INTRODUÇÃO Os desafios colocados pelo contexto de justificação pós-metafísico nas sociedades modernas, caracterizadas pelo pluralismo de estilos de vida pessoais e de formas de vida culturais – consequentemente, por conflitos de interesses e de concepções do bem concorrentes e, até mesmo, irreconciliáveis entre si –, estão na raiz de muitos debates, reflexões e formulações teóricas da filosofia política contemporânea. As teorias de Rawls e Habermas não fogem à regra e podem ser consideradas das mais importantes, a julgar pela quantidade praticamente inabarcável de comentários e objeções que lhes são feitas. De modo geral, existe uma tendência a considerar esses autores como defensores de um projeto comum de refundamentação de uma concepção liberal-igualitária de cidadania democrática. E não é por menos. Ambos compartilham o propósito de procurar estabelecer as condições pelas quais os próprios cidadãos, como pessoas morais, livres e iguais, podem chegar a um ponto de acordo sobre os fundamentos normativos da comunidade político-jurídica a que pertencem. Nisto seguem uma das preocupações fundamentais da filosofia prática moderna, a saber, a de procurar assentar esses fundamentos no consentimento público racional de todos os cidadãos. A ideia é que o problema da integração social e da justificação das normas e princípios que devem regular a vida em comum deve ficar submetido às exigências da legitimidade racional moderna, segundo as quais é legítima aquela normatividade que puder ser reconhecida por todos os cidadãos no uso público de sua razão. O princípio de legitimidade reside na razão pública, que é entendida tanto por Rawls quanto por Habermas como sendo a expressão política do conceito kantiano de autonomia interpretado interssubjetivamente: os cidadãos atuam de modo autônomo quando se submetem àquelas leis que poderiam ser aceitas, com boas razões, por todos os atingidos sobre a base de um uso público de sua razão.1 Todavia, esse ponto de acordo deixa ainda em aberto um bom número de divergências quanto às características procedimentais e ao conteúdo do con 1 Ver “Conferência IV – A idéia de um consenso sobreposto”, em Rawls (2000); e Habermas (1995). 11 Denílson Luís Werle ceito de razão prática mais adequado para reconstruir o ponto de vista moral imparcial e, portanto, sobre qual a melhor concepção de razão prática capaz de conciliar moral, política e direito nas práticas e no procedimento de legitimação democrática, sem sobrepor uma dimensão à outra. Como conseguir formular uma concepção de razão pública capaz de respeitar simultaneamente a autonomia privada dos indivíduos e a autonomia pública dos cidadãos, os direitos humanos fundamentais e a soberania popular, o vínculo interno entre Estado de direito (ou o império da lei) e a democracia? Qual instância deve servir de base pública para a justificação da normatividade: a eticidade imanente aos ideais implícitos nas instituições e na cultura política pública comum das democracias constitucionais modernas ou a construção de um procedimento de teste que possibilite a avaliação dos conflitos práticos a partir de um ponto de vista moral imparcial, que sirva de padrão posto contrafaticamente à realidade política?2 Para realizar a mediação entre o universalismo moral dos princípios de justiça e o particularismo dos valores da eticidade concreta de uma determinada tradição político-jurídica, a razão prática deve ater-se somente aos “procedimentos” de argumentação racional ou deve apoiar-se também em considerações normativas substantivas, às quais não poderia se esquivar? Nestas questões está em jogo o próprio ethos da democracia: o modo pelo qual os cidadãos se autocompreendem e se reconhecem mutuamente como membros livres e iguais da comunidade política. Particularmente, estão em questão as condições de possibilidade de uma “justificação pública” das normas e valores no contexto de sociedades sujeitas ao fact of pluralism, que não podem mais se apoiar em uma única concepção abrangente do bem comum, ou sobre a eticidade tradicional que penetre a sociedade como um todo (Forst, 1996, p. 144). Esta característica de um contexto de justificação pós-metafísico, próprio da autocompreensão normativa das sociedades modernas, influi também de modo decisivo no estoque dos recursos racionais disponíveis pra fundamentar a moral, a política e o direito. Tanto Rawls quanto Habermas reconhecem que “a capacidade da filosofia pronunciar-se sobre as questões da racionalidade prática vê-se limitada pelo caráter finito e falibilista da razão, certamente reduzida em sua capacidade para ordenar ou buscar sintonizar a pluralidade de suas vozes, para parafrasear uma expressão habermasiana” (Vallespín, 1998, p. 13). 2 Vallespín (1998, p. 12). Trata-se de uma introdução à publicação espanhola dos textos do debate entre Rawls e Habermas promovido pelo editor do The Journal of Philosophy, XCII, n. 3, mar, 1995, acrescido do texto de Habermas “Vernunft versus Wahrheit – oder die Moral der Weltbilder”, publicado em Habermas (1996). 12 Justiça e Democracia – Ensaios sobre John Rawls e Jürgen Habermas As respostas que Rawls e Habermas oferecem a essas questões apresentam pontos de vista normativos semelhantes, de modo que Habermas chega a afirmar que suas divergências acerca do empreendimento de justificação apresentado por Rawls “permanecem dentro das limitadas fronteiras de uma disputa familiar” (Habermas e Rawls, 1998, p. 42). Ambos defendem os elementos procedimentais3 de uma moralidade política fundamentada no princípio da neutralidade de justificação do Estado democrático de direito e na primazia da justiça em face das questões éticas do bem comum. E ambos acreditam também que, com seus modelos deliberativos de justificação racional da normatividade democrática, conseguem superar a clássica controvérsia entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos” ou, em outros termos, entre a tradição liberal associada a Locke, com ênfase em alguns direitos fundamentais (principalmente os direitos civis), na dimensão “negativa” da liberdade e na autonomia privada, e a tradição democrática republicana associada a Rousseau, que privilegia a soberania popular, as liberdades políticas iguais (a dimensão “positiva” da liberdade) e a autonomia pública dos cidadãos. No entanto, é também nestas respostas semelhantes que aparecem as divergências mais profundas entre Rawls e Habermas quanto à forma de interpretar interssubjetivamente o conceito de autonomia e de entender a tradução desse conceito no plano político-jurídico, vale dizer, no vínculo entre o rule of law e a democracia deliberativa. O argumento que perpassa os ensaios aqui reunidos é que Rawls e Habermas colocam a razão pública ou uso público da razão como instância privilegiada de articulação e mediação entre os elementos procedimentais da operacionalização do moral point of view e os valores substantivos, práticas e procedimentos institucionais da eticidade concreta das democracias constitucionais realmente existentes. Mas, claro, embora seja uma disputa familiar – pelo menos para Habermas –, cada um tem um modo próprio de entender a articulação entre moral, política e direito. Acredito que a questão que se coloca no cerne das divergências entre Rawls e Habermas é a de saber quais as concepções de filosofia e de razão prática mais apropriadas para articular as pretensões universalistas da teoria moral e o quadro particularista e mais restrito 3 Mas, no caso de Rawls, não exclusivamente (como veremos adiante). Para Rawls, a justiça procedimental não é suficiente para preencher a tarefa prática da filosofia política, que é a de fornecer também princípios substantivos de justiça para regular a estrutura básica da sociedade. Para Rawls, elementos substantivos (o conceito de pessoa moral e os bens primários, por exemplo) têm de estar incorporados ao procedimento: a questão pertinente é saber como essa incorporação pode ser justificada. 13 Denílson Luís Werle dos valores e avaliações fortes de uma comunidade política concreta, situado num espaço social e tempo históricos específicos. Esse tema não apenas permite compreender as diferenças e semelhanças entre Rawls e Habermas, mas também ver as próprias mudanças no interior da obra de cada autor. No caso de Rawls, isso fica mais evidente. Nos textos mais recentes, Rawls denomina a sua teoria como “liberalismo político”, qualificandoa como uma concepção pública e política da justiça. A escolha desses termos não é arbitrária, mas tem o propósito de: distanciar o liberalismo político de outras versões da moralidade política liberal, tanto clássicas (como os liberalismos éticos de Mill e Kant) quanto contemporâneas (como o liberalismo perfeccionista de Raz e o liberalismo igualitarista de Dworkin); tentar corrigir alguns problemas internos à justiça como equidade: o suposto déficit de realidade da descrição das condições de estabilidade de uma sociedade bem ordenada e a não separação entre a justiça como equidade e as demais doutrinas morais abrangentes (cf. a introdução de Rawls, 2000); e defender sua teoria das objeções comunitaristas de que a justiça como equidade permanece cega diante das particularidades das pessoas e da diversidade de formas de vida culturais, dos valores, da tradição e do bem comum da eticidade democrática realmente existente. Para fazer face a essas objeções, Rawls insiste na defesa das principais ideias da moralidade política liberal. A despeito das modificações, Rawls continua a identificar a primazia da justiça diante do bem comum e o valor da neutralidade do Estado diante de concepções do bem distintas como sendo os traços essenciais de uma concepção política da justiça. Essa é a única maneira de, segundo Rawls, organizar a convivência política justa e estável de sociedades onde “os cidadãos estão profundamente divididos por doutrinas morais, religiosas e filosóficas razoáveis, embora incompatíveis” (Rawls, 2000, p. 33). O pluralismo razoável, como característica permanente da cultura política pública democrática, se converte no pano de fundo que justifica a aposta na neutralidade. Mas trata-se de uma aposta que se restringe ao campo do político, sem contudo excluir as pretensões morais da teoria.4 O desafio que se coloca para uma concepção política e pública da justiça como a de Rawls é o de encontrar uma base comum de justificação entre doutrinas abrangentes razoáveis que preencha, ao mesmo tempo, tanto 4 O domínio do político refere-se tanto ao objeto da teoria da justiça – a estrutura básica da sociedade – quanto às questões – os fundamentos constitucionais e as questões de justiça básica – e ao modo de justificação – a teoria restringe-se aos valores político-morais, em oposição à metafísica e aos princípios verdadeiros (Vallespín, 1998, p. 17). 14 Justiça e Democracia – Ensaios sobre John Rawls e Jürgen Habermas as condições de aceitabilidade racional quanto as condições de aceitação fática. Nesse sentido, por um lado, a base comum de justificação pública e de formação do acordo sobre questões políticas fundamentais deve ser buscada mais além das diversas concepções do bem; por outro lado, somente podemos fazê-lo a partir de dentro das próprias concepções do bem, uma vez que os cidadãos não estão dispostos a renunciar facilmente às concepções de vida boa configuradoras de suas identidades e formas de vida cultural. Nessas circunstâncias, uma teoria da justiça conseguirá apresentar princípios que possam ser compartilhados pelos cidadãos como um fundamento comum de acordo político à medida que conseguir alcançar um ponto de equilíbrio entre as exigências de universalidade – aquilo que todos estariam dispostos a aceitar – e as exigências particulares de cada concepção abrangente do bem. Essa é a ideia que está no cerne do conceito de overlapping consensus: um acordo razoável em torno de princípios de justiça e valores políticos com os quais os cidadãos podem se identificar, mas por razões diferentes e mantendo suas diferenças de crenças e estilos de vida. Para preencher as exigências do contexto de justificação colocado pelo pluralismo das sociedades modernas, Rawls introduz algumas modificações na forma de interpretar a justiça como equidade. Apesar de manter a dupla estratégia de justificação introduzida em Uma teoria da justiça – o “artifício de representação” da posição original de deliberação sob o véu de ignorância e o recurso ao método do “equilíbrio reflexivo” –, nas últimas formulações sua teoria se inclina mais favoravelmente para o método do equilíbrio reflexivo e a justificação pública (ou o uso público da razão) como instâncias privilegiadas de fundamentação de seus princípios de justiça. Como resultado, os princípios da justiça passam a ser preferencialmente justificados a partir de uma razão prática que deposita toda sua confiança nas capacidades deliberativas da pessoa moral e se propõe a reconstruir as intuições morais mais profundas e os ideais normativos da eticidade política presentes na cultura política pública e nas instituições das democracias constitucionais modernas. A aposta é que os princípios da justiça como equidade e esses ideais intuitivos podem ser equilibrados de forma coerente. Para isso, Rawls aposta que a concepção de justiça como equidade passaria no teste de razoabilidade sugerido pelo equilíbrio reflexivo, quando os cidadãos, mediante a formação pública do juízo, encontram um ponto de equilíbrio entre os princípios de justiça, os ideais políticos e suas convicções morais mais profundas. Nessa perspectiva, há um enfraquecimento da estratégia de justificação do tipo “transcendental” ou kantiana, predominante em Uma teoria da justiça, fundamentada na representação procedimental do ponto de vista moral im15 Denílson Luís Werle parcial na posição original, em favor do fortalecimento de uma estratégia que poderíamos qualificar, guardadas as devidas proporções, de “reconstrutivismo de tipo hegeliano hermenêutico”, ou pragmático, na qual a concepção de justiça como equidade é justificada no movimento reflexivo de ajustes e reajustes entre juízos particulares, princípios de justiça e ideais implícitos na eticidade concreta das sociedades de democracia constitucional.5 É preciso notar que se trata de uma ambiguidade na teoria de Rawls, e não o abandono unilateral de uma estratégia de justificação em favor de outra. Ainda que a distinção não seja muito clara, Rawls mantém a pretensão de aceitabilidade racional dos princípios ao lado da pretensão de sua aceitação fática. Isso porque o acordo sobre princípios de justiça não se concebe como um mero modus vivendi entre as diferentes doutrinas abrangentes, como se fosse o produto de uma negociação ou compromisso entre elas. A concepção pública e política da justiça é certamente não-metafísica, mas continua sendo uma concepção moral. Portanto, deve ser reconhecida e aceita por motivos morais – não meramente racional-estratégicos – derivados do uso público da razão. Assim, todo princípio, norma ou valor que aspira a uma validade geral deve submeter-se à prova da interssubjetividade: a força vinculante deve se apoiar em razões que todos poderiam aceitar ou, pelo menos, ninguém poderia razoavelmente rejeitar. Nesse sentido, a razão prática está, por assim dizer, parafraseando Habermas, inscrita no próprio espaço público de seu uso. O que confere validade e objetividade às convicções políticas é a perspectiva compartilhada do uso público da razão. O procedimento do uso público da razão é a instância privilegiada para assegurar a validade das afirmações normativas, bem como para gerar a sua aceitação. Assim, mantém-se nos textos de Rawls o duplo movimento de justificação: a concepção de justiça deve ser aceita não apenas por ser aquela que, após o juízo bem ponderado na reflexão pública, os cidadãos de fato compartilham nas sociedades democráticas, mas também por ser aquela que os cidadãos devem aceitar ao pretenderem realizar o ideal político da autodeterminação e se autogovernarem de forma justa e democrática. Assim, a reconstrução, proposta por Rawls, das intuições morais e ideias intuitivas, que estão subjacentes aos princípios de justiça, não tem apenas um valor descritivo para a cultura democrática liberal, mas tem também uma pretensão universa 5 São vários os textos de Rawls que ilustram essa guinada hegeliano-pragmatista de Rawls. Mas o texto que me parece mais significativo é “Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica” (Rawls, 1992) Uma boa síntese dessa mudança na posição de Rawls encontra-se em Ferrara (1999). 16 Justiça e Democracia – Ensaios sobre John Rawls e Jürgen Habermas lista, derivada da própria razão prática.6 Se não fosse essa ambiguidade, como a teoria da justiça poderia exercer sua função crítica, não se limitando a ser uma sistematização racional do existente? É evidente que essa tensão no procedimento de justificação abre os flancos para diversas críticas e mal-entendidos acerca da teoria de Rawls. Qual é, afinal, o critério de razoabilidade da razão pública: a posição original ou o método do equilíbrio reflexivo? Quais os limites da apresentação e discussão das diferentes concepções do bem? O uso público da razão somente intervém uma vez que os princípios de justiça já tenham sido propostos ou escolhidos na posição original, cabendo aos cidadãos referir-se a eles na formação do juízo político e discutir sua aplicação adequada, ou a razão pública funciona também como contexto de descoberta das razões que justificam os próprios princípios de justiça? Se escolhermos a primeira opção, a construção do ponto de vista moral imparcial (a posição original) determina a justiça dos resultados das deliberações públicas: a argumentação moral é independente das deliberações políticas e fornece um critério substantivo para julgar os procedimentos e os resultados das deliberações políticas. A questão aqui é saber, então, qual o espaço para o debate de questões éticas, de “avaliação forte”, no dizer de Charles Taylor, em uma esfera pública sujeita às restrições da moral. Se optarmos pela segunda, a razão pública desempenha um papel mais dinâmico e inclusivo, promovendo uma ponderação reflexiva e crítica entre a argumentação moral e as deliberações ético-políticas. Nesse último sentido, a justificação reflete as condições sempre obscuras e imperfeitas da deliberação pública em uma sociedade democrática. O risco aqui é perder a dimensão da aceitabilidade racional no torvelinho das deliberações políticas, perpassadas por conflitos de interesses e relações de poder. Essa ambiguidade do procedimento de justificação pública sugerido por Rawls coloca algumas dificuldades para compreender como os próprios cidadãos, no uso público de sua razão, podem apaziguar as tensões sociais decorrentes dos dilemas entre universalismo versus contextualismo, liberdade versus igualdade, autonomia pública versus autonomia privada. É nesses pontos que incide a crítica de Habermas ao liberalismo político de Rawls.7 Para acentuar 6 7 Segundo Rawls, seu procedimento de justificação “sintetiza todos os requisitos da razão prática e mostra como os princípios de justiça resultam dos princípios da razão prática conjugados com as concepções de sociedade e pessoa, também elas idéias da razão prática” (Rawls, 2000, p. 134). Certamente, não poderei, por uma questão de espaço, detalhar aqui todos os meandros da crítica de Habermas – que se dirige para a forma da posição original, o caráter ambíguo do overlapping consensus no procedimento de justificação, a distinção pouco clara entre aceita- 17 Denílson Luís Werle sua diferença e semelhança com Rawls, Habermas qualifica sua teoria discursiva do direito e a concepção procedimental da democracia como sendo um republicanismo kantiano. A partir dessa qualificação, pode-se, em síntese, dividir o procedimento de justificação proposto por Habermas em dois momentos. Em primeiro lugar, seu objetivo consiste em reconstruir interssubjetivamente, a partir dos pressupostos pragmáticos da ação e liberdade comunicativas, uma versão universalista, formal, cognitivista e procedimental do ponto de vista moral imparcial implícito no conceito kantiano de autonomia. Habermas condensa essas qualidades no princípio do discurso, segundo o qual somente são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais (Habermas, 1997, v. I, p. 142). Num segundo momento, valendo-se dos recursos disponíveis nas teorias sociológicas da democracia e do direito, o princípio do discurso é traduzido por Habermas para as condições do procedimento de legitimação próprio da democracia deliberativa, segundo o qual os próprios cidadãos membros de uma comunidade jurídica concreta podem chegar, no uso público de sua razão, a uma autocompreensão de si mesmos a propósito das bases normativas de sua vida em comum. Um aspecto importante da teoria de Habermas, que o diferencia de Rawls, é a tentativa de procurar combinar, no conceito de política deliberativa e de uso público da razão, diferentes dimensões da razão prática: a moral, a ética e a pragmática (Habermas, 1991). Essas dimensões teriam de ser articuladas pelos próprios cidadãos nos procedimentos institucionalizados e práticas informais de discussão e deliberações públicas reais, conduzidas num espaço interssubjetivamente compartilhado.8 Isso implica que as deliberações políticas escapam da disciplina que lhes poderia ser imposta por uma única dimensão da razão prática, seja a dimensão moral, preocupada com a resolução de questões de justiça que dizem respeito a todos e exigem um reconhecimento universal, seja a dimensão ética, voltada para as avaliações fortes sobre a vida boa e a identidade 8 bilidade racional e aceitação de fato, e a relação entre autonomia pública e privada, ao papel do filósofo, e assim por diante – e nem a pertinente e longa réplica de Rawls. Estas questões e outras serão abordadas no decorrer do livro. Ao contrário do que pretende Rawls, Habermas argumenta que a tarefa do filósofo político não é formular, justificar e propor princípios substantivos de justiça – isso seria uma tarefa que caberia aos próprios cidadãos –, mas sim a de se limitar a esclarecer o ponto de vista moral imparcial e o procedimento democrático, concentrando-se na reconstrução das condições de possibilidade dos discursos práticos e na análise dos aspectos informais e institucionais de realização desses discursos práticos e dos acordos racionais. Habermas (1995). 18 Justiça e Democracia – Ensaios sobre John Rawls e Jürgen Habermas dos membros de uma comunidade concreta de valores, seja ainda a dimensão pragmática, direcionada para a realização instrumental e estratégica de interesses individuais ou de grupos.9 Com a ênfase colocada nos procedimentos de deliberação pública, um dos problemas que Habermas quer evitar é o de uma exclusiva determinação moral substantiva da política. Para evitá-la, Habermas reconstrói um princípio que ainda seria neutro quanto à moral, à política e ao direito: o princípio do discurso.10 Esse princípio fornece um critério procedimental para avaliar a realização das deliberações políticas e expressa a versão habermasiana de uma tese cara à moralidade política liberal: a prioridade da justiça sobre o bem e a neutralidade do Estado democrático de direito. Mas diferente dos liberais, como Rawls, o princípio do discurso remete à reformulação interssubjetiva e procedimental do conceito kantiano de autonomia, e como tal não dá nenhuma orientação de conteúdo, mas somente fornece um procedimento que permite pensar como pode ser assegurada a imparcialidade na formação do juízo. “É só com esse proceduralismo”, diz Habermas, “que a ética do discurso se distingue de outras éticas cognitivistas, universalistas e formalistas, tais como a teoria da justiça de Rawls [...]. O princípio da ética do discurso proíbe que, em nome de uma autoridade filosófica, se privilegiem e se fixem de uma vez por todas numa teoria moral determinados conteúdos normativos (por exemplo, determinados princípios de justiça distributiva)” (Habermas, 1989, p. 149). Um segundo aspecto da teoria de Habermas, que o diferencia de Rawls, vê a necessidade de pensar o problema da institucionalização jurídica do princípio do discurso encarregado de introduzir o ponto de vista da imparcialidade nos processos de formação da opinião pública e da vontade política. Habermas procura situar o princípio do discurso, do ponto de vista de uma teoria crítica da sociedade desdobrada em dois níveis (mundo da vida e sistema), no contexto próprio das sociedades modernas, caracterizadas não apenas pelo fato do pluralismo e pela perda da eticidade tradicional capaz de vincular a todos, 9 10 Essa separação analítica entre as dimensões da razão prática é duramente criticada por Thomas McCarthy (1992 e 1998). A réplica de Habermas encontra-se também na coletânea organizada por Rosenfeld e Arato (1998). A fundamentação do princípio do discurso, sua diferenciação com a moral e seu desdobramento no princípio da democracia encontra-se na reconstrução que Habermas propõe do sistema de direitos da cidadania democrática, destacando o vínculo interno entre o Estado de direito e a democracia deliberativa, direitos humanos e soberania popular, autonomia privada e autonomia pública, feita no capítulo III de Habermas (1997, v. I). Essa reconstrução será analisada mais adiante, na Parte II. 19 Denílson Luís Werle mas também pela crescente autonomização dos sistemas econômico e político-administrativo, cujas lógicas de integração reificante ameaçam colonizar a infraestrutura comunicativa do mundo da vida. Da perspectiva de uma teoria crítica das sociedades modernas, para pensar de forma realista o vínculo entre moral e política Habermas vê no direito, a despeito de sua dupla face de Janus, de coerção sistêmica e de liberdade, a única forma viável de traduzir, nas práticas sociais e nas instituições da sociedade, seu princípio de legitimidade democrática apoiado no princípio do discurso e nas dimensões da esfera pública e da sociedade civil. O medium do direito permite transmitir as experiências interssubjetivas de reconhecimento recíproco, próprias da ação comunicativa e do uso público da razão (o discurso prático) na sociedade civil e na esfera pública, para o contexto mais amplo de sociedade constituída por pessoas integradas sistemicamente (e estranhas entre si) por meio do mercado e do Estado. A mediação institucional e o suporte sociológico dados pela dinâmica de uma sociedade civil atuante e uma esfera pública ampla e inclusiva se convertem em pressupostos necessários para o uso público da razão entre cidadãos livres e iguais. Assim, a teoria da justiça proposta por Habermas está impregnada por indagações sociológicas e de filosofia do direito que vão mais além dos objetivos sugeridos pela obra rawlsiana (Vallespín, 1997). Claro, podemos perguntar em que medida não há, em Habermas, sob a pretensão do “realismo” das discussões reais – reconstruídas sociologicamente em seus pressupostos e situações ideais como ponto de partida da justificação de normas – uma forma de normativismo e “idealismo” mais exigente do que aquele que se poderia reprovar em Rawls (cf. McCarthy, 1992 e 1998; Bohman, 2000). Essa questão e outras serão o assunto deste livro. Por fim, cabe dizer algo sobre a relevância dessa discussão sobre questões de filosofia política normativa. Acredito que o mérito maior reside no fato de que ela permite, assim espero, uma melhor compreensão de instâncias diferentes de avaliação crítica da realidade social e das instituições político-jurídicas das sociedades democráticas. Pelo menos, abre a possibilidade de uma compreensão mais apropriada dos fundamentos normativos da democracia e, a partir disso, das potencialidades e obstáculos para conseguirmos efetivamente uma maior congruência entre princípios, instituições e deliberações políticas. Além disso, permite uma reflexão acerca dos limites da argumentação moral e de sua necessária conexão, porém não fusão completa, como se tratasse de um moralismo tresloucado, com as esferas da política e do direito. A questão central que se coloca para uma análise da relação entre moral e política consiste em saber como se dá a mediação entre o ideal normativo da autodeterminação política e a eticidade política e realidade 20 Justiça e Democracia – Ensaios sobre John Rawls e Jürgen Habermas dos conflitos na arena política. Tanto Rawls quanto Habermas procuram, cada um a seu modo, evitar duas posições problemáticas. Por um lado, ao recorrerem a uma fundamentação de caráter normativo, procuram evitar cair no normativismo abstrato de uma crítica irrealista, numa espécie de oposição platônica entre ideia e realidade, segundo a qual a realidade da política deveria espelhar a universalidade do mundo ideal. Em outros termos, procuram contornar uma excessiva moralização da política. Por outro lado, ao reconstruir as práticas, a cultural política pública e as instituições político-jurídicas do Estado democrático de direito (ou do rule of law), no sentido de mostrar que o “dever ser” da justiça e da moral já se encontra inscrito, ainda que parcialmente, no “ser” da eticidade política das sociedades democráticas, o risco a ser evitado é o de uma posição realista acrítica, para não dizer cínica, conservadora do estado de coisas vigente. Ou seja, procuram evitar uma excessiva politização da moral. A idéia central que orienta nossa interpretação é que a ideia de razão pública, ou do uso público da razão, é pensada, em ambos os autores, como forma de mediação entre a moral (ou princípios de justiça) e as deliberações políticas. Como tal, a ideia de um uso público da razão é o ponto privilegiado para examinar as diferenças e semelhanças em suas teorias da justificação da normatividade, bem como para avaliar suas virtudes e fraquezas na solução dos dilemas presentes nas sociedades modernas complexas e plurais. Tal comparação nos possibilita uma discussão ampliada dos caminhos possíveis da democratização e das questões de fundamentação normativa da democracia no contexto das sociedades modernas complexas e plurais, a saber, universalismo e contextualismo, indivíduo e comunidade, justiça e solidariedade, direitos fundamentais e bem comum, autonomia privada e autonomia pública, direitos humanos e soberania popular. Tendo isso em mente, o desenvolvimento do livro está circunscrito a três partes. Na Parte I, trata-se de reconstituir os passos argumentativos mais significativos no desenvolvimento e nas mudanças da posição de John Rawls quanto ao status moral da justiça como equidade e do papel da razão pública em sua justificação. Na Parte II, trata-se de analisar como Habermas estabelece a relação entre moral, política e direito a partir de sua concepção procedimental da democracia e da política deliberativas. Na Parte III, a partir de uma concepção deliberativa de democracia, o objetivo é discutir uma questão mais específica que está no cerne do debate contemporâneo sobre relação moral, política e direito, a saber, os sentidos da tolerância e o problema de como estabelecer seus limites. 21