Efeitos de uma situação traumática: recorte de um caso clínico
Jair Dias Augusto Junior
Mestrando em Pesquisa e Clínica em Psicanálise da UERJ
Rita Maria Manso de Barros
Professora Associada da UERJ e da UNIRIO
Programa de Pós-graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise da UERJ
Freud estabeleceu que uma situação traumática nem sempre cobra seus efeitos no momento
em que ocorre. Boa parte das vezes é apenas no a posteriori que os efeitos do trauma se fazem
sentir. Esse trabalho tem como base o caso clínico de uma mulher que chamaremos aqui de P. Ela
tem 60 anos, e após ser agredida, recebe de um psiquiatra o diagnóstico de depressão pós-trauma.
A agressão foi há seis anos, e partiu de um desconhecido que lhe deferiu um soco inesperado,
direto no seu rosto, no meio da rua. Depois desse dia ela diz que sua vida nunca mais foi a mesma:
não voltou a trabalhar, parou de fazer sexo com o marido. Começou a sentir dores no corpo, falta
de ar; às vezes não consegue falar, nem andar, eventualmente tem desmaios que parecem
convulsões. Tem enurese noturna quase toda a noite, medo de sair na rua e de pessoas estranhas.
Esses sintomas diminuíram depois que ela começou o tratamento psiquiátrico com ‘muitos
remédios (Cloparmazina, Clonazepam, Fluoxetina), 1 mês depois da agressão, mas sua psiquiatra
disse que ela só vai melhorar se fizer análise. Depois da agressão ela ficou 3 anos de licença
médica, e foi aposentada por invalidez.
A paciente esta em análise a 2 anos e nesse período pôde falar de sua história. Ao fazê-lo
traz lembranças e faz conexões que nos permitem afirmar, com base no trabalho de Freud, que os
traumas em geral são a um só tempo, específicos de uma dada situação, mas também muito
reveladores, em cada indivíduo, de uma história que lhe é peculiar. Assim, trazemos aqui recortes
de sessões onde a paciente pôde falar do peculiar de sua história e começar a relacioná-la ao seu
trauma.
P. conta a agressão:
Eu desci do ônibus perto da minha casa e parei no sinal para atravessar a rua, já era
noite e reparei que vinha um rapaz na direção oposta. O rapaz era jovem, tinha boa
aparência, era musculoso assim... tipo um pitboy. Percebi que ele me olhou e parecia
até que queria uma outra coisa... [O analista pergunta: que outra coisa? Ela fica em
silêncio um instante e continua:]... tinha uma expressão de tara, pensei que ele ia me
cantar, ou passar a mão, até roubar, não sei, mas foi muito inesperado...ele me deu
um soco. Caí no chão, tonta, meu óculos quebrou, tive um corte perto do olho,
quando eu levantei não vi mais ele. Fiquei muito nervosa, me senti violentada, fiquei
muito mal, perdi meu chão. Por que esse monstro fez isso comigo?”
P. vem para análise com dificuldade e fala da infância e do pai, de quem sempre teve muito
medo, que batia muito nela, na mãe e nos irmãos:
Não suportava apanhar e meu pai batia por qualquer motivo. Ele dizia que quem
corresse ia apanhar mais. Eu não corria, ficava esperando ele bater; minha irmã não,
corria, botava o travesseiro na frente, agarrava o chicote que ele usava. Acho que ela
apanhava menos. Meu pai batia por ignorância, ele não era um monstro, ele teve uma
vida sofrida, sem estudo. Ele não era um monstro, era ele que cuidava, levava a
gente no médico, dava remédio, amparava a gente.
Ainda nas primeiras entrevistas, a paciente ao chegar caminha devagar, senta-se, começa a
falar e logo depois a chorar. Nesse dia seu ônibus tinha passado perto de uma grande
movimentação de pessoas e policiais, o que a deixou nervosa. Ela lembra então, que no dia da
agressão, antes de saltar do ônibus também viu policiais na rua. Lentamente sua respiração
começa a ficar mais rápida, ofegante e contrai os braços próximo do estômago, abaixo dos seios.
Ela pede água. O analista busca a água: ela abre os olhos, pega a água e toma meio comprimido de
Clonazepan (prescrição para emergências). Devolve o copo, e volta para posição anterior:
respiração ofegante, braços contraídos próximos do estômago, olhos fechados e cabeça voltada
para cima. Sua respiração então acelera ainda mais, seus braços, pernas e cabeça começam a
tremer muito, num crescendo gradual. O analista, diante da cena, decide pedir para ela abrir os
olhos. Como não é atendido volta a pedir e aumenta o volume: Abra os olhos! Ainda sem ser
atendido e vendo que a respiração acelerada e os tremores continuam, o analista aumenta ainda
mais o volume e tenta imprimir um tom de autoridade, ordenando: “abra os olhos!” Assim a
paciente abre os olhos e gradualmente restabelece a respiração normal, os tremores diminuem até
cessarem e a sessão é encerrada. O Analista agiu intuitivamente, ao ver a paciente com seus olhos
muito cerrados, na tentativa de um corte, que restabelecesse o ritmo de sua respiração. A paciente
reproduziu dentro da sessão alguns dos supostos sintomas que ela já havia descrito em outras
sessões e que nos últimos anos a tem incomodado com alguma frequência. Pensamos aqui na
hipótese da conversão histérica quando algo do recalcado retorna no corpo. Nos questionamos
também se o ocorrido é um sinal da função sintomal e transferencial das entrevistas preliminares,
pois depois desse evento sua produção em análise se intensifica.
Na sessão seguinte ela diz:
Tem uma coisa que eu preciso falar... quando eu tinha uns 5 anos, eu e minha irmã
moramos um tempo com minha avó. Ela tinha um vizinho, conhecido dela, que
atraia a gente para casa dele com doces, biscoito e banana. Ele me colocava no seu
colo, me bolinava pondo a mão dentro da minha calcinha e lambia minha boca. Até
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hoje eu lembro a expressão de tara dele. Isso me afetou muito, eu só fui ter meu
primeiro namorado com 17 anos, mas eu não gostava das carícias, sentia nojo, só fui
gostar de beijar com mais de 35 anos de idade.
Colette Soler , no texto Trauma e Fantasia, afirma que: “nenhum encontro, por mais brutal
que seja, não poderia ser traumático sem a participação subjetiva do sujeito... Não basta que
alguma coisa lhe caia em cima para que uma marca indelével se inscreva para sempre” (p.56). Ao
ouvir a paciente em questão pensamos sobre sua participação no acaso traumático de que foi
vítima e nos deparamos com a fantasia histérica. Fantasia que sempre aponta para o recalque e o
desejo inconsciente, e que aqui, parece apontar para dois homens: o pai, não monstro, que pela
denegação é comparado ao agressor atual, e também o conhecido da avó que a bolinou várias
vezes, quando ela voltada para encontrá-lo por conta própria, e que também vai ser associado ao
seu agressor pelo significante (des) conhecido, assim como pela sua expressão de tara.
No artigo Uma Criança é Espancada (1917), Freud nos aponta que o complexo parental e a
fantasia que sustenta o desejo têm como centro a relação com o pai e a culpa resultante deste amor
incestuoso. Freud descreve 3 tempos nos quais a fantasia constrói seu enunciado: o pai espanca a
criança (detestada por mim); sou espancado pelo pai e uma criança é espancada. Sendo que ser
espancado pelo pai (segundo tempo da fantasia) significa para a menina, ser destituída do amor
paterno e também, paradoxalmente, ser a eleita desse amor. Lacan comenta o texto de Freud
dizendo: “essa fantasia reconstruída [pelo paciente] pode indicar o retorno do desejo edipiano na
menina, o de ser objeto do desejo do pai, com o que isso comporta de culpa, exigindo que ela seja
espancada” (1999, p. 247). O pai me ama torna-se o pai me bate’, o amor incestuoso se mantém
velado e a punição que ela merece é infligida: o espancamento. Os 2 primeiros tempos da fantasia
constituem então a expressão da ligação edipiana da menina com seu pai.
Freud frisa que o segundo tempo da fantasia: sou espancada pelo pai, é um tempo
reconstruído pelo paciente em análise, pois nunca aparece na lembrança. No caso em questão
temos uma particularidade: aqui o espancamento não é uma reconstrução em análise, temos uma
lembrança genuína que atravessa a história da paciente e seus irmãos, e que nos faz levantar a
hipótese de que o ato bater se confunde inconscientemente com o ato sexual propriamente dito e
consequentemente com todo o inassimilável presente no real do sexo, onde um soco faz P. se
sentir violentada.
Lacan nos lembra que é através do sexo que o trauma é introduzido na teoria freudiana como
o inassimilável, e aquilo que a fantasia traz em si é exatamente a possibilidade do sujeito evitar a
confrontação direta com esse real: sexo. A fantasia, nos alerta Soler, “supõem toda a economia
significante e que, no fundo, ela é o segredo da homeostase do sujeito, o segredo, diz Lacan, de
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seu ‘chão’ (2004, p. 55)”. E não é coincidência a paciente dizer que perdeu o chão, justo depois
de ser tocada e atirada ao chão pelo soco de um homem que ela olhou e pelo qual se viu olhada
com uma expressão de tara.
A história de vida de P. ela pode falar muito disso na análise, traz muitos exemplos de
concessão ao amor não erotizado. Entre eles: todos os namoros sem sexo, a perda dolorosa da
virgindade aos 46 anos de idade quando se casou, a doação de 13 anos de sua vida ao trabalho
missionário, religioso, longe da família. Quando retorna doa-se cuidando maternalmente dos
familiares, em especial, do irmão 10 anos mais novo. Cabe colocar que o marido de P. também é
10 anos mais novo que ela, e que ele sente muito ciúmes dela com esse irmão.
Nos deparamos com fatos que apontam para uma clivagem entre amor e sexo, e colocamos
em questão o motivo de tanta concessão ao amor sublime e não ao sexual? Jorge nos auxilia
quando afirma que a histérica apresenta um embargo da fantasia e do gozo fálico, problematizando
a questão do feminino do Outro sexo (da sexualidade) e produzindo um substituto para a
impossibilidade da relação sexual – o amor (1988, p. 186). Amor que fica posicionado no lugar do
sentido, na interseção entre simbólico e imaginário, tentando evitar a angústia do real. Nos parece
que muitas vezes resta a histérica o amor, que segundo Lacan, é o que vem em suplência à
inexistência da relação sexual. É através do amor que a histérica pode tentar dar algum sentido
àquilo que não possui sentido nenhum, o real em jogo no sexo.
No relato de nossa paciente o amor parece conseguir a produção de algum sentido até um
determinado ponto, antes da agressão. A repetição da vida acaba por acertá-la com um soco
sexual, levando-a de alguma forma ao reencontro com um gozo perdido. Um modo de gozo do
sujeito em relação ao Outro. Gozo que a paciente, movida pela transferência, traz para a sessão de
análise, como algo no corpo, como as pacientes de Freud o faziam, e que como ele percebemos
que a etiologia aponta para o sexual.
Formulamos então a hipótese que, através da condensação e do deslocamento de
significantes, o ato inesperado do monstro agressor, com sua expressão de tara, une de forma
ímpar, dois atos e duas figuras masculinas que estão na base desse gozo: o ato (de bater) sempre
esperado do pai, não monstro agressor e cuidador, e o ato procurado do conhecido da avó (a
bolinação). Atos estes que são reatualizados com o soco do estranho, e que por sua vez lança a
paciente literalmente ao chão, desestruturando seu chão e tocando sua fantasia. Essa reedição,
claro, não acontece sem consequências, e a análise agora possibilita a implicação do sujeito e os
primeiros sinais da retificação subjetiva, quando ela se pergunta: “Porque eu não corria, se quem
corria apanhava menos? Porque minha irmã pegava os doces e fugia do conhecido de vovó, e eu
não?”.
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