FAMÍLIAS MÚTUAS, UMA ESPÉCIE EXTRAORDINÁRIA DE MULTIPARENTALIDADE Jones Figueirêdo Alves SUMÁRIO: I - Introdução. II - Famílias Mútuas. III - Dano Existencial Pensionado. IV - Por um Direito Parental Socioafetivo. V - Conclusões. I - Introdução Estamos aqui a tratar das denominadas "famílias mútuas", como uma espécie extraordinária de multiparentalidade, expressão que faço designar ou cunhar, diante de determinadas circunstâncias que agora recebem ampla carga jurídica na multifacetada realidade das famílias. Finalmente os multivínculos familiares têm obtido melhores ganhos de sua juridicidade, ao mesmo modo equipotente e substancial que a dignidade das pessoas se tornou direito e, nesse passo, se transmudou no mais absoluto direito fundamental, sob o crivo principiológico de relevo constitucional, como inserto no art. 1º, inciso III, da Carta Maior. Não há que se negar que a realidade fenomênica dos fatos da vida tem sido melhor tutelada pelo direito de família, com seus novos arranjos conceituais e sobretudo pelos novos institutos jurídicos, a partir dos momentos mais eloquentes da doutrina especializada e de inovadores julgamentos de competência na área da família. Antes de mais nada, situam-se, às expressas, em sede doutrinária, as expressões "desbiologização da paternidade" (1979) e "paternidade socioafetiva" (1992), que os juristas João Baptista Villela e Luiz Edson Fachin, em respectivo, instituíram em seus estudos, superando conceitos e determinismos históricos então concentrados na ortodoxia jurídica da verdade biológica. 1 Para ambos, cada um a seu tempo, o quid específico, "que faz de alguém um pai, independentemente da geração biológica", situa-se antes na capacidade afetiva do serviço de amar e servir do que no elemento da procriação, quando está somente submetida ao fato de gerar e nada mais. Esse amor posto à prova, para a aferição do vínculo primordial, quer antes render-se à sabedoria da sentença de Salomão, quando a renúncia em favor de filho ali revelou assentar a predominância do vínculo afetivo pelo que nele puramente mais se identifica, em face do melhor interesse da criança. Villela, ao tratar da desbiologização da paternidade, a definiu como um fato e uma vocação, certo que a paternidade é muito mais uma opção e um exercício, e não simples mercê ou fatalidade. 1 Fachin, ao se referir sobre a paternidade socioafetiva, encontra a família como um "ente aberto e plural", "não exclusivamente matrimonializada, diárquica, eudemonista e igualitária", porquanto na atual "família constitucionalizada começam a dominar as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação. Nomeadamente, na esfera do estado da filiação, ele advoga a força criativa dos fatos, com a manifesta dissociação entre paternidade e ascendência genética, em novas latitudes de um parentesco civil" 2. De fato. O estado de filiação oriundo do vínculo registral é meramente formal. A paternidade será sempre substancialmente socioafetiva, seja do vínculo oriundo do afeto, seja do vínculo parental consaguíneo. Existem pais biológicos que dão afeto aos filhos e pais biológicos em profundo desamor. E existem pais registrais socioafetivos ou não. 1 VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, n. 21, ano 1979. Conferência pronunciada em 09.05.79, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, em Curso de Extensão sobre o Direito do Menor 2 FACHIN, Luiz Edson. Inovação e tradição do direito de família contemporâneo sob o novo Código Civil. In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliene Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Coord.). Afeto e estruturas familiares. Belo Horizonte: Del Rey; IBDFAM, 2010. p. 325-345. 2 A propósito, cada família tem o seu direito de família, diria Carbonnier ("a chaque famille son droit"), indicando que o direito de família não pode ser feito por normas fechadas, exigindo-se que doutrina e jurisprudência se adicionem em visão aberta que enxergue a família em seu locus de realizações pessoais e digna, portanto, de compreensões metajurídicas. Assim, parentalidades são diversas, consolidadas pelo sangue (bio), pela consanguinidade com afeto (bioafetiva) e pelo trato, fama e nome, como a posse de estado de filho (socioafetiva); todas elas importando seus vínculos, o reconhecimento jurídico das situações fáticas e legais e, sobretudo, atendidas as relações entre pais e filhos como fenômenos parentais que transcendem os normativos atuais por existirem, antes de mais, como verdades concretas de realidade vividas e fundadas no valor afeto como bem jurídico. Bem é certo diferentes a "verdade do sangue" e a "verdade do coração", que são verdades que funcionalizam a filiação, conforme expressou Marie-Therèse Meldeurs, em seu pioneiro artigo sobre os novos fundamentos do conceito de filiação (1972). Impende, daí, considerar distintas (i) as filiações apenas biológicas, (ii) as filiações bioafetivas concomitantes (vínculo biológico + afetividade) e (iii) as filiações socioafetivas ocorrentes, estas últimas predominantes ou não. As primeiras estão na mera genitura, sem a função paterna exercida. Genitor é apenas quem procria. Pai é algo que acrescenta nas relações de vida. Sucede, então, cogitar sobre a multiparentalidade quando é de admitir-se, em situações pontuais, coexistentes a parentalidade socioafetiva e a biológica (filiações plurais). Cuida-se da teoria tridimensional da filiação, em seus critérios bio-afetoontológicos, reconhecidos presentes a um só tempo. A lei não oferece conceitos jurídicos de paternidade/maternidade e sequer constrói os seus estatutos próprios. Mas ao tratar da parentalidade, cuida defini-la em seu amplo espectro, dispondo o art. 1.593 do Código Civil que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem". 3 Pois bem. A parentalidade socioafetiva como modalidade de parentesco civil, sob a cláusula "outra origem", adicionada pelo novo Código (para além dos casos de adoção), não é apenas uma criação jurídica da lei. Antes, recepcionam a lei as situações fáticas e variadas que plasmam e têm plasmado espécies de parentalidades, como representações suficientes de pais e filhos, que se assumem, recíproca e conscientemente, por afeição, como se pais e filhos fossem, inexistente o jus sanguinis. Nessa toada, tais parentalidades consolidadas são reconhecidas e merecem amparo jurídico. De efeito, uma nova ordem jurídica coloca-se ao encontro das situações parentais mais diversas, na qual a família apresenta-se como "a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa". Esse conceito de família, o primeiro que se conhece ofertado pelo ordenamento jurídico nacional é o contido na Lei nº 11.340/06 (art. 5º, II) e no ponto, faz acrescentar o elemento da "vontade expressa" como novo liame familiar-parental no plano civil. Esse significante tem, assim, sua precisão cirúrgica, definindo outros vínculos que não os meramente biológicos. Subsistem situações de fato que, inexoravelmente, estão a reclamar a multiparentalidade, em seus devidos efeitos jurídicos, à luz dos dispositivos legais existentes (art. 1.593 do CC; Lei nº 11.340, art. 5º, II), conforme as variantes de cada situação concreta. Vejamos as principais hipóteses: (i) a indução a erro daquele que registra suposto filho sob a crença de ser o pai biológico, por si só, não pode macular o vínculo socioafetivo do pai registral, que venha a ser consolidado ao longo do tempo; a tanto o permitir defendê-lo frente ao pai biológico quando este estiver ciente da condição que lhe tenha sido até então sonegada; (ii) mesmo na ausência de ascendência genética, o registro realizado de forma consciente consolida a filiação socioafetiva. Essa circunstância opera-se quando o companheiro da mãe solteira registra o filho trazido por ela. Essa relação de fato deve ser reconhecida e amparada juridicamente. "Isso porque a parentalidade que 4 nasce de uma decisão espontânea deve ter guarida no direito de família" (STJ, 3ª T., RESp 1.259.460/SP, Relª Minª Nancy Andrighi, j. 19.06.2012); (iii) filiações ectogenéticas, na espécie dos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, na qual por ficção legal é genitor o marido da mulher (art. 1.597, inciso V, do Código Civil), configuram este também como um pai socioafetivo. Ao pai biológico (doador do esperma), a multiparentalidade pode ocorrer quando, em face do reconhecimento da identidade genética por direito personalíssimo do filho, venham ocorrer, entre estes, relações parentais também afetivas; e (iv) posse errada de filho (troca de recém-nascidos em maternidade), apurada depois, na qual a filiação socioafetiva consolidada não cede e não haverá de prejudicar a biológica. Esta última vertente de multiparentalidade está a reclamar, agora, um devido tratamento doutrinário e legal. E aqui ingresso logo, nas considerações que tenho a fazer, em breves apontamentos, por admitir urgente o trato da questão relevante. II - Famílias Mútuas A troca de bebês em maternidades, nascidos em mesmo dia, decorrente da ineficiência da administração hospitalar, tem provocado, com estatísticas alarmantes, que famílias assumam como filhos aqueles que são de outras, tendo-os, todavia, como verdadeiros filhos, ao fim e ao cabo de uma convivência familiar prolongada, em manifesta parentalidade socioafetiva. As primeiras repercussões fáticas dos equívocos havidos sobre a identidade genética apresentam-se manifestamente danosas, quando a não semelhança física com os presuntivos pais permite a ocorrência à miúde de "inconvenientes desconfianças" do cônjuge varão, que levam, em alguns casos, à separação judicial ou a uma compreensão social pela existência do denominado "filho de criação", culminando, outrossim, com a realização de exames genéticos para a verificação da paternidade e, depois, com a procura e identificação do filho biológico trocado. 5 As soluções subsequentes são a destroca dos filhos (na medida do possível), a retificação dos registros civis pessoais (com a mudança dos prenomes) e as indenizações por danos morais (de caráter compensatório); quando, em bom rigor, as sequelas psicológicas são profundas, os fatos da vida se tornaram inexoráveis pelos danos existenciais causados, valendo anotar por essencial os vínculos socioafetivos que jamais se desfazem. Em casos como tais, recente e notável julgado da 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Pernambuco, na qual é relator o Desembargador Erik de Sousa Dantas Simões, tendo como Juiz decisor de Primeiro Grau o Magistrado Glacidelson Antonio da Silva (1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Garanhuns, sentença em DJe 123/2011, de 07.07.2011, p. 1.182-1.185) e patrono dos autores o advogado Ivonaldo de Albuquerque Porto, confirmou a responsabilização civil estatal por troca de bebês, com o significativo de que ambas as famílias e os menores impúberes ajuizando, em conjunto, a ação indenizatória, permaneceram aqueles em companhia dos seus pais registrais, civis e sociafetivos, por inarredável situação consolidada de amor paterno-filial entre eles (TJPE - DJe 45/2014, de 10.03.2014, p. 167-168). "Bem que fartos em amor como natural puderam ter em J.R.B.S.J. a satisfação de tê-lo amado como filho e continuarão a ama-lo como tal", disseram os primeiros pais na petição inicial da ação proposta, o mesmo repetindo os segundos, em relação a L.F.S. Os bebês nasceram no mesmo dia (30.05.98), no mesmo hospital, com uma diferença de apenas oito minutos, trocados na primeira hora, e somente sete anos depois (25.04.05) tiveram, por exame genético, as suas verdadeiras origens biológicas reveladas. As decisões recíprocas dos pais afetivos, uns e outros, de mantê-los no lar onde cada um já se achava, onde foram criados e amados, ao tempo que exaltam a paternidade e maternidade socioafetivas fizeram, em ato instante, uma cumplicidade inevitável com o destino deles e de todos. Destinos de vidas trocadas. 6 No caso, é bem certo que tudo evidencia uma desigualdade econômica das famílias envolvidas. Enquanto uma, de melhores fortunas, guarnece e ama o filho da família pobre, esta última mantém por afeto e destino o filho rico da família que perseverou pelo filho de afeição, mantendo-se íntegras em suas estruturas de composição descendente. Essa singularidade elegível de vida mais enaltece o triunfo do amor, cuja prevalência tem pautado outros episódios bastante dignificantes: (i) o caso "Stanley e Jobson", em Cruzeiro do Sul, no Acre (BR), quando somente 15 anos depois (05.2013) foi descoberta a troca, mantiveram-se os jovens com suas genitoras afetivas, decidindo ambas as famílias estabelecer encontros para a dinâmica de convivência entre os filhos e as mães biológicas Maria Lúcia Bezerra e Ana Cláudia Ramos; (ii) o caso "Franciele e Danielle", em Foz do Iguaçu, no Paraná, quando trocadas em maternidade (23.10.95), o que somente constatado sete anos depois, decidiram também as famílias em não desfazer a troca, morarem próximas, tornando-se duas famílias unidas, não apenas por aproximação física, mas por liames das afeições consolidadas. Em situações como tais, recolhem-se esses fatos da vida como elementos indutores ao surgimento determinante do que ora se denomina de "famílias mútuas". Famílias mútuas serão aquelas, portanto, que se apresentam formadas por mães e pais que, assumindo efetivamente a socioafetividade parental de seus filhos, que lhes foram remetidos pelo destino, desde o berço trocado, não deixam, todavia, de proteger o vínculo biológico com os seus filhos consanguíneos em poder de outra família, cuja permanência ali se oferece como ditame da mesma socioafetividade preordenada. Há um outro dignificante exemplo, no caso russo da família Belyaeva, quando sua filha Anya foi trocada por Irina, filha de uma família muçulmana, a do tadjique Naimat Iskanderov, tendo o Tribunal de Kopeisk, nos montes Urais, condenado o hospital a uma indenização de U$ 100 mil (2011). As duas famílias, independente de tradições, costumes e religião diferentes, decidiram utilizar a indenização para 7 possibilitar residências próximas ou até uma moradia multifamiliar, para as crianças crescerem juntas com todos os pais. Anota-se que a troca de bebês em maternidades, notadamente públicas, tem sido um fenômeno crescente, não obstante medidas de segurança, normas internas ou municipais e a tímida tipificação penal referida pelo art. 229 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no atinente à correta identificação do neonato e da parturiente, por ocasião do parto. Os julgamentos dos tribunais brasileiros, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, têm sido frequentes, a assinalar a responsabilização civil por ilicitudes dessa espécie. III - Dano Existencial Pensionado No caso mais recente, anota-se com destaque que, para além da condenação do Estado de Pernambuco à indenização no valor de R$ 300 mil por danos morais para todos os autores (pais e filhos), foi acrescida a obrigação de o Estado fornecer tratamento psicológico a todos eles pelo prazo de dois anos. No ponto, tenha-se por refletir da impostergável construção jurídica do instituto do "pensionamento por dano existencial", de prazo determinado ou extensivo, em moldura jurídica equivalente à do "pensionamento por morte", do art. 948, I, do Código Civil, ou seja, uma "pensão civil por dano" destinada a suprir não apenas as despesas necessárias de tratamento psicológico de suporte às situações de adequação supervenientes ao ilícito, mas igualmente as despesas pertinentes e dirigidas a uma dinâmica de convivência dos pais com os filhos biológicos que permaneçam na família socioafetiva preestabelecida. O dano existencial para efeito de responsabilização civil, como espécie autônoma de dano, de origem recente no direito italiano, tem sua construção gradualmente sido feita, em nosso país, pela jurisprudência. Tal como sucedeu na Itália, em 2003, com as decisões da Corte de Cassação (ns. 8827 e 8828) e da Corte Constitucional (nº 233), quando o acórdão paradigma, de 31.05.03 (de nº 8827), situou-se precisamente em evento de idêntica magnitude afetiva, quando os pais, por erro médico em parto cesáreo, foram privados de uma interação eficiente 8 de trocas afetivas com a filha, nascida paraplégica, com atrofia cerebral, e condenada a viver em estado vegetativo. O direito de família bem identifica o dano existencial, em situações muito frequentes, a exemplo dos casos de disputa de guarda, com a conduta lesiva de um dos pais em subtrair o outro da convivência familiar com o filho, afetando também este, negativamente, certo que a alienação parental é a forma mais gravosa em tal hipótese. Convém lembrar, ainda, o emblemático "Caso Pedrinho", quando Pedro Rosalino Braule Pinto, o Pedrinho, foi sequestrado, horas depois do nascimento, de uma maternidade de Brasília, em 21 de janeiro de 1986, e registrado pela sequestradora Vilma Martins Costa como filho biológico, com quem viveu até os 16 anos em Goiânia, até a sua verdadeira identificação. Pedro somente conheceu os seus pais biológicos em 23 de novembro de 2002, importando acentuar, por tais circunstâncias, o manifesto dano existencial sofrido por eles. As graves afetações de cotidiano de vida são traços marcantes do dano existencial, a exemplo: (i) da perda de capacidade de procriação por acidente ou erro médico; (II) da paternidade postergada, por implicar, de forma iniludível, a perda de uma chance de melhor qualidade existencial de vida do filho com os benefícios advenientes de um imediato e inadiável amparo material e afetivo daquele que seja o pai e que protrai, com resistência indevida, esse reconhecimento; (ii) da paternidade sonegada, quando a genitora, por intolerância e emulação, torna insciente o ex-companheiro da existência do filho de ambos. Como se observa, o dano existencial encontra casuística aberta em sede das relações de família, cogitando-se, daí, uma aplicação sistemática de melhor proteção jurídica, diante da verificação adequada e específica de sua incidência. É uma nova categoria de dano que está a merecer evolução doutrinária do tipo, com respaldo na jurisprudência, e o devido acerto na aplicação analógica do art. 948, inciso II, para efeito de indenização constituída por pensão mensal. 9 IV - Por um Direito Parental Socioafetivo Nesse passo, o efetivo do afetivo ganha foros de atualidade e permanência. Se, de um lado, tem sido demonstrado que a filiação psicológica pelo afeto vem determinar, entre pais e filhos não biológicos, a existência da paternidade socioafetiva, a não tornar, inclusive, possível vir a ser esta desconstituída, até mesmo quando por ruptura das relações sociopaterno-filiais; lado outro, tem-se a denotar que a parentalidade socioafetiva constitui um direito parental novo, suscetível das mais variáveis construções doutrinárias e jurisprudenciais, a partir da matriz do pai afetivo por opção. Um direito cada vez melhor escrito e trabalhado. É certo que tem sido permitido o reconhecimento voluntário da paternidade biológica perante o oficial de registro civil, a qualquer tempo, mediante averbação do ato declaratório, no assento respectivo do nascimento do filho reconhecido, sem depender sequer de exame prévio de DNA. Esse reconhecimento tem sido objeto de políticas públicas (Lei nº 8.560/92, com atualização da Lei nº 12.004/09) e incentivado por mecanismos de facilitação (Provimentos do CNJ). Caso é de estender-se, agora, nas mesmas latitudes, o reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva, tendo em vista a igualdade jurídica entre as espécies de filiação (art. 226, § 6º, da Constituição Federal), quando, com direitos e qualificações idênticos, o filho afetivo resulta de um liame dos fatos da vida no plano íntimo da convivência com o pai referencial. Neste sentido, iniciativa normativa inédita no país veio permitir, através do Provimento nº 09/2013, de 2 de dezembro de 2013, da Corregedoria-Geral de Justiça de Pernambuco, por nossa iniciativa, que homens registrem filhos não biológicos em cartório, sem depender de ordem judicial emanada de ação declaratória da situação de fato preexistente, bastando: (i) o comparecimento pessoal para a declaração (art. 2º, § 1º); (ii) a concordância expressa da genitora ou do filho maior (art. 2º, §§ 3º e 4º); (iii) a qualificação dos dados do requerente, da genitora e do filho (art. 2º § 3º); e (iv) observadas as normas legais referentes à gratuidade de atos (art. 8º). 10 No plano de um direito parental socioafetivo, sob o viés do presente tema, podemos elencar, sem caráter exaustivo, situações jurígenas significativas e atípicas que expandem a ocorrência das famílias mútuas. Vejamos onde estão localizadas: (i) nas relações fraternas socioafetivas, entre filhos de famílias recompostas, quando estas são desfeitas e cada um deles acompanha o próprio genitor, privandose, então, da continuidade das relações fraternais; cabendo-lhes, contudo, exercerem, em reciprocidade, o direito de visita que lhe é atribuído; (ii) na "adoção singular", quando "a adoção efetivada pelo cônjuge da mãe (padrasto), em virtude do falecimento do pai biológico, não tem o efeito de romper definitivamente o vínculo estabelecido pela filiação natural da criança com a família paterna, conforme prescreve o art. 1.626 do Código Civil". De efeito, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais definiu que "a realidade material dos fatos não é anulada pela ficção do ato legal da adoção, devendo ser preservados os vínculos afetivos e familiares do menor, cuja individualidade não é atingida por presunções artificiais da realidade que a lei, com outras razões, estabelece", conforme julgado de 08.04.08, figurando como relator o Desembargador Wander Marotta 3; (iii) na "adoção unilateral" prevista no parágrafo único do art. 1.626 do Código Civil, quando dispõe que o cônjuge ou o companheiro pode adotar o filho do outro, sem que a mãe ou o pai seja destituído do poder familiar; (iv) na "adoção multiparental", na qual, diante das circunstâncias dos fatos, a afetividade construída pela adoção poderá ser somada - acrescida ao depois - à afetividade resultante do iniludível vínculo biológico que se faça também presente na convivência a existir entre o pai biológico e o filho então já inserido em família substitutiva (pela adoção), quando aquele vínculo de origem não fora assente em registro civil e o filho, sob desconhecimento daquele, veio a ser adotado por outrem. A propósito, pela primeira vez no país uma decisão judicial admitiu acrescentar ao registro de nascimento de menor adotado o nome de seu genitor genético e de seus avós paternos, mantendo-se a paternidade adotiva e registral, 3 TJMG, 100510702050110011 MG 1.0051.07.020501-1/001(1). 11 com o acréscimo do patronímico do pai biológico. A decisão foi proferida pelo Juiz de Direito Clicério Bezerra e Silva, da Primeira Vara de Família do Recife, em ação de investigação de paternidade em que a filha adotada, em expressão de sua identidade genética, com anuência dos pais adotivos e do próprio investigado, requereu o reconhecimento do vínculo biológico para os fins de admissão da multiparentalidade existente, quando, predominantemente, as relações de afetividade reúnem todos 4- 5. (v) na "adoção solidária", devendo entender-se por "adoção solidária" aquela em que a adoção de apenas um dos irmãos seja atribuída a famílias adotantes que se comprometam, antes de mais, a contribuir para a permanência dos vínculos fraternos em relação aos demais irmãos; e, ainda, (vi) no incontroverso direito de o padrasto ou a madrasta, como pais superpostos, em qualidade de pais socioafetivos, disporem exercer visita ao ex-enteado, quando cessada a relação conjugal ou convivencial com a genitora ou com o genitor daquele. Os exemplos aqui citados bem situam, em franco alargamento, a casuística das chamadas famílias mútuas. Entre elas, há um trespasse de dogmas ou de modelos clássicos, a não dizer que a verdade biológica possa prevalecer sobre a afetiva, ou vice-versa. Bem se vê, nessa esteira, que a configuração do parentesco socioafetivo, de certa forma, não se contrapõe ao vínculo biológico, nas suas configurações distintas e nem sempre antagônicas. Os vínculos de parentalidade estão a proclamar, portanto, o quanto são construídas famílias mútuas, no contexto de realidades subjacentes. 4 TJPE, Processo 0034634-20.2013.8.17.0001. A decisão judicial confortou-se, inegavelmente, em consolidar no plano jurídico a dupla paternidade fática, como admitiu o magistrado, quando incontroversos os fatos de que a criança nunca deixara de manter laços de convivência com aquele que indicou depois ser seu pai, a tanto a reconhecendo como filha, em mesmo liame de afeto, para além de um mero vínculo biológico. 5 12 V - Conclusões Sendo assim, entenda-se que a família multiparental, formada por filiações plurais, caracteriza a multiparentalidade como uma conquista do afeto reconhecido em seu intrínseco valor jurídico. Essa multiparentalidade é um parentesco funcional por realidade de vida, com elevada eficácia jurídica, tanto de uma presença simultânea, concomitante, quanto sucessiva e temporal. Parentalidade multípla, em todos os ditames, é espiritual antes de jurídica, no melhor sentido canônico, como a de José, marido de Maria, que teve como filho socioafetivo o próprio filho de Deus. Por isso mesmo, pai é aquele que se a(pai)xona. Impõe-se sublinhar, daí, que a multiparentalidade, admitida em direito, podendo ser concomitante ou sucessiva, será sempre, em todos os casos, voluntária e não imposta, a saber que a paternidade ou maternidade dúplice ocorrem pelo elemento condutor de afeições não excludentes. jurisprudência tem norteado uma multiparentalidade bem afeita nos seus atributos em vinculação substancial com uma afetividade marcante, sem limitações para a sua eficácia. Em razão disso, famílias mútuas que se conjugam convergentes, diante de vidas trocadas, a partir do berço, estão a prestar um testemunho do direito novo da multiparentalidade em sua forma mais eloquente. De efeito, há que se incluir na doutrina e na jurisprudência o abrigo jurídico mais apropriado a reger as situações de vida em que não só as famílias mútuas como as famílias múltiplas, as famílias mosaico, que surgidas pela prevalência do afeto, edificam presença eloquente de dignidade. São exemplos de multiparentalidade, no entrelace de fatos, que a ordem jurídica, por certo, também haverá de, sem submissão a dogmas, necessariamente contemplar. Quando separadas por troca na maternidade, em Rio Verde (Goiás), há 26 anos, as gêmeas Kátia Sousa e Juliana Flausina, vivendo com famílias distintas, descobriram-se irmãs, em ocasião que foram trabalhar na mesma loja de sapatos, 13 este fato de destino coloca-se a orientar, com precisão, que o direito deve servir a compreender melhor a vida. 14