NATUREZA COMO MERCADORIA: A CRIAÇÃO DE RPPN’S COMO UMA FACE DA
REVALORIZAÇÃO CONSERVADORA DO RURAL. UM ESTUDO DE CASO DO VALE
DO SÃO JOÃO, RJ.
Nágela Gonçalves – Universidade Federal Fluminense
[email protected]
RESUMO: Este artigo tem por finalidade discutir o processo de criação e proliferação de Reservas
Particulares de Patrimônio Natural no Vale do São João, no estado do Rio de Janeiro. Para a
realização de tal tarefa, partimos de uma reflexão acerca da história do pensamento ecológico e do
processo de criação de Unidades de Conservação. Relacionamos a questão ecológica ao processo de
revalorização conservadora do espaço rural, o qual vem alimentando os debates acerca da
emergência de um “Novo Mundo Rural”. A seguir, desenvolvemos este apanhado teórico à luz da
dinâmica sócio - espacial da realidade estudada, buscando geograficizá-la.
Palavras-chave : Reservas Particulares do Patrimônio Natural .Vale do São João . Rural. Natureza.
ABSTRACT: This article has the purpose to approach the question of the creation and proliferation
of Private Reserves of Natural Patrimony in the Vale do São João, in the State of Rio de Janeiro.
For the accomplishment of such task, we must do a reflection concerning the history of the
ecological thinking and the creation process of Conservation Units . We relate the ecological
question to the revaluation process conservative of the agricultural space, which comes feeding the
debates concerning the emergency of a “New Agricultural World”. Then, we develop this theory
studying the social reality, trying to “geographying” it.
Key-words: Private Reserves of Natural Patrimony. Vale do São João. Agricultural. Nature.
1. Introdução
O presente artigo buscará discutir alguns aspectos contraditórios envolvendo o ambientalismo e a
recente revalorização do espaço rural. A área em estudo é o Vale do São João, no Rio de Janeiro,
região sem muita expressão até a década de 70, quando passou então a integrar o projeto de
expansão da fronteira agrícola fluminense.
No entanto, a implantação de uma Reserva Biológica na região, a REBIO de Poço das Antas,
favoreceu a criação de uma certa identidade ambiental naquela área, visto que, o Vale passou a ser
conhecido como referência na preservação de uma espécie em extinção, o mico-leão-dourado. Tal
fato incentivou a criação das Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN’s), fazendo do
Vale do São João a região com a maior concentração desta modalidade de Unidade de Conservação
no Brasil.
As Reservas Particulares do Patrimônio Natural consistem em uma categoria de unidade de
conservação, criada para possibilitar a preservação de áreas naturais em mãos de proprietários
particulares. Entretanto, algumas especificidades em sua legislação, como o direito de propriedade
perpétua e a isenção do Imposto Territorial Rural funcionam como atrativos para a sua criação. Em
vista disso, temos como objetivo analisar o processo de criação destas unidades de conservação com
o propósito de identificar os interesses envolvidos na criação de RPPNs e os impactos das mesmas
para a área em estudo.
2. Preservação da natureza ou conservação dos recursos naturais?
A idéia de se criar áreas naturais protegidas está intrinsecamente associada às transformações por
que passou o conceito de natureza e à expansão da sociedade urbano - industrial. Processo que se
iniciou nos países de capitalismo mais desenvolvido no século XIX, baseando-se no conceito de
Wilderness, ou seja, mundo selvagem (Diegues, 1996).
Podemos considerar que o desenvolvimento histórico das sociedades foi o responsável pelas
mudanças na visão das mesmas acerca da natureza. Segundo Lenoble (1990:15), a natureza é
reflexo do olhar humano, “não existe uma natureza em si, existe apenas uma natureza pensada,
uma idéia de natureza, que toma sentidos radicalmente diferentes segundo as épocas e os homens”.
No estágio primitivo das sociedades, estas atribuíam à natureza características humanas, pois as
incertezas daquela época não permitiam que a vissem como algo exterior, visto que, a reprodução
social destas populações era extremamente dependente da “vontade da natureza”. A natureza não
era concebida como uma esfera autônoma. Desta forma, foram construídos os mitos e concepções
animistas que visaram dar conta da explicação dos fenômenos que permeavam a vida dessas
populações, o que perdurou por quase toda a Antiguidade.
Entretanto,
de acordo com Camargos (1999), no século V antes de Cristo, o surgimento da
democracia e da filosofia propiciaram uma certa independência dos homens frente o mundo
natural. O pensamento de Aristóteles representou o marco de uma nova concepção de natureza, ao
atribuir uma certa autonomia aos seres naturais. Contudo, foi a Modernidade que inovou
radicalmente a idéia de natureza, atribuindo à ela um
“valor científico” por meio de seu
racionalismo. Dava-se assim, a separação homem - natureza e a atribuição funcionalista à mesma,
fundamentada pela ciência moderna e pelo modo capitalista de produção.
Em outro momento, a expansão das sociedades industriais e as mudanças no pensamento científico
e filosófico do século XIX contribuíram para uma mudança de visão acerca da natureza. Na
verdade, houve a emergência de um neomito, o ‘mito moderno da natureza intocada”, que consiste
na representação que a população urbano-industrial tem do mundo natural . Tal representação
combina elementos do pensamento empírico racional (como a idéia de existência de funções
ecológicas e sociais da natureza) com elementos míticos que reportam a idéia de paraíso perdido
sem intervenção humana. Diegues (1996) aponta três fatores que contribuíram para a construção
deste neomito:
1) A influência dos pensadores românticos, sobretudo a influência da “filosofia da
natureza alemã”, que contrastava com a “racionalidade instrumental da filosofia das
luzes”, valorizando a natureza como o lócus da descoberta da alma e da beleza;
2) O avanço da história natural (compreendida como ciência moderna) , e o respeito
que
os
naturalistas
tinham
por
áreas
naturais
não
transformadas pelo homem, vistas como habitat de espécies selvagens e objeto de
pesquisa;
3) A degradação das condições de vida nas cidades, em decorrência da expansão da
atividade industrial e de seu conseqüente adensamento populacional, que transformou os
ambientes urbanos em lugares insalubres e promíscuos, resultando numa certa
valorização do ambiente natural.
Assim, graças à combinação desses fatores, solidificou - se a proposta de se resguardar áreas
naturais das intervenções humanas, com a função tanto de permitir o lazer das populações urbanas,
quanto de reservar um fragmento de natureza que possibilitasse o seu estudo. A idéia de criar áreas
naturais protegidas surgiu na Europa século XIX . Apesar disso, a criação de parques para
proteção de áreas naturais viabilizou-se primeiramente no Estados Unidos da América, primeiro
país a obter as condições materiais necessárias a isto. Tais condições residem no seguinte: no século
XIX já havia se consolidado o capitalismo americano, assim como sua industrialização, urbanização
e expansão agrícola, e ainda assim restavam “terras vazias”.
Na verdade, essas terras consideradas vazias, compreendiam as áreas onde viviam os indígenas.
Todavia, o governo norte-americano criou os Parques Nacionais de Yellowstone (1872) e Yosemite
(1865) com o objetivo de proporcionar a recreação das populações urbanas e resguardar as belezas
naturais daqueles sítios. Este modelo de parques naturais sem presença humana fora transposto dos
EUA para o restante do mundo, sobretudo, para os países do Sul. Contudo, algumas particularidades
destas regiões, como existência de graves conflitos fundiários, expansão urbana em curso e
presença de populações consideradas “tradicionais” nas áreas com mais rica biodiversidade
entraram em conflito com o modelo de criação de parques naturais sem a presença humana. De um
lado, há aqueles que defendem que não há formas de coexistência entre estas populações (em sua
maioria, dedicadas à atividades extrativistas) e as áreas de preservação. De outro lado, estão aqueles
que acreditam que estas populações podem sim permanecer nos parques, visto que, seu modo de
vida desenvolve-se de forma harmônica com o meio.
Esta divergência de idéias e projetos existe no movimento ambientalista desde seu surgimento, onde
os debates se davam em torno das concepções preservacionistas e conservacionistas. A teoria da
conservação dos recursos teve como principal protagonista o engenheiro florestal Gifford Pinchot
, que apregoava o uso racional da natureza, dentro de uma perspectiva onde a mesma era vista
como um recurso. Estas idéias foram precursoras do que hoje denomina-se “desenvolvimento
sustentável”. Baseavam-se em três princípios fundamentais: “o uso dos recursos naturais pela
geração presente, a prevenção de desperdícios, e uso dos recursos naturais para benefício da maioria
dos cidadãos” (Diegues,1996:29).
Já a corrente preservacionista, a princípio apregoava a proteção da natureza contra o
desenvolvimento industrial e urbano, seu ideólogo expoente foi John Muir. Segundo ele, o respeito
à natureza era imprescindível dentro de uma concepção onde o homem era parte da natureza e não
teria direitos superiores aos dos animais..
Entretanto, podemos considerar que o movimento ambientalista tornou-se ainda muito mais diverso
a partir da emergência do que Diegues (1996) chamou de “novo ecologismo”. Ou seja, trata-se da
extrapolação da questão ecológica para além dos limites do debate entre cientistas naturais, onde
este tema ficou circunscrito por muitas décadas. Houve neste momento, a institucionalização e a
popularização da questão ambiental. A institucionalização deu-se por meio de sua incorporação aos
projetos dos Estados, através da criação de legislações pertinentes e órgãos exclusivos para este
fim, além do surgimento de partidos verdes. Já sua popularização ficou evidente com o rápido
crescimento das ONG’s ambientalistas e com o aumento do número de pessoas que abraçaram
esta causa.
De acordo com Binsztok (2007), a partir da década de 1960, desenvolveu-se um ambientalismo com
um enfoque mais abrangente, não permanecendo restrito a aspectos diretos como a conservação dos
recursos e o impacto causado pelo homem ao meio , mas voltando-se cada vez mais à crítica da
sociedade industrial, em seu padrão dominante identificado tanto como ecologicamente
insustentável quanto socialmente injusto. Esse novo ecologismo juntava-se às lutas por liberdade e
reconhecimento dos direitos das minorias , foi fortemente influenciado pela contracultura
e
abraçado pelo movimento hippie. Segundo Diegues (1996:39):
Esse novo ecologismo provinha de um movimento de ativistas que partiam de uma
crítica da sociedade tecnológica industrial(tanto capitalista quanto socialista),
cerceadora das liberdades individuais, homogeneizadora das culturas e , sobretudo,
destruidora da natureza.
A partir de então, começa a constituir-se um certo consenso geral acerca da existência de uma
“questão do meio ambiente”. O que foi demonstrado através da organização de conferências para
discutir este assunto, como a Conferência de Estocolmo, em 1972 e a Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que ficou conhecida como Eco - 92 . Todavia,
a diversidade e o conflito de interesses permaneceu em todos os debates envolvendo a questão
ecológica.
Hoje, fala-se de crise ambiental, insustentabilidade do modelo urbano industrial de sociedade,
desenvolvimento sustentável, tecnologias alternativas e etc. Simultaneamente a isso, desenvolve-se
um tipo de “mercado da natureza”, ou seja, recriam-se formas de permitir a reprodução do capital
utilizando-se do apelo que as questões ecológicas possuem . Isto se dá através da criação de “selos
verdes”, venda de “qualidade de vida” em produtos inacessíveis à maioria da população,
mercantilização das áreas verdes , e até mesmo “troca da dívida externa por natureza”. Segundo
Porto-Gonçalves (2006), esta troca se daria através do desenvolvimento dos chamados “mercado de
carbono” e “mercado da fotossíntese” , onde os países desenvolvidos , diante da impossibilidade de
reduzir sua “pegada ecológica”, investiriam na preservação da natureza em países do Terceiro
Mundo. Enfim, incontáveis interesses e projetos estão em disputa e buscam se impor através da
ideologia, entendida aqui de acordo com Bordieu (1998) como produto coletivo ou coletivamente
apropriado que serve a interesses particulares que tendem
a se apresentar como interesses
universais.
3. A contraditória revalorização do rural
A chamada crise ambiental, vem impactando inclusive, as relações campo - cidade. Ocorre que,
como uma resposta às crises e tensões das sociedades urbanas, tem havido uma revalorização
idealizada do espaço rural, no que ele teria de oposto ao urbano: como uma paisagem menos
artificializada e uma “natureza intocada”. Nesta perspectiva, o campo passa a ser visto como o
lócus da qualidade de vida e proporcionador de um modo de vida mais natural e saudável a poucos
privilegiados. Portanto, não se pode considerar que este “novo ruralismo” represente uma mudança
de concepção na sociedade, que signifique um novo paradigma na relação da mesma com o meio.
Na verdade, trata-se de uma proposta elitista, que representa o senso comum das classes médias e
altas urbanas, onde o campo e a natureza são vistos de forma mercantil e fetichizada.
A vida nas cidades passou a ser alvo de inúmeras críticas em decorrência da degradação do meio
ambiente, da violência e do stress. Em decorrência disso, o contato com a natureza passou a ser
generalizadamente valorizado e incentivado, e
o campo começou
a ser reconhecido como
espaço de lazer ou opção de residência (em sua maioria de caráter secundário) para os
citadinos. Esta revalorização tomou a forma do turismo rural ou ecoturismo em várias localidades
do meio rural brasileiro, especialmente nas regiões Centro-Sul do país. Dessa forma, o rural passa a
ser integrado à vida dos urbanos como um complemento ao modelo da sociedade urbano industrial
, ou seja, como “ uma paisagem a ser consumida”( Marques, 2002).
Todavia, concordamos aqui Carneiro (2008),
para quem seria impossível
compreender este
movimento apenas como a penetração do mundo urbano-industrial no rural, pois também ocorre o
consumo pela sociedade urbana de “bens simbólicos , materiais e culturais originadas no mundo
rural”. Tal fenômeno é interpretado de formas variadas pelos pesquisadores. Muitos chegam a
defender a existência de um “Novo Rural”, apoiando-se em categorias como a de pluriatividade
(SILVA, J.G.; GROSSI, M.; CAMPANHOLA, C.), outros chegam a decretar seu fim como
conceito explicativo de uma dada realidade.
Neste sentido, estamos de acordo com Alentejano (2000), para quem estaria havendo uma espécie
de revalorização conservadora do rural, semelhante ao que aconteceu com a modernização da
agricultura. Tal processo se daria de inúmeras formas, uma delas estaria relacionada às recentes
tentativas do latifúndio de apresentar-se como defensor do meio ambiente, quando na verdade,
interessa-se por valorizar de alguma maneira as suas terras ou mantê-las intocadas mesmo diante de
pressões ou políticas de reforma agrária. São exemplos disso o
reflorestamento destinado à
captação de recursos por meio dos programas de seqüestro de carbono, as alianças feitas entre
latifundiários e governantes locais com vistas a lograr com a “ Lei do ICMS ecológico”, e em
alguns casos, a criação de RPPN´s (Camargos, 1999) . Sobre este último aspecto, importante
contribuição nos é dada por Porto-Gonçalves (2006 :394):
As Reservas Particulares do Patrimônio Natural vêm proporcionando, no Brasil,
aos grandes latifundiários legitimarem a iníqua apropriação de terras e, por
conseqüência, de águas e de biodiversidade, na medida em que não mais se
questiona o fato de grandes extensões de terras estarem sendo apropriadas de modo
privado e, assim, privando grande parte da população do acesso aos recursos
naturais.
Os aspectos expostos nos permitem considerar que algumas vezes assistimos ao uso instrumental do
discurso ambientalista com o propósito de encobrir interesses particulares de sujeitos hegemônicos
na produção do espaço. Segundo Leff (2008) vivenciamos um momento em que a problemática
ecológica é transformada em uma espécie de estratégia discursiva com o propósito de reduzir os
potencias da natureza a uma espécie de capital natural . Na realidade estudada, o Vale do São João
há indícios de que existam interesses econômicos envolvidos na criação da Reservas Particulares do
Patrimônio Natural.
4. Conservação ou conservadorismo no Vale do São João ?
Nossa área de estudo, o vale do rio São João, constitui-se em um recorte da macro - região das
Baixadas Litorâneas do estado do Rio de Janeiro. O referido vale compreende os municípios de
Silva Jardim, Casimiro de Abreu e Cabo Frio. Entretanto, esta pesquisa tem como recorte espacial
apenas os municípios de Silva Jardim e Casimiro de Abreu.
Mapa I: Divisão Regional do estado do Rio de Janeiro com a localização da área em estudo
Fonte: Fundação CIDE
Significativos estudos abordaram as transformações sócio-espacias por que passou esta região, cabe
citar Binsztok (1998) e Pereira (2006). A urbanização e industrialização intensas por que passou o
estado do Rio de Janeiro não ofuscou seus problemas de origem agrária. Ou seja, a estrutura
fundiária concentrada e a luta por terra são características marcantes do espaço agrário fluminense
ainda hoje. A literatura referente ao agro fluminense ou especificamente voltada para o estudo do
vale do São João,o identifica como uma região isolada e estagnada economicamente até
aproximadamente a década de 70 do século passado, quando passou, então, a integrar o projeto de
expansão da fronteira agrícola fluminense.
Todavia, o vale apresentava limitações de ordem natural ao empreendimento, como a existência de
uma grande extensão de áreas alagadiças, impróprias para o uso agrícola. Foi então que o Estado
interveio por meio do extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) realizando
obras de retilinização dos canais, sobretudo do rio São João, o que diminuiu a ação do impacto das
enchentes e dissecou áreas pantanosas, criando solos agricultáveis. Como conseqüência, houve a
valorização das terras na região e a grilagem das mesmas, quando situadas às margens dos canais.
Concomitantemente a isto, de acordo com Binsztok (1998), deu-se a aquisição de terras no vale por
novos proprietários, das mais diversas origens, advindos tanto da burguesia urbana quanto
provenientes do capital industrial.
A partir de então, desenvolveu-se um projeto de agricultura capitalista naquela área, que contou
com o arrendamento de significativas porções de terra a rizicultores gaúchos. Entretanto, por
diversos motivos, que não cabem ser explicados aqui, mas que foram suficientemente expostos por
Binsztok (1998), tal empreendimento faliu e o vale voltou ao quadro de isolamento e estagnação
econômica.
No entanto, a implantação de uma Reserva Biológica na região, a REBIO Poço das Antas, na
década de 70, abriu caminho para a configuração de uma nova função para aquela área. Isto porque
o vale do São João passou a ser internacionalmente conhecido como o lócus da preservação de uma
espécie animal em extinção: o mico – leão – dourado, o que permitiu que à REBIO Poço das Antas
se somassem, na preservação do mico, mais uma Reserva Biológica, a REBIO União e diversas
Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN’s), nosso objeto de pesquisa.
Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, as RPPN´s consistem em uma categoria
de unidade de conservação de uso sustentável, criada no ano de 1990, com a finalidade de
oficializar a regulamentar a criação de reservas naturais no interior de propriedades particulares.
Trata-se de uma área privada, gravada com perpetuidade, com o objetivo de conservar a diversidade
biológica, onde são permitidas apenas a pesquisa científica e a visitação com objetivos turísticos,
recreativos e educacionais. Contudo, segundo Camargos (1999), a criação de reservas naturais
privadas já era prevista desde o Código Florestal de 1934, com a denominação de Florestas
Protetoras.
O estado do Rio de Janeiro possuía até finais de 2008, quarenta RPPN´s, todas criadas em âmbito
federal, destas, onze encontravam-se no Vale do São João. Em novembro de 2008 foram averbadas
as primeiras RPPN´s estaduais em território fluminense, foram vinte homologações, destas, oito
estão localizadas no referido Vale. Por este motivo, a região abriga a maior concentração desta
categoria de unidade de conservação de todo o Brasil. Fato curioso, e que não pode ser encarado
com naturalidade, à medida que determinados aspectos da legislação referente à estas unidades de
conservação, dos quais falaremos adiante, podem ser utilizados para garantir a manutenção da
propriedade e/ou gerar recursos para os seus proprietários.
O Vale do São João tem como atividade econômica predominante a pecuária em grandes
propriedades. Muitas das vezes, o gado é usado como forma dos proprietários manterem a terra
como reserva de valor. Desde o início da década de 90, alguns proprietários vem transformando
parte de suas propriedades em RPPN´s. Na verdade, há ONGs ambientalistas atuando no local,
procurando os fazendeiros e apresentando projetos para a criação de reservas privadas. Isto explica
o motivo pelo qual estas alastraram –se rapidamente na área. As recompensas para quem transforma
sua propriedade em RPPN são várias: isenção do Imposto Territorial Rural, prioridade na obtenção
de crédito agrícola, possibilidade de aferir lucros através de atividades ligadas ao ecoturismo,
educação ambiental e projetos de preservação, e garantia de propriedade privada perpétua e
inalienável, ou seja, ter uma RPPN garante que suas terras jamais poderão ser desapropriadas para
fins de reforma agrária.
Em um campo exploratório ficamos sabendo um pouco mais sobre a forma como se deu o processo
de proliferação de RPPNs no Vale do São João. As primeiras RPPNs datam da década de 1990.
Nesta época, já havia a presença da ONG Associação- Mico- Leão- Dourado (AMLD) na região, a
mesma está sediada no interior da Reserva Biológica de Poço das Antas. Esta instituição iniciou a
produção de um banco de dados, identificando as áreas mais interessantes do ponto de vista de
mata conservada e de ocorrência de micos- leões. Feito isso, eles procuraram os proprietários e os
incentivaram a transformar suas propriedades em reservas particulares, trabalho que é feito até hoje.
Além disso, a AMLD associa-se a outras ONGs ambientalistas e arca com o financiamento, bem
como os trâmites legais para a criação da RPPN. Ou seja, ela atua como mediadora entre os órgãos
ambientais estatais e os proprietários fundiários.
Em 2007, a AMLD associou-se a outras ONGs ambientalistas para uma empreitada pioneira na
região. Ela recorreu a Saving Species , a Save the Golden Lion Tamarin , nos Estados Unidos, e ao
Comitê Nacional da UICN, na Holanda, para arrecadar recursos necessários a compra de uma área
de 100 hectares, com remanescentes florestais e pastagens de um proprietário local. Segundo eles,
trata-se de uma área estratégica que, se restaurada, permitirá ligar Reserva Biológica União às
florestas da Serra do Mar.
Ultimamente, duas
possibilidades de geração de renda com a preservação da natureza vem
causando a euforia de fazendeiros e políticos locais: o ecoturismo e a chamada “Lei do ICMS
Ecológico”. O ecoturismo vem sendo apontado como a “vocação da região” , sobretudo o turismo
nas RPPN´s. Já o “ICMS ecológico” ainda está em processo no estado Rio de Janeiro, mas já existe
em outros estados como Minas Gerais e Paraná. Segundo os governantes locais, está sendo feito o
levantamento da área total do Vale transformada em Unidade de Conservação para dar entrada na
reivindicação do repasse do ICMS, o que ainda pode ocorrer em 2009. Segundo este critério, os
municípios que possuem significativas parcelas de seu território sujeitas à restrição de uso do solo e
de atividades econômicas em função de reservas naturais, devem ser ressarcidos. O que se dá
através do repasse de recursos financeiros do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
(ICMS) a que os municípios têm direito constitucional, para as prefeituras e os proprietários das
RPPNs, proporcionalmente ao grau de restrição de uso do solo de cada município, considerando a
relação entre a área das reservas e a área total dos municípios e a categoria de manejo das Unidades
de Conservação( Camargos,1999 ; Wiedmann, 2001).
O antigo Instituto Estadual de Florestas (IEF) e atual Instituto Estadual do Ambiente (INEA) lançou
o Programa Estadual de Apoio à Criação de RPPNs. No site do referido órgão encontramos a
questão do ICMS ecológico e a possibilidade geração de renda através das RPPNs como um
chamado para a sua criação:
As RPPN permitem a isenção de Imposto Territorial Rural (ITR) para os
proprietários e o acesso a fundos de apoio à implantação e gestão, além do apoio de
instituições de conservação e pesquisa. As reservas podem representar uma fonte
geradora de emprego e renda através de atividades de educação ambiental e
ecoturismo, e também contribuir para a ampliação do conhecimento sobre a Mata
Atlântica por intermédio da observação da fauna e da flora e da pesquisa científica.
A criação de RPPNs favorece os municípios como um todo, contribuindo para
elevação do repasse do ICMS Verde para as prefeituras. (Site IEF:
http://www.ief.rj.gov.br/.Acessado em 17/11/08).
Simultaneamente a isto, vem adquirindo notoriedade atividades relacionadas ao turismo rural e
ecoturismo no Vale do São João, principalmente no interior das RPPN’s , as quais vendem a
imagem de “santuário da preservação” , atraindo as populações urbanas para “consumir natureza
naquele lugar”. Contudo, é preciso atentar para aspectos que tornam as RPPNs convenientes para os
proprietários, como a possibilidade de serem destinadas à Reserva áreas degradadas, definidas
como “destinadas à recuperação”. Concordamos com Pereira (2006:152), para quem “muitos
proprietários se interessam pela criação da reserva particular não por interesse preservacionista,
mas porque têm interesse de salvaguardar a terra da reforma agrária e lucrar em atividades de
ecoturismo.” Em folheto produzido pela AMLD para divulgar as reservas particulares, há um
fragmento que busca demonstrar que a RPPN pode ser um bom negócio. Segundo eles:
A conservação da natureza tem se tornado um grande negócio.Seguindo os
princípios do desenvolvimento sustentável, é possível agregar valor às atividades
que podem ser desenvolvidas no interior das RPPNs (pesquisa científica e
visitação pública controlada com finalidade ecoturística ) e no seu entorno
(serviços de hotelaria, restaurantes, campings e produção orgânica e agroflorestal.
(Folheto AMLD, 2007).
A pesquisa nos mostrou que o ambientalismo em curso na área estudada pode favorecer interesses
políticos e econômicos das elites locais, visto que, projeto de transformar o Vale do São João no
lócus do ecoturismo e da preservação , conta com o empenho dos proprietários fundiários e
políticos locais.
5. Considerações Finais
Estamos vivenciando um momento histórico onde há indubitavelmente, um certo consenso acerca
da existência de uma questão dita ambiental, visto que, a mesma está posta nas discussões em torno
dos projetos de desenvolvimento das sociedades. Todavia, os discursos e medidas envolvendo a
questão ambiental, ao trabalharem com a noção de
universalidade, omitem relações de poder e
interesses particulares que a permeiam.
Acreditamos que o discurso ecológico possa estar sendo utilizado para dar legitimidade a novas
formas de apropriação desigual do território no meio rural. Neste sentido, ao invés de estarmos
diante de um “Novo Rural”, assistimos à reafirmação de velho rural conservador.Configurou-se, no
Vale do São João, o que podemos chamar de “aliança conservadora” (Alentejano, 2004) entre o
IBAMA, ONG’s ambientalistas atuantes na área, e proprietários de Reservas Particulares do
Patrimônio Natural, visto que, as RPPN’s são consideradas pelo IBAMA e pela Associação Mico
Leão Dourado (AMLD) como aliadas da preservação. Creio que o debate acerca das Unidades de
Conservação careça de um olhar geográfico para que possamos conhecer a dimensão sócio –
espacial dos projetos denominados ecológicos.
Expusemos aqui, sucintamente as primeiras tentativas de entendimento de uma dinâmica espacial
que se delineia no campo brasileiro, sobretudo no Centro-sul, que associa a questão ambiental à
revalorização conservadora do rural. Contudo, reconhecemos que tal debate ainda é bastante
limitado e carece de aprofundamentos, com os quais pretendemos futuramente contribuir.
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Nágela da Silva Gonlçalves - Universidade Federal Fluminense