PROCESSO CIVILIZADOR E EDUCAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A
REFORMA DOS ESTATUTOS DOS CURSOS JURÍDICOS NA
UNIVERSIDADE DE COIMBRA EM 1772.
Civilizing process and education: observations on the reform of the statute of
courses in legal university of Coimbra in 1772.
Proceso de civilización y educación: observaciones sobre La reforma Del estatuto
de cursos en legal universidad de Coimbra en 1772.
Célio Juvenal Costa
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RESUMO:
O objetivo deste artigo é refletir sobre as relações que existem entre a reforma
pombalina na universidade de Coimbra, mais especificamente nos cursos jurídicos e a
necessidade de Portugal em adequar-se aos novos padrões de civilidade. Abordar-se-á,
as alterações metodológico-doutrinárias que culminam na adoção das tendências
reformistas direcionadas para o direito pátrio e o direito natural. Define-se o abandono
da metodologia escolástica, bem como, do direito romano e canônico como basilares no
ensino jurídico, por representarem um retrocesso no processo da civilização em
Portugal.
Palavras-chave: educação; reforma dos estatutos; processo civilizador.
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ABSTRACT: The purpose of this article is to reflect on the relationships that exist
between the Pombal reform at the University of Coimbra, more specifically in the Law
courses in Portugal and the need to adapt to new standards of civility. It will address the
methodological, doctrinal changes that culminate in the adoption of reformist tendencies
directed to the parental right and natural right. Sets up the abandonment of scholastic
methodology, as well as, Roman law and canon law as the basic legal education, for a
setback in the process of civilization in Portugal.
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Keywords: education, reform of the statutes; civilizing process.
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*Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Estadual de Maringá. Contato: Rua Osvaldo Cruz, 691, Maringá-Pr, CEP: 87020-200. E-mail:
[email protected].
Mestranda em Educação pela Universidade Estadual de Maringá. Contato: Rua Vidal de Negreiros, 657, Maringá
PR, CEP: 87050-210. E-mail: [email protected].
RESUMEN: El propósito de este artículo es reflexionar sobre las relaciones que existen
entre la reforma de Pombal en la Universidad de Coimbra, más concretamente en los
cursos de derecho en Portugal y la necesidad de adaptarse a las nuevas normas de
civilidad. En él se abordarán los cambios metodológicos, doctrinales que culminan en la
adopción de tendencias reformistas dirigidos a la patria potestad y el derecho natural.
Establece el abandono de la metodología escolástica, así como el derecho romano y
canónico, como la educación jurídica básica, por un retroceso en el proceso de la
civilización en Portugal.
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Palabras clave: educación, la reforma de los estatutos; proceso civilizador.
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Introdução
O reinado de D. Manuel I (1492 - 1521) foi uma época de grandiosidade para o Estado
português. Foi o período dos grandes descobrimentos: em 1492, Colombo descobriu a
América, em 1498, Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para as Índias e, em
1500, Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. Os descobrimentos proporcionaram
novas riquezas: vegetais, animais e minerais.
A expansão das navegações e os descobrimentos promoveram o desenvolvimento do
comércio internacional, bem como, o aumento do volume e da variedade das
mercadorias comercializadas. Havia maior procura de artigos manufaturados e, com o
tempo, a indústria foi se desenvolvendo. As permutas sedem lugar ao pagamento por
moeda metálica. A partir do século XVI, o ouro e a prata tornaram-se a forma de medir
a riqueza. Anteriormente, a riqueza que era medida pela quantidade de terras, passou a
ser avaliada pela quantia de dinheiro. A riqueza de um país passou a depender da
quantidade de ouro e prata que podia acumular.
O Brasil forneceu para Portugal admirável quantidade de metais preciosos. O ouro e a
prata vindos do Brasil tornaram Portugal um país rico. Todavia, essas riquezas não
ficaram com os portugueses. Estes, confiantes nas riquezas das fontes coloniais,
mantiveram as atividades mercantis, abandonando as atividades produtivas. Era preciso
comprar de outros países, as mercadorias que Portugal deixava de produzir.
Consequentemente, o ouro e a prata portugueses foram repassados aos comerciantes e
industriais da Inglaterra, França e Holanda, como pagamento das mercadorias
adquiridas desses países.
O comércio marítimo dos portugueses e espanhóis entrou em declínio. A Inglaterra e a
Holanda destacaram-se no comércio marítimo. A expansão comercial da Holanda
declinou no século XVIII e a Inglaterra prevaleceu na disputa pelo comércio marítimo.
No reinado de Isabel (1558 - 1603), a Inglaterra assumiu uma política econômica que
desenvolveu o comércio e a criação de companhias mercantis. A partir do tratado de
Methuen (1703), Portugal obrigou-se a dar preferência aos produtos industriais ingleses.
As riquezas provenientes do Brasil não foram usadas por Portugal para o
desenvolvimento da sua economia. Ao contrário, ao final do reinado de D. João V, em
1750, o Estado estava endividado e o povo era esmagado pelos altos impostos. A
dependência e a exploração econômica pela Inglaterra minavam os cofres públicos. A
estagnação das estruturas administrativas, jurídicas e políticas do país tornavam o
Estado entorpecido. O número de pessoas voltadas para a vida religiosa era expressivo.
Portugal era visto pelas nações estrangeiras como sinônimo de crendice e retrocesso.
Enfim, Portugal deixara de ser o Estado pujante da era dos descobrimentos e tornara-se
endividado e saudoso das glórias que vivera.
O que se observa no reino português, na segunda metade do século XVIII, é a tentativa
de recuperação do prestigio no cenário político e econômico europeu. Para que esse
prestígio fosse recuperado era preciso progredir adequando-se aos padrões de
civilização das grandes nações. Portugal precisava levantar-se e impor-se no conjunto
das nações européias civilizadas.
O Marquês de Pombal e a política de civilização por intermédio no ensino superior.
Mas, para atingir o propósito de civilizar, era imprescindível a presença de homens
esclarecidos que tivessem condições de executar esse intento. D. José criou um
Gabinete ministerial para edificar as novas estruturas administrativas que o momento
exigia. O Gabinete ministerial era composto de três secretários de Estado: Negócios do
Reino, Negócios do Ultramar e Marinha, e Negócios Estrangeiros e Guerra.
Sebastião José de Carvalho e Melo, então com 51 anos, foi nomeado Ministro dos
Negócios Estrangeiros e Guerra, em Julho de 1750. Ele tinha representado Portugal em
funções diplomáticas em Londres, de 1739 até 1743, e em Viena, Áustria, de 1745 até
1750. Conquistou a confiança de D. José e passou a exercer o governo de Portugal
(CARVALHO, 2001). O início do governo de Pombal foi dedicado à fundação de
companhias comerciais e a criação de organismos estatais.
Era preciso agir para modificar as envelhecidas estruturas judiciais, que não aplicavam a
legislação nacional, o que dificultava a ação do governo absolutista. O ensino jurídico
certamente poderia contribuir para a formação de um corpo administrativo capaz de
atender as necessidades do Estado. Mas eram necessárias mudanças nos cursos jurídicos
da Universidade de Coimbra e Pombal começou a desenvolver suas ações em relação ao
ensino superior.
Em 23 de Dezembro de 1770 D. José cria, por carta, a Junta de Providência Literária,
que tinha como missão apontar as causas da decadência do ensino na Universidade e as
providências que deviriam ser tomadas para saná-las. D. José exalta a universidade que
seus antecessores criaram, reconhecendo o estado de retrocesso que apresentava o
ensino superior em Coimbra.
Norbert Elias referindo-se a palavra civilidade ensina que: “Com essa palavra, a
sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de
que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, a
desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo, e muito mais.” (ELIAS,
1994, p. 23).
Relacionando a obra de Norbert Elias com o reconhecimento real do retrocesso do
ensino português, nota-se que a decadência da Universidade de Coimbra representava
um obstáculo ao desenvolvimento da civilização portuguesa. A Universidade que fora,
outrora, motivo de orgulho para a nação, no reinado de D. José tornara-se sinônimo de
vergonha e ruína. Para mudar este estado decadência Portugal promove mudanças
estatutárias na Universidade de Coimbra.
A Reforma dos Estatutos dos Cursos Jurídicos da Universidade de Coimbra em 1772.
Em dois de Setembro de 1771, a Junta de Providência Literária, apresenta o Compêndio
Histórico ao Rei. No compendio historio atribui-se aos jesuítas o “estado de ruínas” em
que se encontram os estudos na Universidade de Coimbra. São palavras extraídas do
próprio texto do Compêndio Histórico do estado da Universidade de Coimbra:
[...] os outros deploráveis estragos que ainda tornaram a acumular com a
destruição de todas as Leis, Regras e Métodos que haviam regido as
Universidades de Lisboa e de Coimbra, até introduzirem na segunda delas os
dolosos e sinistros Estatutos por eles fabricados com os quais, acabando de
desterrar destes Reinos e seus Domínios as Artes e as Ciências, sepultaram a
Monarquia Portuguesa nas trevas da ignorância (1972 p. IX).
Todos estes Estragos e Impedimentos aqui indicados, os que temos já
demonstrado e outros mais que deixamos de apontar, por não caberem já no
estreito mapa deste Compêndio, têm sido, e são ainda, as verdadeiras e
indubitáveis causas da total corrupção e decadência em que se acha
presentemente a Jurisprudência na Universidade de Coimbra (1972, p.294).
Antes das reformas predominavam as concepções do Direito Romano e Canônico e a
metodologia escolástica. No Compêndio Histórico da Universidade, a Junta Literária,
sustenta que os jesuítas:
Para a destruição da Jurisprudência Canônica e Civil, desterraram também
da Universidade todas as pré-noções indispensáveis para habilitarem um
estudante canonista ou legista (1972, p.X).
[...] sustentando o mesmo ruinoso sistema com o desprezo em que
precipitaram o estudo das Histórias do Direito Civil Romano e Pátrio, do
Direito Canônico Universal e Particular destes Reinos, da História das
respectivas Nações, Sociedades e Povos, para os quais foram promulgadas
as leis que compõem os referidos direitos, da História Literária Geral e
Particular de um e outro direito, já privando a mesma Universidade do
conhecimento da Doutrina do Método, que é tão indispensavelmente
necessário e das lições elementares dos mesmos dois direitos, já proibindo o
Método Sintético e Compediario e mandando seguir o Analítico aos
canonistas pelos Textos, e Abades Panormitanos e aos legistas por Bartolo e
Acúrsio, [...] (1972 p.XI).
Os antigos estatutos da universidade foram revogados e novos Estatutos foram criados,
tendo em vista alcançar os novos padrões de civilidade. Em 28 de Agosto de 1772, o D.
José corrobora os novos Estatutos que apresentam uma visão reformista do ensino
universitário. Era necessário o desenvolvimento das ciências numa tentativa de
regenerar economicamente o Império e civilizar a “barbárie” das colônias. Portanto, a
reforma do ensino na Universidade de Coimbra foi parte dos esforços de Portugal para
introduzir-se no meio cientifico europeu, mudando o quadro de vergonha e ruína em que
se encontravam os estudos. As principais transformações ocorreram em relação às novas
orientações pedagógico - doutrinarias.
Os Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772 tratam do Ensino Jurídico no Livro
II. O Ensino Jurídico divide-se nas Faculdades de Cânones e de Leis. A idade de
ingresso dos estudantes era de 16 anos. Os cursos passam a ter duração de cinco anos,
com mais um para licenciatura ou doutoramento. O tempo atribuído para a duração dos
cursos é de três anos a menos do que o exigido pelos velhos Estatutos.
No 1º ano estavam inseridas as disciplinas do Direito Natural Público Universal e das
Gentes, História Civil dos Povos, Direito Romano e Direito Português e as Instituições
de Justiniano do Direito Civil (1ª parte). No 2º ano estavam inseridas as disciplinas de
História da Igreja Universal e Portuguesa, e do Direito Canônico Comum e Pátrio,
Instituições de Direito Canônico, Instituições de Direito Civil (2ª parte). Canonistas e
Legistas separam-se ao terminarem o 2º ano.
As faculdades de Cânones e de Leis têm mais três anos de Curso. No Curso de Cânones
estão inseridas o Decreto de Graciano no 3º ano; o Decretais de Gregório IX no 4º ano;
e o Direito Canônico, Direito Civil Pátrio, Público e Particular no 5º ano (cadeira
comum ao Curso de Leis). No Curso de Leis estão inseridas o Direito Civil Romano (1ª
parte) no 3º ano; o Direito Civil Romano (2ª parte) no 4º ano; e o Direito Civil Pátrio,
público e Particular, Jurisprudência Analítica (Interpretação e aplicação das Leis) no 5º
ano.
Percebe-se preocupação na inclusão nos dois cursos jurídicos as cadeiras de Direito
Natural e Público Universal, e das Gentes. Outro destaque nessas alterações fica por
conta da inclusão da cadeira de Direito Pátrio. Essas modificações vêem de encontro
com a necessidade de fortalecimento dos sentimentos nacionais e manutenção da
monarquia vigente.
O Estatuto afirmava que o Direito Romano apenas pode obter força e autoridade de lei
em suplemento do Pátrio e, quando for fundamentado na boa razão, que deve lhe servir
como único fundamento. Acentuava que nenhum direito podia ser bem entendido sem
um claro conhecimento prévio, tanto do Direito Natural, como da História Civil das
Nações e das Leis para elas estabelecidas, tornando-se estas “pré-noções”
indispensáveis para a verdadeira inteligência das leis e do seu genuíno significado.
Dispunha que a única Escola de Jurisprudência que uniformemente se deveria seguir por
todos os professores seria a Escola Cujaciana e, mandava a todos os professores que
seguissem o método sintético. Deveriam começar pelas definições e divisões da matéria,
seguindo para a apresentação dos primeiros princípios e princípios gerais mais simples e
mais fáceis de entender, passando às conclusões mais particulares e dificultosas, ou seja,
começando pelo mais fácil e procedendo, proporcionalmente, para o mais difícil. Os
professores deveriam criar seus próprios compêndios para a leitura nas lições diárias. Os
Compêndios deveriam ser breves, claros, e bem ordenados.
Justificava a necessidade do ensino do direito natural, afirmando que por intermédio das
suas lições poder-se-ia compreender bem os diversos estados do homem e do cidadão,
dos quais se deduzem todas as leis naturais e civis, e se manifestam com a necessária
clareza as origens, os progressos e os fins das mesmas leis. Assegurava o Direito
Natural como a verdadeira fonte de todas as leis civis. Sendo assim, o estudo das leis
naturais consubstancia-se na base fundamental de todo o estudo do Direito Civil. O
professor de Direito Natural deveria instruir seus alunos sobre a origem, a evolução da
disciplina, passando pelos filósofos estóicos, romanos, santos padres, escolásticos e, por
último, Grócio e Pudendorf.
O Direito Público Universal tratava dos direitos e ofícios que competem aos soberanos
com relação aos vassalos; o estado natural e o estado civil e político, devendo mostrar a
necessidade indispensável no império na sociedade civil. Quanto ao governo, deveria
especificar as diferentes formas de republicas e governos e as características de cada
uma delas. Outro conteúdo a ser ensinado, seriam as formas de sucessão imperial, isto é
hereditária, institutiva, eletiva e popular.
No entanto, como seria de esperar de uma legislação de monarquia hereditária, deveria
o professor ponderar vantagens do governo monárquico hereditário. O ensino deveria
ser executado com toda a cautela, para que não resultasse nos inconvenientes que a
disciplina Direito Público Universal poderia provocar. Nesse sentido a preocupação se
deslocava para alguns filósofos que cultivavam o direito Natural. A leitura desses
autores poderia resultar numa liberdade imprópria para os padrões de uma monarquia
absoluta. Essas filosofias seriam sementes da rebelião.
Deve-se destacar que a conduta dos professores nas preleções deveria obedecer ao
Estatuto, que estava condicionado às necessidades do Estado Monárquico Português. Os
estudantes assumiriam um severo regime de assistência às aulas e de execução de
provas para o aproveitamento das disciplinas.
Os Estatutos de 1772 foram muito mais do que um diploma de reconstituição da
Universidade Coimbrã. O seu corpo de regras condicionou, minuciosamente, o
programa das disciplinas e definiu, indiscutivelmente, a escola de jurisprudência que
deveria ser seguida.
As alterações promovidas na Universidade de Coimbra revelam as estratégias
intervencionistas da política pombalina no ensino jurídico, que visavam produzir um
corpo de funcionários preparados às atividades burocráticas do Estado e da Igreja.
Nesta perspectiva abraçamos o ensinamento de Norbert Elias:
[...] o conceito subjacente a esse movimento esclarecido de reforma,
socialmente critico, é sempre o mesmo: que o aprimoramento das
instituições, da educação e da lei será realizado pelo aumento dos
conhecimentos. Isto não significa "erudição" no sentido alemão do
século XVIII, porquanto os que aqui se expressam não são
professores universitários, mas escritores, funcionários, intelectuais,
cidadãos refinados dos mais diversos tipos, unidos através do medium
da "boa sociedade", os salons. O progresso será obtido, por
conseguinte, em primeiro lugar pela ilustração dos reis e governantes
em conformidade com a “razão" ou a "natureza", o que vem a ser a
mesma coisa, e em seguida pela nomeação para os principais cargos,
de homens esclarecidos (isto é, reformistas) (1994, p.62).
O aumento de conhecimentos, proporcionados pela mudança estatutária no ensino
jurídico, era a pretensão da monarquia portuguesa, que queria elevar o seu trono ao
prestígio das demais coroas européias. A nomeação de homens esclarecidos para o
exercício dos principais cargos administrativos era imprescindível para a realização do
seu intento. A reforma é uma demonstração dos esforços em transformar as estruturas
retrogradas do ensino universitário, que não atendiam as exigências no contexto social,
político e econômico, com vistas a atingir reforma da mentalidade dos portugueses,
dando um novo rumo à vida nacional. Como Rómulo de Carvalho (2001) acentua: “A
reforma pombalina da Universidade é uma obra de grande merecimento na sua
estruturação, e os Estatutos que a definem colocam-nos numa posição digna na Europa
do tempo”.
Os Estatutos de 1772 eram compatíveis com a justificativa e manutenção do poder
monárquico, frente aos seus súditos, às demais nações estrangeiras e à Igreja. Os
pensamentos de autores incompatíveis com esses desígnios foram necessariamente
censurados. Dentre os pensadores literalmente autorizados pelos Estatutos para o ensino
do Direito Natural e do Direito Público Universal, merece destaque Hugo Grócio.
O holandês Hugo Grócio foi o precursor da escola clássica do Direito Natural. Sua
principal obra é Dos Direitos da Guerra e da Paz, publicada em 1625. Na sua filosofia,
o homem era sociável por natureza e, era destinado a compor uma sociedade política. O
direito era o que se mostra apto, segundo a razão, para tornar possível a convivência
social. Direito era o que a reta razão demonstrava, conforme a natureza sociável do
homem. O Direito natural era uma imposição da reta razão, que indicava, para
determinado ato, sua conveniência ou não conveniência com a própria razão natural ou
social. Retirava do Direito Natural à fonte divina atribuída pelos autores da Patrística e
da Escolástica, afirmando que o Direito Natural existiria, mesmo que não existisse
Deus, ou não cuidasse ele das coisas humanas.
Grócio sustentava a inviolabilidade dos pactos, a legitimidades dos governos e a
inviolabilidade dos tratados internacionais. A estabilidade dos pactos era própria do
direito natural. Supunha, de fato, que o Estado era constituído por força de um pacto. O
contrato social representava uma verdade histórica. Existiam tantos contratos diferentes
quantas e quais fossem as constituições políticas existentes.
Grócio julgava que toda constituição positiva era precedida de um contrato
correspondente, o que tornaria legitimas todas as instituições, todos os governos. O
contrato social era um ato exterior, uma manifestação que deriva da opinião e de certa
oportunidade do momento, não da natureza própria do homem. Só o impulso a
sociabilidade derivaria, para o homem, da natureza, mas a forma que a sociedade deve
assumir seria deixada ao mero arbítrio.
Sendo da natureza do direito que os pactos se mantenham, o povo teria a obrigação
perpétua da obediência ao soberano. Os atos praticados pelos governantes entender-seiam consentidos pelos súditos. No que diz respeito a relações jurídicas entre os Estados
autônomos, defendia que os tratados concluídos entre os Estados têm validade jurídica e
são obrigatórios por Direito Natural.
A apreciação dos pensamentos de Grócio evidencia as razões de Portugal em aceitar os
princípios do Direito Natural que ele defendia. Grócio e seus seguidores justificavam a
criação do Estado autônomo, desvinculado do poder da igreja. Um Estado fortalecido,
interna e externamente. Internamente pela idéia de obediência perpétua ao soberano;
externamente, pela manutenção dos tratados assinados. A doutrina de Grócio justificava
o Estado Português.
Mas os princípios do Direito Natural apresentavam outras vertentes, mais modernas,
mais progressistas, como por exemplo: Thomas Hobbes e John Locke. Mas para a
manutenção dos interesses da monarquia portuguesa essas vertentes não poderiam
introduzir-se em Portugal.
Os Estatutos são claros em orientar os Professores a não utilizarem obras de autores que
com “má disposição de espírito” poderiam causar confusões, turvando a compreensão
dos “claros mandamentos da razão”. Era necessário resguardar os interesses da Coroa
portuguesa, condicionando os pensamentos aos padrões pertinentes.
Ao que tudo parece, se a nova metodologia pudesse, efetivamente, promover o
conhecimento dos juristas portugueses rumo às luzes do Direito do Século XVIII, certo
é que essas luzes só podiam ser vistas por detrás das grades que o próprio legislador
pombalino impôs à Universidade. Os Estatutos funcionam como grades, como camisa
de força, a cercear novos horizontes, que podiam ser mais perigosos para o futuro da
Coroa Portuguesa.
Como relatam Mario e M. Lopes de Almeida:
Não nos é possível denunciar aqui totalmente através das determinações
sobre aprovação de livros escolares para os diversos cursos, o espírito
apegado do Marques e dos seus colaboradores à rasa mentalidade do seu
tempo. A sedução por outras correntes ideológicas ou a livre especulação era
absolutamente contrária ao objetivo essencial dos reformadores, e a censura
aparentemente moderadora, exercia-se com impeditivo afinco. A reforma
pombalina substituiu a tradicional autoridade do magistério por uma
autoridade mais estrita e mais forte, para que a predileção pela liberdade
conceitual não influenciasse os estudantes, e através deles, necessariamente,
toda a vida política e moral (1937, parte II, p. 109).
O esforço em transformar as estruturas retrógradas do ensino universitário contrasta
com atitudes governamentais formalizadas nos Estatutos da Universidade de Coimbra
de 1772. Rómulo de Carvalho aponta de modo claro as contradições presentes
documento:
Contudo, a monumentalidade da obra tinha muito de encenação, e pouco
proveito se poderia, logo de início, augurar-lhe pondo em confronto estas
duas realidades: por um lado, a reforma de uma universidade que pretendia
provocar, por sua vez, uma outra reforma, a da mentalidade dos portugueses,
dando novo rumo à vida nacional; por outro lado, uma obstrução completa
de todo o desanuviamento mental do povo português a toda a circulação de
ideias, a toda a informação actualizada, com a montagem de uma repressão
estatal cuja violência asfixiante não tem paralelo na nossa história (2001, p.
466).
A exigência de aprovação régia dos Compêndios e, de outros livros utilizados,
demonstrava a forma de controle na atuação dos professores e das doutrinas que
ensinavam. Não existia para os mestres da universidade, e tão pouco aos alunos, a
possibilidade de questionamento do saber, mas sim, a obediência a um saber imposto. A
reforma foi expressão de uma vontade da monarquia portuguesa e se impôs, mostrando
aos professores o caminho das aquisições cientificas e literárias.
Embora, Pombal tenha retirado o ensino das mãos da Companhia de Jesus, a Igreja
continuou a dominar o ensino. As maiores autoridades pedagógicas eram eclesiásticas,
como por exemplo, os deputados e diretores da Real Mesa Censória e o Reitor da
Universidade de Coimbra, D. Francisco de Lemos (CARVALHO, 2001).
A fiscalização ideológica do Estado Português chega aos extremos no governo de
Pombal obrigando toda nação a entrega na Real Mesa Censória da lista de livros que
possuíam. Os livros proibidos pelo Edital da Real Mesa Censória (24 de Setembro de
1770) foram recolhidos e queimados em praça pública por ordem de Pombal. Dentre os
livros proibidos encontravam-se as obras de Hobbes, Diderot, Rousseau, Voltaire, La
Fontaine, Espinosa, etc. (CARVALHO, 2001)
A exigência de aprovação régia dos compêndios e a censura de determinadas obras,
consideradas pela junta literária como prejudiciais, por conterem doutrina falsa,
ofensiva da paz e sossego público apresentam-se como forma de controle da formação
dos quadros administrativos do Estado português. Era necessária a expansão das
aquisições científicas e literárias para atingir o nível de civilização desejável, mas com a
devida proteção contra os perigos das doutrinas que ameaçavam a Monarquia e a Igreja.
Sendo assim, torna-se possível constatar uma desarmonia entre o discurso reformista,
que pretendia assemelhar-se aos mais avançados da Europa, e as ações concretas do
governo Pombalino. O ensino foi reformado, mas com excesso de imposições
doutrinárias, que os mestres deveriam professar e ensinar, impedindo a espontaneidade
e a iniciativa. As reformas previstas nos estatutos eram expressivas, mas, não
produziram o êxito esperado.
Considerações Finais
A Reforma dos Estatutos possibilitou a reestruturação dos cursos jurídicos colocando
novamente a Universidade de Coimbra alinhada com as outras universidades européias.
Se pretensão da Coroa era a elevação na nação portuguesa ao nível de civilização dos
outros Estados europeus, as suas próprias deliberações representaram um obstáculo para
a execução do seu intento.
Se a intenção de Pombal era civilizar Portugal, possibilitando o seu ressurgimento entre
as grandes potências da época, ele agiu de forma a produzir o atraso nesse processo de
civilização. A repressão na circulação interna de idéias, que se afastassem dos padrões
estabelecidos, cerceou o esclarecimento do povo português. No entanto, a censura
portuguesa mostrar-se-á com o tempo incapaz de impedir a leitura, mesmo que
clandestina, das obras proibidas.
REFERÊNCIAS:
BRANDÃO, Mário e ALMEIDA M. Lopes d'. A Universidade de Coimbra, esboço
da sua história. Oficinas gráficas da Atlantida, 1937.
CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São
Paulo, Saraiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1978.
CARVALHO, Rómulo de. História do Ensino em Portugal: Desde a Fundação da
Nacionalidade até o fim do Regime de Salazar-Caetano. 3ª. Edição Fundação Calouste
Gulbenkian. Lisboa, 2001.
COIMBRA, Universidade de. Compêndio Histórico do estado da Universidade de
Coimbra (1771). Coimbra, 1972. Originalmente publicado em 1771.
COIMBRA, Universidade de. Estatutos da Universidade de Coimbra, volume II.
Lisboa:
na
Regia
Offinina
Typografica,
1772.
Disponível
em:
https://bdigital.sib.uc.pt/bg1/UCBG-R-44-3_3/UCBG-R-44-3_3_item1/index.html.
Acesso em: 20 de Outubro de 2012.
DEL VECCHIO, Giorgio, História da Filosofia do Direito. Belo Horizonte: Promove
Artes Gráficas e Editora, 2006. Originalmente publicado em: 1878.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador, volume I, tradução: Ruy Jungman. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1994.
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Tradução
Antonio de Pádua Danesi – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
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processo civilizador e educação: considerações sobre a