XII Encontro de Pós-Graduação e Pesquisa Universidade de Fortaleza 22 à 26 de Outubro de 2012 À FLOR DA PELE: O MANEJO DA TRANSFERÊNCIA NA CLÍNICA DOS FENÔMENOS PSICOSSOMÁTICOS Ingrid de Figueiredo Ventura1* (IC), Roseane Freitas Nicolau2 (PQ) 1 Universidade Federal do Pará, Belém-PA; 2 Universidade Federal do Pará Belém-PA. [email protected] Palavras-chave: Fenômeno psicossomático. Gozo. Transferência. Resumo Este trabalho discute o manejo da transferência na clínica dos fenômenos psicossomáticos, abordando a operação analítica sustentada pelo desejo do analista. O estudo partiu da escuta de uma paciente acometida por urticária, cujos sintomas não cediam com a intervenção médica. A escuta dirigida ao sujeito e possibilitada pela transferência, sustentou a fala circunscrita ao real do corpo, tornando possível uma via de abertura ao sujeito do desejo. Esta paciente apresentava dificuldade de subjetivar a sua enfermidade, apontando a fixação de um gozo específico, pois a mesma, ao sofrer, obtinha alguma satisfação do estado em que se encontrava. Após várias sessões, afirmou que algo que a marcava positivamente dizia respeito a uma possível herança paterna. A partir desse momento, a análise parece ter tido o efeito de fazê-la se servir do Nome-do-Pai, possibilitando uma amarração dos registros do Real, Simbólico e Imaginário por uma via menos mortífera. Introdução Ao falarmos em FPS, não se pode dizer que estamos diante de um sintoma conversivo. Este se manifesta como uma formação do inconsciente, pois conserva uma relação com o seu romance edípico, obedecendo, aos mecanismos de metáfora e metonímia. Dessa forma, o sintoma aparece como o retorno do recalcado, permitindo, parcialmente, uma satisfação pulsional. O FPS, em contrapartida, não obedece a essas mesmas leis e aparece como uma tentativa de satisfação que não passa pelo encadeamento simbólico, estando, segundo Lacan (1964/2008) na mesma ordem da debilidade mental e da psicose. O desafio em análise em pacientes acometidos por fenômenos psicossomáticos é como fazer emergir o sujeito alojado no dito aprisionado no gozo da doença, que busca resposta para seu sofrimento como se fosse invadido por algo que não lhe diz respeito. O endereçamento da fala do sujeito ao analista é fator preponderante na instalação da transferência, mas para que ele se implique é preciso que surja como dividido, como sujeito desejante. Se isso não ocorre, há uma dificuldade a mais na análise por não haver a produção de uma suposição de saber ao analista. A esse respeito, Lacan (1953-54/2009) formulou algumas elaborações sobre a questão do saber na transferência em análise, onde apontou a necessidade da existência de uma ignorância essencial para o seu curso, pois, enquanto o médico se coloca na posição de responder à demanda do paciente, o psicanalista deve operar como aquele que nada sabe, ou seja, como possuidor de uma ignorância douta. ISSN 1808-8457 1 Sobre a questão do saber em análise, Ornellas (2004) ressalta a ocorrência de uma subversão na relação do sujeito com o saber. O desejo do analista opera no sentido de sustentar a fala que está presa, na tentativa de levar o sujeito a fazer laço através do seu discurso. Por sua vez, o gozo promove, concomitantemente, uma inclusão e uma exclusão, pois mostra o resto da divisão do sujeito e possibilita uma inscrição que opera no lugar de causa de desejo. Lacan volta a tratar do FPS na Conferência de Genebra (1975), afirmando que, em sujeitos acometidos por essas afecções, o corpo se deixa levar para escrever algo da ordem do número, do hieróglifo, do que não pode ser lido. Não se coloca na ordem do signo e sim da assinatura. A escrita do número não faz série e por isso fica fora da cadeia significante, já que se conta um a um e não se faz um todo. Enfatiza que o FPS é um escrito no corpo, algo que foi marcado e que necessita sair da linguagem hieroglífica e ser operado na ordem da linguagem inconsciente, ou seja, é necessário partir da escrita ilegível para alcançar a palavra falada. Nicolau afirma: “Assim, no fenômeno psicossomático, o corpo escreveria uma cifra particular de gozo que vem como suporte de uma certa posição do sujeito na relação com o Outro” (2001, p. 84). Temos, então, uma cifração de gozo escrita por números, por isso não faz série e não se submete à significantização da letra. Por se inscrever como algo da ordem do número, aparece como frequência ou como uma escrita proveniente do real. Fonseca (2006) adverte que a cifra refere um sinal gráfico representado pelo zero, o que nos leva a considerar que o fenômeno não tem valor absoluto. O FPS, não tendo valor absoluto, pode direcionar para um valor relativo conferido à subjetividade do sujeito, o que significa que, a partir dessa “invasão de real, a realidade estaria referida de acordo com a cifra de gozo que a inundasse” (FONSECA, 2006, p. 107). Se o FPS é uma manifestação no real do corpo não passível de interpretação pela via do significante, qual o manejo possível pelo analista? Seria no limite entre real e simbólico que se daria um manejo da transferência na clínica desses fenômenos? Para pensarmos em uma possibilidade de manejo da transferência nessa clínica, podemos citar Lacan (1974-75) quando atribui ao significante Nome-do-Pai a função de nominação, que leva a uma redistribuição gozosa e à sua articulação ao sintoma. Szapiro (2008) pontua que, para operar sobre o FPS, pode-se trabalhar a partir do sinthome: fazendo uso da suplência, pode promover uma regulação de gozo, pois o objeto ao qual estava fixado se transforma em causa de desejo. Assim, poderá emergir um sujeito com a remissão do FPS, o que leva a um descongelamento da cadeia significante, produzindo uma dialetização do discurso. Essa operação possibilita um novo saber-fazer com o gozo. Metodologia Este trabalho é fruto da pesquisa que resultou em uma dissertação de mestrado nomeada “O manejo da transferência na clínica dos fenômenos psicossomáticos: o que pode ser enodado”, onde se investigou as especificidades no manejo da transferência com uma paciente acometida por fenômenos psicossomáticos (FPS). O método de pesquisa utilizado foi o método clínico próprio à investigação em psicanálise, que considera que verificação e tratamento coincidem (FREUD, 1912/1996), considerando que os efeitos da pesquisa em psicanálise ocorrem a partir da transferência, isto é, no só-depois da experiência analítica. A investigação ocorreu no contexto da pesquisa O Sintoma do Corpo, desenvolvida na Clínica de Psicologia da Universidade Federal do Pará, cujo objetivo era investigar os mecanismos subjetivos que engendram as manifestações sintomáticas do corpo para as quais não se encontra um referente orgânico ISSN 1808-8457 2 como justificativa. Nesta investigação, o tema da psicossomática esteve presente, pois os pacientes encaminhados para atendimento eram frequentemente assim diagnosticados. Pretende-se aqui, através de recortes de um caso atendido no âmbito da pesquisa, abordar o manejo clínico que resultou num reposicionamento do sujeito em relação ao seu sintoma, ressaltando a importância da sustentação da escuta na direção do tratamento. Destaca-se ainda a relevância da função desejo do analista na escuta desse sujeito, o qual nomearemos de Paula. Nome fictício, em obediência à lei do CNS. Essa paciente foi escolhida entre as que estavam sendo atendidas no grupo de pesquisa O Sintoma do Corpo, que teve seu projeto de pesquisa aprovado depois de submetido ao Comitê de Ética. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado pela paciente. Esta sofria de uma urticária recorrente, doença considerada pelo DSM-IV (2002) como um transtorno somatoforme. Chamada de doença psicossomática do sistema dermatológico, o mal não apresenta causas orgânicas identificáveis na história clínica e comprovadas por exames físicos ou laboratoriais. A paciente apresentava uma fala circunscrita à doença, permanecendo aprisionada ao seu adoecimento, sem alcance à dimensão subjetiva. Resultados e Discussão Diante dos resultados obtidos com os atendimentos de Paula, foi possível perceber que a paciente apresentava um corpo entregue às doenças, das quais não conseguia se desvincular. Depois de visitar diversos médicos sem identificar uma causa orgânica para as suas enfermidades, chegou ao atendimento psicológico. Este proporcionou-lhe uma escuta onde o que se ouvia era um sujeito por trás da doença, e não um corpo tomado como um pedaço de carne a ser manipulado e usado, deixando o paciente entregue ao Outro. Observamos que, diante do oferecimento da paciente à afecção, havia uma satisfação, pois, apesar de buscar pela via do tratamento psicológico apaziguar o seu sofrimento, continuava atrelada ao saber da medicina. Essa satisfação em buscar autenticação para as suas enfermidades remete à fixação a um gozo específico do FPS, como nos diz Ornellas (2004), que coloca o sujeito entregue ao gozo no campo do Outro, pois não foi capaz de simbolizar todos os significantes advindos das suas relações precoces. Esse gozo retorna sobre outros órgãos do corpo porque não permaneceu restrito às zonas erógenas em função de uma falha no recobrimento do corpo pela linguagem (NICOLAU, 2008). A fixação de gozo colocou-se como um impasse na direção a ser dada ao tratamento, já que a paciente não conseguia alcançar a esfera subjetiva, mantendo-se presa ao mal-estar corporal. Paula referiu ter algo dentro de si: “Algo que vem de fora e toma conta de mim”, como se não interferisse no mal que a incomodava. No entanto, não sabia nomear essa “coisa” que a invadia, demonstrando claramente a incidência do objeto a, como algo irrepresentável para o sujeito. Essa insistência evidenciava a gelificação da cadeia significante da paciente, mantendo presos S 1-S2 e não permitindo que o sujeito aparecesse entre um significante e outro, porque não se punha em jogo a sua afânise. Assim sendo, através desse não comparecimento, permanecia atrelada ao gozo mortífero do Outro, mas com uma possibilidade de simbolização, pois, diferentemente do que ocorre na psicose, o significante Nome-do-Pai não se encontrava foracluído, já que houve apenas uma inadvertência na sua inscrição. A paciente relatou ainda o quanto gostaria de ter uma resposta para o seu sofrimento, pois não gostava de tomar os remédios receitados pelos médicos. Diante desse fato, podemos assinalar que o saber médico, ao dar respostas e prescrições, tende a suprimir os sintomas, não tomando-os como uma via para o sujeito comparecer. Promove uma massificação dos atendimentos, por meio do uso de medicação ou pelos ISSN 1808-8457 3 diagnósticos totalizantes. Diversamente do médico, o analista busca endossar “essa fraqueza irredutível da não-resposta” (WARTEL, 1987/1990, p.15). Na tentativa de endereçar sua fala à analista, Paula enfatizou, ainda, que a função paterna fora exercida pelo avô, e que a ausência do pai biológico lhe fizera falta, visto que nunca a “deixou” e nunca a reconheceu como filha. O fato de ter sido ignorada pelo pai e de com ele não ter convivido promove uma marca nessa paciente, mas uma marca que remete a um hieróglifo, pois não é da ordem do simbólico. O que aparece é um traço no real, o qual, estando fora da linguagem, encontrará no corpo sua via de manifestação. Paula apresenta o que foi vivenciado como abandono, através do gozo específico fixado nas suas afecções. A mudança de sua posição subjetiva tornou-se mais evidente quando aprofundou sua fala em questões familiares e começou a abandonar um discurso vinculado apenas à doença, momento em que começou a ter um princípio de remissão de seus FPS. O processo iniciou-se quando apareceu o significante “viciada”, o que levou a paciente a associá-lo ao abandono sofrido pelo pai, os extremos cuidados que precisava ter com a família, especialmente com o filho caçula, para que não permanecesse abandonado pelo pai como ela havia sido. Esses cuidados, segundo ela, não eram reconhecidos pela família, evidenciando que essas considerações denotavam a sua falta de implicação com esses acontecimentos, numa posição histérica claramente queixosa e vitimizadora. Em outra sessão, Paula iniciou uma fala assegurando que a mãe nunca se preocupara muito em “ajudar os outros” e que sempre acreditara que isso era algo muito “negativo”, característica com a qual sempre resistira em se identificar. Salientou acreditar não ter herdado a solidariedade da mãe, mas sim do pai, embora fosse que não poderia afirmar com toda a certeza, visto não ter convivido com a figura paterna. Indaguei-lhe como pensava nessa possível identificação; respondeu-me tratar-se de algo “bom” que poderia ter sido transmitido por seu pai. Essas intervenções inscrevem-se como reparações através da suplência pelo Nome-do-Pai e promovem um giro no discurso e a remissão do FPS, retirando a fixação de gozo de um só ponto. Sua identificação ao pai foi fundamental para dar consistência ao nó, o que lhe permitiu inscrever algo do seu sintoma que a marcasse como sujeito. Nesse caso, como percebemos, o desejo do analista pode conduzir o paciente ao seu próprio desejo. Conclusão A partir dessas formulações, podemos considerar que, apesar de os FPS estarem presos ao registro do real do corpo, pode-se encontrar uma via para que, a partir da fala do sujeito, esses fenômenos possam se enlaçar com o inconsciente, produzindo o sujeito suposto saber em análise, para depois destituílo e dirigir uma fala ao Outro. Neste caso, como percebemos, o desejo do analista pode conduzir o paciente ao seu próprio desejo, desatrelando-o do gozo avassalador do Outro gozador, permitindo que o paciente remeta a sua fala à esfera subjetiva na busca da construção de um saber sobre a sua verdade. Esta foi a função do analista durante os atendimentos realizados, sustentando uma fala inicial fixada, por conta da holófrase, entre o primeiro par de significantes S1-S2, que impedia a paciente promover a metonímia e a metáfora, e, conseqüentemente, o comparecimento do sujeito nos inter-ditos, ou seja, nos intervalos entre os significantes da cadeia, na medida em que manifestasse formações do inconsciente e não apenas “pedaços de real” com o seu corpo. ISSN 1808-8457 4 Por isso, a psicanálise foi uma via para o sujeito comparecer. No momento em que as questões da paciente se mostraram mais evidentes e que ela começou a se implicar com as questões em análise, tentou empreender uma identificação ao pai, como uma produção de um Nome-do-Pai, de uma nominação que fosse capaz de amarrar de uma maneira mais estável o nó borromeano dos três registros, instável e fragilizado pela inadvertência ocorrida na inscrição do significante Nome-do-Pai na divisão desse sujeito. Sua identificação ao pai foi fundamental para enlaçar o nó de maneira mais estável, operando como suplência, pois lhe permitiu sair da fixação ao gozo do Outro e inscrever algo do seu sintoma que a marcasse como sujeito. Abandonou a repetição de um traço, de um hieróglifo, para falar de uma história, onde a família, composta por vários personagens importantes, entra em cena em sua associação livre, ou seja, o sujeito se remete a outra cena. No final do tratamento, Paula apresentou um sintoma analítico atrelado à sua constituição como sujeito, ao seu romance edípico, à sua divisão, que a marca como sujeito faltoso e desejante, retirando-a da apatia e entrega inicial às doenças, isto é, ao gozo específico das afecções. A escuta analítica cumpriu o seu papel de sustentar a fala congelada, mas que apresentava possibilidades de emersão de um sujeito. Havia uma inscrição da Lei, mas de maneira inadvertida e com uma falha na nominação simbólica, remetendo a uma insatisfação na busca incessante norteada pelo falo, que permanecia suprimida pelo seu adoecimento corporal. Referências DSM-IV. MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS. Porto Alegre, Ed. Artes Médicas, 2002. FONSECA, M. C. B. Fenômeno psicossomático na vertente do gozo. Stylus – Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 13, p. 103-110, 2006. FREUD, S. (1912a) Recomendações aos médicos que praticam a psicanálise. In: FREUD, S. 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