia.
P9: Tudo que desperta a minha curiosidade, livros, poesias, contos,
crônicas, jornais etc.
P2: Livros de auto-ajuda, livros ligados à educação, científicos.
P1: Um bom livro, contos e a Bíblia.
P8: Revistas, textos poéticos e bíblicos, livros literários.
P3: Livros de auto-ajuda, contos, de psicólogos, pedagogos, sociólogos e
outros.
O universo religioso aparece em suas práticas leitoras, porém outro fato
que consideramos importante é a recorrência dos livros de auto-ajuda em
detrimento de suas outras leituras consideradas por obrigação.
Pois quando foram indagadas quanto a suas leituras por prazer e por
obrigação. Por obrigação diferente do que poderia revelar devido a suas
condições de professores e, portanto, investigadores, a leitura que mais
aparece é a leitura de textos informativos do cotidiano, devido a necessidade
de manterem-se informados. O interessante dessa constatação é que ela pode
59
nos revelar o intuito da leitura como libertadora da realidade, como aquela que
nos leva a mundos desconhecidos e maravilhosos. Vejamos o que dizem sobre
essa leitura por obrigação:
P5: Jornal, pois são notícias trágicas e nos deixa muito deprimidas com os
acontecimentos diários.
P4: Notícias desagradáveis, alguns textos, alguns títulos de material para
concursos.
P12: Artigos de revistas que retratam a violência do país.
P1: Jornais.
A leitura informativa do dia-a-dia, não agradam a essas professoras por
a remeterem de volta a realidade. O que querem percorrer são terras perfeitas,
guiadas por preceitos religiosos, que prometem a vida eterna e gloriosa, que a
retiram do universo mundano. Portanto, é compreensível o fato de detestarem
leituras que possam reconduzi-las ao mundo real.
Outra ocorrência quanto a leitura por obrigação é a leitura técnica e
informativa, como por exemplo, bulas de remédio e textos legais. Conforme
podemos observar nestas falas:
P9: Bula de remédio, não gosto mesmo, acho necessário, mas irritante.
P10: Legislação, bula de remédio etc.
P2: A constituição brasileira.
P3: Informações médicas, avisos.
Falas como essas apenas reforçam a nossa constatação de que a leitura
informativa para essas professoras não as conduzem ao estado de prazer que
acreditam ser o resultado de uma leitura.
Com relação a nossa hipótese inicial, todos esses depoimentos nos
revelam a condição de leitor que o professor está inserido. Uma vez que suas
respostas mostram suas práticas leitoras, não importando que tipo de leitura
eles fazem, mas se o fazem ou não. O que importa é se lêem e não o que lêem
efetivamente, apesar de que esse segundo ponto também nos pode se revelar
como importante, tendo em vista a qualidade do ensino, a qualidade de suas
aulas. Entretanto, como é o intuito dessa pesquisa descobrir as práticas leitoras
dos professores e revelar se estes são leitores, asseguramos que sim. São
leitores e praticam a leitura cotidianamente, seja por prazer, o que acontece
algumas vezes, seja por obrigação, o que também se repete, mas que a
60
constatamos
que
a
praticam
com
freqüência
e
que
são,
portanto,
multiplicadores da leitura para seus alunos.
A freqüência com que lêem, também foi alvo de investigação e será
abordada no próximo item.
4.3 Revelando o tempo dedicado a leitura
Quanto ao tempo dedicado a leitura, as respostas mais uma vez revelam
a condição de leitor do professor. As falas trazem a tona um professor que lê
com freqüência, seja por exigência da profissão, seja por vontade, por seu livre
e total arbítrio. Mas que os colocam efetivamente como leitores e como tal,
ocupantes do espaço que lhe são reservados. Do total de professores
entrevistados 58,33% afirmam que lêem todos os dias. Eles revelam ainda o
que e onde lêem. Conforme algumas falas:
P:2: Todo dia. Às vezes um artigo, uma notícia, um texto, parte de um livro.
[...] Leio mais pela Internet, porque é um local rápido de acessas as
informações.
P1: Todos os dias. [...] A Bíblia, no meu quarto, aprendo mais de Deus e
também a enfrentar o dia-a-dia.
P9: Atualmente, participo de um curso e obrigatoriamente leio todos os
dias, é um livro por mês e um fichamento por semana, em casa o tempo
dedicado a leitura são duas horas e meia.
P6: Todos os dias. [...] Livros, romances, poesias, filosofia, tudo.
As demais entrevistadas se revezam com leituras que várias de 1 a 2
vezes por semana. Quanto ao local, a residência é o que mais aparece como
um local que proporciona um espaço adequado para a leitura. Vejamos:
P3: Na minha casa, por que é onde tenho tempo disponível e mais
concentração.
P10: Na biblioteca da escola, por que lá tenho diversificados livros.
P8: No meu quarto. Por ser um local calmo, só meu.
P12: Ler revistas na minha casa é o que faço com mais freqüência, pois
gosto de ficar informada sobre vários assuntos, como: política,
acontecimentos no país e moda.
Ressalto para a afirmação desta última professora (P12). O interessante
é que foi a mesma que disse não gostar de fazer leituras de artigos de revistas
pois retratavam a violência do país, e em outro momento da entrevista diz que
61
é o que lê com mais freqüência. Apesar de sua afirmação: gosto de ficar
informada, será que podemos dizer que esta professora faz leitura de textos
que não gosta, mas que a satisfazem do ponto de vista informativo? Pode até
ser. Porém, acreditamos que quando afirma: gosto de ficar informada, ela está
explicitando realmente o gosto, senão teria dito: preciso ficar informada. E fica
mais evidente ainda, quando completa sobre o tipo de informação que gosta de
ler: política, acontecimentos do país e moda.
Entretanto, o que nos leva a questionar a fala dessa professora, é que
ao mesmo tempo em que fala que gosta de ficar informada sobre política e
acontecimentos do país, fala anteriormente que lê por obrigação artigos de
revistas que retratam a violência do país. Estas duas afirmativas têm para essa
professora significados diferentes e dependem da finalidade. Se a finalidade é
saber os acontecimentos do ponto de vista da informação puramente, isto a
satisfaz plenamente, porém se sua condição enquanto professora e ser social,
exige que fique informada e que por isso, simplesmente por isso, a leitura
possa ter a finalidade de informação por obrigação, pela necessidade e
exigência de sua profissão, isto a deixa numa posição de insatisfação.
Tudo isto pode parecer confuso e totalmente ambíguo tendo em vista
que o texto pode inclusive ser o mesmo, o que vai mudar é simplesmente a
finalidade com que se está lendo. Ora sabemos que os professores, como
qualquer leitor, podem ler por várias finalidades, que podem ser: para
informação, para preparação de aulas, por distração, para poder ampliar o
vocabulário, enfim por infinitas razões, e neste caso é o que separa uma
afirmação da outra.
Uma outra professora entrevistada (P7) se coloca como viciada em
leitura. Entenderemos melhor ao conhecermos sua fala:
P7: Leio somente aos domingos, por uma hora. [...] diria que por vício de
ler algo nas tardes de domingo.
Aqui a leitura aparece descontraída, sem compromissos, banal.
Entretanto, o que nos faz questionar em P7 é que esse vício somente aparece
aos domingos, um vício com dia e hora para se manifestar. Apenas acontece
nas tardes de domingo. Como uma conversa com uma amiga, uma visita ao
62
parque ou à praia a tardinha, apenas acontece, sem porquês, sem explicações.
Mais tarde quando ela revela o que lê efetivamente é que compreendemos a
sua afirmativa anterior:
P7: Fascículos de cursos que freqüento pois necessito ter conhecimento
do conteúdo. Revistas educativas como: Nova Escola, Veja e tudo que
concerne a educação, para ampliar meus conhecimentos.
O caráter descompromissado da leitura desaparece. Ela tem sim um
objetivo, que é ler para obter e ampliar seus conhecimentos a respeito do que
está estudando ou ensinando. Então toda aquela poesia relativo às tardes de
domingo somem e dão lugar a uma realidade que exige do professor dedicação
e tempo para a leitura e, apesar de ser uma exigência do mundo moderno, isto
não os tornam mais ou menos leitores, apenas e simplesmente leitores, que se
interessam ou não por esse ou aquele assunto.
Outra entrevistada (P4) se revela uma leitora, que lê aquilo que
considera necessário, material didático para preparação para as aulas e para
realização de concursos.
P4: [...] A freqüência varia com o período vivido. [...] material de estudo
para o trabalho. Material de estudo para concurso.
A afirmação dessa professora de ler assuntos exclusivamente para
subsidiar seu trabalho ou de informação para concursos a torna mais ou menos
leitora que as anteriores? Claro que não, como dissemos anteriormente, o que
muda é apenas a finalidade, o objetivo da leitura, mas a sua prática, seu ato,
este permanece. O ato de ler não aparece mais ou menos intenso porque
mudam seus objetivos.
Esta
pesquisa
revela
professores
leitores
e
acima
de
tudo
compromissados com o processo de ensino, com sua missão mediante esta
tarefa e desmitifica a máxima da falta de leitura. Talvez o que falte seja um
discurso ao contrário, que diga que os professores são leitores efetivos. Falta a
repetição de resultados como esses, dito de boca em boca, ditos sem cessar,
ininterruptos e que de tanto serem ditos e repetidos possam ser constatados e
assimilados como realidade que é.
63
4.4 O Professor Como Formador do Leitor e o Método de Ensino
A biblioteca é um espaço legitimado para as práticas leitoras. O
interessante é que nem todos encontram neste espaço o local agradável que
deve ser para essa prática.
Entre as entrevistadas um total de 66,66% freqüentam a biblioteca com
seus alunos, sem, no entanto, saírem da Escola. Ou seja, freqüentam apenas a
biblioteca da escola, que muitas vezes mostram-se ineficientes tanto em acervo
quanto em atendimento. Porém, o objetivo dessa pesquisa não é fazer uma
análise da qualidade das bibliotecas escolares, mas apenas determinar se são
usadas como espaço de leitura que são.
As professoras entrevistadas utilizam o espaço da biblioteca para
realizarem atividades voltadas para a leitura e aquisição da escrita e hábitos de
leitura. Na sua maioria, as bibliotecas entram como coadjuvantes, apenas para
emprestar seu espaço físico e seu serviço, o empréstimo domiciliar.
As professoras utilizam o reconto e a contação de histórias, além de
dramatizações e algumas para usar o computador e os jogos pedagógicos,
com o intuito de otimizar as aulas. Vejamos algumas falas:
P1: Na escola. Faço a hora de contar histórias, os alunos fazem
dramatizações e recontam as histórias lidas durante a semana. São livros
do nível de idade de cada um.
P3: Sim no ambiente escolar, com meus alunos desenvolvo atividades de
leitura na sala de aula, através dos livros de empréstimo da biblioteca.
P7: Somente a da escola e as atividades desenvolvidas são somente de
leitura de imagens dos livros paradidáticos pois os discentes ainda não
dominam a leitura.
P5: Sim, gosto muito de usar o computador, livros infantis e jogos
pedagógicos, com isso procuro tornar uma aula mais prazerosa.
Do universo pesquisado 33,33% das escolas onde trabalham nossas
professoras não possuem biblioteca, o que impossibilita a utilização da mesma
enquanto espaço social para a leitura, mas as professoras realizam atividades
que comumente realizariam na biblioteca, menos é claro, o empréstimo, como
podemos constatar nesses depoimentos:
P8: No momento estamos sem um espaço como este na escola, porém
temos um pequeno acervo de livros, onde cada professor tem a liberdade
64
de utilizá-los em sala ou no pátio, isso depende da proposta didática de
cada um.
P12: Não. Porém, procuro realizar atividades na sala de aula para
desenvolver a curiosidade dos alunos diante de um livro, fazendo com que
estes tomem gosto pela pesquisa, garantindo novos conhecimentos.
Dos espaços reservados para a leitura na escola, o maior e mais usado
ainda é a própria sala de aula e em alguns casos a biblioteca entra como
auxiliar neste trabalho, juntamente com algumas ferramentas que dão suporte
a prática pedagógica no que concerne ao alcance dos resultados.
Analisando o corpus em questão, as falas dos professores nos revelam
uma prática constante da leitura, por razões diversas e em locais diferentes,
seja na sala, seja no quarto, seja em qualquer lugar, mas acima de tudo
constatamos que esses professores, são leitores e que se era somente isto que
faltava ou que pesava para que alcançasse o êxito em sua prática pedagógica,
então não falta mais.
O discurso usual que os professores não lêem não encontra aqui
precedentes, nem mesmo o discurso da sempre e total falta de leitura por parte
dos alunos, nem mesmo essa é uma constatação, tendo em vista que os
próprios professores, dito por eles mesmos, confirmam que os alunos fazem
suas leituras, que da mesma forma que eles, os professores; por diversas
razões. Seja pela simples razão de se informar, obter conhecimento, ou por
puro lazer, entretenimento, seja para se informar como anda seu time de
coração ou sua novela favorita, seja para aprender história, geografia ou
línguas, não importa a razão, mas o ato da leitura em si e o discurso que ele
carrega.
O que nos revela esta pesquisa ao mesmo tempo nos faz refletir sobre a
urgência de uma mudança no discurso oriundo do senso comum. É leviano
repetir frases feitas e pensamentos de outrem sem nos certificarmos de sua
veracidade. Esta pesquisa mostra uma pequena parcela, uma pequena
amostragem de professores de uma cidadezinha igualmente pequena no
interior do Ceará, porém se for ampliada poderá refletir um retrato, uma
espécie de radiografia de como a leitura é praticada ou não junto aos
professores da rede pública municipal de ensino. E cientes de resultados como
esses poderemos nos posicionar e repensar a prática pedagógica, mas, acima
de qualquer coisa, repensar o nosso discurso. Pois palavras podem não se
65
extinguir quando soltas ao vento, pelo contrário, elas podem se propagar no
vácuo e se legitimar como verdade.
As professoras envolvidas nesta pesquisa se caracterizam como leitoras
e falam que seu método de ensino e incentivo da leitura é eficiente. O que
torna esta discussão, no mínimo interessante, visto que, quando indagadas
sobre como trabalham a leitura em sala de aula, sem exceção, ou seja, todas
as entrevistadas acreditam que o método é eficaz e que produz em seus
alunos o gosto pela leitura. Vejamos alguns recortes:
P1: “Trabalho com vários livros e histórias infantis, revistas em quadrinhos.
Acho que estimula o prazer pela leitura.”
P2: “O método que utilizo desperta a tenção por parte deles. Incentivo,
valorizo, brinco, utilizo a leitura paragrafada”.
P3: “Utilizo dinâmicas, práticas pedagógicas como a dramatização, o conto
a poesia, os textos narrativos, descritivos, e na maioria obtenho resultado
positivo”.
P4: “Acredito que o método é eficiente, trabalho com textos, recortes de
revistas, leituras visuais, dentre outros”.
P7: “Trabalho com jogos, histórias contadas e interpretadas, enfatizo
bastante a oralidade, apesar de ainda se encontrarem no início do
processo de aprendizagem da leitura, esse método é bastante eficaz”.
P9: “O método que utilizo transforma a sala de aula em um ambiente
motivador, lemos tudo e todos os dias. Lemos cartazes, livros didáticos,
paradidáticos, revistas, avisos, jornais etc. Acredito que é preciso o ser
humano se tornar global, isto é, um cidadão inserido na sociedade, por ser
capaz de dominar os símbolos da comunicação humana”.
P11: “Sim, considero o método eficiente. Trabalho com cartazes, fichas,
gravuras etc”.
4.4.1 O Método na Prática
Na sala de aula o observado foi um professor que leu, preparou, se
atualizou, estudou, para satisfeito fazer uma espécie de transferência do saber
para seus alunos e essa atitude é um pouco frustrada pela aparente falta de
atenção de seus alunos.
Foram observadas quatro salas de aula, do quinto ano, antiga quarta
série, com alunos na faixa etária de 9 a 11 anos. Na primeira sala observada, a
professora inicia tentando chamar a atenção dos alunos que se encontram
eufóricos, falam o tempo todo. Ela grita:
66
P1: Façam silêncio! Vou fazer a chamada! Cícero Gabriel dá pra você se
sentar?!...
O mais interessante dessa parte da pesquisa foi a oportunidade de
confronto quanto ao dito e o realizado pelo professor em sua práxis
educacional. Entretanto, a execução desse ponto se mostrou um pouco difícil,
mesmo tendo procurado ao máximo passar despercebida na sala, o que se
revelou quase impossível, o desconforto da professora (da primeira sala
observada) era totalmente visível, mesmo depois de tanta conversa, que não
estávamos ali para avaliar, mas apenas observar, sem nenhuma interferência.
Mas o tempo todo a minha presença era citada na sala, seja para exigir
comportamento
por
parte
dos
alunos,
que,
vale
ressaltar,
estavam
comportadíssimos, com raríssimas exceções, seja para conversar comigo
sobre o que estava fazendo. Esta foi uma tarefa muito difícil, tendo em vista
que já conhecia a professora em questão.
Ela trouxe textos para sala de aula, contou histórias e mesmo tendo
falado que não podia interferir, ela me solicitou que contasse histórias, o que foi
imediatamente ovacionado pelos alunos e que me colocou em uma situação
muito delicada.
Com os textos a professora trabalhou a leitura oral com os alunos e
estes se esmeraram ao máximo para obedecerem à pontuação etc. Depois ela
utilizou o reconto e esta foi a parte mais interessante de sua aula. O conto
escolhido foi “Como se fosse dinheiro”, de Ruth Rocha, e as crianças soltaram
a imaginação. Trocaram os nomes das personagens com pessoas de sua
convivência, como o dono da cantina da escola, da diretora, até personagens
de desenhos animados apareceram nas falas desses alunos. Como
transcrevemos a seguir:
“Quando fui comprar meu lanche... sanduíche e refrigerante... paguei e ai a
Dona Lurdes me deu chiclete de troco... chamei o homem aranha, que
jogou sua teia e ela me pagou com dinheiro. Nunca mais comprei lá...
sempre trago minha merenda de casa”.
“Chamei a diretora pra resolver pois eu queria meu troco. Ela não resolveu,
telefonei pra minha mãe e pro meu pai, que era o super homem... tinha
identidade secreta e ai ele fez uma coisa... e resolveu tudo”.
67
Essa atividade teve pouca participação, alguns se intimidaram pela
minha presença na sala de aula e não participaram, porém foi muito
interessante os que o fizeram, inclusive aconteceu um episódio interessante:
quase no final de uma história, tocou para o recreio e quase toda a classe
permaneceu sentada e os que se levantaram voltaram a sentar-se para
terminar de ouvir o colega.
Nesta sala observamos uma boa participação dos alunos, um bom nível
de leitura no sentido da pontuação, uma grande capacidade de criação e de se
embasar pela leitura. Acreditamos que o que possa
ter interferido foi o
conhecimento prévio por parte da professora da nossa presença e o fato de já
nos conhecermos, inclusive ela já havia participado de uma oficina de contação
de história que ministrei anos atrás. Tudo isso deu suporte para que ela se
preparasse, porém os alunos são muito mais espontâneos, apesar de
orientados, não conseguem assumir uma postura de preparo ou sobreaviso
durante a aula.
Na segunda sala observada, resolvi não avisar antecipadamente da
minha presença, apenas no momento e quase não consigo entrar, não
conhecia a professora e com isso não obtive a mesma recepção da anterior.
Mas, mesmo assim, fui citada pela professora o tempo todo para exigir
comportamento dos alunos.
P2: Ei não estão vendo que estamos com visita? Cadê o comportamento?
Quem não se comportar vou colocar para fora da sala!
A professora não tinha trazido nenhum material adicional. Sacou do livro
didático e indicou aos alunos a página. Pelo que pude perceber, ela iria fazer
outra coisa naquele dia, nada relacionado com ler um texto, por exemplo, mas
por conta da minha presença (mesmo ela dizendo que não era) resolveu
mudar. Colocou os alunos para ler. E foi ai que se escuta na sala:
A: Ah, professora... não gosto de ler não!
P: O que Suyanny?! Que não gosta de ler o que? Tem que gostar... tem
que gostar. Comece!
A menina gaguejou e a professora pediu a outro aluno que lesse. E a
partir daí foi puro desconforto. Poucos leram satisfeitos, poucos completaram
68
um parágrafo inteiro. E lá se foram quase 30 minutos da aula. Até que a
professora interrompe e solicita que os alunos escrevam as palavras que
desconhecem do texto, que anotem e pesquisem em casa, no dicionário o
significado de cada palavra, para trazer na próxima aula.
Acreditamos que aulas como essa podem corroborar com o discurso da
crise da leitura. Com discurso como eu não gosto de ler ou é chato ler.
Entristece e ao mesmo tempo favorece que permaneçamos na busca, na
investigação, sobre que ensino é esse que se apresenta para essas crianças.
A terceira sala observada a presença de uma pessoa diferente das
habituais chamou a atenção apenas nos primeiros minutos, após esse pequeno
estranhamento a aula transcorreu normalmente.
A aula foi iniciada com um ditado de um texto pequeno de 4 parágrafos:
O que vale mais?
Andando por uma estrada, um homem encontrou uma moeda
de ouro.
Daí por diante só andava olhando para o chão. Mas nunca
mais encontrou nada.
Acabou sem ver o que há de mais lindo: o sol.
Acabou esquecendo que é de graça e pertence a todos!
Logo após o ditado, transcreveu o texto no quadro e solicitou que os
alunos corrigissem as palavras que haviam escrito o que era interrompido vez
por outra pelas vozes dos alunos:
P3: _ Corrijam palavra por palavra. Acentuação...
A: (barulho)
P3: _ Uemerson!
Até esse momento observamos uma aula voltada para a escrita, onde o
texto funcionou como um recurso auxiliar. Em seguida a professora continuou
com um exercício baseado no texto:
P3: _ Faça uma ilustração para o texto! Vocês sabem o que é uma ilustração
não sabem?
A: _ Sim!!!
P3: _ E o que é?
A: _ Um desenho.
69
P3: _ Pois você ai interpretar o texto conforme a ilustração que vai desenhar. E
(ô Sara, por favor!) deixa um espaço de 12 linhas.
A: _ Professora, posso deixar 13?
P3: Pode. Deixa um espaço de 13 linhas.
O enfoque para a leitura, poderia ter sido melhor aprofundado.
70
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vivemos em uma sociedade grafocêntrica. E apesar de nem sempre
estar associada ao texto escrito, exige habilidades de compreensão, memória e
cognição. Por outro lado, destacamos a questão valorativa da leitura em
relação a sociedade. Conforme destaca Soares (1998. p. 19), é absolutamente
indiscutível, os benefícios que pode trazer para o indivíduo:
Atribuí-se à leitura um valor positivo absoluto: ela traria
benefícios óbvios e indiscutíveis ao indivíduo e à sociedade –
forma de lazer e de prazer, de aquisição de conhecimentos e
de enriquecimento cultural, de ampliação das condições de
convívio social e de interação.
Apesar dessa afirmação colocar a leitura em uma posição um tanto
quanto difícil de salvadora da humanidade, explica bem quanto pensamos no
ensino da leitura. O ensino existe para ajudar alguém a adquirir conhecimentos
e enriquecimento cultural e esse parece ser também uma das conseqüências
da leitura. Entretanto, o que dizer do ensino da leitura?
O discurso sobre a crise da leitura e dos leitores está presente nas
escolas, editoras e demais instituições envolvidas com a leitura de alguma
forma. Muito se fala em momento de crise social e crise da leitura. Geraldi
(2005. p. 85) diz que falar em momento de crise social no Brasil, e mais ainda
relacionar esse momento à leitura, exige um exercício de amnésia, para que se
esqueça o que já se disse sobre o assunto e que se recolha no já dito
fragmentos que possam iluminar o que ainda se pode dizer.
É correto, então, afirmar que a leitura nunca esteve em crise, mas sim os
leitores, ou mesmo, afirmar que a crise está no ensino da leitura? Essas são
respostas que precisarão de tempo e muitas pesquisas sobre o assunto para
se chegar a ela. Mas é exatamente em busca dessa resposta, que
pretendemos concluir e ampliar a abrangência dessa pesquisa, de forma a
buscar respostas a todos esses questionamentos.
O discurso sobre leitura sempre recai sobre as mesmas máximas, que
de tanto serem repetidas acabaram se transformando de velha ladainha em
oração: “o aluno não lê; o aluno não gosta de ler”. Esse discurso, ao mesmo
tempo em que generaliza o ensino da leitura e as práticas leitoras, também
71
atribui uma caricatura ao ensino da leitura, de ineficiência e muitas vezes de
impotência diante de tal quadro.
O professor se exime da culpa e coloca-a no sistema educacional, no
governo e na família. Para se questionar sobre isso, é preciso primeiro um
questionamento sobre que tipo de leitura estamos falando, e mais ainda, qual o
papel do professor perante este processo.
Ao nos perguntarmos sobre a não leitura nos professores, nos
esbarramos no que diz Batista (1998. p. 25):
A mesma representação social do professor-(não) leitor
manifesta-se, também, nos resultados de pesquisas sobre
docentes e sobre suas relações com a leitura. Eles indicam que
os professores leriam pouco e com pouca familiaridade
impressos voltados para o desenvolvimento de sua formação
profissional e que suas leituras para o prazer revelariam uma
distância em relação à cultura tida como legítima, cuja
transmissão lhes seria delegada.
Porém este discurso está mudando, os leitores estão fazendo-o mudar.
O que é necessário entender é que por leitura compreende-se qualquer tipo de
texto, inclusive se escrito ou não, mas que permita a interação entre o leitor e a
leitura.
O
professor
não
é
um
sujeito
alienado,
alheio
às
suas
responsabilidades ou mesmo apático no que diz respeito à leitura, mas um
sujeito atuante, pois os dados analisados da pesquisa apontam para a
afirmação do professor enquanto leitor.
Portanto, afirmamos que o professor é um leitor. Seja de textos
pedagógicos, seja de uma leitura mais literária, informativa, quaisquer que
sejam, mas o professor está o tempo todo lendo. Lendo inclusive nas faces de
seus alunos, as dúvidas, as incertezas, o desejo de aprender etc. porque o
aluno também é um leitor. Um leitor em formação, que pode ter gostos
diferentes dos seus professores, mas que não é por isso que deixa de ser
leitura.
Porém também aponta para outro ponto: para a ausência de políticas
dentro da escola que favoreçam o ensino da leitura e incentivem o trabalho
pedagógico do professor e uma mudança no discurso conformista, sem
entregar a ninguém da falta de leitura.
72
Ler é intrínseco ao ato de viver e é totalmente impossível dissociar um
do outro. E o resultado que se chega com uma pesquisa dessa natureza é que
muitas vezes afirmamos algo sem ter a sabedoria do que isso significa, no que
diz respeito ao discurso pedagógico com relação à leitura, o que se afirma é o
contrário do que se enxerga em investigações científicas, basta direcionar um
foco e escolher baseadas em que concepções de leitura se deseja investigar.
Era uma verdadeira convocação dos valores e atribuições da família, da
escola, da biblioteca, do Estado e da sociedade perante suas atribuições em
relação à leitura.
Em nosso país a democratização da leitura está condicionada à própria
democratização política de nossa sociedade. Isto tudo demanda uma forte
transformação na estrutura social e econômica por melhores condições de vida
e de trabalho, que será representada e repercutirá em melhores salários,
moradia e conseqüentemente acesso a informação e conhecimento.
Falar do professor como um não leitor parece ter algumas contradições
tendo em vista que nossa sociedade, como dissemos no início é grafocêntrica,
conforme nos diz Batista (1998. p. 27):
A representação social do professor como um “não-leitor”
choca-se com um conjunto de constatações. Em primeiro lugar,
os professores vivem no interior de uma sociedade letrada.
Mesmo que a difusão e a distribuição da cultura da escrita e,
mais especificamente, a da cultura do impresso se façam,
nesse espaço de modo desigual, o fato mesmo de os
professores se inserirem, em maior ou menor grau, no interior
dessa sociedade, torna muito pouco plausível sua
representação como “não-leitores”.
Sendo assim, o discurso de leitura passa a ser muitas vezes
contraditório. Pois, se partirmos para uma investigação e levando em conta o
caráter da cultura escrita, os professores seriam encarados como leitores.
Leitores advindos da escola, e que parte de disposições também escolares,
mesmo que suas leituras não sejam diretamente voltadas para a escola e para
a prática escolar da leitura (BATISTA, 1998. p. 31).
A escola quer a leitura em sala de aula, encapsulada, exigida, nem
sempre a leitura do leitor. Porém existem os professores que furam esse
paredão e apresentam novas propostas, legitimadas pelo leitor, por sua
73
experiência de vida. E o leitor oscila entre o desejo e o retraimento, de ler e não
ler. Podemos até afirmar que a leitura é capaz de acender o desejo, mas é
certo também afirmarmos que não pode preenchê-los.
A leitura é algo que nos leva ao limiar da vida do espírito, mas não a
constitui, pois quem deve constituir a vida do espírito é o leitor, ou seja, o leitor
deve a seu modo, construir, inventar, descobrir seus significados e valores
através da leitura. E ensinar os outros a ler é ensinar no sentido de poder
inventar sem trair, ensinar a pensar a partir do fascínio da leitura, quando isso
se dá, dá-se também o verdadeiro milagre da leitura, que é semeada em solo
fértil e fecundo produzindo através do sujeito a interação que a leitura provoca.
A análise dos dados revela que a hipótese da possível falta de leitura
dos professores, não se aplica, pelo menos nesta amostragem, que a princípio
ainda parece pequena, visto que Juazeiro do Norte conta hoje com 39 escolas
na zona urbana e foram contempladas apenas 4 dessas escolas, ou seja,
10,25% e 12 professores no total, que corresponde a todos os professores de
cada escola a ensinar a disciplina de língua portuguesa. Pretendemos
aumentar a amostragem, de forma a ter, cada vez mais, dados substanciais
que permitam desmistificar o velho discurso do professor que não lê.
Vimos aqui que o professor se vê como leitor, descreve suas
preferências e inclusive em quase metade das entrevistas (41,67%), enxerga o
aluno como leitor. Contra 58,33% que acredita que seu aluno não lê.
Confrontando com as aulas observadas, vimos duas realidades
diferentes. Uma situação onde o professor apresenta possibilidades de
aprender, de ler; e uma outra onde o professor, levado por algo que não posso
afirmar, por desconhecer, permanece com um modelo de leitura que inibe o
aluno, que corta suas asas e o coloca numa posição de declarar não gostar de
ler. Esse modelo de professor, infelizmente exerce uma função inibidora no
aluno (leitor) quanto ao seu processo de criação.
Nessa segunda opção, tivemos ainda, nesta fase de observação, uma
aula que a criatividade do aluno foi castrada, uma vez que pouca ou nenhuma
atenção foi dada a ela. Ao solicitar ao aluno que ele fizesse um desenho, e logo
em seguida colocar sua atenção sobre outros aspectos do texto, a releitura, a
criatividade e capacidade recriadora do aluno foi sucumbida.
74
Porém, ainda se tem muito a investigar, as discussões sobre leitura
estão cada vez mais recorrentes em nosso País e apesar de já ter um longo
percurso, ainda há muito que caminhar. Sobretudo, acerca da leitura dos
professores, que como grandes responsáveis que são pela qualidade do
ensino, principalmente do ensino da leitura.
75
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78
ANEXOS
79
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – UFPB
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES – CCHLA
PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA – PROLING
PROJETO: O ENSINO DA LEITURA E A LEITURA NO ENSINO: reflexão
crítica sobre as práticas reais de leitura nos professores de língua
portuguesa das escolas da rede municipal de Juazeiro do Norte – CE.
ENTREVISTAS1
1. ESCOLA:
______________________________________________________
2. SÉRIE (S): _______________________ TURNO:
______________________
3. Como se deu o seu processo de aprendizagem da leitura? Que memória
você tem de sua formação como leitor? Você lembra como e quando aprendeu
a ler? O que você lia? Como lia? A escola foi responsável por sua formação
como leitor?
1
Inspirado no questionário utilizado pelo Projeto de Pesquisa Práticas Escolares de Leitura e
Discursos sobre a Leitura, coordenado pela Profª Drª. Maria Ester Vieira de Sousa.
80
4. E hoje? Como é a sua história de leitura? Quanto tempo dedica a essa
prática?
5. Hoje, como você se considera:
a) Você lê com freqüência? (todo dia, uma vez por sema, duas vezes por
semana?)
b) Você diria que lê mais por obrigação ou por prazer?
c) O que lê por prazer?
d) O que você lê por obrigação?
e) O quê e onde você lê com mais freqüência? Por quê?
f) Qual a última leitura que você realizou? O que você lembra dessa leitura?
81
6. Você considera que os alunos têm alguma prática leitora? Porque?
7. Como você trabalha a leitura em sala de aula? Você acredita que esse
método é eficaz?
8. Você considera que há na escola em que trabalha uma política de incentivo
à leitura? Por quê? A que você atribui isso?
9. Você freqüenta biblioteca(s) (no ambiente escolar ou fora da escola) com
seus alunos? Que tipo de atividades você costuma desenvolver nesse espaço?
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universidade federal da paraíba – ufpb centro de ciências humanas