O serviço de Ordenanças na Vila da Praia, em 1799 Nota Introdutória O documento que seguidamente se publica, não traz informação inédita ao conhecimento que temos do sistema de forças defensivo de finais de setecentos1. Porém, pela sua natureza argumentativa, ele é uma síntese curiosa e ilustrativa de várias questões levantadas nessas outras fontes. Assim, em finais do século XVIII, o Regimento dos capitães-mores e mais oficiais das companhias de gente de cavalo e de pé, e da ordem que devem ter em se exercitarem ou Regimento das companhias de ordenança, vulgarmente apenas citado por Regimento das Ordenanças, dado por D. Sebastião, mantinha toda a sua eficácia como instrumento central da organização do sistema de forças defensivas do Arquipélago; igualmente vigente continuava o Regimento das Vigias, dado pela Regência, em 1567, ao corregedor Gaspar Ferraz; os Açorianos, entregues a si próprios, mas sofrendo as consequências das políticas da Coroa, neste contexto, da situação de hostilidade com a França, tinham que pagar pesado ónus pela sua segurança, submetendo-se, frequentemente, a planos de defesa militar casuísticos, amadores, incoe- 1 Sobre esta temática, poderão ser consultados os textos “exército”, “milícias” e “Regimento de Guarnição de Angra do Heroísmo” da Enciclopédia Açoriana, bem como a diversa documentação de natureza militar publicada nos últimos Boletins do IHIT, com destaque para “Distribuição territorial e composição social das Companhias de Ordenanças nos Açores”, no Vol. LXII, Ano de 2004, pp. 291 a 333. 248 BOLETIM DO INSTITUTO HISTÓRICO rentes, desadequados, devoradores de elevados recursos humanos e financeiros; apesar da criação de pés-de-castelo para a fortaleza de São Baptista e do forte de São Sebastião em Angra, e dos fortes de Santa Cruz e de São Brás, respectivamente, na Horta e em Ponta Delgada, e do levantamento dos terços auxiliares aquando da criação da Capitania-Geral, o serviço de guarnição da generalidade dos fortes costeiros continuou a cargo dos artilheiros das Ordenanças; a real importância militar dos corpos das Ordenanças era sobrevalorizada pelos respectivos comandos, como forma de afirmação pessoal; o Terço Auxiliar ou Regimento de Milícias da Praia era principalmente empenhado no serviço da guarnição de Angra; mal conhecidos e pior tratados pelos estudiosos da diáspora, os recrutamentos militares eram frequentes, espalhando os açorianos por todo o império, contrariando o sobrepovoamente tradicional, mas, simultaneamente, quando forçados e desproporcionados, cortando laços sociais e familiares, sempre exaurindo dos braços mais válidos a vida económica do Arquipélago. E se esta carta tivesse sido escrita alguns meses mais tarde, ao rol de lamentações, a Câmara da Praia acrescentaria o recrutamento em grande parte forçado de soldados para o levantamento do Batalhão de Infantaria com exercício de Artilharia do Castelo de São João Baptista do Monte Brasil, mormente a partir dos efectivos dos regimentos de Milícias de Angra e da Praia. Manuel Faria DA ILHA TERCEIRA 249 Ex.mo R.mo S.r e Ill.mos Sn.res Governadores As continuas declamações que o povo desta jurisdição está fazendo pela opressam que lhe cauzão as muitas guardas, conmovem ao corpo desta Camara a reprezenttar a V. Ex.cia e a V. S. o notavel prejuizo que ellas fazem a economia publica, e a nenhuma utilidade que dão, sendo de mais a mais similhantes dispoziçoens diametralmente opostas ao Regimento das novas Ordenanças. São Ex.mo e Ill.mos Sr.esalem das Companhias de Auxiliares, que a Cidade vão meter guarda, settenta das Ordenanças, que diariamente se empregam nas guardas dos portos, e eminencia dos montes, escolhidos estee dos mais robustos, que com dous recrutamentos feitos nesta Ilha ja no tempo do General defunto, e ja no de V. Ex.cia e S., certamente não restarão mais que velhos e rapazes inhabeis para a agricultura, huma das colunnas mais fortes para a subsistencia dos imperios, que tanto tem merecido a contemplação em todos os tempos dos nossos augustos soberanos, e bem o pode dizer o felis reinado do Sn.r D. Diniz, e do S.r D. Jozé, soberanos de glorioza momoria, e no prezente reinado as muitas providencias que Sua Mgestade tem dado pela sua Secretaria Ultramar para esta mesma Ilha, porque não só com as armas se mantem os Estados mas tambem com as muniçoens de bocca, que estas sam os produtos da agricultura. Estes settenta homens de guarda se derr((/) se derramão pelo forte do Espirito Santo, pelo do porto, pelos Altares, pelas Quatro Ribeiras pelo porto dos Biscoutos, por Caparica, Malmerenda, Pico do Cappitam, São Bento, São Fernando, e São Francisco, Chagas, e corpo da guarda, que assim não são capazes pelo seu diminuto numero de defenderem, ou ao menos fazerem huma pequena rezistencia atacando-se-lhe os seus postos, nem tambem he possivel serem atacados com tanta brevidade e tão occultamente que não ouvesse tempo de chamar gente para a sua defeza, que se os cappitaens das Ordenanças quizesem observar o seu Regimento escuzado seria esta notavel confuzam. O Regimento a fl. 466 na palavra vigias recomenda que de dia não hajam mais que as vigias nas pontas, que mais descobrirem o mar, e de noute somente estejam nos portos, prayas, ou pedras por onde possa haver entrada, que para estas dispoziçoens manda, que os cappitaens convoquem as Camaras, Justiças, e mais pessoas que foram precizas para se assentar quaes são as pontas deitadas ao mar, que precizam de vigia de dia, e quaes são os portos, que de noute devam estar guarnecidos, e quaes sam os sitios 250 BOLETIM DO INSTITUTO HISTÓRICO donde se devam tirar as pessoas, que hão-de guarnecer os portos; tudo isto para não chamar talves muntas vezes povos de hum logar remóto, tendoos de hum proximo, e todas estas precauçoens que o Regimento pres((/)) prescreve, nunca jamais se deram. Se os cappitaens recorressem a Camara para se assignarem os logares para as vigias diarias, ella certamente assentaria com toda a prudencia, que não erão precizo mais que no Pico do Cappitam, Malmerenda, Caparica, e Pico de Martim Simão, porque destas 4 pontas se descortina o mar, que serca toda esta jurisdição, e consequentemente se empregavam nam mais que 4 homens por dia pelo Regimento mandar, que em cada ponta não haja mais, que huma vigia rendida de meio em meio dia, e que esta porá os fachos, e fumos precizos para denunciar os navios, que aparecerem. Para as vigias de noute assentaria a mesma Camara, que poucos seriam os logares, que precizasem de guarda e por consequencia poucos os empregados, porque o mesmo Regimento sitado recomenda, que só de noute teram os portos, e calhetas guardadas, em cada hum não mais, que tres com arcabuz sevado, alem das mais armas para hum destes avisar do que se tem passado, e os outros ficarem vigiando, e não como athe agora se faz pondo em hum dos fortes deste porto da Praya de dia, e de noute nam menos de trinta homens, porque se o mesmo Regimento quize-se que os logares capazes de entrada estivessem sempre fornecidos com a gente preciza para a sua ((/)) a sua defeza, certamente se não encontraria mais pessoa alguma se não nestes logares, e se estas guardas são para vigia tanto podem dezempenhar este fim tres, como des, ou vinte. Esta inutil providencia a defeza desta jurisdiçam e prejudicial a agricultura da mesma não he de tempo antigo, mas sim principiada no tempo da cappitam Ignacio Xavier da Costa Franco, contra o mesmo Regimento e contra o observado na jurisdiçam dessa Cidade e da Villa de São Sebastiam que S. Majestade não terá menos dezejos de conservar livres de qualquer assalto de inimigos. A qual disposição, como superflua, esperamos, que V. Ex.cias mandem tirar e que assim se observe somente o novo Regimento ja por elle ser a Lei por onde as Ordenanças se devem regular, ja por elle dar as precauçoens necessarias para a defeza desta jurisdição ja por a equidade não pedir que huns homens payzannos sem soldo, sem pam, sem vestido, e muitos sem nada de sua caza estejam fazendo o rigorozo serviço de huma tropa viva sem precizam, e sem conhecimentos alguns da ((/)) da disciplina militar, sendo occupados muitas vezes nos dias de suas guardas no DA ILHA TERCEIRA 251 trabalho de alguns particulares, e outras vezes na factura de caminhos, como succede prezentemente no da Ladeira Devassa, o que evidentemente mostra serem desnecessarias similhantes guardas. Deus guarde V. Ex.cia e V. S.as muitos annos etc etc etc. Camara da Villa da Praya 30 de Abril de 1799 Antonio de Castro Souza Menezes Sarmento Antonio Leal Borges Godinho Manuel de Souza Menezes Francisco Aurelio da Fonseca João Paim da Camera Vasconcelos (Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Angra do Heroísmo, Capitania-Geral, Câmaras, Correspondência, Maço 19 – 1768 a 1814)