REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 VINÍCIUS DE MORAES E NIZAR KABANI NA CONSTRUÇÃO DA MULHER Muna Omran1 http://lattes.cnpq.br/1549706346007529 RESUMO – Muitas vezes não sabemos como é possível dois poetas viverem no mesmo século sem nunca terem se conhecido ou entrecruzado suas obras na medida em que estas tratavam do mesmo tema (amor, erotismo, preocupação social) e tinham a mesma preocupação estética. O presente trabalho visa a apresentar a construção do feminino na obra do poeta brasileiro Vinícius de Moraes (1913-1980) e do poeta sírio Nizar Kabani (1923-1998). PALAVRAS-CHAVE – Literatura Brasileira, Literatura Árabe, Literatura Comparada, Feminino, Poesia 192 ABSTRACT – Often we do not know how two poets can live in the same century without ever having been met or interlocked their works to the extent that they dealt with the same theme (love, erotism, social concern) and had the same aesthetic concern. This paper presents the construction of the feminine in the work of Brazilian poet Vinicius de Moraes (1913-1980) and the Syrian poet Nizar Kabani (1923 - 1998). KEYWORDS – Brazilian Literature, Arabic Literature, Comparative Studies, feminine, poetry Introdução A Semana de Arte Moderna de 1922 no Brasil coroou a maior revolução estética nas artes brasileira. Sem dúvida os nomes de Oswald e Mário de Andrade representam este momento. Uma das propostas de 22 era romper com as estruturas e trazer o prosaico para a literatura, mas a estrutura da poesia perdeu-se; por liberdade de expressão e liberdade da forma bradavam nossos poetas. (Cf.: BOSI, 1980) A Geração de 30 manteve as inovações estéticas propostas pelos jovens paulistas, não tinha mais a obrigação de continuar a fazer revolução, as inovações estavam consolidadas, assim esta Geração conseguiu ir além, faziam os versos brancos e livres como os metrificados e rimados, as questões políticas passam a ser abordadas, uma vez que se vivia, no contexto nacional e mundial, Doutora em Literatura Comparada pela Unicamp. Professora Titular de Teoria da Literatura no Centro Universitário Plínio Leite (Unipli). Desenvolve pesquisas na área dos estudos culturais. 1 Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 conturbado. A perplexidade dos nossos poetas diante das guerras, os abismos sociais gerados pelos problemas econômicos, a incerteza tomava lugar do desvairismo da Geração anterior. A literatura brasileira tornava-se adulta e moderna. (ibidem) Neste contexto, a produção de Vinícius de Moraes, o Poetinha, como ele mesmo se autodenominava, ganha destaque. Tinha um temperamento apaixonado e esfuziante, ondulando em direção à possibilidade de vida e de alegria. Desse modo compensava a gravidade de suas indignações e intensidade dolorosa com que se atirava ao prazer e à dor. Sua poesia pode ser vista em dois momentos, num primeiro sua obra apresenta tendências místicas e transcendentais, revelando uma religiosidade que se debate entre os preceitos recebidos na educação católica que tivera e o desejo carnal: vive um conflito entre os desejos carnais e do espírito. Num segundo momento, marcado pelo Soneto do o poeta revela uma evolução e sua libertação dos preconceitos de sua classe. Abre-se para o transitório, integrando-se no tempo e no espaço. A melancolia do primeiro momento suaviza-se, sua linguagem mais concisa e dinâmica, são temas passam pelo amor sensual aos problemas sociais. No primeiro momento usava uma linguagem prolixa com versos longos, já no segundo, 193 mesmo cultuando o soneto camoniano, dando-lhe um sopro de modernidade inserindo um tom coloquial, Vinícius de Moraes ousa novas experiências formais. Com ele se realiza a proposta de 22, enfim o prosaico e o coloquial unem-se às estruturas poéticas tradicionais, rimas e metrificação bem cuidada para falar dos temas do cotidiano, do lirismo amoroso e, sobretudo, carrega sua poesia de denúncias sociais como se vê em Operário em Construção: (...) Um silêncio de torturas E gritos de maldição Um silêncio de fraturas A se arrastarem no chão. E o operário ouviu a voz De todos os seus irmãos Os seus irmãos que morreram Por outros que viverão. Uma esperança sincera Cresceu no seu coração E dentro da tarde mansa Agigantou-se a razão De um homem pobre e esquecido Razão porém que fizera Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 Em operário construído O operário em construção. (ibidem) Ao cantar o amor e a mulher, Vinícius carrega suas tintas com os ecos camonianos da estrutura poética. Soneto da Fidelidade De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure 194 Do outro lado do mundo, teremos um poeta, contemporâneo de Vinícius de Moraes, diplomata como o nosso Poetinha, apaixonado pelas mulheres, pelo amor como também preocupado com as questões sociais, este poeta era Nizar Kabani. O que aproxima os dois poetas, separados apenas pelo espaço, é a preocupação com a estética e a temática amorosa, sobretudo na construção da figura feminina. Assim, pretende-se ler comparativamente os dois autores propostos. Nascido na cidade de Damasco, Síria, em 1923, Kabani talvez seja o poeta do amor mais popular da literatura de expressão árabe contemporânea. Autor de mais de cinquenta livros, sua poesia se concentra em dois grandes temas, o nacionalismo árabe e o amor. Kabani foi um dos pioneiros na literatura de expressão árabe a trazer a linguagem cotidiana para a literária. O tema central de seus poemas é o erotismo e sua grande atração por mulheres, denunciando muitas vezes a opressão masculina à qual as mulheres orientais eram submetidas. Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 Assim, numa linguagem poética, como Vinícius de Moraes, Kabani expressou seus sentimentos em relação às mulheres. As Qasīdas de Kabani O sírio Nizar Kabani traz em sua obra a forte presença do mito feminino presente nas histórias de As mil e uma noites. Sherazade, a narradora de As mil e uma noites, constitui-se num mito do imaginário ocidental sobre as mulheres orientais, no entanto, a jovem que seduziu o sultão Sahriyar, com suas histórias cheias de aventuras e erotismo, está presente no imaginário dos autores de língua árabe, pois este mito da sedução feminina é muito mais do que uma mera imagem, “é uma expressão simbólica cujos valores são carregados de conotações afetivas, o que caracteriza seu poder de sedução” (NOVASKI, 1989, p.37) Essas narrativas circularam pelo mundo árabe por volta do século XIII d.C., como nos afirma Mamede Mustafá Jarouche: No mundo árabe, circulou pelo menos desde o século III H./IX d.C. uma obra com título e características semelhantes ao Livro das mil e uma noites. Contudo, foi somente entre a segunda metade do século VII H./ XIII d.C. e a primeira do século VIII H./ XIV d.C que ela passou a ter, de maneira indubitável, as características pelas quais é hoje conhecida e o título que Jorge Luis Borges considerava o mais belo de toda a literatura. ( JAROUCHE, 2005, p. 11, vol.1) 195 A mulher ora é apresentada como fonte de prazer ora como promessa da felicidade eterna, muitas vezes, ainda, causa da perdição masculina. Assim, homens e mulheres são seduzidos pelas histórias de amor e erotismo narradas por Sherazade, personagens, ouvintes e leitores querem o prazer e o amor natural. Nesse momento, o jovem avançou até ela – estava completamente embriagado – , pegou-a pelas pernas e ergueu-as até sua cintura, enquanto ela lhe enlaçava o pescoço com as mãos e os recebia com beijos intensos e lascivos. Imediatamente ele rasgou pela cintura as roupas que ela trajava e a deflorou. (LIVRO DAS MIL E UMA NOITES, pp. 77-79, vol.. 2) No entanto, é importante lembrar que estes textos não fogem à visão islâmica que se tem do jogo entre amor e erotismo. Nos textos corânicos a figura feminina é apresentada com diversos “‘ estereótipos’ carregados de sentido” (BOUHDIBA, 2006. p. 36) como também Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 A visão islâmica da cópula, fundada na harmonia preestabelecida e premeditada dos sexos, supõe uma complementaridade fundamental do masculino e do feminino. Essa complementaridade harmônica é criadora e procriadora. Entendemos por isso que o prolongamento da vida, que é não só a felicidade e o apaziguamento das tensões, mas também satisfação e gozo legítimo, não se pode fazer senão no quadro único do nikah2 de que sublinhamos o caráter global e totalizante. (ibidem, p. 36) Kabani não foge a esta influencia em seus poemas, e dá espaço para a mulher expressar a dor que a opressão lhe causava. O Oriente recebe meu canto, como elogio e como maldição Para qual dos dois caminhos conduzo minha gratidão? Para vingar o sangue da mulher oprimida E sempre deixar claro que poderá ser temida.3 ( KABANI, 1979) Estruturalmente, seus poemas mantêm a clássica metrificação, as aliterações e assonâncias são frequentes, mas a sua linguagem é inovadora, pois aproxima o literário ao prosaico, 196 permitindo que as pessoas mais simples pudessem entender sua obra, como afirma em sua autobiografia. I pondered long before this language. I wondered whether people would forgive me this deliberate aggression against the history of the Arabic rhetoric with all its pride. Magic and majesty. This was more, this was an aggression against my own poetic history… My question led me to other questions: why should simplicity be an aggression against history? (WILD, 1995, p. 202)4 Sua forma poética predileta são as qasīdas (odes), expressão poética do período clássico da literatura árabe, no apogeu do Califado Abássida, com grande expressão na cultura Andaluz. Bagdá produziu um discurso em torno da literatura cortesã, que elegeu a qasīdah de longa extensão a forma-poema ideal para a expressão conjunta dos propósitos amoroso e laudatório em verso. (SLEIMAN, 2007, p. 15) Nikah significa a cópula. As traduções aqui apresentadas são de livre tradução do árabe. 4 Ponderei muito para fazer entender minha linguagem. Gostaria de saber se as pessoas iriam me perdoar por essa agressão deliberada contra a história da retórica árabe com todo seu orgulho Mágica e majestosa. Isso foi mais, isto foi uma agressão contra a minha própria história poética ... Minha pergunta me levou a outras perguntas: por que a simplicidade é uma agressão contra a história? 2 3 Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 Estas poderiam ser escrita, mas predominantemente fazem parte da tradição oral. As qasīdas são poemas com uma única rima até o final. Com uma extensão variável de 20 a 80 versos e, quanto aos temas, priorizou o politematismo, entendido como a combinação de duas seções no poema: uma primeira voltada aos temas do amor, da sensualidade, do vinho e da viagem do poeta até os domínios do seu elogiado. (ibidem) E aqui aproximamos os dois poetas, enquanto Kabani recorre às qasīdas como forma poética, Vinícius retomava os sonetos e os versos decassílabos à moda camoniana. Kabani retoma esta vertente da poesia clássica de língua árabe e a explora tanto na expressão amorosa quanto na laudatória, intitulando diversas obras apenas com qasīda como os publicados em 1956. Em 1970 lança a seleção de Qasīda Mutwahisha e, em 1986, Qasīda Maghdoub A´laiha. No fragmento do poema que apresentamos, extraído do livro Qasaīd Mutwahisha, o eu lírico masculino se coloca totalmente submisso aos desejos de sua amada, deseja por ela ser dominado com toda sua força erótica, é o típico vassalo do amor. Pode-se ainda notar um 197 diálogo permanente com as histórias de As mil e uma noites5, contadas pela narradora de todas as narrativas, Sherazade, na medida em que o erotismo se faz valer em na poesia de Kabani. Ama-me com toda a fúria dos bárbaros com todo o calor do deserto com a fúria da tempestade não pense como os demais seres civilizados a civilização perdeu seus instintos ama-me como um terremoto como a surpresa da morte inesperada deixa meus seios arderem em brasa ataca-me como uma loba faminta e perigosa. A mesma abordagem é encontrada no poema do Amor total do poeta brasileiro. Amo-te tanto, meu amor... não cante O humano coração com mais verdade... Amo-te como amigo e como amante Numa sempre diversa realidade. Indicam-se as histórias da tradução direta do árabe, de Mamede Mustafá Jarouche. Volumes 1 e 2, ramo sírio e volume 3, ramo egípcio. 5 Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 Amo-te afim, de um calmo amor prestante E te amo além, presente na saudade Amo-te, enfim, com grande liberdade Dentro da eternidade e a cada instante. Amo-te como um bicho, simplesmente De um amor sem mistério e sem virtude Com um desejo maciço e permanente. E de te amar assim, muito e amiúde É que um dia em teu corpo de repente Hei de morrer de amar mais do que pude Além de cantar a figura feminina em sua poesia, Kabani é capaz de estimulá-la a lutar pela submissão6 imposta às mulheres do mundo islâmico e árabe. Quando um homem está apaixonado Como pode usar velhas palavras? Deveria a mulher a quem desejada Deitar-se com gramáticos e linguistas? Eu não digo nada a mulher amada Mas concentraria palavras de amor numa bolsa E viajaria por todos os idiomas Por louvor ao seu corpo. (Kabani, 1978, p.56) Como também assim é capaz de vê-las como fonte da perdição, é capaz de elevá-las ao 198 patamar das grandes musas. Eu não me pareço com outros amantes, minha amada Se algum lhe desse a nuvem Eu lhe daria a chuva Se outro lhe trouxesse a luz Eu lhe daria a lua Se algum lhe desse um ramo Eu lhe traria as árvores E se um outro, ainda, lhe trouxesse o navio Eu lhe daria a viagem. (ibidem) Considerando que os poemas de Kabani foram escritos entre os anos 1950 e 1980, enquanto o ocidente revia seus valores morais, no oriente o poeta publicava versos libertários na medida em que apontam para uma relação livre entre homens e mulheres. Kabani recorre ao eu Na maioria dos países árabes o percentual de mulheres que trabalha ainda é pequeno, a liberdade sexual ainda é condenada, como exemplo, muitas mulheres recorrem à cirurgia restauradora do hímen ou recorrerem ao suicídio quando perdem a virgindade. 6 Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 lírico masculino, emprestando muitas vezes sua voz para as mulheres. Ao dar voz ao feminino, o poeta as coloca totalmente dominadas e dominadoras. No poema Inta7 O’mri, (Você é minha vida), a mulher condiciona sua existência a dele. (...) Meu coração nunca viu a felicidade antes de você meu coração nunca viu ninguém além de você. (...) Você é minha vida que começa ao amanhecer com o seu brilho Como antes minha vida estava perdida Foi um tempo perdido, meu amor. Meu coração nunca viu a felicidade antes de você Meu coração nada viu outra coisa além de você E então, sentiu a dor do sofrimento Só agora eu comecei a zelar pela minha vida. (...) (ibidem) Já como eu lírico masculino, a mulher é avassaladora, assim como muitas personagens de As mil e uma noites. Não pense como os seres civilizados, Na quero você pensando como os civilizados A civilização perdeu seus instintos Ama-me como um terremoto Como a morte inesperada Deixe seus seios arderem em brasa, Ataca-me como uma loba faminta e perigosa (...) 199 Essa alternância de vozes estabelece limites definidos em relação ao enfoque que se deseja dar. Ao assumir a voz do eu lírico masculino, as musas são submetidas aos caprichos e desejos masculinos. No entanto, Kabani culpa a vida moderna pela perda da delicadeza feminina, reafirmando a visão do tradicional homem árabe sobre o feminino, uma mulher que pensa e deseja apenas bens materiais, interessante notar que há uma inversão de papéis: os homens são mais emotivos que as mulheres. Há uma retomada das cantigas de amor, de tradição medieval, influência da poesia Andaluz, o eu lírico masculino é o vassalo amoroso. Você deseja como todas as mulheres as minas de Salomão como todas as mulheres lagos de perfumes 7 Em língua árabe o pronome Inta se refere ao masculino você. O eu-lírico aqui é feminino, pois o pronome “você” em árabe sofre variações para marcar o gênero. Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 pentes de ferro horda de escravos você deseja um lorde que cantará suas glórias como um canário que lava seus pés com vinho Oh Sherazade como toda a mulher você quer que eu lhe dê as estrelas dos céus banquetes confortáveis você quer sedas de Shangai tapetes de Isfahan eu não sou nenhum profeta que impõe sua autoridade e o mar se abre Oh Sherazade Sou um simples trabalhador de Damasco eu mergulho meu pão em sangue meus sentimentos são modestos meu salário também eu acredito em pão e profetas e gosto de sonhos de amor. Esta retomada, no entanto, vai além, novamente são as influências das histórias de Sherazade que aproximam o poeta a este tipo de pensamento. “‘ Se acaso me indagais sobre as mulheres, digo que sou perito nos remédios das mulheres – um médico; se a cabeça do homem embranquece e diminui seu dinheiro, ele já não terá sorte nenhuma no afeto delas.’” ( Livro das Mil e uma noites, p. 165, Vol. II) 200 Na poesia de Kabani, a primeira pessoa do singular é uma recorrente, a mulher árabe contemporânea, habitante de cidades como Damasco, Cairo e Beirute, é interlocutora deste eu lírico. Ele fala para mulheres já ocidentalizadas, invocando Sherazade, uma oriental, apresentada aqui como uma mulher ardilosa e interesseira. Ele fala com mulheres que perderam sua pureza e sua força emotiva para a superficialidade da vida moderna, ocidentalizando-se, a atenção antes dedicada ao ser amado, agora cede lugar para sua vaidade. Paradoxalmente, o poeta marca sua posição em relação ao amor pelas orientais, afirmando sua dificuldade em amar mulheres ocidentais, mulheres sem as influências do mito de Sherazade. I felt that to love a foreigner or to marry her would be signing a marriage contract in hieroglyphs. The husband of a foreign woman will serve all his life as an interpreter. By my very nature, I cannot love a woman in which I do not smell the smell of mint, of wild, Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 thyme, of basil, of genista, of jasmine, of guilly-flower and dahlias which fill the fields of my country. 8 ( WILD, 1995, p. 204) Por outro lado, muitas vezes recorre ao eu lírico feminino, apontando para a hipocrisia, masculina e sua dupla moral, ou ainda para a total dependência afetiva da mulher. (...) sei quem eu sou agradeça por me ter você é afortunado você é meu amado você salvou meus seios da solidão você colocou neles a aura da realeza você os moldou você os coroou ao me tocar transformei-me em uma das maravilhas do mundo fiz maravilhas por você. ( KABANI, 1968, p.45) Em outros poemas, rompe os limites impostos pela sociedade conservadora em que vivia, o poeta explorou e expôs o prazer sexual feminino, como se pode ver num dos poemas de Qasaīd Mutwahisha. 201 Não entre! sua voz cerrou meu caminho suas palavras trancaram meus passos você estava sem seus amigos sua mentira foi denunciada pela voz feminina que chamava a você foi ela quem me substituiu? ‘Pare!’ esta ordem até agora envenena meu coração enquanto isso, o vento soprava e trazia com ele a humilhação imposta pela sua voz não se desculpe, mar em tormenta. (KABANI, 1968, p.60) Ou ainda, no mesmo poema, Perdoa-me, senhor, Se eu desejei uma aventura nos domínios dos homens a literatura clássica, é claro, era domínio dos homens e o amor era prerrogativa masculina 8 Senti que amar uma estrangeira ou para se casar com ela seria a assinatura de um contrato de casamento em hieróglifos. O marido de uma mulher estrangeira irá servir toda a sua vida como intérprete. Pela minha natureza, eu não posso amar uma mulher em que eu não sinta o cheiro da hortelã, do tomilho selvagem, de manjericão, de giesta, de jasmim, flor-de Guilly e dálias que preenchem os campos do meu país. Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 e sexo era o ópio dos homens vendidos um mito em suas terras é a liberdade feminina mas não existe outra liberdade senão para os homens... (ibidem.) O amor só é permitido ao universo masculino, o eu lírico pede perdão por aventurar-se nos domínios dos homens, o eu lírico reconhece seu papel social, mas o avança, quer ter o direito de amar, quer ter, no espaço masculino, sua liberdade. Kabani avança assim todos os limites impostos pelo seu tempo. Em seus poemas reconhece que amor e morte, Eros e Tânatos, caminham juntos. Não entre! Sua voz cerrou meu caminho Suas palavras trancaram meus passos Seus amigos não estavam com você, Sua mentira foi denunciada pela voz feminina que te chamava Foi ela quem me substituiu? Foi por ela que minha entrada foi proibida? “Pare!” Essa ordem até agora me envenena o coração (...) (ibidem) O poeta associa a sua produção poética com o prazer ou a frustração do ato sexual, 202 conforme afirma em suas memórias. The relation of the poem with the sheet of paper I am writing on is a relation whichs hares many of its peculiarities with sex. It begins like all physical relations with the desire to occupy a space which we do not know, in a country which we do not know. The sheet of paper in front of me is a boy which I do not know. (…) A sheet of paper – like any woman – has to master the rules of the game and the fundamentals of hunting and the catching of the prey.(…) Sometimes I feel that the paper is ready and I make love with it successfully. (WILD, op. cit. 201)9 Sonetos e baladas de Vinícius Vinícius de Moraes foi basicamente um poeta do amor. Cantou-o de todos os aspectos: a paixão desenfreada, o sofrimento pela indiferença ou a rejeição da amada. A beleza da mulher, sua sensualidade, sua brandura, sua delicadeza e sua força fazem parte de sua poesia. 9 A relação do poema com folha de papel na qual escrevo traz muitas semelhanças com as relações sexuais. Ela começa como todas as relações físicas com o desejo de ocupar um espaço que não sabemos, em um país que não sabemos. A folha de papel na minha frente é um menino que eu não conheço. (...) Uma folha de papel - como qualquer mulher - tem que dominar as regras do jogo e os fundamentos da caça e à captura da presa (...) Às vezes eu sinto que o papel está pronto e eu faço amor com ele com sucesso. . Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 Em 1939, Vinícius ganha uma bolsa de estudos para a universidade de Oxford, na Inglaterra, onde pretendia defender uma tese sobre os sonetos de Shakespeare e lá escreve um soneto que viria a fazer parte do livro Poemas, soneto e baladas, publicado em 1946. Soneto do Carnaval Distante o meu amor, se me afigura O amor como um patético tormento Pensar nele é morrer de desventura Não pensar é matar meu pensamento. Seu mais doce desejo se amargura Todo o instante perdido é um sofrimento Cada beijo lembrado uma tortura Um ciúme do próprio ciumento. E vivemos partindo, ela de mim E eu dela, enquanto breves vão-se os anos Para a grande partida que há no fim De toda a vida e todo o amor humanos: Mas tranquila ela sabe, e eu sei tranquilo Que se um fica o outro parte a redimi-lo. 203 Nota-se que Vinícius se preocupa com a construção poética, os versos metrificados, a linguagem acessível, mas mantendo a sobriedade, fala de sua amada distante ou quem sabe perdida, reencontrando-a após a morte. Numa clara influência camoniana seus sonetos constituem o melhor de sua lírica. Soneto do Corifeu São demais os perigos desta vida Para quem tem paixão, principalmente Quando uma lua surge de repente E se deixa no céu, como esquecida. E se ao luar que atua desvairado Vem se unir uma música qualquer Aí então é preciso ter cuidado Porque deve andar perto uma mulher. Deve andar perto uma mulher que é feita De música, luar e sentimento E que a vida não quer, de tão perfeita. Uma mulher que é como a própria Lua: Tão linda que só espalha sofrimento Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 Tão cheia de pudor que vive nua. Assim como Kabani, Vinícius fala da dor da separação, Soneto da separação De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto. De repente da calma fez-se o vento Que dos olhos desfez a última chama E da paixão fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama. De repente, não mais que de repente Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente. Fez-se do amigo próximo o distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente. 204 A figura feminina em Vinícius é bela, voraz, sedutora, traiçoeira e traída, no entanto ao contrário de Kabani, a voz feminina não tem vez na sua poesia, é o poeta quem fala delas e não por elas como Kabani faz. Porém não é só nos sonetos que a mulher é cantada por Vinicius de Moraes, a idealização feminina é uma constante na obra de Vinícius, como podemos ver em “A mulher que passa”, Meu Deus, eu quero a mulher que passa. Seu dorso frio é um campo de lírios Tem sete cores nos seus cabelos Sete esperanças na boca fresca! Oh! Como és linda, mulher que passas Que me sacias e suplicias Dentro das noites, dentro dos dias! Teus sentimentos são poesia Teus sofrimentos, melancolia. Teus pêlos são relva boa Fresca e macia. Teus belos braços são cisnes mansos Longe das vozes da ventania. Meu Deus, eu quero a mulher que passa! Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 Como te adoro, mulher que passas Que vens e passas, que me sacias Dentro das noites, dentro dos dias! Por que me faltas, se te procuro? Por que me odeias quando te juro Que te perdia se me encontravas E me encontravas se te perdias? Por que não voltas, mulher que passas? Por que não enches a minha vida? Por que não voltas, mulher querida Sempre perdida, nunca encontrada? Por que não voltas à minha vida Para o que sofro não ser desgraça? Meu Deus, eu quero a mulher que passa! Eu quero-a agora, sem mais demora A minha amada mulher que passa! No santo nome do teu martírio Do teu martírio que nunca cessa Meu Deus, eu quero, quero depressa A minha amada mulher que passa! 205 Que fica e passa, que pacifica Que é tanto pura como devassa Que bóia leve como cortiça E tem raízes como a fumaça. Ou quando constrói a imagem da mulher perfeita, As muito feias que me perdoem Mas beleza é fundamental. É preciso Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso (...) Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. (...) Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e Seja leve como um resto de nuvem; mas que seja uma nuvem Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca Fresca (nunca úmida) é também de extrema pertinência. É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas No enlaçar de uma cintura semovente. Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras É como um rio sem pontes. Indispensável Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida A mulher se alteie em cálice, e que seus seios Sejam uma expressão greco-romana, mais do que gótica ou barroca E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume nas coxas E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem No entanto sensível à carícia em sentido contrário. (...) E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber O fel da dúvida. Oh, sobretudo Que ela não perca nunca, em não importa em que mundo Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre O impossível perfume; e destile sempre O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto De sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição Constitua a mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável Por outro lado há o amor sublime, beirando a sacralização das relações amorosas, extrapolando a sexualidade como podemos ver no “Soneto da Devoção”: 206 Essa mulher que se arremessa, fria E lúbrica em meus braços, e nos seios Me arrebata e me beija e balbucia Versos, votos de amor e nomes feios. Essa mulher, flor de melancolia Que se ri dos meus pálidos receios A única entre todas a quem dei Os carinhos que nunca a outra daria. Essa mulher que a cada amor proclama A miséria e a grandeza de quem ama E guarda a marca dos meus dentes nela. Essa mulher é um mundo! – uma cadela Talvez... – mas na moldura de uma cama Nunca mulher nenhuma foi tão bela Assim, com humor, dá uma outra dimensão à expressão amorosa. Conclusão Muma Omran REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. I Nº 3 DEZ/2010 Tanto em Vinicius quanto em Kabani a beleza, o erotismo e o amor da mulher são cantados, cada um em seu espaço retrata esta figura. Ambos não medem esforços para apresentar seus desejos. Vinícius contempla a mulher e o amor que sente por ela, já a contribuição de Kabani é inegável para a literatura de expressão árabe contemporânea. Explorando o erotismo e o amor carnal como algo não só inerente aos homens, mas também às mulheres, num espaço social onde sexo, erotismo, prazer, amor são vetados ao corpo feminino, o poeta embora, algumas vezes, mantenha um olhar orientalista, não deixa de explorar temáticas que séculos antes, Sherazade em suas narrativas havia explorado. O mérito de Kabani se encontra em ter dado voz para a mulher na poesia de língua árabe. Mesmo numa perspectiva ainda masculina, o poeta abre as portas para o retorno de Sherazade, cujas palavras seduzem os mais desavisados dos mortais. Seus poemas, como as histórias de As mil e uma noites tiram o véu que encobre a palavra, o corpo e o desejo feminino. Assim, Kabani e Vinícius coloca estas mulheres num espaço real e palpável. Referências bibliográficas 207 ALLEN, Roger. Love and Sexuality in Modern Arabic Literature. London/England, Saqi Books, 1995 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1980. 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