/ Doenças /
Surpresas
da vaca louca
O Brasil está ficando com a “parte boa” da crise da
Encefalopatia Espongiforme Bovina, ou doença da vaca louca,
mas é preciso comprometimento de toda a cadeia produtiva
para evitar que esse mal chegue ao nosso rebanho.
Q
uase vinte anos já se
passaram desde o
início da ocorrência
da popularmente de
nominada Doença da
Vaca Louca e o assunto ainda permanece
nos noticiários despertando muito interesse e curiosidade.
No início do aparecimento do surto
de BSE, rações eram preparadas com farinha de carne e ossos (FCO) - feitas com
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Não se
descobriu, aliás,
até hoje, um
meio de se fazer
o diagnóstico da
enfermidade com
o animal ainda
vivo
as partes não comestíveis de animais abatidos em frigoríficos. Como o processo
de industrialização, embora utilizasse temperaturas superiores a 115ºC, não era suficiente para destruir a PrPSc, essa era introduzida na alimentação de outros bovinos mantendo seu potencial infectante. Outros bovinos também infectados,
igualmente abatidos e, quando doentes,
inteiramente utilizados para fabricação de
FCO, foram sendo incorporados a uma
cadeia alimentar cíclica, com contaminação de milhares de animais.
Uma vez que esse mecanismo se tornou conhecido, houve proibição de se
fabricar rações com FCO de ruminantes,
mas muitos animais já estavam contaminados e, assim, foram desenvolvendo a
doença ao longo dos anos seguintes. Sim,
no caso da BSE fala-se em anos de incubação e não em dias ou semanas como
acontece com a grande maioria das en- 8
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8 fermidades.
Isso dificultou bastante o
controle da BSE, pois não se descobriu,
aliás, até hoje, um meio de se fazer o diagnóstico da enfermidade com o animal
ainda vivo. Mesmo depois dos primeiros
sintomas, o animal ainda vive vários meses, e o diagnóstico definitivo só vai ser
concluído após os exames microscópicos
do cérebro.
Em 1989, as previsões para a erradicação da BSE no Reino Unido - Inglaterra, principalmente, apontavam para o ano
2000. Mas, em 2002 ainda ocorreram mais
de 1200 casos. Em 2003, próximo de 600
casos também foram registrados, apesar
do enorme empenho do governo e da
sociedade. Esse atraso ocorreu devido à
alta infectividade do PrPSc para bovinos,
que se contaminam com pequenas quantidades, e da contaminação de fábricas de
rações, caminhões e instalações. Talvez
tenha havido também alguma burla das
normas, pois os proprietários custaram a
entender a gravidade da situação.
Dessa experiência pôde-se apurar então que a BSE era transmitida via alimentação. A transmissão de mãe para filhos
ocorria, mas não era um fator importante na epidemiologia. As medidas tomadas quanto à alimentação seriam suficientes para controlar o surto, mas outras
surpresas ocorreram no decorrer na história da BSE.
Outras espécies - gatos domésticos e
animais de zoológico, também se infectaram naturalmente com o agente da BSE.
Em 1996, o governo britânico teve que
admitir que o homem também podia ser
vítima da doença, sendo essa mortal em
100% dos casos. Até hoje, cerca de 150
pessoas foram vitimadas; longe de ser uma
epidemia, a doença no homem, denominada vCJD assusta muito por comprometer grandemente o sistema nervoso
central, evoluindo para demência e total
descontrole de movimentos do indivíduo,
progredindo até sua morte. Entenda-se
que hoje sabemos que “apenas” 150 pessoas morreram, mas na época, por se desconhecer as características da doença, não
era absurdo admitir que milhões de pessoas poderiam ser vitimadas. Isso gerava
muita ansiedade na população.
Inicialmente supunha-se que a BSE
tivesse tido origem em uma doença já
conhecida em ovinos desde 1732. A denominada “scrapie”. Mas essa doença jamais havia contaminado outras espécies
ou mesmo o homem. Após longos estudos sobre possíveis “mutações” ou “adaptações”, não se confirmou se a doença veio
mesmo dos ovinos. Muitos acreditam que
ela tenha surgido mesmo em um bovino,
ou em algum animal de zoológico. Em
qualquer caso, a introdução desse primeiro animal na cadeia alimentar de bovi-
Imagem de microscópio mostra as lesões
cerebrais causadas pelas proteínas alteradas
nos é que deu origem a tanta confusão.
Muitos outros países europeus tiveram e continuam tendo casos de BSE. Isso
porque haviam importado rações ou mesmo FCO do Reino Unido antes que se
conhecessem os mecanismos envolvidos
na transmissão do mal. Mas deve ser lembrado que o período de incubação da
doença é muito longo: entre 2,5 e oito
AGENTE DO MAL
NORMAL
A doença CreutzfeldtJakob, uma
enfermidade fatal do
cérebro, tem uma
forma similar à da
doença da vaca
louca. Acredita-se
que o agente por trás
delas é uma proteína
chamada príon cujo
funcionamento
normal foi alterado.
DOENTE
PARTE NÃO
DOBRADA
Fonte: Laboratório de Fred. E. Cohen,
Universidade da Califórnia
A proteína do príon saudável se dobra em uma
série de hélices com a forma de saca-rolhas.
O príon doente rearranja uma parte
em forma de fitas
O príon doente induz o príon saudável a mudar sua forma. Os grupos doentes criam buracos no cérebro.
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Divulgação
anos para bovinos. No homem talvez ultrapasse vinte anos. Esse dado complica
muito as medidas de controle, pois, como
dito acima, não se tem ainda um meio de
diagnosticar o animal portador assintomático. Dessa forma, os países que importaram materiais contaminados com a
PrPSc ou mesmo animais em período de
incubação, tiveram casos de BSE, para seu
infortúnio.
Durante a descoberta de que o homem podia se infectar houve uma redução drástica e abrupta do consumo de
carne no Reino Unido. Em outros países
isso também ocorreu, gerando enormes
prejuízos à economia. Devido a isso, reina uma grande preocupação com as importações de carnes e derivados. Países
livres de BSE têm tomado medidas severas para a não-entrada da doença. Ao mesmo tempo, mercados de carne se abrem
para os países produtores livres da enfermidade. Às vezes valem mesmo lances de
economia de guerra, como aconteceu com
o Canadá no episódio da suspensão da
importação de carne do Brasil em 2001.
A constatação, em 2002, de um caso
de BSE no próprio Canadá e de um outro nos Estados Unidos, no final de 2003,
traz preocupações para todo o continente americano. Importações de animais e
de produtos de origem bovina desses países eram comuns à maioria dos países
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Em 1996, o
governo britânico
teve que admitir
que o homem
também podia
ser vítima da
doença, sendo
essa mortal em
100% dos casos.
Até hoje, cerca
de 150 pessoas
foram vitimadas
americanos.
O Brasil vem lucrando, ou ficando com a parte boa das crises da
BSE. Inicialmente por ter ampliado
o mercado de carnes. Depois por ter
ampliado o mercado de soja - substituta da proteína de origem animal.
Mas as medidas necessárias à não entrada da BSE no país têm que ser
levadas muito a sério. Da mesma
forma, a abolição de rações que contenham proteína de ruminantes é
crucial medida de segurança. Nesse
aspecto, deve ser ressaltado que a
cama de aviário tornou-se um elemento extremamente perigoso. Por
conter alguma sobra de ração dos
frangos, e esta legalmente pode ter
FCO, ela não pode ser utilizada para
alimentação de bovinos. Esse uso
fecharia o ciclo “canibal”, responsável pela propagação da BSE. Nesse
caso, se algum animal infectado surgir, a disseminação vai ocorrer.
Nosso país tem uma pecuária
bovina de grandes proporções e
com importante envolvimento social. Milhões de pessoas vivem ou
dependem da produção de leite e
de carne. Portanto, enquanto houver BSE assombrando nossas vaquinhas, vamos ouvir o que os técnicos do Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento têm para
nos recomendar. As medidas até
hoje adotadas foram todas acertadas, tanto é que o Brasil está no
Grupo I da classificação da Comunidade Européia, onde é “altamente improvável a existência de BSE”.
Controle severo das importações,
rastreabilidade, proibição do uso de
proteína de ruminante, mesmo aquela que sabemos que existe na cama de
aviário, exames de animais com sintomas neurológicos ou com morte
por causas não definidas, capacitação
de técnicos e de laboratórios, todas
essas medidas tomadas em conjunto
tendem a manter o nosso status. Mas
todos os envolvidos na cadeia produtiva da carne devem se engajar nessa
luta. Afinal, quem poderia ser mais
interessado?
Antonio Carlos Alessi,
Unesp – Campus de Jaboticabal
COMO AGE A PROTEÍNA
ALTERADA
Tecnicamente, essa enfermidade recebe
o nome de Encefalopatia Espongiforme Bovina - ou BSE, sigla proveniente do inglês.
Um nome um tanto complicado, mas nada
que se compare à complexidade do agente
causador. Trata-se este de uma proteína priônica alterada... Bem seria mais fácil entender se fosse um vírus, uma bactéria ou
um fungo, desses que se multiplicam causando lesões que prejudicam a saúde do
animal resultando em uma enfermidade.
Mas a tal proteína, cuja sigla - PrPSc também não diz muita coisa, tem origem em
uma proteína que se faz presente, em condições normais, em neurônios e em algumas outras células - a PrPC. O fenômeno
que custou a ser entendido, mas que deu
um prêmio Nobel ao seu descobridor, o
cientista Stanley Prusiner, consiste na transformação da proteína normal em uma outra, de conformação espacial alterada. Nessa forma alterada, a proteína se torna nociva ao funcionamento da célula e acaba por
destruí-la. A destruição gradativa de neurônios resulta em perda de capacidade do sistema nervoso central e conseqüentemente
resulta em uma doença grave.
Vários fatores devem ser ditos a respeito dessa proteína: uma vez alterada ela se
torna extremamente resistente ao calor, aos
desinfetantes, à radiação e até mesmo ao
processo de esterilização que se usa para
materiais cirúrgicos. Dessa forma, ela pode
permanecer inalterada em produtos alimentícios utilizados para os bovinos e se tornar infectante. O termo infectante não está
entre aspas porque é isso mesmo que acontece. Uma proteína, sem nenhum patrimônio genético, se multiplica, por transformar proteína normal em anormal, com um
comportamento de agente infeccioso. Outras doenças também são causadas por
PrPSc, tanto em animais quanto no homem.
Mas são de freqüência relativamente baixa
e não são contagiosas.
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Bovinos_ - MODELO