REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. I
Nº 3
DEZ/2010
VINÍCIUS DE MORAES E NIZAR KABANI NA CONSTRUÇÃO DA MULHER Muna Omran1
http://lattes.cnpq.br/1549706346007529
RESUMO – Muitas vezes não sabemos como é possível dois poetas viverem no mesmo século
sem nunca terem se conhecido ou entrecruzado suas obras na medida em que estas tratavam do
mesmo tema (amor, erotismo, preocupação social) e tinham a mesma preocupação estética. O
presente trabalho visa a apresentar a construção do feminino na obra do poeta brasileiro Vinícius
de Moraes (1913-1980) e do poeta sírio Nizar Kabani (1923-1998).
PALAVRAS-CHAVE – Literatura Brasileira, Literatura Árabe, Literatura Comparada,
Feminino, Poesia
192
ABSTRACT – Often we do not know how two poets can live in the same century without ever
having been met or interlocked their works to the extent that they dealt with the same theme
(love, erotism, social concern) and had the same aesthetic concern. This paper presents the
construction of the feminine in the work of Brazilian poet Vinicius de Moraes (1913-1980) and
the Syrian poet Nizar Kabani (1923 - 1998).
KEYWORDS – Brazilian Literature, Arabic Literature, Comparative Studies, feminine, poetry
Introdução
A Semana de Arte Moderna de 1922 no Brasil coroou a maior revolução estética nas artes
brasileira. Sem dúvida os nomes de Oswald e Mário de Andrade representam este momento.
Uma das propostas de 22 era romper com as estruturas e trazer o prosaico para a literatura, mas a
estrutura da poesia perdeu-se; por liberdade de expressão e liberdade da forma bradavam nossos
poetas. (Cf.: BOSI, 1980)
A Geração de 30 manteve as inovações estéticas propostas pelos jovens paulistas, não tinha
mais a obrigação de continuar a fazer revolução, as inovações estavam consolidadas, assim esta
Geração conseguiu ir além, faziam os versos brancos e livres como os metrificados e rimados, as
questões políticas passam a ser abordadas, uma vez que se vivia, no contexto nacional e mundial,
Doutora em Literatura Comparada pela Unicamp. Professora Titular de Teoria da Literatura no Centro
Universitário Plínio Leite (Unipli). Desenvolve pesquisas na área dos estudos culturais.
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Muma Omran
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conturbado. A perplexidade dos nossos poetas diante das guerras, os abismos sociais gerados
pelos problemas econômicos, a incerteza tomava lugar do desvairismo da Geração anterior. A
literatura brasileira tornava-se adulta e moderna. (ibidem)
Neste contexto, a produção de Vinícius de Moraes, o Poetinha, como ele mesmo se
autodenominava, ganha destaque. Tinha um temperamento apaixonado e esfuziante, ondulando
em direção à possibilidade de vida e de alegria. Desse modo compensava a gravidade de suas
indignações e intensidade dolorosa com que se atirava ao prazer e à dor.
Sua poesia pode ser vista em dois momentos, num primeiro sua obra apresenta tendências
místicas e transcendentais, revelando uma religiosidade que se debate entre os preceitos recebidos
na educação católica que tivera e o desejo carnal: vive um conflito entre os desejos carnais e do
espírito.
Num segundo momento, marcado pelo Soneto do o poeta revela uma evolução e sua
libertação dos preconceitos de sua classe. Abre-se para o transitório, integrando-se no tempo e no
espaço. A melancolia do primeiro momento suaviza-se, sua linguagem mais concisa e dinâmica,
são temas passam pelo amor sensual aos problemas sociais.
No primeiro momento usava uma linguagem prolixa com versos longos, já no segundo,
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mesmo cultuando o soneto camoniano, dando-lhe um sopro de modernidade inserindo um tom
coloquial, Vinícius de Moraes ousa novas experiências formais. Com ele se realiza a proposta de
22, enfim o prosaico e o coloquial unem-se às estruturas poéticas tradicionais, rimas e
metrificação bem cuidada para falar dos temas do cotidiano, do lirismo amoroso e, sobretudo,
carrega sua poesia de denúncias sociais como se vê em Operário em Construção:
(...)
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
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Em operário construído
O operário em construção.
(ibidem)
Ao cantar o amor e a mulher, Vinícius carrega suas tintas com os ecos camonianos da
estrutura poética.
Soneto da Fidelidade
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
194
Do outro lado do mundo, teremos um poeta, contemporâneo de Vinícius de Moraes,
diplomata como o nosso Poetinha, apaixonado pelas mulheres, pelo amor como também
preocupado com as questões sociais, este poeta era Nizar Kabani.
O que aproxima os dois poetas, separados apenas pelo espaço, é a preocupação com a
estética e a temática amorosa, sobretudo na construção da figura feminina. Assim, pretende-se ler
comparativamente os dois autores propostos.
Nascido na cidade de Damasco, Síria, em 1923, Kabani talvez seja o poeta do amor mais
popular da literatura de expressão árabe contemporânea. Autor de mais de cinquenta livros, sua
poesia se concentra em dois grandes temas, o nacionalismo árabe e o amor.
Kabani foi um dos pioneiros na literatura de expressão árabe a trazer a linguagem
cotidiana para a literária. O tema central de seus poemas é o erotismo e sua grande atração por
mulheres, denunciando muitas vezes a opressão masculina à qual as mulheres orientais eram
submetidas.
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Assim, numa linguagem poética, como Vinícius de Moraes, Kabani expressou seus
sentimentos em relação às mulheres.
As Qasīdas de Kabani
O sírio Nizar Kabani traz em sua obra a forte presença do mito feminino presente nas
histórias de As mil e uma noites.
Sherazade, a narradora de As mil e uma noites, constitui-se num mito do imaginário ocidental
sobre as mulheres orientais, no entanto, a jovem que seduziu o sultão Sahriyar, com suas histórias
cheias de aventuras e erotismo, está presente no imaginário dos autores de língua árabe, pois este
mito da sedução feminina é muito mais do que uma mera imagem, “é uma expressão simbólica
cujos valores são carregados de conotações afetivas, o que caracteriza seu poder de sedução”
(NOVASKI, 1989, p.37)
Essas narrativas circularam pelo mundo árabe por volta do século XIII d.C., como nos
afirma Mamede Mustafá Jarouche:
No mundo árabe, circulou pelo menos desde o século III H./IX d.C. uma obra
com título e características semelhantes ao Livro das mil e uma noites. Contudo, foi
somente entre a segunda metade do século VII H./ XIII d.C. e a primeira do
século VIII H./ XIV d.C que ela passou a ter, de maneira indubitável, as
características pelas quais é hoje conhecida e o título que Jorge Luis Borges
considerava o mais belo de toda a literatura. ( JAROUCHE, 2005, p. 11, vol.1)
195
A mulher ora é apresentada como fonte de prazer ora como promessa da felicidade eterna,
muitas vezes, ainda, causa da perdição masculina. Assim, homens e mulheres são seduzidos pelas
histórias de amor e erotismo narradas por Sherazade, personagens, ouvintes e leitores querem o
prazer e o amor natural.
Nesse momento, o jovem avançou até ela – estava completamente
embriagado – , pegou-a pelas pernas e ergueu-as até sua cintura, enquanto ela
lhe enlaçava o pescoço com as mãos e os recebia com beijos intensos e
lascivos. Imediatamente ele rasgou pela cintura as roupas que ela trajava e a
deflorou. (LIVRO DAS MIL E UMA NOITES, pp. 77-79, vol.. 2)
No entanto, é importante lembrar que estes textos não fogem à visão islâmica que se tem do
jogo entre amor e erotismo. Nos textos corânicos a figura feminina é apresentada com diversos “‘
estereótipos’ carregados de sentido” (BOUHDIBA, 2006. p. 36) como também
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A visão islâmica da cópula, fundada na harmonia preestabelecida e premeditada
dos sexos, supõe uma complementaridade fundamental do masculino e do
feminino. Essa complementaridade harmônica é criadora e procriadora.
Entendemos por isso que o prolongamento da vida, que é não só a felicidade e
o apaziguamento das tensões, mas também satisfação e gozo legítimo, não se
pode fazer senão no quadro único do nikah2 de que sublinhamos o caráter
global e totalizante. (ibidem, p. 36)
Kabani não foge a esta influencia em seus poemas, e dá espaço para a mulher expressar a
dor que a opressão lhe causava.
O Oriente recebe meu canto, como elogio e como maldição
Para qual dos dois caminhos conduzo minha gratidão?
Para vingar o sangue da mulher oprimida
E sempre deixar claro que poderá ser temida.3 ( KABANI, 1979)
Estruturalmente, seus poemas mantêm a clássica metrificação, as aliterações e assonâncias
são frequentes, mas a sua linguagem é inovadora, pois aproxima o literário ao prosaico,
196
permitindo que as pessoas mais simples pudessem entender sua obra, como afirma em sua
autobiografia.
I pondered long before this language. I wondered whether people would
forgive me this deliberate aggression against the history of the Arabic
rhetoric with all its pride. Magic and majesty. This was more, this was an
aggression against my own poetic history…
My question led me to other questions: why should simplicity be an
aggression against history? (WILD, 1995, p. 202)4
Sua forma poética predileta são as qasīdas (odes), expressão poética do período clássico da
literatura árabe, no apogeu do Califado Abássida, com grande expressão na cultura Andaluz.
Bagdá produziu um discurso em torno da literatura cortesã, que elegeu a qasīdah
de longa extensão a forma-poema ideal para a expressão conjunta dos
propósitos amoroso e laudatório em verso. (SLEIMAN, 2007, p. 15)
Nikah significa a cópula.
As traduções aqui apresentadas são de livre tradução do árabe.
4
Ponderei muito para fazer entender minha linguagem. Gostaria de saber se as pessoas iriam me perdoar por essa
agressão deliberada contra a história da retórica árabe com todo seu orgulho Mágica e majestosa. Isso foi mais, isto
foi uma agressão contra a minha própria história poética ...
Minha pergunta me levou a outras perguntas: por que a simplicidade é uma agressão contra a história?
2
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Estas poderiam ser escrita, mas predominantemente fazem parte da tradição oral. As qasīdas
são poemas com uma única rima até o final. Com uma
extensão variável de 20 a 80 versos e, quanto aos temas, priorizou o politematismo,
entendido como a combinação de duas seções no poema: uma primeira voltada aos temas do
amor, da sensualidade, do vinho e da viagem do poeta até os domínios do seu elogiado.
(ibidem)
E aqui aproximamos os dois poetas, enquanto Kabani recorre às qasīdas como forma
poética, Vinícius retomava os sonetos e os versos decassílabos à moda camoniana.
Kabani retoma esta vertente da poesia clássica de língua árabe e a explora tanto na
expressão amorosa quanto na laudatória, intitulando diversas obras apenas com qasīda como os
publicados em 1956. Em 1970 lança a seleção de Qasīda Mutwahisha e, em 1986, Qasīda Maghdoub
A´laiha.
No fragmento do poema que apresentamos, extraído do livro Qasaīd Mutwahisha, o eu
lírico masculino se coloca totalmente submisso aos desejos de sua amada, deseja por ela ser
dominado com toda sua força erótica, é o típico vassalo do amor. Pode-se ainda notar um
197
diálogo permanente com as histórias de As mil e uma noites5, contadas pela narradora de todas as
narrativas, Sherazade, na medida em que o erotismo se faz valer em na poesia de Kabani.
Ama-me
com toda a fúria dos bárbaros
com todo o calor do deserto
com a fúria da tempestade
não pense como os demais seres civilizados
a civilização perdeu seus instintos
ama-me como um terremoto
como a surpresa da morte inesperada
deixa meus seios arderem em brasa
ataca-me como uma loba faminta e perigosa.
A mesma abordagem é encontrada no poema do Amor total do poeta brasileiro.
Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Indicam-se as histórias da tradução direta do árabe, de Mamede Mustafá Jarouche. Volumes 1 e 2, ramo sírio e
volume 3, ramo egípcio.
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Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude
Além de cantar a figura feminina em sua poesia, Kabani é capaz de estimulá-la a lutar pela
submissão6 imposta às mulheres do mundo islâmico e árabe.
Quando um homem está apaixonado
Como pode usar velhas palavras?
Deveria a mulher a quem desejada
Deitar-se com gramáticos e linguistas?
Eu não digo nada a mulher amada
Mas concentraria palavras de amor numa bolsa
E viajaria por todos os idiomas
Por louvor ao seu corpo. (Kabani, 1978, p.56)
Como também assim é capaz de vê-las como fonte da perdição, é capaz de elevá-las ao
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patamar das grandes musas.
Eu não me pareço com outros amantes, minha amada
Se algum lhe desse a nuvem
Eu lhe daria a chuva
Se outro lhe trouxesse a luz
Eu lhe daria a lua
Se algum lhe desse um ramo
Eu lhe traria as árvores
E se um outro, ainda, lhe trouxesse o navio
Eu lhe daria a viagem. (ibidem)
Considerando que os poemas de Kabani foram escritos entre os anos 1950 e 1980,
enquanto o ocidente revia seus valores morais, no oriente o poeta publicava versos libertários na
medida em que apontam para uma relação livre entre homens e mulheres. Kabani recorre ao eu
Na maioria dos países árabes o percentual de mulheres que trabalha ainda é pequeno, a liberdade sexual ainda é
condenada, como exemplo, muitas mulheres recorrem à cirurgia restauradora do hímen ou recorrerem ao suicídio
quando perdem a virgindade.
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lírico masculino, emprestando muitas vezes sua voz para as mulheres. Ao dar voz ao feminino, o
poeta as coloca totalmente dominadas e dominadoras.
No poema Inta7 O’mri, (Você é minha vida), a mulher condiciona sua existência a dele.
(...)
Meu coração nunca viu a felicidade antes de você
meu coração nunca viu ninguém além de você.
(...) Você é minha vida que começa ao amanhecer com o seu brilho
Como antes minha vida estava perdida
Foi um tempo perdido, meu amor.
Meu coração nunca viu a felicidade antes de você
Meu coração nada viu outra coisa além de você
E então, sentiu a dor do sofrimento
Só agora eu comecei a zelar pela minha vida. (...) (ibidem)
Já como eu lírico masculino, a mulher é avassaladora, assim como muitas personagens de
As mil e uma noites.
Não pense como os seres civilizados,
Na quero você pensando como os civilizados
A civilização perdeu seus instintos
Ama-me como um terremoto
Como a morte inesperada
Deixe seus seios arderem em brasa,
Ataca-me como uma loba faminta e perigosa (...)
199
Essa alternância de vozes estabelece limites definidos em relação ao enfoque que se deseja
dar. Ao assumir a voz do eu lírico masculino, as musas são submetidas aos caprichos e desejos
masculinos.
No entanto, Kabani culpa a vida moderna pela perda da delicadeza feminina, reafirmando
a visão do tradicional homem árabe sobre o feminino, uma mulher que pensa e deseja apenas
bens materiais, interessante notar que há uma inversão de papéis: os homens são mais emotivos
que as mulheres. Há uma retomada das cantigas de amor, de tradição medieval, influência da
poesia Andaluz, o eu lírico masculino é o vassalo amoroso.
Você deseja como todas as mulheres
as minas de Salomão
como todas as mulheres
lagos de perfumes
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Em língua árabe o pronome Inta se refere ao masculino você. O eu-lírico aqui é feminino, pois o pronome “você”
em árabe sofre variações para marcar o gênero.
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pentes de ferro
horda de escravos
você deseja um lorde
que cantará suas glórias como um canário
que lava seus pés com vinho
Oh Sherazade
como toda a mulher
você quer que eu lhe dê as estrelas dos céus
banquetes confortáveis
você quer sedas de Shangai
tapetes de Isfahan
eu não sou nenhum profeta que impõe sua autoridade
e o mar se abre
Oh Sherazade
Sou um simples trabalhador de Damasco
eu mergulho meu pão em sangue
meus sentimentos são modestos
meu salário também
eu acredito em pão e profetas
e gosto de sonhos de amor.
Esta retomada, no entanto, vai além, novamente são as influências das histórias de
Sherazade que aproximam o poeta a este tipo de pensamento.
“‘ Se acaso me indagais sobre as mulheres, digo que sou perito nos remédios
das mulheres – um médico; se a cabeça do homem embranquece e diminui seu
dinheiro, ele já não terá sorte nenhuma no afeto delas.’” ( Livro das Mil e uma
noites, p. 165, Vol. II)
200
Na poesia de Kabani, a primeira pessoa do singular é uma recorrente, a mulher árabe
contemporânea, habitante de cidades como Damasco, Cairo e Beirute, é interlocutora deste eu
lírico. Ele fala para mulheres já ocidentalizadas, invocando Sherazade, uma oriental, apresentada
aqui como uma mulher ardilosa e interesseira. Ele fala com mulheres que perderam sua pureza e
sua força emotiva para a superficialidade da vida moderna, ocidentalizando-se, a atenção antes
dedicada ao ser amado, agora cede lugar para sua vaidade.
Paradoxalmente, o poeta marca sua posição em relação ao amor pelas orientais,
afirmando sua dificuldade em amar mulheres ocidentais, mulheres sem as influências do mito de
Sherazade.
I felt that to love a foreigner or to marry her would be signing a marriage contract in
hieroglyphs. The husband of a foreign woman will serve all his life as an interpreter. By my
very nature, I cannot love a woman in which I do not smell the smell of mint, of wild,
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thyme, of basil, of genista, of jasmine, of guilly-flower and dahlias which fill the fields of my
country. 8 ( WILD, 1995, p. 204)
Por outro lado, muitas vezes recorre ao eu lírico feminino, apontando para a hipocrisia,
masculina e sua dupla moral, ou ainda para a total dependência afetiva da mulher.
(...)
sei quem eu sou
agradeça por me ter
você é afortunado
você é meu amado
você salvou meus seios da solidão
você colocou neles a aura da realeza
você os moldou
você os coroou
ao me tocar
transformei-me em uma das maravilhas do mundo
fiz maravilhas por você. ( KABANI, 1968, p.45)
Em outros poemas, rompe os limites impostos pela sociedade conservadora em que vivia,
o poeta explorou e expôs o prazer sexual feminino, como se pode ver num dos poemas de Qasaīd
Mutwahisha.
201
Não entre!
sua voz cerrou meu caminho
suas palavras trancaram meus passos
você estava sem seus amigos
sua mentira foi denunciada pela voz feminina que chamava a você
foi ela quem me substituiu?
‘Pare!’
esta ordem até agora envenena meu coração
enquanto isso, o vento soprava e trazia com ele a humilhação imposta pela sua
voz
não se desculpe, mar em tormenta. (KABANI, 1968, p.60)
Ou ainda, no mesmo poema,
Perdoa-me, senhor,
Se eu desejei uma aventura nos domínios dos homens
a literatura clássica, é claro, era domínio dos homens
e o amor era prerrogativa masculina
8
Senti que amar uma estrangeira ou para se casar com ela seria a assinatura de um contrato de casamento em
hieróglifos. O marido de uma mulher estrangeira irá servir toda a sua vida como intérprete. Pela minha natureza, eu
não posso amar uma mulher em que eu não sinta o cheiro da hortelã, do tomilho selvagem, de manjericão, de giesta,
de jasmim, flor-de Guilly e dálias que preenchem os campos do meu país.
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e sexo era o ópio dos homens vendidos
um mito em suas terras é a liberdade feminina
mas não existe outra liberdade senão para os homens... (ibidem.)
O amor só é permitido ao universo masculino, o eu lírico pede perdão por aventurar-se
nos domínios dos homens, o eu lírico reconhece seu papel social, mas o avança, quer ter o direito
de amar, quer ter, no espaço masculino, sua liberdade. Kabani avança assim todos os limites
impostos pelo seu tempo. Em seus poemas reconhece que amor e morte, Eros e Tânatos,
caminham juntos.
Não entre!
Sua voz cerrou meu caminho
Suas palavras trancaram meus passos
Seus amigos não estavam com você,
Sua mentira foi denunciada pela voz feminina que te chamava
Foi ela quem me substituiu?
Foi por ela que minha entrada foi proibida?
“Pare!” Essa ordem até agora me envenena o coração (...) (ibidem)
O poeta associa a sua produção poética com o prazer ou a frustração do ato sexual,
202
conforme afirma em suas memórias.
The relation of the poem with the sheet of paper I am writing on is a relation
whichs hares many of its peculiarities with sex. It begins like all physical
relations with the desire to occupy a space which we do not know, in a country
which we do not know. The sheet of paper in front of me is a boy which I do
not know. (…) A sheet of paper – like any woman – has to master the rules of
the game and the fundamentals of hunting and the catching of the prey.(…)
Sometimes I feel that the paper is ready and I make love with it successfully.
(WILD, op. cit. 201)9
Sonetos e baladas de Vinícius
Vinícius de Moraes foi basicamente um poeta do amor. Cantou-o de todos os aspectos: a
paixão desenfreada, o sofrimento pela indiferença ou a rejeição da amada. A beleza da mulher,
sua sensualidade, sua brandura, sua delicadeza e sua força fazem parte de sua poesia.
9
A relação do poema com folha de papel na qual escrevo traz muitas semelhanças com as relações sexuais. Ela
começa como todas as relações físicas com o desejo de ocupar um espaço que não sabemos, em um país que não
sabemos. A folha de papel na minha frente é um menino que eu não conheço. (...) Uma folha de papel - como
qualquer mulher - tem que dominar as regras do jogo e os fundamentos da caça e à captura da presa (...) Às vezes eu
sinto que o papel está pronto e eu faço amor com ele com sucesso. .
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Em 1939, Vinícius ganha uma bolsa de estudos para a universidade de Oxford, na
Inglaterra, onde pretendia defender uma tese sobre os sonetos de Shakespeare e lá escreve um
soneto que viria a fazer parte do livro Poemas, soneto e baladas, publicado em 1946.
Soneto do Carnaval
Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento.
Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrado uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.
E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim
De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranquila ela sabe, e eu sei tranquilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.
203
Nota-se que Vinícius se preocupa com a construção poética, os versos metrificados, a
linguagem acessível, mas mantendo a sobriedade, fala de sua amada distante ou quem sabe
perdida, reencontrando-a após a morte.
Numa clara influência camoniana seus sonetos constituem o melhor de sua lírica.
Soneto do Corifeu
São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.
Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.
Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
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Tão cheia de pudor que vive nua.
Assim como Kabani, Vinícius fala da dor da separação,
Soneto da separação
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
204
A figura feminina em Vinícius é bela, voraz, sedutora, traiçoeira e traída, no entanto ao
contrário de Kabani, a voz feminina não tem vez na sua poesia, é o poeta quem fala delas e não
por elas como Kabani faz.
Porém não é só nos sonetos que a mulher é cantada por Vinicius de Moraes, a idealização
feminina é uma constante na obra de Vinícius, como podemos ver em “A mulher que passa”,
Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! Como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
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Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontravas se te perdias?
Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!
No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!
205
Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como cortiça
E tem raízes como a fumaça.
Ou quando constrói a imagem da mulher perfeita,
As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso (...)
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da
aurora. (...)
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem; mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem
saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Muma Omran
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Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais do que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume nas
coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto sensível à carícia em sentido contrário. (...)
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, em não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
De sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável
Por outro lado há o amor sublime, beirando a sacralização das relações amorosas,
extrapolando a sexualidade como podemos ver no “Soneto da Devoção”:
206
Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica em meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.
Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.
Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.
Essa mulher é um mundo! – uma cadela
Talvez... – mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela
Assim, com humor, dá uma outra dimensão à expressão amorosa.
Conclusão
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Tanto em Vinicius quanto em Kabani a beleza, o erotismo e o amor da mulher são
cantados, cada um em seu espaço retrata esta figura. Ambos não medem esforços para apresentar
seus desejos. Vinícius contempla a mulher e o amor que sente por ela, já a contribuição de
Kabani é inegável para a literatura de expressão árabe contemporânea. Explorando o erotismo e
o amor carnal como algo não só inerente aos homens, mas também às mulheres, num espaço
social onde sexo, erotismo, prazer, amor são vetados ao corpo feminino, o poeta embora,
algumas vezes, mantenha um olhar orientalista, não deixa de explorar temáticas que séculos antes,
Sherazade em suas narrativas havia explorado. O mérito de Kabani se encontra em ter dado voz
para a mulher na poesia de língua árabe.
Mesmo numa perspectiva ainda masculina, o poeta abre as portas para o retorno de
Sherazade, cujas palavras seduzem os mais desavisados dos mortais. Seus poemas, como as
histórias de As mil e uma noites tiram o véu que encobre a palavra, o corpo e o desejo feminino.
Assim, Kabani e Vinícius coloca estas mulheres num espaço real e palpável.
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