Empresa – família , uma via alternativa da industrialização no Brasil Cléia Schiavo Profa. Colaboradora do PPFH (Programa de Pós-graduação de Políticas Públicas e Formação Humana ) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Profa. Permanente do PPGHis e do PPGCS (Programa de Pós-Graduação em História e de Ciências Sociais) da Universidade Federal do Espírito Santo. A polêmica em torno da presença italiana no processo de industrialização brasileira vem mobilizando uma série de autores que divergem em relação à sua interpretação. Onde se concentra, de fato, a herança cultural italiana no processo de industrialização do país? Entre os empresários imigrantes de classes média, ou nas pequenas e depois médias empresas criadas pelos imigrantes pobres[1] ? Qual terá sido o peso da cultura neste processo? A concepção predominante indica os empresários Francisco Matarazzo e Rodolfo Crespi[2], aqui chegados no final do século XIX, como pioneiros imigrantes da industrialização no país; outras vertentes afirmam o contrário, na medida em que não representaram a massa de imigrantes italianos aqui instalados. O perfil dos dois industriais chegados ao topo socioeconômico nos anos 1920 do século XX mostra que vieram com algum recurso e, além serem oriundos da classe media italiana, construíram em curto prazo uma rede de sociabilidade vinculada à esfera do poder político econômico. Os dois capitães de indústria incluíam-se na burguesia paulista como segmento imigrante, responsáveis por significativa acumulação de capital, embora a origem da acumulação fosse diversa. De fato, ambas as burguesias não transitaram no espaço da precariedade a que foi submetida a massa de imigrantes italianos chegados ao Brasil. No caso da burguesia paulista houve o deslocamento de capitais do mercado exportador de café e sua respectiva dinâmica urbana, para investimentos vários, como compra de ações em empreendimentos de sucesso: bancos, Cia. de navegações e ferrovias, moinhos, serviços urbanos etc . Já a burguesia imigrante crescera tendo por base a produção para o mercado interno no sentido de atender à demanda de uma população urbana que se ampliava na virada dos séculos XIX–XX . Na década de 1920 consolidaram-se como grandes empresários a partir de suas respectivas vinculações ao Banco de Nápoles[3] e ao Banco Italiano de São Paulo [4]. Francisco Matarazzo lucrou com as remessas de recursos que os imigrantes enviavam às suas famílias através do Banco de Nápoles . Francisco Matarazzo foi sim considerado empresário pioneiro pela implantação tanto do primeiro moinho de trigo no Brasil como da primeira refinaria de petróleo; em 1928, juntamente com Jorge Street, Ermírio de Moraes, Horacio Lafer, criou o Centro das Indústrias do Estado de São Paulo do qual decorreu a FIESP [5]. Rodolfo Crespi fundou, ainda no século XIX, o Cotonifício Crespi para o qual contratou como operários inúmeros italianos; foi a primeira tecelagem em grande escala erigida no Brasil. Também simpático ao fascismo, como Matarazzo, foi agraciado com o titulo de Conde por Mussolini. A história da industrialização no Brasil ignorou a importância da empresa-família no processo de industrialização brasileiro. Expressiva nos locais distantes das capitais, colaborou para o desenvolvimento do país em áreas pouco atraentes ao grande capital . Ao prover as necessidades básicas do seus núcleos de origem preparou caminho para sua incursão no mercado urbano mais amplo . Do ponto de vista histórico as grandes transformações econômicas decorrentes da consolidação do capitalismo no Brasil propiciaram a desintegração das relações mercantis e abriram vias ao cruzamento de interesses entre campo e cidade . O fortalecimento das cidades e o crescimento da população favoreceram o surgimento de um campo de possibilidades com a ampliação de um mercado urbano ao qual as firmas importadores não conseguiam atender. De fato, a separação entre o rural e o urbano, entre o fazendeiro de café e o comerciante e/ou exportador-importador era em parte fictícia na medida em que desde meados do século XIX os interesses se entrecruzavam. Zélia Cardoso de Mello, em pesquisa realizada (Contribuição ao estudo da formação do empresariado paulista) [6] baseada nos inventários paulistas de 1845 a 1895, mostra que os fazendeiros possuíam bens imóveis na cidade de São Paulo assim como investiam em ações bancárias e outros negócios. De outro lado, os comerciantes e importadores de sucesso possuíam fazendas e escravos no interior do Estado. Na prática, a circulação entre a nova e a velha riqueza preparou caminho para os grandes empreendimentos industriais do século XX que se aceleram com a chegada da luz elétrica e a introdução das máquinas. Com isso uma nova lógica se impôs à produção industrial na medida em que as cidades densamente povoadas mudavam a sua rotina com o fortalecimento da sociedade de massa e a fixação do tempo industrial . Com a energia elétrica, ficou mais clara a ruptura que vinha se estabelecendo desde o progressivo desaparecimento do escravo e a chegada do imigrante no país, o que resultou em uma mudança estrutural no sistema de produção. A emergência da classe operária colocou em cheque o papel do capital na transformação da sociedade mundial; sem ela, as fábricas Têxteis, os Moinhos e os outros negócios não lograriam atingir o sucesso conquistado. Quanto à classe dominante, os casamentos entre as famílias de importância políticoeconômica reforçou os laços entre a velha e a nova elite do poder. O crescimento de cidades no inicio do século XX favoreceu não só a empresa família oriunda dos assentamentos imigrantes, mas criou também espaço para o surgimento de pequenas empresas [7] impulsionadas por imigrantes que chegaram por conta própria, atraídos pelas possibilidade que o mercado urbano lhes oferecia. A produção de alimentos e os serviços em geral ganharam destaque no período entre guerras, com a fundação de negócios que se ampliaram nas décadas seguintes. A Fábrica de Massas Wilma fundada em 1925 em Belo Horizonte é um significativo exemplo. O site de comemoração dos 80 anos desta empresa diz o seguinte: O mundo ainda se recuperava da Primeira Guerra Mundial e já se aproximava da crise econômica de 1929. Nesse cenário de incerteza, a família Costa chegou a Belo Horizonte, na época com 56 mil habitantes (hoje tem cerca de 2,4 milhões). O casal Domingos e Josefina se refugiava das consequências da Primeira Grande Guerra na Itália e escolheram a capital mineira para morar. Instalaram a primeira fábrica na rua Goitacases, no Bar Rio Preto, região central de Belo Horizonte, em 1925. A produção era artesanal e os poucos equipamentos eram muito simples, idealizados por Domingos e fabricados por algum ‘entendido’ que pudesse executá-los . Sobre o estilo de vendas registra ainda o site Era ele que pegava a pastinha e saía de trem pelo interior de Minas. As dificuldades eram as maiores do mundo, porque sabia o dia de ir, mas nunca o dia de voltar. Quantas e quantas vezes ele teve de dormir no trem...”. Caso semelhante ao da empresas Wilma foi a experiência de Adolfo Selmi em São Paulo, segundo o site da empresa Em 1887, o italiano Adolfo Selmi desembarca no Brasil. Vindo direto a Campinas, onde funda uma fabriqueta de massas. Nesse início, a produção é de 4 a 9 kg de macarrão produzidos manualmente e vendidos nas ruas da cidade, pelo próprio Adolfo para outros imigrantes italianos. . Em 1910 , na volta ao Brasil, Adolfo desfaz a sociedade. As massas são preparadas em marombas, movidas à tração animal, e secadas ao sol ou em quartos de descanso, com o auxílio da queima de carvão. Todo o processo mantém o contato manual. Em 1911 quando a energia elétrica chega a Campinas, a produção das massas passa a ser feita em masseiras: máquinas importadas da Itália semelhantes às usadas em padarias. A secagem, porém, continua sendo ao sol ou em quartos de descanso. O que dizer da indústria de calçados de Franca ? O interessante artigo burguesia de pés descalços de Agnaldo de Souza Barbosa responde a esta questão . Neste artigo o autor descreve o processo de produção de calçados em Franca alguns deles atualmente produzindo para o mercado global . Em seu inicio as famílias Palermo, Spessoto e Maniglia operavam com capitais limitadíssimo . Segundo o citado autor a compra de maquinário apropriado exigia um capital vultoso que algumas delas tiveram dificuldade de adquiri-lo : [1] No Espírito Santo, temos o exemplo do Grupo Coimex, criado por Otacilio Coser em 1948, como uma simples corretora de café. Hoje o Grupo é um dos maiores do Brasil (envio em anexo matéria sobre). Outro grupo criado no mesmo período aqui é o Águia Branca, atualmente um dos maiores conglomerados de transporte e logística do país. Há também o Grupo Dadalto, em nossos dias um forte grupo de comércio. Estes casos diferem porque Otacilio Coser e Valério Chiep (e o irmão), fundadores da Águia Branca, eram na época, muito pobres e pouco articulados com a elite política e financeira brasileira. Além disso, ambos não são casos de indústria. Talvez possamos explorar mais depois. *** As empresas-família expressaram no nível local o caminho da industrialização difusa com base na gestão familiar e no fazer artesanal. Surgiram tanto no interior de áreas agrícolas como em áreas urbanas das grandes cidades do país fruto do protagonismo de imigrantes em processos, muitas vezes anteriores, ao da grande industrialização paulista. Do ponto de vista da produção, as dificuldades se equiparavam; por exemplo o macarrão da família Costa era transportado em carroças para os armazéns da cidade, enquanto a massa da Família Selmi era feita sob tração animal em marombas e secada ao sol. Sobre as empresas-família de origem rural, Marco Antonio Brandão, professor da UNESP, afirma, antes de descrever a experiência do Núcleo Colonial Antonio Prado em Ribeirão Preto, o seguinte : as análises dos estudiosos não deixaram de ser generalistas e concentradas na cidade de São Paulo, ou seja não deixaram espaço às especificidades de outros processos produtivos ....) Ao discutir a formação do empresariado nacional devemos levar em consideração a ação do simples imigrante (Brandão, Marco Antonio ...............) Na verdade, essas pequenas empresas cresceram a tal ponto, segundo a citada pesquisa [8], que, entre os anos 1890 e 1930, a maioria dos empresários existentes nessa cidade era de origem italiana. Essas empresas-família expandiram-se nas cidades interiores sem que subsídios externos sustentassem seu crescimento. Tiveram origem, segundo Brandão, no saberfazer do imigrante que nada mais era do que a capacidade deste de produzir alguma coisa possível de ser comercializada. No inverno europeu, quando os campos ficavam cobertos de neve, os camponeses ocupavam seu tempo com os mais variados afazeres. Essas pessoas tinham de construir e reparar casas, estradas, pontes, produzir seus próprios tecidos, dentre outras coisas supridas por uma produção doméstica. Por isso, parte considerável dos imigrantes aportados no Estado de Sao Paulo, em pleno ápice da expansão cafeeira, possuía algum tipo de saber-fazer. Sobre empresas-família que alcançaram um sucesso considerável se destaca a do Polo de Vestuário e Móveis da cidade de Colatina no Estado do Espirito Santo. Sobre o assunto registra Cristina Dadalto, autora de uma tese de Doutorado com o titulo a imigração tece a cidade Essas indústrias começam a se desenvolver a partir a década de 60 [1960 OU 1860?] e têm gênese na reestruturação econômica da região provocada pela mudança do vetor rural para o urbano resultante da erradicação do café. Estabelecidas com sucesso por pequenos empreendedores descendentes de italianos, transformaram-se em modelo para a criação de centenas de micro e pequenas empresas nas décadas de 1980 e 1990. O crescimento dessas indústrias se deu com investimento dos próprios empresários, sem que houvesse investimento público direcionado para que esse fato acontecesse. Todo o processo de desenvolvimento deu-se por meio do saber-fazer tácito, vindo, inicialmente, das costureiras e artesãos de móveis, pautados numa cultura de reciprocidade e troca de informações. Os pioneiros tiveram papel central nesse processo, pois ensinaram aos interessados o modo da produção e os apoiaram por diversos meios na fase préprodutiva, o que resultou na disseminação desse saber-fazer por meio de uma rede de troca de informações entre os personagens envolvidos no processo – atingindo desde os gestores às costureiras – e que gera um modelo de eficácia coletiva dessas indústrias. As indústrias de vestuário e de móveis de Colatina se especializaram na produção para o mercado externo, associadas ao conceito de moda. No livro Memória e Mercado, resultado da pesquisa sobre a reprodução social das empresas familiares italianas no Brasil, os autores Paolo Cappellin, Vincenzo Pace, Gian Maria Giuliani, Ari Oro e Carla Brandalise estudam, entre outras questões, a importância da tradição italiana no desenvolvimento da pequena e média indústria no Brasil. Assinalam a importância dos valores e símbolos da cultura italiana no modo de agir dos dirigentes das empresas, através de vários estudos de caso, como a produção vinícola no Vale dos Vinhedos, a produção Moveleira da cidade de Ubá, e a produção de Murano na cidade de Poços de Caldas, além de outras pesquisas que se debruçam sobre a peculiaridade do estilo empresarial da empresa-familia no correr das gerações. Considerações finais O que se coloca em torno da presença italiana no processo de industrialização brasileira é a marca étnica por ela deixada no processo de produção. O conceito de familismo estendido para a empresa permitiu a criação de uma gestão empresarial virtuosa “entre empresas e o entorno social e político no nível da localidade, favorecendo adaptação flexível e capacidade de inovação (Capellin,2010) A empresa – família aprendeu no curso de seus ensaios e erros frente às carências que o meio lhe impôs a lidar com as dificuldades: improvisou equipamentos, testou materiais desconhecidos inovou sempre que as necessidades se apresentaram. Na verdade, o território no qual produziram constituiu-se numa construção social onde uma rede de relações tecidas pela ética do trabalho, a solidariedade pregada pela igreja católica e o principio do mútuo socorro afim à cultura italiana conviviam. Por outro lado, deve-se destacar o espírito urbano dos italianos legado da história potencializado nas repúblicas mercantis atestado pelas expansões marítimas da costa da África para além dos Estreitos de Bósforo e Dardanelos. Se a religião Católica atuou como um multiplicador de forças, o talento empreendedor do imigrantes italiano serviu para conferir as possibilidades de espaços de atuação como foi o caso de cidades que como o Rio de Janeiro se expandiam do ponto de vista urbano. No Rio investiram na produção de carvão (Família Saisi), na indústria do Divertimento (Irmãos Segreto), como também os irmãos Pedro e Bartolomeu Ruggieri em Bangu pela fundação do cinema Moderno; nesse ramo, igualmente em Bangu, atuou a Família Ferreri. Na verdade, o Rio de Janeiro, cidade capital do país, assim como outras, ao metropolizar-se abriu aum campo promissor para novos investimentos. Já na região de Nova Iguaçu denominada Picolla Calábria constituída por um grupo de imigrantes calabreses contratados como colonos para a exploração do carvão surgiram pequenas fábricas como por exemplo a do Café Pimpinella até hoje no mercado. Do ponto de vista do capitalismo a pequena empresa capitaneada pelos imigrantes pobres italiana marcou presença nas áreas interioranas crescendo na medida das possibilidades históricas das regiões e do país. A relação capital-trabalho sofreu pouco impacto nas empresas-familiares em tempos em que as greves nas grandes empresas colocavam frente a frente patrões e empregados. Bibliografia: Brandão, Marco Antonio -- UMA CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE SOBRE A FORMAÇÃO DO EMPRESARIADO INDUSTRIAL NO BRASIL: DE LAVORATORI NA ITALIA A PADRONI EM RIBEIRÃO PRETO (18901930). Tese de Doutorado, Franca, 2009. [email protected] DADALTO, Cristina -- A IMIGRAÇÃO TECE A CIDADE ; POLO INDUSTRIAL DE COLATINA . Cultural & Edições Tertúlia . Votproa. 2009. DEAN, Warren . O COMÉRCIO DO CAFÉ GERA A INDÚSTRIA. IN ENSAIOS SOBRE O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO . Instituto Brasileiro do Café, RJ, 1973 Capellin, Paola, Pace, Vicenzo, Giuliani , Gian Mario Oro, Ari P. e Bradalise, Carla MEMÓRIA E MERCADO . Ed. Argumentum .BH, 2010. Martins , JS -- Conde Matarazzo .O empresário e a empresa. Ed. HUCITEC.SP, 1976. MELO, Zélia Cardoso de -- CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DA FORMAÇÃO DO EMPRESARIADO PAULISTA . REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA .VOL. 02, NUMERO 4. Weyrauch, Cleia Schiavo – DEUS ABENÇOE ESTA BAGUNÇA. ED. COMUNNITÀ, NITERÓI, 2009. [1] Considerando que em 1922 fossem necessários 14:480$000 para a aquisição do maquinário acima descrito, podemos dizer que a “Calçados Palermo”, iniciada naquele ano com capital de 5:000$000, estava longe de possuir uma produção minimamente mecanizada. Cinco anos depois, já com capital de 30 contos, é provável que tenha alcançado tal condição. No caso da “Calçados Spessoto”, os cinco contos de capital com os quais contava quando surgiu em 1924 estava bastante distante dos 17:920$000 necessários para se equipar. Um qüinqüênio mais tarde, não obstante ter mais que triplicado seu capital, perfazendo 17 contos, ainda não alcançava os 19:360$000 de que precisaria para mecanizar minimamente a empresa. (Barbosa, 2005)