CRÍTICA
CINEMA
POMBAS-GIRAS, ESPÍRITOS,
SANTOS E OUTRAS DEVOÇÕES
Fé, de Ricardo Dias, e Santo forte, de Eduardo Coutinho. Brasil, 1999.
Ronaldo de Almeida e
Silvana Nascimento
Dois documentários produzidos em 1999 registraram como a religiosidade é vivida no Brasil. De
forma panorâmica, Fé, de Ricardo Dias, desenha
uma cartografia das alternativas religiosas do Norte
ao Sudeste, passando pelo Centro-Oeste e Nordeste.
Sua qualidade reside numa sensível apreensão estética de momentos emblemáticos de cada confissão
de fé: a procissão, a comunicação com os mortos, a
possessão de uma entidade, o batismo com o
Espírito Santo, o pagamento de uma promessa. No
entanto, o filme não faz uma articulação da diversidade dessas experiências, que são apresentadas
isoladamente. Suas imagens seduzem mais pelo
ângulo da câmera que privilegia os gestos e a
emoção dos fiéis.
Já Santo forte, de Eduardo Coutinho, tece um
argumento mais bem formulado, em sintonia com
os atuais estudos sobre as religiões no Brasil, obtendo um excelente resultado na linguagem de documentário. A partir de depoimentos de moradores de
uma favela carioca, apresenta trajetórias religiosas
individuais imersas num universo rodeado por pombas-giras, espíritos, santos católicos, Espírito Santo,
como se cada pessoa, mesmo confessando ser fiel
de uma única religião, tivesse como repertório
comum o conjunto desses entes sobrenaturais. Ao
contrário de Dias, Coutinho deliberadamente mostra sua equipe e a si mesmo no decorrer do filme,
revelando suas falas e interferências em relação aos
entrevistados.
Ainda que não seja imediata uma aproximação
entre estes documentários, eles permitem não somente analisar diferentes estilos cinematográficos,
mas elaborar uma leitura transversal da religiosidade no país. No início de Santo forte é mostrada uma
multidão em missa no Aterro do Flamengo, celebrada pelo papa João Paulo II em outubro de 1997 e
transmitida pela televisão para todo o país. Imagens
aéreas focalizando esta bela região do Rio de Janeiro
deslocam-se até atingir a favela Vila Parque da
Cidade, onde foi feito o documentário. Tudo isso ao
som da multidão rezando uma ave-maria. Impressiona, de imediato, essa capacidade de aglutinação da
Igreja, que a partir de mega-eventos ativa uma
catolicidade resultante do longo processo de seu
enraizamento no Brasil.
Isso fica mais evidente no catolicismo de romarias e procissões registrado por Fé. A cena inicial
causa impacto. Milhares de pessoas espremendo-se
pelas ruas de Belém do Pará e tentando agarrar-se à
corda grossa que liga a imagem de Nossa Senhora
de Nazaré ao corpo da procissão. Um corpo ligado,
fisicamente mesmo, à santa. E esse ato religioso de
segurar a corda é retratado como um êxtase que
exige sacrifício. Nos depoimentos de romeiros e
devotos de Padre Cícero ou de São Francisco das
Chagas aparece a mesma idéia do sacrifício como
fonte de cura e renovação: "Nosso Senhor sofreu
por nós, e nós não pode sofrer?", pergunta uma
rezadeira.
No catolicismo a relação com o sagrado ocorre
como uma experiência sensível, mediante a contemplação de objetos representando divindades e até o
toque físico. O filme mostra o toque na imagem do
"Deus morto", na bengala da estátua de Padre Cícero,
na bandeira do Divino e outros tantos, que são
seguidos por um autobenzimento e pelo sinal-dacruz, para que o fiel se contamine do sagrado e ao
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mesmo tempo proteja-se contra algum mal. Trata-se
de uma religiosidade devocional que não prescinde
da imagem (assim é que chutar a santa, dizendo que
a imagem de Nossa Senhora é apenas uma estátua de
gesso, como fez o bispo da Universal em 1994, foi um
vilipendio iconoclasta que só poderia suscitar atos de
desagravo).
O catolicismo aparece em Santo forte de outra
maneira. É possível afirmar que parte do público da
missa no Aterro e da audiência na televisão era
composta pelos chamados católicos "não praticantes", categoria nativa e sociologicamente pouco precisa, mas muito significativa para definir uma faixa
considerável do campo religioso. São os católicos
dos batismos, casamentos e funerais. Um catolicismo
de sacramentos ou uma religiosidade ativada nos
ritos de passagem e nos grandes eventos (como uma
visita papal), e cuja instituição, a Igreja, detém alguma força simbólica. Neste documentário o Brasil não
parece propriamente um país católico, mas um solo
católico, que desperta de tempos em tempos uma
efervescência e uma identidade religiosas.
Não por acaso a identificação primeira de quase
todos os depoimentos na favela era a católica: "Sou
católico apostólico romano", confessavam vivamente — mas em seguida concluíam: "É um catolicismo
com um pouquinho de espiritismo"; "Na abertura do
terreiro, rezam um pai-nosso e uma ave-maria";
"Batizei meu filho de manhã na católica e à noite na
umbanda". Em Fé, no segmento da Bahia, uma velha
do candomblé, vendedora de acarajé no pé da
escadaria do Bonfim, disse que "santo é santo e orixá
é orixá", e logo depois se contradisse, afirmando que
"São Jerônimo é Xangô"1.
Acostumamo-nos a pensar que muitos católicos
têm uma segunda religião, a que sempre apelam nos
momentos de atribulações físicas e materiais. Daí a
dificuldade dos estudos quantitativos em coletar o
dado sobre filiação religiosa, quando o mais freqüente é a situação de simultaneidade de crenças
com uma hierarquia relativa entre elas. Contudo, os
depoimentos de Santo forte parecem indicar que o
próprio catolicismo é a segunda confissão de fé,
pois trata-se de uma religiosidade com seres sobrenaturais e ritos mágicos, benzimentos e curas, feiti(1) Em registro ficcional, essa situação apareceu dramatizada
em O pagador de promessas (1962), em que o protagonista faz
uma promessa no terreiro para ser paga na igreja do Bonfim.
Naquela mesma escadaria dá-se a celeuma que o leva à morte:
"Santa Bárbara é ou não Iansã?".
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NOVOS ESTUDOS N.° 57
ços e reencarnações, encostos e obsessões. Mas
tudo com uma pitada de catolicismo, como identidade religiosa pública e instituição social responsável pelos ritos de passagem — nascimento, casamento, morte e outros.
Os católicos da favela Vila Parque da Cidade
parecem orientar-se pela crença em um mundo
paralelo com uma lógica própria. Um rapaz, misturando respeito e medo, toma alguns cuidados antes
de cantar uma música para o exu Tranca-Rua durante o seu depoimento. Uma moça conta as "surras"
que levava, no terreiro e em casa, da pomba-gira
Maria Padilha, ao incorporar a entidade. São práticas
religiosas nas quais o mundo sobrenatural interfere
no mundo da vida cotidiana. Além dessas, são
apresentadas outras histórias de santos fortes que
invadem corpos, são manipuláveis, podem fazer o
bem ou o mal e causam medo. Por vezes, após um
depoimento, Coutinho congela a imagem das casas
dos entrevistados mostrando só a televisão, a cama,
as roupas no varal, como se perguntasse pelos
espíritos que dizem existir e estariam ali em volta,
observando o mundo material (os espíritos do kardecismo) ou alterando o seu curso (os da umbanda)
por meio de possessões, mortes, doenças que são
aceitas como o cumprimento do destino.
À medida que as personagens contam suas
histórias religiosas, revelam-se dúvidas, certezas e
resignações. Uma empregada doméstica, negra e
idosa, que suspeitava ter vivido outras vidas no
passado, foi procurar a resposta no centro espírita
kardecista de seus patrões. Entretanto, na maior parte
do seu depoimento ela fala das entidades da umbanda que a circundam, de forma invisível, e agem sobre
a vida das pessoas, como na da sua irmã, que "foi
levada" (morreu) pela pomba-gira Rainha do Inferno. Diz que hoje se afastou da umbanda, mas nunca
deixou de "cuidar dos santos". Este depoimento
culmina com uma pergunta imprevista de Coutinho:
"A senhora é feliz?". Quase chorando, ela pede para
não responder.
No filme de Dias aparecem respostas à pergunta
"o que é fé?". De acordo com os depoimentos, tratase da crença naquilo de que não se pode provar a
existência, como os espíritos e a vida após a morte.
A morte, que diariamente é vivida e provada (na
medida em que sofremos pela morte de outros), é
entendida como passagem, transformação ou reencarnação, e aí as respostas dependem de cada fé.
Talvez a cena mais expressiva das manifestações
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religiosas neste documentário seja o choro de uma
mãe ao receber a mensagem psicografada do filho,
que havia morrido em acidente de carro e estaria ali,
ao redor, querendo comunicar-se. O espiritismo
kardecista promove o contato com entes queridos
mortos e ensina como se conformar com esta separação parcial e momentânea, que será superada pela
reencarnação. Uma resposta bastante eficaz ao sentimento de perda de alguém amado, expresso no filme
pelo choro-catarse de uma mãe.
O último segmento apresentado nos filmes é o
evangélico, na sua vertente pentecostal. Com ele
fecha-se o circuito formado pelos principais vetores
de religiosidade retratados nos dois documentários.
Na cartografia de Fé, o pentecostalismo aparece de
duas maneiras. Na versão tradicional, são mostrados
o êxtase religioso em uma igreja de São Paulo, que
ocorre como uma catarse coletiva, e o longo "testemunho de conversão" de uma mulher. Em outras
palavras, duas características do chamado pentecostalismo clássico: a experiência mística da incorporação do espírito do próprio Deus e a ênfase emotiva
na conversão, que resulta em mudança de comportamento. Na versão contemporânea, por sua vez, é
retratado o neopentecostalismo em culto musical (o
gospel) realizado num estádio de futebol lotado.
Destacam-se aí a dimensão espetacular, o público
jovem e o discurso aguerrido e triunfalista — algo
muito distante da resignação católica da rezadeira
citada no início.
Em Santo forte a belicosidade neopentecostal
está representada pela Igreja Universal, instituição
religiosa mais polêmica das últimas décadas. A
maioria dos moradores da favela, contudo, reprova
seu estilo confrontante, que também atingiu as afrobrasileiras e a Igreja Católica. E é principalmente
com o universo formado por entidades, espíritos,
reencarnações, exus que ela tensiona. Ao narrar sua
trajetória religiosa, uma senhora diz que quando
criança foi necessário um pai-de-santo "prender" os
espíritos que a atormentavam. Depois de casada, o
diabo "se soltou" e "entrou" no seu marido, que
começou a traí-la. Após passar pela "mesa branca",
conheceu a Universal. Hoje afirma que "tudo era
exu", manifestação do diabo, a fonte do mal e do
sofrimento. Seu depoimento mostra como esta Igreja condena, mas ao mesmo tempo valida, as experiências religiosas de suas concorrentes. E o diabo é a
figura do universo cristão em que são enquadradas
todas as divindades das outras religiões, tornandose, paradoxalmente, o articulador da continuidade
entre as crenças e da circulação de pessoas por esse
caldo religioso católico-afro-espírita-pentecostal.
Nesse trânsito religioso as trajetórias são as mais
variadas possíveis. A moça da "surra de santo", por
exemplo, havia mudado da Universal para a umbanda, embora o inverso seja o mais freqüente. Uma
outra moça, que fez a mediação entre a equipe de
filmagem e os moradores da favela, era evangélica,
mas antes havia freqüentado a umbanda, que, segundo ela, só lhe trouxe sofrimento. Após passar pela
Universal, onde teve uma decepção amorosa, decidiu participar de várias denominações evangélicas,
que formam um circuito próprio — circuito porque
pessoas e crenças percorrem as alternativas religiosas
formando fluxos preferenciais, cujo resultado não
são simples "conversões", mas um acúmulo de experiências que nunca são, de fato, superadas, mas
assimiladas e transformadas pela confissão religiosa
do momento. A despeito dos possíveis percursos, ao
término de Santo forte tem-se a sensação de que ser
religioso nas regiões pobres e populosas do Rio de
Janeiro implica situar-se em um intenso diálogo
(confronto, oposição, assimilação, mistura, sobreposição, guerra etc.) que ocorre em zonas híbridas,
onde a religiosidade é vivida de maneira mais larga e
elástica, como se as alternativas dispostas isoladamente na cartografia de Fé se inscrevessem na biografia de vários entrevistados de Santo forte.
Ronaldo de Almeida é doutorando em Antropologia Social
pela USP e pesquisador do Cebrap. Silvana Nascimento é
mestranda em Antropologia Social pela USP e bolsista do
Cebrap.
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