UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – UFPB CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – CCHLA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA – PROLING ÁREA DE CONCENTRAÇÃO – LINGÜÍSTICA E ENSINO LINHA DE PESQUISA – PRÁTICAS INSTITUCIONAIS E NÃO-INSTITUCIONAIS DE LEITURA E ESCRITA O ENSINO DA LEITURA E A LEITURA NO ENSINO: reflexão sobre as práticas de leitura de professores de língua portuguesa de escolas da rede municipal de Juazeiro do Norte – CE Maria Cleide Rodrigues Bernardino João Pessoa – PB 2008 MARIA CLEIDE RODRIGUES BERNARDINO O ENSINO DA LEITURA E A LEITURA NO ENSINO: reflexão sobre as práticas de leitura de professores de língua portuguesa de escolas da rede municipal de Juazeiro do Norte – CE Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre, à Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Lingüística – PROLING, da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, sob a orientação da Profª Drª Maria Ester Vieira de Souza. Orientadora: Profª Drª Maria Ester Vieira de Souza João Pessoa – PB 2008 Ficha Catalográfica elaborada por Ariluci Goes Elliott – CBR 3/815 B523e Bernardino, Maria Cleide Rodrigues O Ensino da leitura e a leitura no ensino: reflexão sobre as práticas de leitura nos professores de língua portuguesa de escolas da rede municipal de Juazeiro do Norte - CE. / Maria Cleide Rodrigues Bernardino. João Pessoa, 2008. 70p. Orientadora: Profª. Drª. Maria Ester Vieira de Sousa. Banca Examinadora: Profª Drª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa (PROLING/UFPB), Profª Drª Francilda Araújo Inácio (CEFET/PB). Dissertação (mestrado) Programa de Pós Graduação em Lingüística / Universidade Federal da Paraíba – UFPB. 1. Leitura. 2. Ensino da Leitura. I. Bernardino, Maria Cleide Rodrigues II. Título: O ensino da leitura e a leitura no ensino. CDD 372.4 TERMO DE APROVAÇÃO MARIA CLEIDE RODRIGUES BERNARDINO O ENSINO DA LEITURA E A LEITURA NO ENSINO: reflexão sobre as práticas de leitura nos professores de língua portuguesa de escolas da rede municipal de Juazeiro do Norte – CE Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Programa de Pós-Graduação em Lingüística – PROLING, da Universidade Federal da Paraíba, pela seguinte banca examinadora: Banca Examinadora: ORIENTADOR: Prof. Drª Maria Ester Vieira de Souza PROLING/UFPB Examinador 1: Profª Drª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa PROLING/UFPB Examinador 2: Profª Drª Francilda Araújo Inácio CEFET/PB João Pessoa – PB 2008 DEDICATÓRIA A minhas filhas Aline e Carine motivo e inspiração constante de conquistas. A minha mãe Alzira. A meu Deus todo poderoso. AGRADECIMENTOS À todos que direta ou indiretamente, contribuíram para a realização desse trabalho. Meu agradecimento especial a todas as pessoas que colaboraram como seus depoimentos para esta pesquisa. A Profª Drª Maria Ester Vieira de Sousa, por sua imensa colaboração e paciência nas horas dedicadas a leitura e orientação desse trabalho. As Profª Drª Maria de Fátima Almeida e Drª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa, pela grande contribuição e incentivo a este trabalho. A Profª Drª Joselina da Silva, pela sua leitura e seu olhar primeiro. À Grande amiga e companheira compreensiva Cleide Pereira, pela paciência e disponibilidade constantes. RESUMO Esta dissertação se propõe a analisar as práticas leitoras junto aos professores das séries iniciais das escolas da rede pública municipal da cidade de Juazeiro do Norte, Ceará. A motivação deu-se a partir da afirmação corriqueira de que os professores não lêem e partiu dos questionamentos sobre as práticas leitoras dos professores. Tem como objetivo principal desenvolver uma investigação junto aos professores de língua portuguesa, de forma a descobrir sua relação com a leitura, verificando principalmente a imagem que esses professores têm do aluno leitor e a imagem que constroem de si mesmo como leitor. A metodologia utilizada é teórico-analítica de base qualitativa e foram utilizados, como instrumento, entrevistas, respaldadas por questionário pré-elaborado, e observação de campo, junto a uma amostragem de 4 escolas, totalizando 10,25% das escolas da zona urbana e 12 dos professores da disciplina de português. Para a segunda fase da pesquisa, foram observadas 4 salas da antiga 4ª série, hoje 5º ano. O primeiro capítulo traz uma breve história da leitura, do leitor e do ensino desta. No segundo capítulo, o enfoque é dado ao discurso sobre leitura no âmbito pedagógico. No terceiro capítulo são analisadas as entrevistas sob a óptica do professor e que imagem ele tem do aluno leitor; e no quarto capítulo a imagem tem ele tem dele mesmo enquanto leitor, enfocando inclusive sua prática pedagógica. Na fase de observação faremos um confronto sobre o que foi dito nas entrevistas e o que é feito em sala de aula, na prática. Finalizando, uma análise entre o dito e a prática pedagógica, ou seja, entre as entrevistas e a observação das aulas, de forma a conhecer as práticas de leitura dos professores e seu método de ensino. Palavras-Chave: Leitura. Ensino da Leitura. Leitura – Práticas Discursivas. ABSTRACT This dissertation is concerned to analyze the readering practice of primary school’s teachers of public municipal schools in the town of Juazeiro do Norte, Ceará State. The research’s motivation started in the usual affirmation that teachers do not read and began with questionnaires about the teacher’s reading practice. The main goal is developing an investigation with the Portuguese teachers to discover about their relationship with reading and verify the image these teachers have got about the student-reader and the image they build about themselves as readers. The methodology is theorical and analytical in a qualitative basis and were used, as an instrument, interviews based on a pre-elaborated questionnaire, and observation in the area, four schools altogether, in the overall of 10.25% of schools in the urban area and thelwe teachers of Portuguese. For the research’s second phases, four classrooms of the old fourth grade were observed, nowadays known as fifth grade. The first chapter brings briefly the history of the reading, the reader and teaching of reading. In the second chapter, the slant is to the discourse about reading in the pedagogical ambit. In the third chapter, the interviews are analyzed under the teachers’ view and the image they have got of the student-reader, in the fourth chapter, the image they have got about themselves as readers, focusing their pedagogical practice. In the observation phase we will make a confrontation about what was said in the interviews and what is done in the classroom, in the practice. Finally, one analyze between the speech and the pedagogical practice, that is, between the interviews and classrooms’ observation, to know the reading practice of teachers and their teaching methods. Keywords: Reading. Teaching of Reading. Reading - Discursive Practice. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 9 1 A INSTITUIÇÃO DA LEITURA NA HISTÓRIA 12 1.1 Os Gestos e o Ensino da Leitura 14 2 O DISCURSO DA LEITURA NO ÂMBITO PEDAGÓGICO 27 3 A IMAGEM DO ALUNO LEITOR PELO PROFESSOR 34 4 A IMAGEM DO PROFESSOR LEITOR POR ELE MESMO 41 4.1 Esses Professores Leitores: conhecendo suas memórias 46 de leitura 4.2 Conhecendo Suas Leituras: prazer ou obrigação 49 4.3 Revelando o Tempo Dedicado a Leitura 51 4.4 O Professor Como Formador de Leitor e o Seu Método de 54 Ensino 4.4.1 O Método na Prática 57 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 67 ANEXOS 70 INTRODUÇÃO Nos últimos anos, pesquisas revelam, de maneira mais sistemática e continuada, uma preocupação com a leitura e seu ensino. O Programa Internacional de Avaliação de Alunos – PISA, realizou pesquisa em 2003, em que o Brasil ficou em 37º lugar em leitura, abaixo de países como a Tunísia e a Venezuela. Em 2000 numa avaliação semelhante, ficou em último lugar entre 31 países, sendo que foram avaliados, ao todo, 250 mil alunos, de 15 anos, independentemente da série em que estavam matriculados. A amostragem total brasileira foi de 4.452 estudantes da rede pública e da privada. Estes resultados forçaram o Ministério da Educação a reavaliar seu programa de educação, visto que nem se podia utilizar a velha desculpa da pobreza, pois países bem mais pobres que o nosso tiveram rendimento superior. Kramer (1995) realizou uma pesquisa junto a uma turma de graduandos do Curso de Pedagogia da UERJ, em que perguntava se esses graduados se consideravam capazes de desenvolver em seus alunos o desejo pela leitura e se eles enquanto futuros professores gostavam de ler. O resultado após a análise das entrevistas foi que uma maioria afirmava não gostar de ler e atribuía isso a vários motivos, como por exemplo, a falta de tempo ou ainda os altos preços dos livros e, em alguns casos, os textos lidos até então eram muito profundos e difíceis. Outra pesquisa nacional, intitulada Retratos da Leitura 2, realizada pelo Instituto Pró-Livro, sob a coordenação do IDEALL (Instituto de Desenvolvimento de Estudos Avançados do Livro e Leitura, que pretende revelar o comportamento dos leitores e cujos resultados deverão ser divulgados em março de 2008. Esta pesquisa deverá mapear os leitores do Brasil, e que é baseada em Projeto Piloto realizado em Ribeirão Preto em 2004, que revelou uma média de 4 livros por habitante, maior que a própria média nacional, que é de 1,8 livros por habitantes; e outro realizado no Rio Grande do Sul em 2007, revelando uma média de 5,5 livros por habitantes, ambos baseados em método utilizado no México e na Colômbia. Entretanto, a Retratos do Brasil 2 contempla apenas o mercado livreiro e na relação de suposta equivalência entre leitura e venda de livros. E finalmente o Projeto de Pesquisa Projeto Práticas Escolares de Leitura e Discursos sobre Leitura, coordenado pela Profª Drª Maria Ester Vieira de Sousa, do CHLL, que investigou as práticas leitoras dos professores do ensino fundamental e médio. Embasando-nos em pesquisas sobre leitura e ainda em experiência profissional, de 10 anos de trabalho em bibliotecas, observamos o desinteresse dos professores com relação à leitura e ao espaço que ela ocupa em suas vidas. Essa constatação suscitou o desejo de descobrir a razão dessa possível falta de interesse pela leitura dos professores. Dessa forma, foram escolhidos como sujeitos da pesquisa os professores de língua portuguesa da rede municipal de ensino da cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará. Essa pesquisa foi motivada a partir da afirmação corriqueira de que os professores não lêem. Partimos dos seguintes questionamentos: os professores desenvolvem práticas leitoras? Se não desenvolvem qual o motivo? Se os professores não lêem, como podem provocar em seus alunos o interesse pela leitura? Nesse sentido, a pesquisa tem como objetivo geral investigar junto aos professores de língua portuguesa das escolas da rede municipal de Juazeiro do Norte – Ce de forma a traçar um perfil de referência acerca da sua relação com a leitura, verificando a imagem que esses professores têm do aluno leitor e a imagem que constroem de si mesmo como leitor. Como objetivos específicos, pretendemos investigar se os professores da rede municipal de ensino desenvolvem práticas leitoras; investigar, caso se verifique, as razões falta de leitura; e pesquisar como se dá o processo de ensino da leitura nas escolas da rede municipal de ensino de Juazeiro do Norte. A pesquisa é de cunho teórico-analítica de base qualitativa e foram utilizados os instrumentos de entrevistas, respaldado por questionário pré-elaborado e observação de campo. A amostragem corresponderá a cerca de 10,25% das escolas da zona urbana e 100% dos professores da disciplina de português das escolas escolhidas. Na fase de observação, foram contempladas apenas as salas de ensino da antiga 4ª série, hoje 5º ano, um total de quatro. O primeiro capítulo traz uma breve história da leitura, do leitor e do ensino desta. Dividimos em três momentos considerados importantes dessa história: a leitura oral, como primeira manifestação enquanto ato físico; o surgimento do códex, que deu um formato ao livro parecido com o que conhecemos hoje e com isso trouxe um novo gesto de leitura; e era tecnológica, com seu livro eletrônico, que também traz consigo mais um novo olhar sobre a leitura e institui novos gestos. Em seguida, no segundo capítulo, focalizamos a pesquisa propriamente dita. O enfoque é dado ao discurso sobre leitura no âmbito pedagógico, e são analisadas as entrevistas sob duas ópticas: que imagem o professor tem do aluno leitor, o que ele diz sobre esse aluno; e que imagem tem dele mesmo. No terceiro capítulo, enfocamos a prática pedagógica, a partir da observação de aulas de professores que participaram das entrevistas, sendo que nesta primeira versão do trabalho traremos aqui apenas a observação de duas salas de aula em duas escolas. Faremos, portanto, um confronto sobre o que foi dito nas entrevistas e o que é feito em sala de aula. Finalmente traçamos no último capítulo umas breves considerações finais, com o propósito de contribuir de forma efetiva para a pesquisa, de achar algumas respostas aos questionamentos primeiros e quem sabe traçar algumas estratégias de forma a sanar algumas lacunas consideradas importantes para o desenvolvimento de uma política de leitura em nossa cidade. Acreditamos que somente com uma política de leitura forte, que não se restrinja a simples distribuição de livros, onde é focalizada a posse do livro enquanto objeto, mas em programas sistematizados e respaldados por pesquisas, que visem suprir a lacuna educacional que a leitura pode deixar no nosso ensino e principalmente, no ensino fundamental, visto que é a base da educação primária. 21 1 A INSTITUIÇÃO DA LEITURA NA HISTÓRIA Podemos dizer – mesmo com todo o risco de cair no óbvio, visto que este não é um tema novo, muito já se disse sobre e muito poderá ser dito – que a história da leitura começa no momento que o homem criou possibilidades de leitura, e foi a partir dessas possibilidades que se chegou à necessidade de instituir a escrita, como a conhecemos hoje. A leitura também esteve associada à oralidade como manifestação artística, como espetáculo. O mundo da oratória e do desempenho oral é um pouco diferente da leitura como a conhecemos hoje, em seus objetivos, por exemplo, na leitura oral o leitor/autor incorporava o texto, numa performance para uma platéia que assistia passivamente. Neste sentido, a leitura oralizada tinha um caráter performático. Essa prática, inclusive, tinha uma função terapêutica, uma vez que era prescrita pelos médicos da Antiguidade a seus pacientes (FISCHER, 2006, p.47) como um exercício para estimular a mente. Nesta perspectiva, ler significava, muitas vezes, escutar a leitura, a performance de alguém, sob a entonação que o outro dava. Em função das dificuldades de publicar e divulgar as obras escritas, o leitor era um ouvinte e tinham mais contato no sentido de ressignificar os textos. De acordo com Chartier (2003, p. 34), a história da leitura registra duas mudanças essencialmente primordiais: uma, a física, própria dos gestos de leitura, da passagem da leitura predominantemente oral para a visual, silenciosa: A longa história da leitura nos fornece elementos essenciais. Sua cronologia se organiza a partir da identificação de duas mutações fundamentais. A primeira enfatiza a transformação da modalidade física, corporal, do ato de leitura. Ela insiste sobre a importância decisiva da passagem de uma leitura necessariamente oralizada, indispensável ao leitor para a compreensão do sentido, a uma leitura silenciosa e visual. Essa primeira mudança imprime regras aos gestos de leitura, exige o uso da visão e da concentração, cria espaços em que prevalescem a tranquilidade e o silêncio. Segundo Abreu (2002, p. 24) “a leitura silenciosa 22 permitiu um relacionamento com a escrita que era potencialmente mais livre, mais íntimo, mais reservado” e era esse caráter reservado que atribuia à leitura status também de ato solitário, e que durante muito tempo nos relacionava diretamente com a igreja . Com a leitura silenciosa (CHARTIER, 2003), a história ressalta a importância dos mosteiros e do ensino da leitura dentro deles. A igreja detinha total poder sobre o ensino da leitura, visto que a leitura tinha um caráter religioso, não tendo obrigação de ensinar a ler aqueles que não fossem seguir a vocação religiosa. Assim, a igreja passou a monopolizar e a censurar as obras que seriam transcritas. O livro tornou-se um símbolo sagrado, com isso, a igreja veiculou a idéia de que os indivíduos laicos tinham que respeitar sem contestar os ensinamentos sagrados, devendo apenas escutá-los e memorizálos. A partir do século XV, aprender a ler e a escrever tornou-se praticamente uma “obrigação cívica” (FISCHER, 2006, p. 175). A burguesia mercantil do norte da Itália incorporava à leitura e à escrita aos direitos civis, gerando uma verdadeira onda de educação cívica, que logo se espalhou pela Europa. Esse movimento foi corroborado pela invenção da imprensa e a publicação e difusão de obras impressas. A segunda mudança que sofreu a leitura foi a importância dada a escrita, a cultura letrada e intelectualizada, através da “industrialização da produção do livro” (ABREU, 2002, p. 24), a chamada “era da impressão”. O surgimento da imprensa aumentou o número de livros e de leitores e a natureza da leitura desprendeu-se um pouco de seu caráter religioso, conforme nos conta Battles (2003, p. 86): O número de livros cresceu dramaticamente do século XV ao século XVII, engendrando um misto de excitação e de ansiedade que não estava, de maneira alguma, restrito ao Vaticano. A fascinação humanista com a Antiguidade, que antes era apenas uma fantasia subversiva de acadêmicos, transformou-se num instrumento efetivo de autoridade. A grande revolução da leitura se deu concomitantemente ao surgimento da imprensa, entretanto, o livro, tal como hoje o conhecemos, não surgiu nesse 23 momento, ele emergiu da cultura impressa, mantendo, porém as mesmas características e estrutura do livro manuscrito. Com a invenção de Gutenberg, assistimos ao que podemos chamar de a primeira revolução da informação, visto que a igreja que monopolizava o texto escrito, através dos monges copistas, foi perdendo terreno e a facilidade quanto à edição de livros ajudava a difundir a leitura, antes restrita a poucos. De acordo com Belo (2002, p. 79), durante muito tempo a história do livro ficou associada à história das origens da tipografia, negligenciando a própria história da leitura e da escrita, que data de tempos anteriores ao texto impresso. A xilografia, técnica que consistia na gravura em madeira de caracteres para impressão através de fruição, até hoje utilizada pelos xilógrafos para fazer capas de literatura de cordéis e xilogravuras em geral. A imprensa instaura um novo poder. O poder da palavra escrita, o poder da informação, constituindo naqueles que a usavam um desejo pela leitura. Hoje a leitura ganha novos rumos, novos hábito, mas imbuídos do mesmo objetivo e caráter, o da disseminação da informação e da cultura. A facilidade da introdução da Internet, do livro eletrônico e das novas comunidades de leitores, que surgem a cada dia, colabora para que a história da leitura e da escrita possa também continuar a fazer história à medida que evoluem. Com a Internet os gestos de leitura mudam e mudam inclusive seus espaços. A própria sala de aula ganha um novo formato, com a introdução do computador, enquanto suporte para a leitura, e os sujeitos envolvidos no processo de ensino da leitura têm que adquirir habilidades para o uso das ferramentas que a máquina exige. É sobre as mudanças sofridas pelo ensino e os gestos de leitura que falaremos a seguir. 1.1 Os Gestos e o Ensino da Leitura Os hábitos e gestos de leitura sofreram várias mudanças ao longo da história. Antes, essencialmente oral, a leitura era praticada em espaços públicos e inaugurava um modelo de ensino baseado na oralidade. A essa mudança somou-se a sucessão de um modelo monástico de ensino para um 24 modelo escolástico e a partir daí torna-se preocupação de estudiosos e profissionais de ensino. O modelo monástico consistia na leitura ensinada nos mosteiros, de caráter religioso e para religiosos e aspirantes ao clero. A um modelo monástico de escritura sucede, nas escolas e universidades, um modelo escolástico da leitura. No mosteiro, o livro não é copiado para ser lido, ele conserva o saber como um bem patrimonial da comunidade e tem usos antes de tudo religiosos: a “ruminação” (ruminatio) do texto, verdadeiramente incorporada pelo fiel, a meditação, a prece. Com as escolas urbanas, tudo muda: o lugar de produção do livro, que passa do scriptorium à loja do comerciante; as formas do livro, com a multiplicação das abreviações, das descrições, das glosas e dos comentários, e o próprio método de leitura, que não é mais participação no mistério da Palavra, mas decifração regrada e hierarquizada da letra (littera), do sentido (sensus) e da doutrina (sententia). (CHARTIER, 2003, p. 35-36) (grifos meus) Além do gesto solitário de leitura, o modelo monástico carrega uma outra característica que é a cópia do livro e o seu caráter patrimonial, de conservação da cultura e do saber, sem esquecer da finalidade quase que estritamente religiosa. Em contraponto ao modelo escolástico, instaurado principalmente nas universidades, na Idade Média, quando da ascensão delas, que exigia uma leitura mais crítica, uma preocupação com o sentido da leitura, porém também de caráter culto, mas com a maior socialização do saber e um desvinculamento do clero. A história da leitura aqui inaugura um novo modelo de ensino e de sua prática. Diferente dos objetivos do modelo monástico, o modelo escolástico traz a instituição do sentido à decifração dos códigos lingüísticos. E os gestos de leitura mudam juntamente com os seus objetivos. Durante a segunda metade do século XVIII, o leitor intensivo era substituído pelo extensivo. A leitura deixava de aprisionar o leitor, com seus textos indicados pela igreja, lidos, relidos e decorados, marcados fortemente pelos preceitos religiosos e se apoderava do leitor uma ânsia de ler, ao mesmo tempo em que este exerce uma atividade crítica perante o texto escrito. Este momento, conforme nos fala Chartier (2003), instaura uma nova revolução da leitura. De proibida, restrita aos monges religiosos, a leitura passa a fazer parte do cotidiano de pessoas mais humildes, transforma-se em prática 25 social, se sobrepõe à memorização e marca novos gestos legitimados pela comunidade de leitores. A leitura se populariza e chega aos menos abastados e incorporava novos gestos e hábitos, como a leitura em família. Era a leitura no ambiente familiar que instituía o ensinamento religioso e de boas maneiras às moças e rapazes das famílias de classes sociais diversas, onde geralmente ficavam ao redor de um que lia em voz alta. A leitura silenciosa favorecia a individualidade, proporcionava rapidez e valorizava a leitura propriamente dita e não a forma, a estrutura do texto e da performance, como a leitura oral. Porém, enquanto o silêncio favorecia à concentração, a leitura em voz alta, ajudava na retórica, na desinibição e pronúncia, por isso a escola retoma essa prática, enquanto método de ensino, em meados do século XIX e início do século XX. A leitura em voz alta volta ao cenário, visto que ajudava a formar o estudante para o uso da língua e da concepção da retórica, que dominava a escola formal, entretanto, também era um meio de “publicar” uma obra, tornando-a pública. Portanto, ler em voz alta tinha uma função pedagógica, de formar o leitor e também contribuir para a divulgação da obra do autor. Desde a Antiguidade, ler em voz alta tem, basicamente, dois propósitos. De um lado, uma função pedagógica: demonstrar que se é um bom leitor, lendo em voz alta, constitui um ritual de passagem obrigatório para os jovens que exibem, assim, seu domínio da retórica e do falar em público. Por outro lado, um propósito literário: ler em voz alta é, para um autor, colocar um trabalho em circulação, “publicá-lo”. (ABREU, 2002, p. 21) Permeada por esses dois modos de ler, um introspectivo, concentrado, silencioso, outro, performático, com ênfase na interpretação cênica, de valorização da obra escrita e da retórica, a leitura construiu sua história e impôs seus gestos e os modelos de ensiná-la também foram mudando, seguindo uma demanda pré-estabelecida. As mudanças ocorridas nos séculos XII e XIII, com relação à leitura e à escrita substituíram o modelo monástico de leitura, associado ao ato solitário, silencioso e de escrita, enquanto preservação da memória pura e simples pelo modelo escolástico, que transformava a leitura e o livro em instrumento de 26 educação para o trabalho intelectual, dissociando de sua função enquanto norteador da cultura individual e senso crítico. Inclusive, pensadores como Platão e Schopenhauer, (Cf. ZILBERMAN, 2002, p. 16), rejeitavam o ato da leitura, por acreditar que esta era uma barreira entre o homem e o conhecimento e que ao praticar a leitura assumiríamos o pensamento de outra pessoa, em geral ,o autor, impedindo-nos assim de formular nossas próprias idéias. A idéia era que se aprende a ler, lendo, o que não é de todo uma mentira, apenas temos que primeiro definir de que tipo leitura estamos falando. A leitura escolarizada, alfabetizada, requer realmente o domínio da estrutura da língua portuguesa, do código e da habilidade de manipulá-lo; porém, a leitura enquanto prática e gosto, essa só se adquire praticando. Sobretudo na França, os leitores iam se transformando a medida que se transformavam o ensino e a importância dada a leitura e por sua vez os gestos também se modificavam. A história da leitura é também a história do leitor, uma vez que foram necessários os dois: objeto e sujeito para a instituição das práticas leitoras e a configuração da leitura como prática social. Para Lajolo (1998, p. 14), ser leitor “é função social, para a qual se canalizam ações individuais, esforços coletivos e necessidades econômicas.” Essa história do leitor (LAJOLO, 1998, p. 14) iniciou na Europa, por volta do século XVIII, quando convergiram fatores que vinham tendo um desdobramento autônomo, ou seja, quando as obras escritas deixaram de ser um trabalho meramente artesanal. A participação do leitor ao longo da história foi sendo registrada em sua mecânica física dos olhares, da movimentação dos lábios e da fonação, além das posturas do corpo, sem qualquer conexão com o exercício da interpretação. (YUNES, 2002, p. 55) Que história é essa? Claro, sem a participação efetiva do leitor, a história da leitura seria amputada em seu sentido, uma vez que é o sujeito que dá o verdadeiro sentido. Tanto o leitor que lê para os outros e o que escuta, quanto o que lê para si, imbuído de seu silêncio e clausura, todos são sujeitos dessa história. 27 Chartier (2004, p. 173) enfatiza que, oriundos das práticas urbanas do impresso, a leitura não se institui apenas como “uma variante histórica”, mas num gesto seja ele individual ou coletivo, mas que seja “dependente das formas de sociabilidade, das representações do saber ou do lazer, das concepções da individualidade”, tanto a leitura oralizada como a silenciosa garantem essas concepções individuais, serviram a padrões sociais estabelecidos naquele momento específico e traduz as representações do saber de uma determinada época. A função social do leitor sofreu mudanças a partir da popularização do gênero romance, quando esse leitor era tomado enquanto sujeito, vivenciando a leitura, se importando com ela, se identificando com ela. As práticas e os gestos de leitura sofreram inúmeras mudanças, nas diferentes comunidades leitoras, constituídas em sua maioria de mulheres e para quem o gênero romance era feito. A multiplicidade de análises e conclusões enfatiza que as práticas de leitura, sendo um aspecto cultural, estão em permanente mudança. Um leitor do século XXI não lê um romance ou um texto filosófico da mesma maneira que alguém o fazia décadas ou séculos atrás. Da mesma forma, diferentes sociedades atribuem a um mesmo texto valores distintos. (EL FAR, 2006, p. 62) Neste período o romance se torna popular e sua maior platéia eram as mulheres, o que acabou por exigir dos autores, que fizessem histórias especialmente dedicadas a esse público. Criou-se aqui um público diferenciado, com necessidades especiais, oriundos das características enquanto gênero, e criou-se também uma prática social, e por ser um aspecto cultural sofre mudanças à medida que também o sofre o seu leitor. A transformação da leitura em prática social se deveu essencialmente à valorização da família. A leitura ganha status social e se constitui enquanto ritual e onde prevalecem a leitura de textos religiosos, sendo que o gosto pela leitura se intensifica enquanto atividade adequada ao ambiente doméstico. Conforme Lajolo (1998, p. 15) “Para a leitura se expandir a ponto de se transformar em prática social, foi também necessária outra mudança: deu-se uma até então inédita e a partir daí permanente valorização da família”. Sobre 28 a leitura do gênero literário, Abreu (2006, p. 81) fala da humanização do leitor, que, ao identificar-se com o texto lido, sofre ou ri junto com o texto, alterando sua postura de sujeito leitor, enquadrado num processo de cultura econômica capitalista, favorecendo por vezes à alienação e ao conformismo, por outro pode nos tornar mais humanos, sábios e tolerantes no que diz respeito a nossa realidade social e até mesmo política. Neste momento aos antigos hábitos de leitura foram incorporados uma nova forma de ler. Os romances tomavam conta do leitor, que citava e memorizava o texto, e até o aprisionavam, como nos fala Chartier (2003, p. 37), de forma não muito diferente do que faziam os textos religiosos: [...] é no momento mesmo da “revolução da leitura” que, com Rousseau, Goethe ou Richardson, se desenvolve a mais “intensiva” das leituras, aquela pela qual o romance se apodera de seu leitor, aprisiona-o e o governa como antes fazia o texto religioso. A leitura do romance ganha força e se apodera de seus leitores, transformando esse gênero literário no mais popular até hoje. Essa ruptura na forma de ler e em sua finalidade também institui o leitor enquanto sujeito, numa atitude que em nada lembrava a passividade atribuída anteriormente, alcançando uma sensibilidade e humanidade não vistas no modelo monástico nem no escolástico de leitura. Com relação ao leitor e a leitura de romances, Abreu (2002, p. 25) diz ainda que: Toda sua sensibilidade estava engajada nessa nova forma de leitura intensiva. Leitores (que eram freqüentemente mulheres) eram incapazes de controlar suas emoções e suas lágrimas e, com freqüência, tomavam de suas penas para expressar seus próprios sentimentos ou para escrever ao autor como diretor de consciência e guia de suas vidas. Essa era uma manifestação que podemos chamar hoje de interacionista, visto que o leitor interagia com o autor, expressando sua opinião acerca do que foi lido ou consigo mesmo, se inspirando pelos sentimentos suscitados pela leitura e escrevendo ele mesmo seu texto, em geral poesias. 29 A partir do século XIX, novas categorias de leitores foram incorporadas à cultura impressa levada pela ideologia da chamada sociologia das diferenças (ABREU, 2002). A escola instituía modelos controlados de leitura, que contrastava com à própria diversidade dos leitores da época, tanto os que já estavam habituados como aqueles que estavam iniciando-se na leitura, o que compactuou com a diversificação das práticas de leitura na sociedade. Neste momento a leitura deixa seu caráter puramente escolar, associado à decifração corrente dos signos lingüísticos e assume um caráter que requer uma participação efetiva do leitor, como enfatiza Jouve (2002, p. 61): “A leitura, de fato, longe de ser uma recepção passiva, apresenta-se como uma interação produtiva entre o texto e o leitor”. Aqui o leitor assume o papel principal e efetivo no processo da leitura, como bem descreve Chartier (1999b, p. 77): “A leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados. Segundo a bela imagem de Michel de Certeau, o leitor é um caçador que percorre terras alheias”. (grifo meu). Neste sentido a leitura se consolida como prática social e mais uma vez a história da leitura computa uma espécie de ruptura, em contraponto à sociedade capitalista e de consumo e às demais práticas sociais instituídas até então. Aqui o chamado não leitor, aquele que insiste em se categorizar como tal, sofre preconceitos e prejuízos oriundos da sua condição instituída, é colocado à margem e fica cada vez mais distante do idealizado. Para Zilberman (2007, p. 17) isto se deu a partir da emergência da sociedade capitalista quando a intelectualidade tornou-se tão importante quanto o acúmulo de bens financeiros. Leitura então consolidou-se como prática, nas suas várias acepções. Produto da escola e critério para ingresso e participação do indivíduo na sociedade, veio a ser valorizada como idéia, por distinguir o homem alfabetizado e culto do analfabeto e ignorante. A leitura passou a distinguir, mas afastou o homem comum da cultura oral; nesse sentido, cooperou para acentuar a clivagem social, sem, contudo, revelar a natureza de sua ação, pois colocava o ato de ler como um ideal a perseguir. O ainda não leitor apresenta-se na situação primitiva de falta, que lhe cumpre superar, se deseja ascender ao mundo civilizado da propriedade, por conseqüência, do dinheiro e da fortuna. 30 É o verdadeiro status social da leitura, que é medido pelo acervo cultural do leitor e sua prática na sociedade em que vive, e o classificou em camadas que o distinguiam um do outro. Isso contribuiu mais ainda para a marginalização do não culto e o condenou ao que consideramos o início de sua decadência no que diz respeito à intelectualidade, eternizado pela história a ser ignorante. Nas décadas de 1920 e 1930, a Escola Nova entra neste cenário, consolidando atitudes político-filosóficas à educação, no sentido de popularizála, torná-la acessível a todos e a leitura passa a ter um caráter mais efetivo no combate às desigualdades sociais. A partir daí inúmeros livros de leitura foram produzidos. As editoras se especializavam no livro didático. A Escola Nova influenciou a reflexão aos métodos de ensino da leitura instaurados até então e provocou a inserção de novos métodos de ler e inovadores papéis foram atribuídos à leitura na escola, ao mesmo tempo em que se abolia a leitura puramente oral, em voz alta e prescrevia-se a leitura silenciosa. Surgiram, novas práticas leitoras permeadas pela escola, entrando em cena uma concepção de leitura que normatizava os métodos utilizados para a apropriação do lido em seu sentido, também uma preocupação muito grande com o livro. Porém, como enfatiza Vidal (2001, p. 96): O discurso escolanovista não se ocupava apenas em normatizar o livro, atentando para seu aspecto material e conteúdo. [...] A leitura prazerosa, muitas vezes identificada com a literatura, podia ser reencontrada no trabalho e na escola. A literatura foi extensamente utilizada na escola neste período e a leitura voltada para o prazer valorizada e trabalhada para formar leitores ao mesmo tempo conscientes e que gostassem de ler. O ideal escolanovista, que ganhou impulso por volta da década de 1930 no Brasil, após a divulgação do Manifesto da Escola Nova, em 1932, defendia a universalização da escola pública, gratuita e laica. A leitura era uma manifestação política para o ensino livre e aberto, com o objetivo de formar um cidadão consciente. Como o próprio nome diz uma escola nova, diferente dos moldes até então configurados. 31 O livro, que carregou durante décadas um cunho sagrado em sua materialidade, passou a ser preocupação de educadores e políticos, de forma que fossem vistos como meio de acesso ao conhecimento e formador do senso crítico, com uma roupagem analítica, principalmente na escola infantil, considerada a base da educação para a conscientização do cidadão. De acordo com Vidal (2001, p. 93): Leituras e livros eram preocupação de educadores e políticos. De simples depositários da cultura universal, o livro passava a ser visto como fonte de experiência. [...] A leitura destacava-se na formação intelectual dos educandos: “meios” de acesso à informação e “elemento” formador da mente infantil. (grifo da autora) A leitura e a escrita, enquanto norteadores da sociedade letrada, constituíam-se aqui como status social do sujeito coadjuvante na sociedade capitalista. A leitura era fonte de poder e manipulação efetiva do poder. É exatamente dessa forma que se percebe a proposta de alfabetização imposta tanto à escola como a própria sociedade, desde o século XIX, onde se evita relações entre sujeito leitor e a escrita de uma forma mais elaborada, fazendo da escrita um privilégio social de alguns, tidos como leitores, em contraponto aqueles considerados meros decifradores, em conseqüência, mal sucedidos e fracassados academicamente. É o poder de fazer uso do leque de opções que a leitura oferece, não apenas decifrando de forma mecânica, enquanto um código apreendido e ensinado, mas incorporando os sentidos construídos pelo leitor. Chartier (2004, p. 247) diz que: “Saber ler é outra coisa, não somente poder decifrar um livro único, mas mobilizar, para a utilidade ou o prazer, as múltiplas riquezas da cultura escrita.” Ou seja, incorporar as imagens cognitivas contidas no texto, de forma a proporcionar o prazer de conhecer, fazendo parte da sociedade letrada. Não é de hoje que o conhecimento, a manipulação e o acesso à informação instauram um status de poder a quem o detém. Foi assim na época das grandes guerras e revoluções, no cenário econômico e político, nas grandes empresas e é assim na sociedade contemporânea e, claro, na escola. 32 Entre as décadas de 1950 e 1970, cada vez mais se desenvolviam métodos alternativos de ensino. Foi neste período que surgiram as escolas experimentais e a idéia de um ensino centrado no aluno e nas suas necessidades. A expansão da rede pública de ensino era rápida, cada vez mais, as camadas populares ingressavam na escola. Embora muitas escolas continuassem a adotar antigos comportamentos e métodos tradicionais, tornando desagradáveis e temidos os momentos em que as práticas de leitura se davam, um número significativo passou a adotar as novas posturas socialmente construídas. Nesse período, aumentaram também os meios de acesso à leitura: bibliotecas populares, inclusive ambulantes, foram criadas em muitas cidades do país e o número de livrarias também aumentou significativamente. Foucambert (1994), Smith (1999) e Solé (1998) defendem que a leitura não pode ser ensinada e que a responsabilidade dos professores e da família é facilitar o acesso, através de uma variedade de textos. Segundo esses autores, a habilidade da leitura é desenvolvida através de práticas leitoras e de escrita e que essas não podem ser ensinadas de forma isolada das práticas sociais. Entende-se por facilitar o acesso, possibilitar exercícios de formação leitora baseada na prática social, ou seja, ler, como diz Ferreira (2002, p.41) lendo: [...] um ensino de leitura no qual se aprende a ler lendo, onde o aprendiz pode estar em contato com os mais diversos tipos de textos sociais dos quais precisa e se utiliza no cotidiano, e no qual o único pré-requisito para este aprendizado é a capacidade de questionar sobre as coisas do mundo. (grifo meu) Na proposta de alfabetização que foi imposta à escola e à sociedade desde o século XIX, foram evitadas as relações mais elaboradas entre o sujeito-leitor e a escrita. Fazendo da escrita um privilégio social de poucos, que, por sua vez, tornam-se leitores em contraposição aos decifradores, vistos com leitores mal sucedidos. Com a facilidade do texto impresso para publicação através da Internet, podemos dizer que chegamos em uma segunda revolução da informação, visto que a Internet cria estratégias e possibilidades de publicação, que barateiam a impressão do texto literário e científico, ao mesmo tempo em que contribui para 33 uma efetivação das práticas leitoras vigentes, e que alteram largamente o processo editorial e de leitura. A sociedade informática é a explosão tecnológica que exige de todos a utilização de suas ferramentas e transforma em verdadeiros Ets, aqueles que a desconhecem ou não tem habilidade em seu uso. Adam Schaff (1990) dizia que esse impacto seria bem mais visível no campo da educação e do trabalho. Abreu (2002, p. 27) diz que a inserção do texto eletrônico possibilitou ao leitor uma maior interferência de ação dentro da leitura, tornando-se inclusive co-autores. O mundo dos textos eletrônicos também remove a rígida limitação imposta à capacidade do leitor de intervir no texto. O objeto impresso impunha sua forma, estrutura e espaços ao leitor e não supunha nenhuma participação material física do leitor. Se, contudo, quisesse inscrever sua presença no objeto, ele só poderia fazê-lo clandestinamente, ocupando com seu manuscrito as margens ou as páginas em branco. Tudo isso muda com o texto eletrônico. Não apenas os leitores podem submeter o texto a uma série de operações [...], mas podem também tornar-se co-autores. O leitor tem a possibilidade de se tornar também autor e exige deste a habilidade de manipulação correta das ferramentas eletrônicas, ao mesmo tempo em que populariza a escrita e a leitura. Não podemos nos esquecer que essa co-autoria pode ter uma outra margem, como a crescente onda de plágios, pois, à medida que o texto eletrônico abre espaço para o leitor intervir, também possibilita que ele copie e manipule o texto como seu. O que instiga uma outra discussão, inclusive no âmbito do ensino da leitura, que se for respaldada pelos moldes tradicionais das fichas de leitura, por exemplo, abrem enormes precedentes para os chamados resumos veiculados pela Internet e colocam em cheque a leitura e sua finalidade. Com a informática novos gestos são atribuídos à leitura: Na tela de um computador, a disposição do texto e a relação com a palavra impressa oferecem uma nova dinâmica de leitura. Em vez de virar as páginas, o cursor pode navegar por qualquer parte da obra e, por meio de atalhos, encontrar rapidamente os trechos ou as palavras-chave desejadas pelo usuário. (EL FAR, 2006, p. 63) 34 Claro, ler um livro de forma interativa, com uma infinidade de imagens, janelas e mais janelas que se abrem para novos textos, torna a leitura mais empolgante e emocionante. Entretanto, tira do leitor o seu próprio poder de imaginação, criatividade e interatividade com o texto. Por outro lado, esta é uma fase tão importante quanto às demais fases da história da leitura. Não podemos esquecer que, embalados pelo jargão: “quem lê viaja”, os amantes da leitura eletrônica podem construir slogans como, quem lê “navega por mares nunca dantes navegados”, numa clara alusão a Camões. Sabemos que o livro impresso foi herdeiro direto do manuscrito e que o livro eletrônico, uma conseqüência da revolução tecnológica, mas que conserva características similares ao impresso, apesar de suportes diferentes. É possível folhear as “páginas” de um livro, também no formato eletrônico. A partir daqui, temos dois questionamentos: um a ameaça ao livro impresso, tradicional e o outro a liberdade do leitor do livro impresso. Sobre o primeiro ponto Belo (2002, p. 19) nos diz que: De acordo com esse sentimento, o livro digital poria em risco a sobrevivência do livro impresso, com a sua história de séculos, com a sua importância na transmissão da cultura, com as suas características físicas que aprendemos a amar. Essa inquietação veio juntar-se a uma outra, que já existe há várias décadas, pelo menos no mundo ocidental: a de que existem cada vez menos leitores. É possível que o livro eletrônico não ameace o livro impresso de extinção, exatamente pelo segundo questionamento, a liberdade do leitor. Uma liberdade que permitirá o livre arbítrio para escolher o suporte que mais esteja de acordo cm suas necessidades. O livro impresso também permite ao leitor igual liberdade, uma vez que é permitido ao leitor começar de qualquer ponto uma leitura. Inclusive há livros que oferecem essa condição de forma explícita, como é o caso de “O Jogo da Amarelinha”, de 1963, de Júlio Cortazar. Como o jogo da amarelinha, que dá título ao livro sugere, o leitor pode iniciar sua leitura de qualquer capítulo, e fazer sua própria trajetória do romance, sendo que, em cada uma das possibilidades de leituras, o sentido fica inabalável. O próprio autor diz: esse 35 livro é muitos livros. Essa liberdade experimentada no livro impresso, de forma explícita e orientada pelo autor, acontece também na obra do brasileiro Ignácio de Loyola Brandão, “Zero”, de 1976, que inaugura um novo modelo de texto, fragmentado, repleto de slogans publicitários, permitindo ao leitor intervenção quanto à sua leitura de forma também explícita. Portanto, supomos que o livro eletrônico não ameaça o livro impresso, do mesmo jeito que o último também não ameaça o primeiro, e que a liberdade experimentada na leitura do texto eletrônico, também está presente no texto impresso, principalmente a mais importante delas, que é a liberdade de viajar nos múltiplos caminhos que a leitura oferece. A história da leitura, da escrita, do livro e do leitor caminha simultaneamente, entrelaçadas e uma completa a outra, uma encontra a outra na e dentro história. A revolução tecnológica que trouxe o livro eletrônico pode ser mais um aliado, mais que uma ameaça, por que, como dizia o bibliotecário e matemático indiano Ranganathan, (1892-1972) em suas leis: para cada livro seu leitor e para cada leitor seu livro. Nunca essa lei de Ranganathan quanto ao uso do livro e da leitura foi tão atual, pois, baseado no livre arbítrio do leitor, podemos dizer que, independente do suporte em que o texto se apresente, haverá sempre um leitor, e a tal “morte anunciada” não passa simplesmente de conjecturas. Todo esse levantamento histórico visa situar o contexto a partir do qual analisaremos o discurso do professor. No capítulo a seguir, trataremos do discurso pedagógico da leitura, embasados por teóricos como Foucault (1986) e Sousa (2002, 2005), investigando a imagem que o professor tem do seu aluno e de si mesmo. 36 2 O DISCURSO DA LEITURA NO ÂMBITO PEDAGÓGICO A leitura é um processo complexo (JOUVE, 2002) que implica na construção de sentidos, por envolver processos de percepção, memória, inferência, dedução, processamento e análise, ou seja, a leitura é uma atividade cognitiva por excelência. Na produção de sentidos, o leitor desempenha papel ativo, sendo as inferências um relevante processo cognitivo referente a esta atividade. Esta ação promove uma interação recíproca entre leitor e texto. Definir leitura não é uma das tarefas mais fáceis, mas se pensarmos a partir de uma perspectiva individual, como sendo resultado de um certo período de escolarização, a leitura se constitui como uma prática não inata, como algo adquirido, ensinado. E, dentro dessa perspectiva, a leitura e o exercício dela dependem também do funcionamento e da integração de fatores como a escrita e a alfabetização. Para a leitura do texto escrito, vale explicitar, dado o dinamismo e multiplicidade de opções que a leitura oferece, o domínio do sistema escrito. Porém, vista por um âmbito social, enquanto prática social e socialmente construída, a leitura, sobretudo por seu caráter plural e dialógico, constitui-se em um precioso instrumento no processo de produção do conhecimento, isto por possibilitar ao leitor o contato com as diferentes formas de vivenciar e compreender o mundo. Discutir a leitura é perguntar-se sobre as condições e possibilidades desta e dos efeitos e potencialidades que a leitura pode produzir no sujeito leitor. A discussão da leitura passa pelo âmbito político, educacional, cultural e social. Orlandi (1988) realça que os determinantes sociais que atuam sobre as condições de ensino de leitura, representam a vontade de uma minoria dominante que produz e controla a política de leitura na sociedade capitalista. Sem dúvida alguma, a produção da leitura está vinculada à sociedade que a produz, resultando em interações sociais, políticas, econômicas, lingüísticas e culturais, que são estabelecidas pelos sujeitos no seu percurso histórico. 37 A escola e, conseqüentemente, os professores trabalham com as muitas interfaces da leitura. Há a leitura que se detêm na busca de informações, a leitura de natureza puramente funcional, a leitura de natureza ficcional, que funcionam como fonte de prazer, mas que pode ao contrário, se constituir em um desagradável exercício de obrigação e autoritarismo que vem ao longo da história marcando nosso sistema educacional, anulando qualquer possibilidade de fruição de leitura. A leitura assim como a educação é um processo que requer engajamento dos sujeitos envolvidos, para que ocorra a revolução intelectual necessária ao desenvolvimento cultural da sociedade. A leitura é uma conseqüência de nossa convivência social, das nossas situações vividas dentro da escola, dentro da biblioteca e na família. Barthes (2006, p. 20) define a leitura de prazer e a leitura de fruição: Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem. O que caracteriza a leitura de fruição é o questionamento, a dúvida, entretanto o ensino obriga e encapsula o leitor fazendo com que eles deixem de lado suas experiências de vida em sociedade na sala de aula, transformando a leitura numa “tarefa” rotineira e estafante. Silva (2003, p. 57) diz que os “professores despreparados para a orientação da leitura e dos leitores em processo de formação, é o pior fator a considerar, pois muitas vezes o aluno que tem potencial e que deseja aprender a ler se vê diante de um profissional que é, ele próprio, um não leitor.” A escola é o espaço onde prevalecem os discursos sobre leitura e as práticas leitoras, uma vez que a escola é um dos lugares sociais de acesso à leitura, isto coloca os professores como protagonistas desta história, participantes e ativos, especialmente os professores alvos desta pesquisa, aqueles que trabalham e ensinam ou pretendem ensinar, leitura. 38 Tudo isto nos coloca também frente a outros questionamentos. São os professores leitores? Se enquanto fomentador da leitura há também nos professores práticas leitoras? Os professores são capazes de motivar seus alunos para a leitura? Esses questionamentos por sua vez nos remetem para velhos discursos sobre leitura e seu ensino, sobre uma possível crise da leitura e dos leitores. Máximas construídas no âmbito pedagógico, que colocam o ensino da leitura como deficitário e capenga. Não podemos nos esquecer de que para quem ensina a ler, e tem por obrigação formar leitores, são necessárias condições sociais de leitura, visto que algumas pesquisas apontam para o seu afastamento do livro e das bibliotecas, apesar de que ainda acreditamos que não os afastam da leitura propriamente dita, apenas desvia ou cria outros espaços de leitura, porém isto requer uma outra discussão. O que se tem em mente quando falamos de habilidades de leitura? As pesquisas do MEC, bem como o PISA, avaliam a leitura com base em parâmetros de decodificação e interpretação da escrita. Esbarramo-nos na discussão acerca das concepções de leitura. O ensino da leitura vive entre paradoxos e revela um sistema impotente na formação de leitores. Foucambert (1994) defende o ensino da leitura no qual se aprende a ler, lendo, praticando, onde o aprendiz possa estar em contato com os mais diversos tipos de textos sociais, literários, fictícios ou não, mas em sintonia com o cotidiano e usando como pré-requisito a capacidade de questionar. E este questionamento se constitui como um ato político e revela ao sujeito leitor o poder de transformação a partir da percepção de mundo, saindo da resignação coletiva e construindo idéias e conceitos. Mais ainda, se aprende a ler e a gostar de ler, lendo e gostando, é aí que se encontra o papel mais importante, e porque não dizer fundamental do professor e da Escola, dar a leitura uma roupa agradável e bonita, instruindo aquele que a veste para um andar elegante. Em outras palavras, colocar a leitura na vida dos alunos de forma necessária, que só é possível se ela for realmente necessária a quem a ensina. De acordo com Ferreira e Dias (2002, p. 44): 39 O professor, nesta perspectiva, apresenta-se como aquele que confere um modelo de leitura para o aluno-leitor, servindo-lhe de espelho, especialmente quando os pais deste aluno não desenvolveram uma atitude positiva frente a leitura nem encorajam este tipo de atitude em seus filhos. (grifo meu) Se o professor deve ser considerado como espelho para o aluno, implica que o professor também tenha suas práticas leitoras e que as coloque a serviço dos alunos no cotidiano da sala de aula. O discurso pedagógico a respeito da leitura teve suas variáveis situacionais construídas historicamente e culturalmente. Da mesma forma que se tornou senso comum dizer que o professor é mal remunerado, se tornou uma “verdade” falar que os jovens, que os alunos não gostam de ler; e uma outra máxima ainda mais preocupante: que os professores não lêem. Acreditamos ser leviano reproduzir essas falas sem um embasamento aprofundado em pesquisas e sem uma discussão acerca do que é considerada leitura. Se apenas os textos literários, ou qualquer outra manifestação escrita e não escrita. Sem inclusive nos preocuparmos com os prejuízos do alcance desse discurso para o ensino. Sobre o discurso como prática social, nos respaldamos em Foucault (1986, p. 56), quando ele diz que o discurso é produzido em razão das relações de poder, que se implicam mutuamente, sendo que este não é um contrato entre a língua e uma realidade, e que ao serem analisados, se desfazem “os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas”, e que destacam um conjunto de regras, que são próprias da prática discursiva. A teoria de Foucault ajudará na análise dos discursos dos professores sujeitos desta pesquisa, à medida que dá suporte teórico para se chegar a um resultado analítico das entrevistas. O sujeito social do discurso aqui é o professor e o objeto da pesquisa, o seu discurso, coletado através de entrevista facilitada por questionário preestabelecido. Baseamos-nos em Foucault (1986), quando fala da autonomia do discurso e deste como prática social, para isto é necessário trabalhar exaustivamente o dito, deixando de lado as inferências, que podem remeter a interpretações errôneas, porém sem esquecer, do que Foucault chama de interdiscurso, ou seja, as outras margens do discurso. 40 Sousa (2002, p. 71) fala que o discurso pedagógico é autoritário, ao mesmo tempo em que questiona essa autoridade, uma vez que esta precisa ser reconhecida tanto pela escola, como pelo aluno e a sociedade. Porém, ainda de acordo com Sousa (2002, p. 74), a “noção de discurso autoritário poderá levar a supor a aceitação de uma concepção de linguagem como produto”, portanto, a linguagem será sempre igual e homogênea, completa. Se o discurso é constitutivo e construído historicamente para e pelo sujeito, transformando sua vida social, podemos incorrer em constatações duvidosas. Daí a necessidade do cuidado apurado na análise do discurso, na interpretação dos dados coletados, para se chegar o mais próximo possível da verdade cientificamente aceita. Leitura, antes de qualquer coisa, é um processo de interlocução, o imaginário pessoal e coletivo se desenvolve a partir do convívio com o grupo social e por força das experiências prévias de mundo de cada um. Leitura e escrita apresentam, evidentemente, características que demandam uma preocupação lingüística e pedagógica, e dessa forma a escola precisa, sem dúvida alguma, além de trabalhar a fruição, cuidar dos modos de produção da leitura e da forma pela qual o indivíduo constrói sua atividade de leitor. Geraldi (2005, p. 82) fala de leitura em momentos de crise social e acaba por convocar a todos, leitores, autores e professores para juntos articular esforços de forma a construírem uma compreensão de sociedade de forma a conceber mudanças. Falar em “momento de crise social” no Brasil e articular a este momento a questão da leitura exige um exercício de amnésia para esquecer o que já se disse, recolhendo no já-dito fragmentos que iluminem o que está sempre por dizer, neste esforço continuado e tenso de ir construindo compreensões novas nos cada vez menores intervalos do já-dito, rearticulando estes dizeres para construir o ainda por dizer. O que se vai tecendo, pouco a pouco, em cada ponto, em cada nó, é uma resposta atual a uma sucessão histórica de momentos de crise social, já que em nossa história a expressão momento de crise social somente tem sentido de atualidade por força de muita boa vontade. Pode ser que o melhor a fazer para se articular uma política de forma a atingir a essa chamada crise social seja construir um discurso contrário que de 41 tanto ser dito acabe por se tornar uma verdade e como discurso legitimado possa ser real na vida dos nossos professores e alunos. Kleiman (1996) diz que ensinar a ler é criar uma atitude de expectativa prévia com relação ao conteúdo referencial do texto, ou seja, quanto mais a criança puder prever o conteúdo ou construí-lo, maior será sua compreensão; ensinar a ler é ainda possibilitar a auto-avaliação constante e a utilização de múltiplas fontes de conhecimento para que possam proporcionar o relacionamento dos sujeitos envolvidos e ao mesmo tempo a construção e desconstrução dos seus significados. Esta relação da leitura com o leitor colabora para a incorporação de uma imensa responsabilidade do professor perante este processo. Ele acaba por se tornar o principal responsável pelo sucesso ou não do processo de aprendizagem da leitura. Sobre a presença do professor diante do ensino da leitura, Silva (1995, p. 19), diz: Se refletirmos bem, veremos que o professor é o intelectual que delimita todos os quadrantes do terreno da leitura escolar. Sem sua presença atuante, sem o seu trabalho competente, o terreno dificilmente chegará a produzir o benefício que a sociedade espera e deseja, ou seja, leitura e leitores assíduos e maduros. Essa afirmação de Silva (1995) deixa claro a posição do professor no que diz respeito ao ensino da leitura escolar e nos leva a refletir sobre a necessidade do conhecimento e da prática da leitura por parte desse profissional, uma vez que é uma ação necessária e óbvia para a execução satisfatória de sua práxis educacional. Neste sentido, talvez possamos dizer que a afirmação de que o professor não lê faz parte do senso comum, da imagem que se tem do professor. Porém só é considerado como leitura a que se faz do texto literário? É preciso então definir o que é ser leitor e que tipo de leitura estamos falando. E ainda se não é leviano afirmar tão categoricamente que o professor não lê. Dizer que o professor não lê, como pergunta, incomoda, enquanto afirmação, agride. Para colocar um pouco mais de fogo sobre a discussão, pesquisas sobre o processo de letramento demonstram que nas sociedades industriais, hoje, qualquer pessoa, ainda que analfabeta, tem conhecimento sobre a escrita e 42 usa esse conhecimento no dia-a-dia. E é, portanto, um leitor. Isto, além de ampliar o sentido de leitura e leitor, também abre precedentes para uma nova discussão sobre o conceito de leitor. Sobre o conceito de leitor, Britto (1998, p. 63) diz ainda: O conceito de leitor, então, para ter razão de ser e poder avaliar e distinguir comportamentos intelectuais dentro de uma sociedade letrada, deve supor mais que conhecer o código escrito ou mesmo ter o domínio de certos protocolos sociais de base escrita. Ele é sustentado por impressões vagas, conceituações imprecisas, tácitas, que, por sua vez, se constituem a partir de representações de leitura historicamente estabelecidas. Na perspectiva do letramento, o leitor, por mais que não seja alfabetizado, é considerado um leitor, por estar inserido nesta sociedade letrada. Desta forma, fica um pouco difícil conferir a alguém o estigma de leitor ou não leitor. Contudo, no sub-item a seguir, buscaremos abordar que imagem de leitor o professor tem do aluno. 43 3 A IMAGEM DO ALUNO LEITOR PELO PROFESSOR Pesquisas revelam que o professor queixa-se de que o seu aluno não lê e que não importam o que façam em sala de aula, quais os métodos que usem, o aluno continua sem nenhum ou quase nenhum interesse para a leitura, conforme pesquisa realizada por Sousa (2005), os dados revelam uma contradição, “de um lado, os professores reclamam que os alunos não lêem e não gostam de ler, do outro lado, os alunos afirmam que gostam de ler”, inclusive “explicitam suas preferências de leitura e reclamam dos professores que não assumem a função de incentivador da leitura”. Apesar de nossa pesquisa não contemplar dados que apontem para a leitura dos alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental, por não fazerem parte do corpus investigativo, não podemos deixar de concordar com a afirmação de Souza (2005), tendo em vista que este é um discurso recorrente do professor. Ao analisar as entrevistas, 12 no total, que corresponde a 10,25% do total de escolas da zona urbana da cidade de Juazeiro do Norte, percebemos algo que nem estava em nosso foco de pesquisa: toda a pesquisa e seu sujeito social é composto por professores do sexo feminino. As chamarei aqui de P1, P2, P3 e assim sucessivamente. Quando indagadas sobre as práticas leitoras de seus alunos, a análise mostra que 58,33% das entrevistas apontam que os alunos não lêem, não possuem práticas leitoras, enquanto 41,67% afirmam que os alunos lêem. Contudo, numa mesma entrevista, é possível identificar opiniões que se contradizem. P1, por exemplo, afirma que seus alunos não lêem, depois aponta que “lêem mais por obrigação, quando são submetidos a provas, não por prazer ou por gostarem”. Já P2 afirma: “Eles ainda não encaram a leitura como um prazer e sim como uma imposição da escola para obtenção de nota”. E o que é ler por obrigação ou imposição, senão ler? A leitura, seja ela obrigatória ou não, continua a ser leitura. Continua a envolver tanto o sujeito quanto o texto, o que muda é a intenção, o objetivo com que se lê. Nos exemplos citados, o aluno lê para obter êxito numa avaliação escolar. Constatamos um viés em seu discurso no que diz respeito à idéia que essa professora tem a respeito de leitura, visto que se contradiz quando afirma 44 que os alunos não lêem, para posteriormente constatar que eles lêem, mas por obrigação, para a realização de provas. Para essa professora, provavelmente a leitura dos conteúdos abordados, feita pelos alunos, para as suas avaliações não é considerada leitura, por não proporcionar o deleite ou o prazer que ela (P2) acredita que a leitura carregue. Dessa forma, constatamos que o aprendizado, sob sua ótica, não é uma prática prazerosa. Verificamos que quando o professor reconhece que o aluno lê, em geral, tece crítica quanto aos gêneros lidos. Vejamos um exemplo: P10: “Eles (os alunos) lêem, mas é uma leitura voltada para o consumo, moda por exemplo, é o que de fato lhes interessa”. Vejamos que para essa professora uma leitura que trata de moda não seria uma leitura reconhecida, autorizada ou digna de ser valorizada e incentivada. Será que este tipo de leitura não proporciona prazer, que é um referencial bastante importante para essa professora? Na realidade, o que lhe interessa não é o prazer propriamente dito, mas o que ela entende por prazer e por leitura. O que observamos até aqui é que o julgamento que as professoras fazem do aluno acerca do ato de ler é totalmente carregado de suas próprias idéias sobre o que é leitura e o que é ler. Se há a constatação de que os alunos não só lêem por obrigação e que só se interessam por leituras que tratam de assuntos voltados para o consumo, o que essas professoras fazem para mudar esse quadro? Por esse motivo, torna-se importante trazer para a discussão o que elas afirmam sobre sua prática com a leitura em sala de aula. P1: “Trabalho com vários livros e histórias infantis, revistas em quadrinhos. Acho que estimula o prazer pela leitura.” P2: “O método que utilizo desperta atenção por parte deles. Incentivo, valorizo, brinco, utilizo a leitura paragrafada”. P3: “Utilizo dinâmicas, práticas pedagógicas como a dramatização, o conto a poesia, os textos narrativos, descritivos, e na maioria obtenho resultado positivo”. P4: “Acredito que o método é eficiente, trabalho com textos, recortes de revistas, leituras visuais, dentre outros”. 45 P7: “Trabalho com jogos, histórias contadas e interpretadas, enfatizo bastante a oralidade, apesar de ainda se encontrarem no início do processo de aprendizagem da leitura, esse método é bastante eficaz”. P9: “O método que utilizo transforma a sala de aula em um ambiente motivador, lemos tudo e todos os dias. Lemos cartazes, livros didáticos, paradidáticos, revistas, avisos, jornais etc. Acredito que é preciso o ser humano se tornar global, isto é, um cidadão inserido na sociedade, por ser capaz de dominar os símbolos da comunicação humana”. P11: “Sim, considero o método eficiente. Trabalho com cartazes, fichas, gravuras etc”. Notamos que o discurso do professor sobre sua prática contradiz a imagem que as professoras revelam sobre o aluno leitor. Observemos que o professor trabalha a leitura de forma eficaz, estimula a leitura, acredita que o aluno se sente motivado, mas conclui que ele não lê e que a escola não é responsável por isso, o professor não é responsável, só resta a família para assumir a culpa. Quando a professora (P9) diz que: o método que utiliza “transforma a sala de aula em um ambiente motivador” e que proporciona a leitura a seus alunos em seus diversos suportes bibliográficos, ela se isenta da responsabilidade das falhas que aponta anteriormente. É como se dissesse: meu método é eficaz, não sei o que acontece, mas o problema não é meu. Ao mesmo tempo, outra professora (p11), diz que trabalha com material bibliográfico e visual e que seu método é eficiente. Mesmo acreditando ter um método eficaz de ensino e incentivo a leitura e a formação de práticas leitoras, mesmo constatando que seus alunos praticam leitura, como verificamos na análise onde 41,67% afirmam que seus alunos lêem, seja com qualquer finalidade, as professoras entrevistadas, recaem no velho discurso que os alunos não lêem. E atribuem isso a falta de incentivo na família. O mais interessante disso é que se talvez fossemos investigar a família, esta diria que o incentivo deveria partir da escola e que os alunos não o encontram nesta. Como veremos na fala de três professoras um exemplo bastante claro desse tipo de discurso, onde apontam a família como a principal responsável pela falta de incentivo para a leitura. Observemos ainda que apenas uma das 46 entrevistadas se coloca também enquanto responsável quando assume a falha por parte da escola: P6: Não há incentivo em casa para a leitura. P5: Eles (os alunos) vivem numa família que a maioria é analfabeta e com isso não há muito incentivo e fica para a escola o trabalho de incentivar e torná-los leitores. P4: Poucos alunos têm a prática da leitura. Além da escola a família é esse alicerce e vemos que a maioria mantém-se distante desse incentivo. Em algumas falas, observamos um discurso construído pela própria prática em sala de aula, motivado pela condição de educadora e ainda pelo espaço ocupado que é regido pela política e a ética. Não queremos aqui afirmar que a política ou até mesmo a ética leva a mentira, porém, em escolas do município, os cargos e empregos amarrados à vontade política deixam nossas entrevistadas pouco a vontade para responder sobre certas questões que poderiam colocar em risco a competência da escola como instituição educadora. A fala das professoras é um discurso construído pela própria profissão, cuidadoso com suas palavras. Vejamos aqui alguns exemplos: P8: A equipe de gestão trabalha dentro de uma metodologia de projetos onde visam ampliar o universo da prática leitora, seja em trabalhos expositivos u em atividades em sala. P9: [...] a leitura é um dos instrumentos básicos para o ingresso e a participação na sociedade letrada em que vivemos. Eles (os alunos) trazem de casa, a leitura de mundo, na sala de aula, garante-se a interação significativa e funcional. [...] somos incentivados a trabalhar a leitura no dia-a-dia, ao fazer essa mediação. A escola criou um clima favorável à leitura com o projeto: o desafio de alfabetizar e letrar, os alunos estão em contato com a língua escrita, exercendo efetivamente a leitura no dia-a-dia. P5: Através do universo que cada um traz de casa, com essa bagagem eu uso a imaginação e a criatividade e faço acontecer. [...] temos um projeto Viajando com as Palavras e a revista do Sesinho, onde são entregue todos os mês com temas bem interessantes e com isto nós educadores procuramos trabalhar na integra com esse temas, a preocupação da escola para melhorar nossa prática. P4: [...] através de projetos pedagógicos, inclusive estamos (a escola) com o projeto Desafio de Alfabetizar e Letrar, no qual o objetivo é viabilizar a leitura, através de um ambiente letrado e prazeroso. 47 Isto basicamente acontece com qualquer grupo social politicamente construído. O que pode ser preocupante é a recorrência ao discurso repetitivo e sem um embasamento ou respaldo científico. Sem contar no cuidado com o que dizer e como dizer, sem ferir a administração da escola ou Administração Municipal. Esse cuidado também foi observado quando perguntadas sobre o desenvolvimento de políticas de incentivo a leitura por parte da escola. Apenas a P6, disse que não havia políticas de incentivo por falta de interesse da coordenação e da administração municipal. Porém, as demais foram unânimes em afirmar que existem políticas de incentivo à leitura em suas escolas, e citam projetos de leitura e o apoio dado ao trabalho dos professores. Neste ponto da entrevista, baseada na observação da postura e principalmente no que não foi dito, mas que se pode compreender pela entonação, ênfase ou hesitação, podemos dizer que há um certo receio em falar da administração da escola ou da cidade, falar da vontade política ou do que falta em se tratando de incentivos reais. Para tanto, é muito mais usual escorregar pela via mais fácil e apontar incentivos que na realidade são exigências legais, como por exemplo, a implantação e uso das bibliotecas escolares ou mesmo a distribuição de livros através de políticas do governo federal. Como podemos observar em alguns exemplos, abaixo: P7: [..] a biblioteca implantada na escola está na ativa, dando oportunidade ao alunado para enriquecerem sua prática leitora. P1: [...] as crianças fazem empréstimos na biblioteca [...] e os professores trabalham muito com a leitura. P12: [...] observo a presença de cartazes que incentivam a leitura, a distribuição de livros aos alunos de forma gratuita, bem como a preocupação do corpo docente em desenvolver leitura. P10: [...] a nossa biblioteca, a qual desenvolve projetos de leitura para as crianças. Porém, quando perguntamos sobre a biblioteca e seu uso por parte dos professores e alunos, quatro das doze entrevistadas (P4, P8, P9 e P12) informaram que não existe Biblioteca em sua escola e que, portanto, não desenvolvem nenhuma atividade nesse espaço, fazendo todas em sala de aula. P2 afirmou que não freqüenta muito o ambiente da biblioteca com seus alunos, mas que uma vez por semana eles vão à Biblioteca para fazer 48 empréstimos de livros. Para a professora, esta não é uma boa atitude, visto que somente algumas histórias são dramatizadas, ou seja, para ela, o que garante a certeza de que o livro foi lido é se ele foi dramatizado. Conforme podemos examinar na sua fala: P2: Não muito. Temos um dia na semana (cada turma dispõe de um dia determinado) para pedirmos emprestado qualquer livro e são lidos em casa. Somente a apresentação de algumas histórias é dramatizada ou contada em sala. Para a P5, visitar a Biblioteca permite aos alunos utilizar o computador, jogos pedagógicos e livros infantis e com isso tornar a aula mais prazerosa. Todas as demais entrevistadas afirmaram que utilizam o espaço da biblioteca para leitura e escrita, produção de textos, leitura de poesias e contos, além do empréstimo domiciliar. O que constatamos quando perguntamos sobre a freqüência à biblioteca dentro do ambiente escolar ou não e sobre as atividades desenvolvidas na biblioteca, é que as escolas que a possuem, a utilizam bem, proporcionando inclusive aos professores recurso didático necessário de forma a complementar as aulas e incentivando a interação com a leitura, tendo em vista os jogos, oficinas e dinâmicas que as entrevistadas afirmaram desenvolver neste ambiente. Do universo entrevistado 58,33% possuem e freqüentam a biblioteca com seus alunos e 41,66% não a possuem, sendo que mesmo assim, encontramos falas como a de P8 P8: No momento estamos sem um espaço como este na escola, porém temos um pequeno acervo de livros, onde cada professor tem a liberdade de utilizá-los em sala ou no pátio, isso depende da proposta didática. P12: [...] procuro realizar atividades na sala de aula para desenvolver a curiosidade dos alunos diante de um livro, fazendo com que estes tomem gosto pela pesquisa, garantindo novos conhecimentos. A seguir iremos discorrer sobre que imagem o professor tem si mesmo, como ele se vê. Pretendemos igualmente analisar sua fala verificando o que diz sobre o ensino da leitura, sua prática pedagógica, visto que nesta pesquisa estamos falando de professor e faz-se necessário investigar que leituras efetivas esses professores fazem. Segundo Galvão (2001, p. 77), se tornou lugar comum afirmar que os professores não lêem e esse discurso parte do que se espera que eles leiam, parte ainda das leituras consideradas como 49 legitimas pela sociedade letrada. Portanto, tanto o item anterior, como o que vem a seguir parte de uma pergunta básica: Quais as leituras autorizadas pelo cânone intelectual? Porque, conforme vimos quando o professor fala do aluno, dizendo que ele não lê e depois retoma que ele faz leituras por obrigação, para realizar avaliações e que não lê por prazer, notamos que há um conflito entre o que as professoras encaram como leitura, o que nos leva a pensar em leituras autorizadas. Ler um best seller, um livro de auto-ajuda ou um livro de Paulo Coelho, por exemplo, não é considerado leitura, pois não faz parte do cânone intelectual. Antes porém de responder a essas questões, é leviano afirmar categoricamente que os professores não lêem. Por outro lado, não podemos fechar os olhos para o quadro de leitura do país e não enxergar as claras deficiências do ensino de leitura e mais ainda, se essas deficiências encontram-se no professor ou no próprio sistema educacional. Esse quadro um tanto quanto negativo a respeito da leitura e do ensino da leitura é baseado, por sua vez em pesquisas do MEC e de outras instituições, apresentados em vários trabalhos em Congressos e eventos pelo país. Para explicitar qual a imagem que os professores têm si mesmo enquanto leitores é que analisaremos a seguir de acordo com suas falas. 50 4 A IMAGEM DO PROFESSOR LEITOR POR ELE MESMO Após verificarmos a imagem que o professor tem de seus alunos e observar em seu discurso que ele não se responsabiliza por qualquer falha e deixa claro isso, ao falar de seu método, segundo eles (os professores) considerado como eficaz, passaremos a observar a auto-imagem do professor leitor. Para investigar essa problemática, dividimos a pesquisa em dois momentos distintos, a imagem que o professor tem do aluno leitor, e isso traz reflexões sobre o seu trabalho em sala de aula e o que veremos a seguir, a imagem que o professor tem dele mesmo enquanto leitor, trazendo reflexões sobre as suas memórias e práticas leitoras. Como foi visto no item anterior, 41,67% dos professores afirmam que seus alunos lêem, que possuem e desenvolvem práticas leitoras, o que acaba por desmistificar um pouco os discursos informais de que não há leitura por parte dos alunos. Entretanto, o que iremos abordar neste item são as práticas leitoras dos professores, analisando como eles se auto denominam, partindo a princípio de suas memórias sobre leitura e de suas preferências atuais. O professor se vê muitas vezes como um pobre coitado que joga pedra na lua ou dá murro em ponta de faca, no que diz respeito a suscitar em seus alunos o desejo pela leitura. Entretanto, o que chamamos a atenção é que suas percepções sobre leitura e sobre ele mesmo passam pelas suas memórias de leitura, pela alfabetização e seu adentramento no mundo letrado e passeiam nas práticas leitoras de hoje, como leitor efetivo. As lembranças de leitura funcionam como um ponto que separa dois eixos, de um lado o leitor aprendiz, a descoberta e do outro o leitor de hoje, que carrega toda a experiência e o conhecimento de mundo desse leitor anterior, juntamente com as memórias que a todo momento podem ser recolhidas. Lembrar desse processo para muitas das entrevistadas foi uma verdadeira visita à infância, uma oportunidade de reviver tanto as coisas boas, como as que não foram boas. Assim o sujeito parte da memória do acontecido, das lembranças para construir o real. Essas professoras partem de suas experiências e de suas memórias, interligando-as com a imaginação para construir seus sentidos e suas histórias de leitura. 51 E sobre essas memórias, também constatamos ora vozes apaixonadas, ora doloridas, a exemplo da caracterização apresentada por Sousa (2005). O responsável pelo adentramento no mundo letrado mais recorrente foi a escola, sete das entrevistadas atribuem à instituição escolar seu letramento e cinco, à família, mais especificamente a mãe, e são nessas falas que destacamos o vislumbre de um tom apaixonado, como no exemplo que mostraremos a seguir, de P8: Minha mãe sempre procurou repassar o valor da leitura para cada um de nós lá em casa. Lembro-me de vê-la lendo a Bíblia para nós, revistas de modas, manchetes de jornais. Pedia que lêssemos os enunciados das questões da escola, fazia ditados em pedaços de papel, pedia que fizéssemos leitura enquanto ela cozinhava lavava roupas (choro). Aprendi a ler logo cedo e lia de tudo que via... com certeza a escola foi responsável pela minha formação como leitora, mas mamãe me ensinou a gostar de ler. A escola foi a responsável por sua alfabetização, mas a mãe pelo gosto, pela paixão por ler. A escola foi responsável pela alfabetização, mas a figura materna que ensinou a ler foi responsável pelo desenvolvimento do gosto. Vimos uma bela imagem da leitura nesta fala. Uma imagem apaixonada e um pouco saudosa, embargada e intercalada por lágrimas. Observamos, em outra entrevista, o oposto dessa fala, quando P5 diz que seu letramento se deu a partir do método tradicional, que sofreu muito para aprender, e atribui a essa fase sua timidez de ontem e de hoje. Ela repassa no seu discurso o cansaço do dia-a-dia do professor, muitas atribuições, afazeres e pouco tempo para se dedicar à leitura. Vejamos sua fala (P5): Aprendi a ler no método tradicional, onde o professor era o dono do saber e via o aluno como uma folha em branco. Sofri muito, pois não entendia muito e ficava num canto da sala era muito tímida (baixa a cabeça) e com isso não tive estímulo nenhum pra ser alfabetizada. Era na base da cópia e a pedagogia do escreve e escreve. Não tive bom sucesso e fui reprovada na primeira série. Sofri muito... Essa mesma professora fala, em outro momento, quando indagada sobre suas práticas de leitura hoje, que tem pouco tempo, visto que trabalha os três expedientes, mas que “após as 23:00h, mesmo cansada, muito trabalho 52 pra fazer, procuro sempre estar a par dos acontecimentos mundiais”. Aqui ela não revela se faz alguma leitura de revista ou jornal para se atualizar sobre esses acontecimentos de que fala, apenas que procura se atualizar. Quanto ao método de ensino, todas foram unânimes em falar da Cartilha de ABC, e mesmo nas falas onde era a mãe a responsável pela alfabetização, a escola esteve presente, como podemos destacar na fala de P3 e P4, respectivamente: “O início foi em casa, com mamãe... ao longo do tempo a escola teve um importante papel de lapidação e de descoberta de leituras que mamãe não conhecia”. “Aprendi em casa com minha mãe, mas a compreensão deu-se na alfabetização com minha professora que admirava e elogiava muito quem lia”. Há por parte das entrevistadas um reconhecimento da escola como responsável por seu aprendizado da leitura e muitas vezes por sua formação enquanto leitor ativo e principalmente por um gosto e prazer pela leitura. Quanto a sua prática de leitura hoje e o tempo dedicado, todas afirmam que lêem e mais ainda, quase todas, que gostam, porém queixam-se da falta de tempo, das muitas atribuições que a profissão exige, mas não observamos nenhuma fala que tratasse a leitura como mera obrigação da profissão de professor. Umas dedicam mais tempo, outras menos, mas todas se vêem como leitoras, como veremos a seguir na fala de algumas delas: P7: “Hoje tenho pouco tempo dedicado a leitura, devido a profissão que toma bastante tempo. Leio apenas 1 hora por semana, aos domingos, procuro temas que abordem situações do cotidiano escolar”. P12: “Hoje com o surgimento de algumas obrigações, como domésticas, não tenho muito tempo para a leitura. Porém, como o meu trabalho exige o conhecimento, procuro dedicar os finais de semana a leitura de revistas e alguns livros”. P8: “Apesar da rotina de professor... sempre procuro ler o que gosto, tiro tempinhos para textos não significativos ao meu trabalho e sim aquilo que busco para mim. Tento me disciplinar, colocando sempre um livro preferido próximo a mim... e leio de cinco a dez páginas por noite”. 53 P11: “Leio bastante... livro, revista, jornais, panfletos... dedico as vezes uma hora... principalmente quando vou fazer meus projetos de aula”. P3: “Leio assuntos que me despertam curiosidades, também livros que ajudam na prática pedagógica, no meu crescimento pessoal e também histórias infantis, motivada por meu filho... não sei o tempo exato que dedico, mas estou sempre lendo algo”. P4: “Procuro manter uma leitura assídua, dedico meu tempo a leitura dividindo-o com o trabalho, com minha filha e inclusive com sua formação como leitora”. Observamos ainda, em algumas falas, a busca pela leitura enquanto descoberta e prazer pessoal, além das atribuições de professor, uma leitura intrínseca ao cotidiano como algo vital, que faz parte da vida delas e que elas gostam disso. Como vemos nas falas que mostraremos a seguir: P2: “Procuro ler sempre, diariamente, além da preparação das aulas, estou procurando o “novo”, fazer descobertas”. P6: “Leio sempre... estou sempre lendo. Leio jornais, revistas, livros diversos... não tem algo assim... que goste mais... leio tanto o informativo, como o de entretenimento... estou lendo sempre... adoro ler e leio de tudo”. P9: “A leitura é fundamental na vida de um professor, leio sempre, é um prazer... me sinto motivada a ler todos os dias e ainda acho pouco, gostaria de ter mais tempo. Gosto de ler romances... no entanto, é raro, o tempo é pouco”. P1: “Ah!... Sempre estou lendo... ou um livro ou uma revista... minha Bíblia, o que menos leio são os jornais... gosto de ler contos”. Acreditamos ser este o ponto mais importante da pesquisa, quando constatamos que o professor se reconhece como um sujeito leitor. As falas mostram claramente como a leitura está situada na vida de cada uma delas. Observamos a presença da prática leitora, seja com o objetivo de obter conhecimento direcionado à preparação das aulas ou para puro deleite. Chartier (1999) declara que a leitura não é apenas uma operação abstrata de intelecção, mas que há a necessidade do leitor engajar todo o corpo num espaço em relação consigo e com os outros, criando assim um vínculo quase passional, senão vicário. Foi esta relação quase vicária com relação a leitura, que observamos em algumas falas das entrevistadas, conforme podemos observar nestes exemplos: 54 P6: Leio sempre. Livros, jornais etc, tanto informativos como o de entretenimento. Estou ledo sempre. Adoro ler e leio de tudo. P8: Apesar da rotina de professor onde tenho que estar ligado a leitura quase todo o tempo, sempre procuro ler o que gosto, tiro “tempinhos” para textos não significativos ao meu trabalho e sim aquilo que busco para mim. Tento disciplinar meu hábito colocando sempre um livro preferido próximo a mim, onde leio de cinco a dez páginas por noite. P9: A leitura é fundamental na vida de um professor, leio sempre, é um prazer, me sinto motivada a ler todos os dias e ainda acho pouco, gostaria de ter mais tempo para dedicar-me à leitura [...]. Mesmo quando afirmam que lêem motivadas pela obrigação da profissão, pela condição de educadoras, a leitura se faz presente na vida delas de forma intensa e vibrante. Como na fala de P9 acima e de outras que citaremos a seguir: P2: Procuro ler sempre, diariamente, além da preparação das aulas, estou procurando buscar o “novo” – fazer descobertas. P3: Leio assuntos que me despertam curiosidades, também livros que ajudam na prática pedagógica no meu crescimento pessoal e também histórias infantis, motivada por meu filho, não sei o tempo exato, mas sempre estou lendo algo. P11: Leio bastante livro, revista, jornais, panfletos etc. Dedico às vezes uma hora. E principalmente quando vou fazer meus projetos de aula. Diante de depoimentos como esses só podemos afirmar que as professoras não somente se vêem como leitoras, como também como leitoras apaixonadas. Quando afirmam que lêem para obter conhecimentos, preparação de aulas ou para o entretenimento, ou até que se dedicam à leitura de romances, contos, enfim, mas que as professoras entrevistadas nesta pesquisa se classificam como leitoras. Diante disso, sentimos a necessidade de investigar as memórias de leitura das professoras alvo dessa pesquisa e é sobre isso que falaremos no próximo item. 4.1 Esses Professores Leitores: conhecendo suas memórias de leituras A figura do professor protagonista desta pesquisa é funcionário público municipal, que trabalha os dois expedientes, manhã e tarde com turmas que variam entre 40 a 50 alunos. Que trabalha com escassez de material, de recursos e em comunidades carentes. Carentes não simplesmente de recursos materiais e financeiros, mas muitas vezes carentes de afeto, de carinho ou do 55 aconchego que a leitura possa proporcionar quando feita em família, como foi relatado muitas vezes por eles na conversa inicial, antes da gravação da entrevista propriamente dita e conforme revelam algumas falas a respeito das práticas leitoras dos alunos: P4: [...] a família é o alicerce e vemos que a maioria mantêm-se distante desse incentivo. P5: [...] eles vivem em uma família que a maioria são analfabetos e com isso não há muito incentivo. Em seus depoimentos retratam sua experiência ao afirmarem que “a maioria” não têm incentivo na família e justificam suas condições sociais e o analfabetismo como a principal razão por essa falta de incentivo. Ora é reconhecidamente esmagador o percentual da população das classes C e D no ensino público nas séries iniciais. Porém, este não é o enfoque de nossa pesquisa, nem o tema central dela, entretanto, nos coloca frente a uma outra constatação: esses professores entrevistados também estudaram em escola pública, pelo menos em uma Universidade Pública, a Universidade Regional do Cariri (URCA) que até o ano de 2006, era a única na região. Esses professores estudaram em seus primeiros anos em escolas chamadas por eles mesmos de tradicionais e tiveram suas práticas leitoras associadas à textos muitas vezes impostos pela escola e pelo professor, e que somente tiveram consciência enquanto leitor na universidade, como nos remete as falas de P7 e P9: P7: Estudei em escolas tradicionais, lendo textos decorativos e repetitivos. Me tornei realmente leitora quando cursei a faculdade, foi [ininteligível] que comecei a ter uma visão crítica do que lia, capaz de refletir e questionar o conteúdo do estudo. (grifos meus) P9: Todo processo aconteceu na minha alfabetização, foi a bastante tempo, por isso lembro-me vagamente, mas sei que ler era uma imposição, tinha que soletrar com a maior rigidez, na base da palmatória e do castigo. (grifos meus) Quando a professora (P7) fala que aprendeu a ler com textos decorativos e repetitivos e não explicita que textos são esses, podemos deduzir, devido a sua retórica, que essa professora quando estava no papel de aluna não gostava de ler o que lhe era imposto, não escolhia suas próprias 56 leituras e portanto, não gostava do que lia. O método ao qual foi alfabetizada não lhe agradava. O mesmo ocorre com P9, como podemos notar nas palavras em destaque: imposição, rigidez e castigo, que o método ao qual foi submetida durante o seu processo de alfabetização não lhe agradava, causava um certo desconforto. O que é que pode nos dar essa certeza? Quando P7 diz que só se tornou realmente leitora quando ingressou na faculdade, isto nos leva a crer que os textos acadêmicos e didáticos são o que realmente interessam a essa professora leitora e é a finalidade que esta se apresenta por estar voltada para o estudo e aquisição do conhecimento. Isto torna-se claro, quando ela completa seu pensamento a respeito do que lê hoje: P7: [...] Leio apenas uma hora por semana (aos domingos) procurando temas que abordem situações do cotidiano. Já a professora seguinte (P9) separa o processo de decodificação e a prática da leitura e se coloca como uma consumidora de romances, quando completa seu depoimento: P9: [...]na adolescência lia muitos romances e ai despertou o meu prazer, costumava ler vários romances e a minha imaginação... eram fantásticas as minhas leituras. No tocante ao seu aprendizado, ressalta a rigidez do sistema, enfatizando a soletração e a leitura na escola como imposição deste sistema. A resposta ou o resultado para esta imposição é o uso da palmatória que vem instituir castigo e punição. Porém essa professora tem seu entendimento de leitura ligado a outra finalidade, que é a leitura prazerosa, de lazer, de entretenimento, que se utiliza das inferências do leitor e de sua criatividade para se instituir enquanto sentido e significado. Por isso, castigo e imposição não devem e nem podem existir para quem ler com essa finalidade. Em outra entrevista, a professora (P5) discorre sobre o processo de sua própria aprendizagem, abordando o papel do professor, tido como o detentor do saber, e conseqüentemente o aluno encarado como uma tabula rasa, isto a incomodava bastante: 57 P5: o professor era o dono do saber e via os alunos como uma folha em branco. Sofri muito pois não entendi muito e ficava lá num canto da sala. Era muito tímida. E com isso não tive estímulo nenhum para ser alfabetizada. As memórias da aprendizagem de leitura dessa professora carregam as dores e mágoas do sistema ao qual foi imposta e poderá refletir inclusive em seu método de ensino. P5: No método tradicional [...] era na base da cópia e a pedagogia do escreve e escreve, não tive bom sucesso e fui reprovada na 1ª série. Sufri [sic] muito. Entretanto, essas professoras que se assemelham quando ao espaço de trabalho, o público em que atuam, em idade até, também podem ser diferentes. Existem outros depoimentos que traçam uma trajetória bonita de leitura em processos associados e entrelaçados pela escola e pela família: P4: O início foi em casa com mamãe, lembro-me da cartilha do alfabeto e do seu empenho para que eu iniciasse minha trajetória escolar alfabetizada, isso ela conseguiu. Esse depoimento é bastante interessante, quando fala da mãe e de seu emprenho para que ela iniciasse sua trajetória escolar alfabetizada, provavelmente a mãe dessa professora deve ter sido uma incentivadora ferrenha no processo das práticas leitoras da filha. E ela foi a principal responsável pelo seu aprendizado, que a entrevistada conclui com: “isso ela conseguiu.” Neste ponto nossa entrevistada se coloca na categoria de leitora ativa. Ela atribui a mãe a sua inserção no mundo letrado, entretanto, foi a escola que a apresentou outras leituras, que a fez descobrir outras possibilidades de leitura, conforme podemos ver quando conclui sua colocação: P4: [...] Ao longo do tempo a escola teve um importante papel de lapidação e de descoberta de leituras que mamãe não conhecia, lembro-me também que sempre que podia comprava uma revistinha ou um cordel. Posso dizer que mamãe teve um papel importantíssimo em minha formação como leitora. 58 Além do reconhecimento da escola e da mãe como responsáveis por sua inclusão nas práticas leitoras, essa fala ainda revela o tipo de leitura que fazia: revistinhas e cordel. Outros tipos de documentos que fazem parte do universo explorado por esses professores são: a Bíblia, romances, livros didáticos, auto-ajuda etc, é o que vamos discorrer no próximo item. 4.2 Conhecendo suas leituras: prazer ou obrigação As leituras mais recorrentes para essas professoras, são textos religiosos e a própria Bíblia, revistas e literatura em geral. Lêem com mais freqüência tudo o que desperta a curiosidade e a criatividade. Esses professores nos conduzem a frase de Michael de Certeau: “o leitor é um caçador que percorre terras alheias”. Buscam leituras que o levem para outros universos, outros mundos, outras terras e que apresentem outras realidades. Refletem também a religiosidade, o que não poderia deixar de ser, devido ao ambiente externo da própria cidade de Juazeiro do Norte, que se insere em um universo macro coberto de fé e devoção. As falas a seguir demonstram claramente o tipo de leitura que essas professoras fazem: P4: Revistas, títulos literários, Bíblia. P9: Tudo que desperta a minha curiosidade, livros, poesias, contos, crônicas, jornais etc. P2: Livros de auto-ajuda, livros ligados à educação, científicos. P1: Um bom livro, contos e a Bíblia. P8: Revistas, textos poéticos e bíblicos, livros literários. P3: Livros de auto-ajuda, contos, de psicólogos, pedagogos, sociólogos e outros. O universo religioso aparece em suas práticas leitoras, porém outro fato que consideramos importante é a recorrência dos livros de auto-ajuda em detrimento de suas outras leituras consideradas por obrigação. Pois quando foram indagadas quanto a suas leituras por prazer e por obrigação. Por obrigação diferente do que poderia revelar devido a suas condições de professores e, portanto, investigadores, a leitura que mais aparece é a leitura de textos informativos do cotidiano, devido a necessidade de manterem-se informados. O interessante dessa constatação é que ela pode 59 nos revelar o intuito da leitura como libertadora da realidade, como aquela que nos leva a mundos desconhecidos e maravilhosos. Vejamos o que dizem sobre essa leitura por obrigação: P5: Jornal, pois são notícias trágicas e nos deixa muito deprimidas com os acontecimentos diários. P4: Notícias desagradáveis, alguns textos, alguns títulos de material para concursos. P12: Artigos de revistas que retratam a violência do país. P1: Jornais. A leitura informativa do dia-a-dia, não agradam a essas professoras por a remeterem de volta a realidade. O que querem percorrer são terras perfeitas, guiadas por preceitos religiosos, que prometem a vida eterna e gloriosa, que a retiram do universo mundano. Portanto, é compreensível o fato de detestarem leituras que possam reconduzi-las ao mundo real. Outra ocorrência quanto a leitura por obrigação é a leitura técnica e informativa, como por exemplo, bulas de remédio e textos legais. Conforme podemos observar nestas falas: P9: Bula de remédio, não gosto mesmo, acho necessário, mas irritante. P10: Legislação, bula de remédio etc. P2: A constituição brasileira. P3: Informações médicas, avisos. Falas como essas apenas reforçam a nossa constatação de que a leitura informativa para essas professoras não as conduzem ao estado de prazer que acreditam ser o resultado de uma leitura. Com relação a nossa hipótese inicial, todos esses depoimentos nos revelam a condição de leitor que o professor está inserido. Uma vez que suas respostas mostram suas práticas leitoras, não importando que tipo de leitura eles fazem, mas se o fazem ou não. O que importa é se lêem e não o que lêem efetivamente, apesar de que esse segundo ponto também nos pode se revelar como importante, tendo em vista a qualidade do ensino, a qualidade de suas aulas. Entretanto, como é o intuito dessa pesquisa descobrir as práticas leitoras dos professores e revelar se estes são leitores, asseguramos que sim. São leitores e praticam a leitura cotidianamente, seja por prazer, o que acontece algumas vezes, seja por obrigação, o que também se repete, mas que a 60 constatamos que a praticam com freqüência e que são, portanto, multiplicadores da leitura para seus alunos. A freqüência com que lêem, também foi alvo de investigação e será abordada no próximo item. 4.3 Revelando o tempo dedicado a leitura Quanto ao tempo dedicado a leitura, as respostas mais uma vez revelam a condição de leitor do professor. As falas trazem a tona um professor que lê com freqüência, seja por exigência da profissão, seja por vontade, por seu livre e total arbítrio. Mas que os colocam efetivamente como leitores e como tal, ocupantes do espaço que lhe são reservados. Do total de professores entrevistados 58,33% afirmam que lêem todos os dias. Eles revelam ainda o que e onde lêem. Conforme algumas falas: P:2: Todo dia. Às vezes um artigo, uma notícia, um texto, parte de um livro. [...] Leio mais pela Internet, porque é um local rápido de acessas as informações. P1: Todos os dias. [...] A Bíblia, no meu quarto, aprendo mais de Deus e também a enfrentar o dia-a-dia. P9: Atualmente, participo de um curso e obrigatoriamente leio todos os dias, é um livro por mês e um fichamento por semana, em casa o tempo dedicado a leitura são duas horas e meia. P6: Todos os dias. [...] Livros, romances, poesias, filosofia, tudo. As demais entrevistadas se revezam com leituras que várias de 1 a 2 vezes por semana. Quanto ao local, a residência é o que mais aparece como um local que proporciona um espaço adequado para a leitura. Vejamos: P3: Na minha casa, por que é onde tenho tempo disponível e mais concentração. P10: Na biblioteca da escola, por que lá tenho diversificados livros. P8: No meu quarto. Por ser um local calmo, só meu. P12: Ler revistas na minha casa é o que faço com mais freqüência, pois gosto de ficar informada sobre vários assuntos, como: política, acontecimentos no país e moda. Ressalto para a afirmação desta última professora (P12). O interessante é que foi a mesma que disse não gostar de fazer leituras de artigos de revistas pois retratavam a violência do país, e em outro momento da entrevista diz que 61 é o que lê com mais freqüência. Apesar de sua afirmação: gosto de ficar informada, será que podemos dizer que esta professora faz leitura de textos que não gosta, mas que a satisfazem do ponto de vista informativo? Pode até ser. Porém, acreditamos que quando afirma: gosto de ficar informada, ela está explicitando realmente o gosto, senão teria dito: preciso ficar informada. E fica mais evidente ainda, quando completa sobre o tipo de informação que gosta de ler: política, acontecimentos do país e moda. Entretanto, o que nos leva a questionar a fala dessa professora, é que ao mesmo tempo em que fala que gosta de ficar informada sobre política e acontecimentos do país, fala anteriormente que lê por obrigação artigos de revistas que retratam a violência do país. Estas duas afirmativas têm para essa professora significados diferentes e dependem da finalidade. Se a finalidade é saber os acontecimentos do ponto de vista da informação puramente, isto a satisfaz plenamente, porém se sua condição enquanto professora e ser social, exige que fique informada e que por isso, simplesmente por isso, a leitura possa ter a finalidade de informação por obrigação, pela necessidade e exigência de sua profissão, isto a deixa numa posição de insatisfação. Tudo isto pode parecer confuso e totalmente ambíguo tendo em vista que o texto pode inclusive ser o mesmo, o que vai mudar é simplesmente a finalidade com que se está lendo. Ora sabemos que os professores, como qualquer leitor, podem ler por várias finalidades, que podem ser: para informação, para preparação de aulas, por distração, para poder ampliar o vocabulário, enfim por infinitas razões, e neste caso é o que separa uma afirmação da outra. Uma outra professora entrevistada (P7) se coloca como viciada em leitura. Entenderemos melhor ao conhecermos sua fala: P7: Leio somente aos domingos, por uma hora. [...] diria que por vício de ler algo nas tardes de domingo. Aqui a leitura aparece descontraída, sem compromissos, banal. Entretanto, o que nos faz questionar em P7 é que esse vício somente aparece aos domingos, um vício com dia e hora para se manifestar. Apenas acontece nas tardes de domingo. Como uma conversa com uma amiga, uma visita ao 62 parque ou à praia a tardinha, apenas acontece, sem porquês, sem explicações. Mais tarde quando ela revela o que lê efetivamente é que compreendemos a sua afirmativa anterior: P7: Fascículos de cursos que freqüento pois necessito ter conhecimento do conteúdo. Revistas educativas como: Nova Escola, Veja e tudo que concerne a educação, para ampliar meus conhecimentos. O caráter descompromissado da leitura desaparece. Ela tem sim um objetivo, que é ler para obter e ampliar seus conhecimentos a respeito do que está estudando ou ensinando. Então toda aquela poesia relativo às tardes de domingo somem e dão lugar a uma realidade que exige do professor dedicação e tempo para a leitura e, apesar de ser uma exigência do mundo moderno, isto não os tornam mais ou menos leitores, apenas e simplesmente leitores, que se interessam ou não por esse ou aquele assunto. Outra entrevistada (P4) se revela uma leitora, que lê aquilo que considera necessário, material didático para preparação para as aulas e para realização de concursos. P4: [...] A freqüência varia com o período vivido. [...] material de estudo para o trabalho. Material de estudo para concurso. A afirmação dessa professora de ler assuntos exclusivamente para subsidiar seu trabalho ou de informação para concursos a torna mais ou menos leitora que as anteriores? Claro que não, como dissemos anteriormente, o que muda é apenas a finalidade, o objetivo da leitura, mas a sua prática, seu ato, este permanece. O ato de ler não aparece mais ou menos intenso porque mudam seus objetivos. Esta pesquisa revela professores leitores e acima de tudo compromissados com o processo de ensino, com sua missão mediante esta tarefa e desmitifica a máxima da falta de leitura. Talvez o que falte seja um discurso ao contrário, que diga que os professores são leitores efetivos. Falta a repetição de resultados como esses, dito de boca em boca, ditos sem cessar, ininterruptos e que de tanto serem ditos e repetidos possam ser constatados e assimilados como realidade que é. 63 4.4 O Professor Como Formador do Leitor e o Método de Ensino A biblioteca é um espaço legitimado para as práticas leitoras. O interessante é que nem todos encontram neste espaço o local agradável que deve ser para essa prática. Entre as entrevistadas um total de 66,66% freqüentam a biblioteca com seus alunos, sem, no entanto, saírem da Escola. Ou seja, freqüentam apenas a biblioteca da escola, que muitas vezes mostram-se ineficientes tanto em acervo quanto em atendimento. Porém, o objetivo dessa pesquisa não é fazer uma análise da qualidade das bibliotecas escolares, mas apenas determinar se são usadas como espaço de leitura que são. As professoras entrevistadas utilizam o espaço da biblioteca para realizarem atividades voltadas para a leitura e aquisição da escrita e hábitos de leitura. Na sua maioria, as bibliotecas entram como coadjuvantes, apenas para emprestar seu espaço físico e seu serviço, o empréstimo domiciliar. As professoras utilizam o reconto e a contação de histórias, além de dramatizações e algumas para usar o computador e os jogos pedagógicos, com o intuito de otimizar as aulas. Vejamos algumas falas: P1: Na escola. Faço a hora de contar histórias, os alunos fazem dramatizações e recontam as histórias lidas durante a semana. São livros do nível de idade de cada um. P3: Sim no ambiente escolar, com meus alunos desenvolvo atividades de leitura na sala de aula, através dos livros de empréstimo da biblioteca. P7: Somente a da escola e as atividades desenvolvidas são somente de leitura de imagens dos livros paradidáticos pois os discentes ainda não dominam a leitura. P5: Sim, gosto muito de usar o computador, livros infantis e jogos pedagógicos, com isso procuro tornar uma aula mais prazerosa. Do universo pesquisado 33,33% das escolas onde trabalham nossas professoras não possuem biblioteca, o que impossibilita a utilização da mesma enquanto espaço social para a leitura, mas as professoras realizam atividades que comumente realizariam na biblioteca, menos é claro, o empréstimo, como podemos constatar nesses depoimentos: P8: No momento estamos sem um espaço como este na escola, porém temos um pequeno acervo de livros, onde cada professor tem a liberdade 64 de utilizá-los em sala ou no pátio, isso depende da proposta didática de cada um. P12: Não. Porém, procuro realizar atividades na sala de aula para desenvolver a curiosidade dos alunos diante de um livro, fazendo com que estes tomem gosto pela pesquisa, garantindo novos conhecimentos. Dos espaços reservados para a leitura na escola, o maior e mais usado ainda é a própria sala de aula e em alguns casos a biblioteca entra como auxiliar neste trabalho, juntamente com algumas ferramentas que dão suporte a prática pedagógica no que concerne ao alcance dos resultados. Analisando o corpus em questão, as falas dos professores nos revelam uma prática constante da leitura, por razões diversas e em locais diferentes, seja na sala, seja no quarto, seja em qualquer lugar, mas acima de tudo constatamos que esses professores, são leitores e que se era somente isto que faltava ou que pesava para que alcançasse o êxito em sua prática pedagógica, então não falta mais. O discurso usual que os professores não lêem não encontra aqui precedentes, nem mesmo o discurso da sempre e total falta de leitura por parte dos alunos, nem mesmo essa é uma constatação, tendo em vista que os próprios professores, dito por eles mesmos, confirmam que os alunos fazem suas leituras, que da mesma forma que eles, os professores; por diversas razões. Seja pela simples razão de se informar, obter conhecimento, ou por puro lazer, entretenimento, seja para se informar como anda seu time de coração ou sua novela favorita, seja para aprender história, geografia ou línguas, não importa a razão, mas o ato da leitura em si e o discurso que ele carrega. O que nos revela esta pesquisa ao mesmo tempo nos faz refletir sobre a urgência de uma mudança no discurso oriundo do senso comum. É leviano repetir frases feitas e pensamentos de outrem sem nos certificarmos de sua veracidade. Esta pesquisa mostra uma pequena parcela, uma pequena amostragem de professores de uma cidadezinha igualmente pequena no interior do Ceará, porém se for ampliada poderá refletir um retrato, uma espécie de radiografia de como a leitura é praticada ou não junto aos professores da rede pública municipal de ensino. E cientes de resultados como esses poderemos nos posicionar e repensar a prática pedagógica, mas, acima de qualquer coisa, repensar o nosso discurso. Pois palavras podem não se 65 extinguir quando soltas ao vento, pelo contrário, elas podem se propagar no vácuo e se legitimar como verdade. As professoras envolvidas nesta pesquisa se caracterizam como leitoras e falam que seu método de ensino e incentivo da leitura é eficiente. O que torna esta discussão, no mínimo interessante, visto que, quando indagadas sobre como trabalham a leitura em sala de aula, sem exceção, ou seja, todas as entrevistadas acreditam que o método é eficaz e que produz em seus alunos o gosto pela leitura. Vejamos alguns recortes: P1: “Trabalho com vários livros e histórias infantis, revistas em quadrinhos. Acho que estimula o prazer pela leitura.” P2: “O método que utilizo desperta a tenção por parte deles. Incentivo, valorizo, brinco, utilizo a leitura paragrafada”. P3: “Utilizo dinâmicas, práticas pedagógicas como a dramatização, o conto a poesia, os textos narrativos, descritivos, e na maioria obtenho resultado positivo”. P4: “Acredito que o método é eficiente, trabalho com textos, recortes de revistas, leituras visuais, dentre outros”. P7: “Trabalho com jogos, histórias contadas e interpretadas, enfatizo bastante a oralidade, apesar de ainda se encontrarem no início do processo de aprendizagem da leitura, esse método é bastante eficaz”. P9: “O método que utilizo transforma a sala de aula em um ambiente motivador, lemos tudo e todos os dias. Lemos cartazes, livros didáticos, paradidáticos, revistas, avisos, jornais etc. Acredito que é preciso o ser humano se tornar global, isto é, um cidadão inserido na sociedade, por ser capaz de dominar os símbolos da comunicação humana”. P11: “Sim, considero o método eficiente. Trabalho com cartazes, fichas, gravuras etc”. 4.4.1 O Método na Prática Na sala de aula o observado foi um professor que leu, preparou, se atualizou, estudou, para satisfeito fazer uma espécie de transferência do saber para seus alunos e essa atitude é um pouco frustrada pela aparente falta de atenção de seus alunos. Foram observadas quatro salas de aula, do quinto ano, antiga quarta série, com alunos na faixa etária de 9 a 11 anos. Na primeira sala observada, a professora inicia tentando chamar a atenção dos alunos que se encontram eufóricos, falam o tempo todo. Ela grita: 66 P1: Façam silêncio! Vou fazer a chamada! Cícero Gabriel dá pra você se sentar?!... O mais interessante dessa parte da pesquisa foi a oportunidade de confronto quanto ao dito e o realizado pelo professor em sua práxis educacional. Entretanto, a execução desse ponto se mostrou um pouco difícil, mesmo tendo procurado ao máximo passar despercebida na sala, o que se revelou quase impossível, o desconforto da professora (da primeira sala observada) era totalmente visível, mesmo depois de tanta conversa, que não estávamos ali para avaliar, mas apenas observar, sem nenhuma interferência. Mas o tempo todo a minha presença era citada na sala, seja para exigir comportamento por parte dos alunos, que, vale ressaltar, estavam comportadíssimos, com raríssimas exceções, seja para conversar comigo sobre o que estava fazendo. Esta foi uma tarefa muito difícil, tendo em vista que já conhecia a professora em questão. Ela trouxe textos para sala de aula, contou histórias e mesmo tendo falado que não podia interferir, ela me solicitou que contasse histórias, o que foi imediatamente ovacionado pelos alunos e que me colocou em uma situação muito delicada. Com os textos a professora trabalhou a leitura oral com os alunos e estes se esmeraram ao máximo para obedecerem à pontuação etc. Depois ela utilizou o reconto e esta foi a parte mais interessante de sua aula. O conto escolhido foi “Como se fosse dinheiro”, de Ruth Rocha, e as crianças soltaram a imaginação. Trocaram os nomes das personagens com pessoas de sua convivência, como o dono da cantina da escola, da diretora, até personagens de desenhos animados apareceram nas falas desses alunos. Como transcrevemos a seguir: “Quando fui comprar meu lanche... sanduíche e refrigerante... paguei e ai a Dona Lurdes me deu chiclete de troco... chamei o homem aranha, que jogou sua teia e ela me pagou com dinheiro. Nunca mais comprei lá... sempre trago minha merenda de casa”. “Chamei a diretora pra resolver pois eu queria meu troco. Ela não resolveu, telefonei pra minha mãe e pro meu pai, que era o super homem... tinha identidade secreta e ai ele fez uma coisa... e resolveu tudo”. 67 Essa atividade teve pouca participação, alguns se intimidaram pela minha presença na sala de aula e não participaram, porém foi muito interessante os que o fizeram, inclusive aconteceu um episódio interessante: quase no final de uma história, tocou para o recreio e quase toda a classe permaneceu sentada e os que se levantaram voltaram a sentar-se para terminar de ouvir o colega. Nesta sala observamos uma boa participação dos alunos, um bom nível de leitura no sentido da pontuação, uma grande capacidade de criação e de se embasar pela leitura. Acreditamos que o que possa ter interferido foi o conhecimento prévio por parte da professora da nossa presença e o fato de já nos conhecermos, inclusive ela já havia participado de uma oficina de contação de história que ministrei anos atrás. Tudo isso deu suporte para que ela se preparasse, porém os alunos são muito mais espontâneos, apesar de orientados, não conseguem assumir uma postura de preparo ou sobreaviso durante a aula. Na segunda sala observada, resolvi não avisar antecipadamente da minha presença, apenas no momento e quase não consigo entrar, não conhecia a professora e com isso não obtive a mesma recepção da anterior. Mas, mesmo assim, fui citada pela professora o tempo todo para exigir comportamento dos alunos. P2: Ei não estão vendo que estamos com visita? Cadê o comportamento? Quem não se comportar vou colocar para fora da sala! A professora não tinha trazido nenhum material adicional. Sacou do livro didático e indicou aos alunos a página. Pelo que pude perceber, ela iria fazer outra coisa naquele dia, nada relacionado com ler um texto, por exemplo, mas por conta da minha presença (mesmo ela dizendo que não era) resolveu mudar. Colocou os alunos para ler. E foi ai que se escuta na sala: A: Ah, professora... não gosto de ler não! P: O que Suyanny?! Que não gosta de ler o que? Tem que gostar... tem que gostar. Comece! A menina gaguejou e a professora pediu a outro aluno que lesse. E a partir daí foi puro desconforto. Poucos leram satisfeitos, poucos completaram 68 um parágrafo inteiro. E lá se foram quase 30 minutos da aula. Até que a professora interrompe e solicita que os alunos escrevam as palavras que desconhecem do texto, que anotem e pesquisem em casa, no dicionário o significado de cada palavra, para trazer na próxima aula. Acreditamos que aulas como essa podem corroborar com o discurso da crise da leitura. Com discurso como eu não gosto de ler ou é chato ler. Entristece e ao mesmo tempo favorece que permaneçamos na busca, na investigação, sobre que ensino é esse que se apresenta para essas crianças. A terceira sala observada a presença de uma pessoa diferente das habituais chamou a atenção apenas nos primeiros minutos, após esse pequeno estranhamento a aula transcorreu normalmente. A aula foi iniciada com um ditado de um texto pequeno de 4 parágrafos: O que vale mais? Andando por uma estrada, um homem encontrou uma moeda de ouro. Daí por diante só andava olhando para o chão. Mas nunca mais encontrou nada. Acabou sem ver o que há de mais lindo: o sol. Acabou esquecendo que é de graça e pertence a todos! Logo após o ditado, transcreveu o texto no quadro e solicitou que os alunos corrigissem as palavras que haviam escrito o que era interrompido vez por outra pelas vozes dos alunos: P3: _ Corrijam palavra por palavra. Acentuação... A: (barulho) P3: _ Uemerson! Até esse momento observamos uma aula voltada para a escrita, onde o texto funcionou como um recurso auxiliar. Em seguida a professora continuou com um exercício baseado no texto: P3: _ Faça uma ilustração para o texto! Vocês sabem o que é uma ilustração não sabem? A: _ Sim!!! P3: _ E o que é? A: _ Um desenho. 69 P3: _ Pois você ai interpretar o texto conforme a ilustração que vai desenhar. E (ô Sara, por favor!) deixa um espaço de 12 linhas. A: _ Professora, posso deixar 13? P3: Pode. Deixa um espaço de 13 linhas. O enfoque para a leitura, poderia ter sido melhor aprofundado. 70 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Vivemos em uma sociedade grafocêntrica. E apesar de nem sempre estar associada ao texto escrito, exige habilidades de compreensão, memória e cognição. Por outro lado, destacamos a questão valorativa da leitura em relação a sociedade. Conforme destaca Soares (1998. p. 19), é absolutamente indiscutível, os benefícios que pode trazer para o indivíduo: Atribuí-se à leitura um valor positivo absoluto: ela traria benefícios óbvios e indiscutíveis ao indivíduo e à sociedade – forma de lazer e de prazer, de aquisição de conhecimentos e de enriquecimento cultural, de ampliação das condições de convívio social e de interação. Apesar dessa afirmação colocar a leitura em uma posição um tanto quanto difícil de salvadora da humanidade, explica bem quanto pensamos no ensino da leitura. O ensino existe para ajudar alguém a adquirir conhecimentos e enriquecimento cultural e esse parece ser também uma das conseqüências da leitura. Entretanto, o que dizer do ensino da leitura? O discurso sobre a crise da leitura e dos leitores está presente nas escolas, editoras e demais instituições envolvidas com a leitura de alguma forma. Muito se fala em momento de crise social e crise da leitura. Geraldi (2005. p. 85) diz que falar em momento de crise social no Brasil, e mais ainda relacionar esse momento à leitura, exige um exercício de amnésia, para que se esqueça o que já se disse sobre o assunto e que se recolha no já dito fragmentos que possam iluminar o que ainda se pode dizer. É correto, então, afirmar que a leitura nunca esteve em crise, mas sim os leitores, ou mesmo, afirmar que a crise está no ensino da leitura? Essas são respostas que precisarão de tempo e muitas pesquisas sobre o assunto para se chegar a ela. Mas é exatamente em busca dessa resposta, que pretendemos concluir e ampliar a abrangência dessa pesquisa, de forma a buscar respostas a todos esses questionamentos. O discurso sobre leitura sempre recai sobre as mesmas máximas, que de tanto serem repetidas acabaram se transformando de velha ladainha em oração: “o aluno não lê; o aluno não gosta de ler”. Esse discurso, ao mesmo tempo em que generaliza o ensino da leitura e as práticas leitoras, também 71 atribui uma caricatura ao ensino da leitura, de ineficiência e muitas vezes de impotência diante de tal quadro. O professor se exime da culpa e coloca-a no sistema educacional, no governo e na família. Para se questionar sobre isso, é preciso primeiro um questionamento sobre que tipo de leitura estamos falando, e mais ainda, qual o papel do professor perante este processo. Ao nos perguntarmos sobre a não leitura nos professores, nos esbarramos no que diz Batista (1998. p. 25): A mesma representação social do professor-(não) leitor manifesta-se, também, nos resultados de pesquisas sobre docentes e sobre suas relações com a leitura. Eles indicam que os professores leriam pouco e com pouca familiaridade impressos voltados para o desenvolvimento de sua formação profissional e que suas leituras para o prazer revelariam uma distância em relação à cultura tida como legítima, cuja transmissão lhes seria delegada. Porém este discurso está mudando, os leitores estão fazendo-o mudar. O que é necessário entender é que por leitura compreende-se qualquer tipo de texto, inclusive se escrito ou não, mas que permita a interação entre o leitor e a leitura. O professor não é um sujeito alienado, alheio às suas responsabilidades ou mesmo apático no que diz respeito à leitura, mas um sujeito atuante, pois os dados analisados da pesquisa apontam para a afirmação do professor enquanto leitor. Portanto, afirmamos que o professor é um leitor. Seja de textos pedagógicos, seja de uma leitura mais literária, informativa, quaisquer que sejam, mas o professor está o tempo todo lendo. Lendo inclusive nas faces de seus alunos, as dúvidas, as incertezas, o desejo de aprender etc. porque o aluno também é um leitor. Um leitor em formação, que pode ter gostos diferentes dos seus professores, mas que não é por isso que deixa de ser leitura. Porém também aponta para outro ponto: para a ausência de políticas dentro da escola que favoreçam o ensino da leitura e incentivem o trabalho pedagógico do professor e uma mudança no discurso conformista, sem entregar a ninguém da falta de leitura. 72 Ler é intrínseco ao ato de viver e é totalmente impossível dissociar um do outro. E o resultado que se chega com uma pesquisa dessa natureza é que muitas vezes afirmamos algo sem ter a sabedoria do que isso significa, no que diz respeito ao discurso pedagógico com relação à leitura, o que se afirma é o contrário do que se enxerga em investigações científicas, basta direcionar um foco e escolher baseadas em que concepções de leitura se deseja investigar. Era uma verdadeira convocação dos valores e atribuições da família, da escola, da biblioteca, do Estado e da sociedade perante suas atribuições em relação à leitura. Em nosso país a democratização da leitura está condicionada à própria democratização política de nossa sociedade. Isto tudo demanda uma forte transformação na estrutura social e econômica por melhores condições de vida e de trabalho, que será representada e repercutirá em melhores salários, moradia e conseqüentemente acesso a informação e conhecimento. Falar do professor como um não leitor parece ter algumas contradições tendo em vista que nossa sociedade, como dissemos no início é grafocêntrica, conforme nos diz Batista (1998. p. 27): A representação social do professor como um “não-leitor” choca-se com um conjunto de constatações. Em primeiro lugar, os professores vivem no interior de uma sociedade letrada. Mesmo que a difusão e a distribuição da cultura da escrita e, mais especificamente, a da cultura do impresso se façam, nesse espaço de modo desigual, o fato mesmo de os professores se inserirem, em maior ou menor grau, no interior dessa sociedade, torna muito pouco plausível sua representação como “não-leitores”. Sendo assim, o discurso de leitura passa a ser muitas vezes contraditório. Pois, se partirmos para uma investigação e levando em conta o caráter da cultura escrita, os professores seriam encarados como leitores. Leitores advindos da escola, e que parte de disposições também escolares, mesmo que suas leituras não sejam diretamente voltadas para a escola e para a prática escolar da leitura (BATISTA, 1998. p. 31). A escola quer a leitura em sala de aula, encapsulada, exigida, nem sempre a leitura do leitor. Porém existem os professores que furam esse paredão e apresentam novas propostas, legitimadas pelo leitor, por sua 73 experiência de vida. E o leitor oscila entre o desejo e o retraimento, de ler e não ler. Podemos até afirmar que a leitura é capaz de acender o desejo, mas é certo também afirmarmos que não pode preenchê-los. A leitura é algo que nos leva ao limiar da vida do espírito, mas não a constitui, pois quem deve constituir a vida do espírito é o leitor, ou seja, o leitor deve a seu modo, construir, inventar, descobrir seus significados e valores através da leitura. E ensinar os outros a ler é ensinar no sentido de poder inventar sem trair, ensinar a pensar a partir do fascínio da leitura, quando isso se dá, dá-se também o verdadeiro milagre da leitura, que é semeada em solo fértil e fecundo produzindo através do sujeito a interação que a leitura provoca. A análise dos dados revela que a hipótese da possível falta de leitura dos professores, não se aplica, pelo menos nesta amostragem, que a princípio ainda parece pequena, visto que Juazeiro do Norte conta hoje com 39 escolas na zona urbana e foram contempladas apenas 4 dessas escolas, ou seja, 10,25% e 12 professores no total, que corresponde a todos os professores de cada escola a ensinar a disciplina de língua portuguesa. Pretendemos aumentar a amostragem, de forma a ter, cada vez mais, dados substanciais que permitam desmistificar o velho discurso do professor que não lê. Vimos aqui que o professor se vê como leitor, descreve suas preferências e inclusive em quase metade das entrevistas (41,67%), enxerga o aluno como leitor. Contra 58,33% que acredita que seu aluno não lê. Confrontando com as aulas observadas, vimos duas realidades diferentes. Uma situação onde o professor apresenta possibilidades de aprender, de ler; e uma outra onde o professor, levado por algo que não posso afirmar, por desconhecer, permanece com um modelo de leitura que inibe o aluno, que corta suas asas e o coloca numa posição de declarar não gostar de ler. Esse modelo de professor, infelizmente exerce uma função inibidora no aluno (leitor) quanto ao seu processo de criação. Nessa segunda opção, tivemos ainda, nesta fase de observação, uma aula que a criatividade do aluno foi castrada, uma vez que pouca ou nenhuma atenção foi dada a ela. Ao solicitar ao aluno que ele fizesse um desenho, e logo em seguida colocar sua atenção sobre outros aspectos do texto, a releitura, a criatividade e capacidade recriadora do aluno foi sucumbida. 74 Porém, ainda se tem muito a investigar, as discussões sobre leitura estão cada vez mais recorrentes em nosso País e apesar de já ter um longo percurso, ainda há muito que caminhar. Sobretudo, acerca da leitura dos professores, que como grandes responsáveis que são pela qualidade do ensino, principalmente do ensino da leitura. 75 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Márcia. (Org.) Leitura, História e História da Leitura. São Paulo: Mercado de Letras, 2002. BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. São Paulo: Perspectiva, 2006. BATTLES, Matthew. A Conturbada História das Bibliotecas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003. BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Os professores são “não-leitores”?. In: MARINHO, Marildes. SILVA, Ceris Salete Ribas da. (Org.). Leituras do Professor. Campinas: Mercado de Letras, 1998. BELO, André. História, Livro e Leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. BRITTO, Luiz Percival Leme. Leitor Interditado. In: MARINHO, Marildes. SILVA, Ceres Salete Ribas da. (Org.) Leituras do Professor. Campinas: Mercado das Letras, 1998. CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. 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Você lembra como e quando aprendeu a ler? O que você lia? Como lia? A escola foi responsável por sua formação como leitor? 1 Inspirado no questionário utilizado pelo Projeto de Pesquisa Práticas Escolares de Leitura e Discursos sobre a Leitura, coordenado pela Profª Drª. Maria Ester Vieira de Sousa. 80 4. E hoje? Como é a sua história de leitura? Quanto tempo dedica a essa prática? 5. Hoje, como você se considera: a) Você lê com freqüência? (todo dia, uma vez por sema, duas vezes por semana?) b) Você diria que lê mais por obrigação ou por prazer? c) O que lê por prazer? d) O que você lê por obrigação? e) O quê e onde você lê com mais freqüência? Por quê? f) Qual a última leitura que você realizou? O que você lembra dessa leitura? 81 6. Você considera que os alunos têm alguma prática leitora? Porque? 7. Como você trabalha a leitura em sala de aula? Você acredita que esse método é eficaz? 8. Você considera que há na escola em que trabalha uma política de incentivo à leitura? Por quê? A que você atribui isso? 9. Você freqüenta biblioteca(s) (no ambiente escolar ou fora da escola) com seus alunos? Que tipo de atividades você costuma desenvolver nesse espaço?