Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/ (acessado em 08/03/2012)
11/02/2012 às 8:10 \ Livros da Semana
Uma semana nem tão moderna assim
A capa de '1922' é baseada na de 'Pauliceia Desvairada', de Mario de Andrade. O título,
em um de Zuenir Ventura.
Já se vão noventa anos desde que um grupo de artistas e escritores fez do Teatro
Municipal de São Paulo o palco da Semana de Arte Moderna. Eles queriam que aqueles
três dias (13, 15 e 17 de fevereiro de 1922) fossem um marco simbólico de
transformação para a arte brasileira, gerando atrito e também furor – muito ao gosto de
fãs de polêmicas e de publicidade como Oswald de Andrade. Para isso, reza a lenda, o
escritor paulistano arregimentou estudantes, espalhados pelo teatro, para vaiar as
apresentações e, assim, estimular a plateia a fazer o mesmo, pois o que se mostrava ali
não chegava a ser assim tão inovador a ponto de chocar o público. Oswald e seus
amigos conseguiram causar o rebuliço que esperavam? A Semana de Arte Moderna de
1922 foi realmente algo inovador na cultura brasileira? Uma certa desconstrução desse
mito em que se transformaram as exibições realizadas há nove décadas em São Paulo é
o que procura fazer o jornalista Marcos Augusto Gonçalves, 55 anos, no livro 1922 – A
Semana que Não Terminou (Companhia das Letras, 376 páginas, 49 reais), que chega
ao mercado, em formato impresso e e-book, neste fim de semana.
Os modernistas eram contraditórios. Não havia sintonia entre o que pregavam e o que
produziam. Enquanto o discurso do grupo defendia o rompimento com o passado e com
a influência europeia, juntamente com a produção de algo genuinamente nacional, era à
Europa e aos estilos do final do século XIX, como o art nouveau, o simbolismo e o
impressionismo, que recorriam em busca de conhecimento e de formatos. Além disso, o
livro, embora não negue valor à Semana, a situa como parte de um movimento de
mudança iniciado no país antes de 1922. “Eu não diria que a Semana mudou a cultura
nacional. Aquelas noites que aconteceram no Municipal refletiam um processo de
mudança que vinha já de alguns anos antes. Mas não há dúvida que o modernismo
deixou um legado importante, tanto de liberdade de pesquisa e ampliação dos horizontes
da arte quanto na concepção antropófaga de uma cultura que é ao mesmo tempo
brasileira e internacional”, diz Gonçalves a VEJA Meus Livros.
Parte do sucesso da Semana de 1922 e do mito que ela viria a se tornar se deve à
habilidade do grupo modernista em se valer da imprensa – alguns deles eram articulistas
de importantes jornais e revistas – para insuflar a crítica especializada e criar
controvérsia em torno da arte que pretendia enterrar o academicismo e o “passadismo”.
Farpas foram trocadas com o escritor Monteiro Lobato, crítico de arte e pintor diletante,
um dos que mais levantaram bandeiras contra o modernismo. Embora defendesse uma
arte mais brasileira, Lobato era preso às regras artísticas “passadistas”, presas ao
passado, e taxou de termos como “degenerada” a arte como aquela exposta por Anita
Malfatti numa mostra individual, em 1917. Há quem diga, inclusive, que a pintora
paulistana Anita Malfatti retrocedeu “à ordem” depois da crítica do autor de Reinações
de Narizinho – e há quem diga que Lobato tenha escrito sobre a exposição sem nem
mesmo visitá-la. E há, por fim, quem aponte uma razão diferente para o recuo de Anita:
a artista estaria mais uma vez seguindo a Europa. Em guerra, o velho continente
retornara a padrões mais contidos de produção artística.
Não deixa de ser curioso também o fato de os próprios modernistas, principalmente
Menotti del Picchia e Mário de Andrade, os mesmos que utilizavam a imprensa para
acirrar os ânimos entre “passadistas” e “futuristas”, serem ambíguos ao situar suas
obras. Mário de Andrade, ao ler na imprensa um texto elogioso de Oswald de Andrade
chamando-o de futurista, respondeu com um artigo em que dizia não se enquadrar na
“estrebaria mal-cheirosa de qualquer escola” e reafirmava seu catolicismo, tentando
diminuir a repercussão negativa que o termo lhe rendera. Menotti, por sua vez,
discursou na Semana de 1922 negando que o grupo fosse futurista, mas não deixando de
elogiar o italiano Filippo Tommaso Marinetti, que havia cunhado a expressão uma
década antes. “Numa estratégia ‘morde e assopra’, o conferencista parecia ter um olho
no gato e outro na frigideira”, diz Gonçalves. Ou seja, eles queriam chocar a sociedade
paulistana, mas nem tanto assim. Coisas de um movimento contraditório.
Quem é o pai? – Não há uma conclusão a respeito de quem idealizou a Semana, mas
Marcos Augusto Gonçalves afirma que as evidências apontam para o pintor carioca Di
Cavalcanti, que vivia em São Paulo desde 1917. No que, aliás, reverbera o modernista
Raul Bopp em Movimentos Modernistas no Brasil – 1922 a 1928, livro que estava fora
de catálogo havia quarenta anos e volta ao mercado agora, pela José Olympio. Segundo
Bopp, Di Cavalcanti já planejava para aquele período um evento de artes visuais e
conferências, que acabou ampliado e transferido para o palco do Municipal.
Mas o diplomata e escritor maranhense Graça Aranha, que chegara do exterior com
desejo de engendrar novidades, se sentia pai do evento. Vaidoso que era, ele rompeu
com o grupo modernista por ter sido, conforme julgou, deixado em segundo plano, tanto
por não ter sua influência reconhecida quanto por não ter um artigo seu publicado na
primeira página da revista modernista Estética. Quanto a Graça Aranha, uma coisa é
certa: foi ele o responsável por sugerir a inclusão de artistas do Rio de Janeiro – o
compositor carioca Heitor Villa-Lobos acabou sendo o maior destaque da Semana – e
de fazer a ponte entre o grupo de artistas e Paulo Prado, empresário, escritor e mecenas
que articulou com a elite paulista para viabilizar a Semana no Municipal.
A disputa pela paternidade é narrada, por Gonçalves, com o uso de teses discordantes
sobre a Semana de 1922. A tática permeia, aliás, todo o livro. Para escrevê-lo, o autor,
que não nega o valor do evento, se valeu de relatos e de pesquisas muitas vezes
divergentes, buscando assentar melhor sua contribuição para a história da arte brasileira.
“Se, em algumas versões, tenta-se negar reconhecimento e importância às apresentações
de 1922, em outras tem-se a impressão de que teria ocorrido no Municipal uma espécie
de insurreição bolchevique contra o status quo cultural”, anota o autor, que também dá a
sua própria perspectiva sobre o tema. “Se havia negação na atitude polêmica e agressiva
do grupo, a estética prendia-se ainda ao passado. E o evento, programado para gerar
repercussão, parecia combinar muito bem com os interesses da elite paulista de
autovalorização histórica e hegemonia intelectual.”
O livro – Apesar das questões deixadas em aberto e das contradições, ou justamente por
causa delas, o livro pode ser uma leitura agradável tanto para leigos que apreciam arte e
história quanto para acadêmicos. Gonçalves fez uma pesquisa de fôlego e conseguiu
reunir diversas fontes. Ele cita trechos de estudiosos do assunto, inúmeras datas e até
desvia um pouco da efervescente rota paulistana do começo do século XX para situar o
leitor num contexto mais amplo, que é o modernismo europeu – por exemplo, quando
aborda as escolas de arte em Berlim ou a chegada de Picasso a Paris –, sem tornar o
texto pedante ou maçante.
O autor levantou e organizou pesquisas para construir uma narrativa que permite ao
leitor conhecer não só as origens artísticas, mas também familiares e sociais, dos
principais envolvidos no festival de arte de 1922. O enredo tem como ponto de partida a
pintora Anita Malfatti. É ela quem aparece no livro como a pioneira no que se
convencionou chamar moderno ou “futurista” – o vocabulário das vanguardas ainda era
pouco conhecido no país. Segundo o autor, Anita “não apenas se influenciara pelas
correntes europeias: ela fazia questão de explicitar a adesão”. Foi o que fez no título da
individual que Monteiro Lobato atacaria com virulência: a Exposição de Pintura
Moderna Anita Malfatti, de 1917, ao que se sabe, a primeira no país a se declarar de
‘arte moderna’, termo que só cinco anos mais tarde seria usado na Semana.
Foi na mostra de 1917 que o escritor Mário de Andrade conheceu Anita, a quem
atribuiria, anos mais tarde, a responsabilidade por despertar nele a consciência
modernista. Ainda um poeta parnasiano, Mário deixou a mostra tocado pelos quadros e
rumos que Anita sugeria e iria, também ele, trilhar os campos alternativos à academia. É
seguindo Anita, ao menos nas cem primeiras páginas do livro, que o leitor vai
acompanhando a formação do grupo que daria corpo à Semana de 1922. Os laços entre
a turma, que incluía além de Mário e Anita, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia,
Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral (que não participou da Semana) e outros nomes
importantes do modernismo brasileiro, foram sendo construídos desde bem antes da
Semana e se estenderam para além dela. Aqueles primeiros anos e a própria Semana
foram só ensaios. O melhor ainda estava por vir. Sensação que não deixa de ser boa ao
final de um livro.
Não há, porém, nada de exatamente novo no livro, que também carece de reproduções
das obras mais importantes citadas no livro. Pontos negativos que, no entanto, não
devem impedir que 1922 – A Semana que Não Terminou se torne uma obra de
referência sobre o modernismo.
Simone Costa
Tags: 1922 – A Semana que Não Terminou, Companhia das Letras, Marcos Augusto
Gonçalves
RELANÇAMENTOS DOS 90 ANOS DE 1922
Companhia das Letras
Retrato do Brasil – Paulo Prado (reedição 10/02)
José Olympio
Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro – Gilberto Mendonça Teles (março)
*A editora também vai relançar toda a obra de Raul Bopp
Editora Globo
O Santeiro do Mangue e Outros Poemas – Oswald de Andrade
O perfeito cozinheiro das almas deste mundo – Oswald de Andrade (2012 – sem data)
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Uma semana nem tão moderna assim