A banalização do instituto da desconsideração da personalidade
jurídica
Raul Moreira Pinto – Juiz do Trabalho Aposentado – 3ª Região
Tem-se percebido em numerosos julgados a
utilização desse importante instituto - banalizando-o com sua aplicação
indiscriminada e sem critério - como uma das muitas panacéias criadas para os
males de execuções frustradas pela inexistência de bens de empresas,
constituídas sob a forma de sociedade de capital.
Todos os que lidam com as coisas da Justiça
sabem que há um número imenso de questões intrincadas, de dificílima
solução. Mas é certo que as soluções não podem sair à força de fórceps; na
aplicação do Direito, os nós górdios são muitos, mas, nessa ciência, não há
lugar para espadas alexandrinas.
O mais preocupante é que, dando extensão
certamente jamais imaginada pelos legisladores e doutrinadores, decisões
judiciais, especialmente, da Justiça do Trabalho, tem responsabilizado
pessoalmente sócios minoritários, não participantes da administração da
sociedade. Cria-se, assim, uma responsabilidade pela simples participação - in
participando - o que é extremamente perigoso, pois pode ser que se sucumba
à tentação de ampliar ainda mais o campo da responsabilização, com a criação
de uma culpa – objetiva, naturalmente – in essendo: bastaria existir para ter de
responder por alguma coisa.
A autonomia patrimonial, com afetação
exclusiva dos bens da pessoa jurídica, é conquista antiga do capitalismo,
própria da economia de mercado; o aumento dos riscos naturais do
empreendimento impede, ou no mínimo dificulta, a criação de novos negócios
e a ampliação dos existentes.
O instituto da desconsideração é antigo;
lecionam os doutos que ele tem origem inglesa e foi desenvolvido mais
amplamente no direito norte-americano, com contornos precisos, bem
delineados.
A decisão mais citada pelos antigos
comercialistas se funda na idéia de que, se houver desvirtuamento dos
objetivos de uma sociedade de capital, desviando-se do interesse público, ou
por prática de fraude ou de crime, a lei considerará aquela corporação como
uma sociedade de pessoas (the law will regard the corporation as an
association of persons).
Como se percebe, a idéia é da indispensabilidade
da presença de um ilícito, originado, sempre, do abuso de direito de
associação, e que seja gerador de prejuízos a terceiros.
Menezes Cordeiro reforça esse entendimento,
afirmando que o abuso do instituto da personalidade jurídica coletiva é abuso
de direito, correlacionando-o aos institutos do venire contra factum proprium,
supressio, surrectio e tu quoque.
Nota-se
que
o
instituto
visa
a
responsabilização de partícipes - obviamente, ativos - da sociedade de capital,
tipo em que, de ordinário, os sócios não respondem pessoalmente pelas
dívidas dela, ante a autonomia patrimonial dessa espécie de associação.
No Brasil, segundo alguns autores, decisão
pioneira acolhendo a doutrina da desconsideração ocorreu em 1960, pela 11ª.
Vara Cível do Distrito Federal. Registre-se que, no âmbito da Justiça do
Trabalho da 3ª. Região, há uma sentença da então J.C.J. de Itajubá, do ano de
1981, com fundamento explícito na teoria, enfocando um caso em que o
proprietário rural constituiu uma sociedade limitada para prestação de
serviços, dizendo-se sucessora daquele, com absorção de todos os
empregados, a maioria com estabilidade decenal, então existente; por óbvio,
tal sociedade não tinha patrimônio.
No plano do direito positivo, o instituto foi
cuidado pela primeira vez no Código de Defesa do Consumidor,
especificamente, no seu artigo 28. Depois, foram editadas as Leis 8.884/94
(infração à ordem econômica) e 9.605/98 (crimes ambientais). Finalmente,
com alcance maior, evidentemente, veio o Código Civil, com seu artigo 50.
Tanto o artigo 28, do C.D.C., como o artigo
50, do Código Civil, tornaram mais amplos os limites do instituto,
introduzindo outros requisitos desconhecidos na gênese desse, como má
administração e confusão patrimonial.
O artigo 50, do Código Civil, estatui que o
abuso da personalidade jurídica se revela pelo desvio de finalidade ou pela
confusão patrimonial; por isso que a extensão da execução aos bens
particulares dos sócios somente é possível quando se faz mau uso daquela
ficção, seja já na sua instituição, como ocorreu no caso acima mencionado do
proprietário rural, seja em momento posterior.
A má administração, referida no artigo 28,
caput, do C.D.C., há de ser entendida como uma gerência ruinosa, temerária,
desalinhada dos mais elementares princípios que orientam a boa condução dos
negócios; não há assim de ser considerado eventual fracasso do
empreendimento, derivado de causas que fazem parte de toda atividade
empresarial, que, por sua natureza e definição, é de risco.
Considerar-se, sempre, que o insucesso do
negócio decorreu de má administração é fechar os olhos para o fenômeno da
atividade econômica. A responsabilização, por regra, do sócio administrador
por malogro do negócio significa desprezar todo o progresso e modernização
do direito de empresa, ocorrido ao longo de séculos, alinhado com os
princípios capitalistas.
Em posição mais extremada, há alguns
julgados que entendem responsáveis quaisquer dos sócios – ativos e não
ativos, majoritários ou não - pela inexistência de encerramento formal da
sociedade, desconhecendo que, até mesmo pela ausência de poderes dos
partícipes não ativos para administrá-la, torna-se quase impossível a esses a
iniciativa para dissolução da associação.
Por outro lado, o encerramento das atividades,
segundo o modelo da lei, é uma formalidade, não parecendo que a
inobservância dessa possa acarretar a grave conseqüência de responsabilização
de sócios por dívidas da sociedade; vale dizer, não é a realização ou a
ausência do procedimento que definirá a existência ou não de ilícitos por parte
dos sócios.
Com relação à confusão patrimonial, cuidada
no artigo 50, do C.C., a bem da verdade, não parece que seja essa uma
categoria à parte e distinta, pois essa confusão, caracterizada pela desafetação
do patrimônio da pessoa jurídica, com a incorporação dele ao do sócio, nada
mais significa do que um desvio da finalidade daquela.
Trabalhos levados a cabo por estudiosos sobre
o tema enfocado nestes escritos colocam como a grande dificuldade, na
aplicação do instituto relativamente ao sócio não administrador, ou não ativo,
e minoritário, o disposto no parágrafo quinto, do artigo 28, do C.D.C..
Ao
dispor
esse
parágrafo
que
a
desconsideração poderá ocorrer sempre que a personalidade jurídica for, de
alguma forma, obstáculo ao ressarcimento do credor, simplesmente afastou os
requisitos necessários a tal desconsideração arrolados no caput, do citado
artigo 28, do C.D.C.; isto é, para ocorrência dessa, não é preciso a presença de
abuso de direito, de excesso de poder, de infração da lei, fato ou ato ilícito ou
violação da lei ou contrato social, além de danos causados por má
administração.
Na verdade, esse parágrafo deveria ser vetado,
mas por um lapso do Presidente da República, uma “aberratio ictus da caneta
presidencial”, no dizer de Zelmo Denari, vetou-se o parágrafo primeiro, que
dispunha sobre a necessidade da iniciativa do interessado para que o juiz
responsabilizasse o sócio. É fácil perceber-se o equívoco: a razão do veto foi a
constatação de que o caput do artigo 28, do Código, já conteria “todos os
elementos necessários à aplicação da desconsideração”.
Esse equívoco gerou duas sérias dificuldades.
Como o parágrafo formalmente vetado delimitava – e corretamente – o
alcance da responsabilização do sócio, atingindo o controlador, o sócio
majoritário, os sócios-gerentes e os administradores, tornou-se, em tese,
possível sustentar que todos os sócios podem ser responsabilizados, inclusive
os minoritários e os não administradores. A segunda conseqüência foi
possibilitar ao juiz decretar a desconsideração de ofício, dispensando o
requerimento do interessado (voluntatem partis novit curia?), que bem pode
não desejar, por razões várias, executar um ou outro sócio, gerando uma nova
lide não querida pelo credor, com consequente desprezo ao secular princípio
dispositivo, muito caro ao direito processual.
A questão, então, resvala inexoravelmente para
o campo da interpretação das leis.
De um lado, tem-se um patente equívoco no
direcionamento do veto, a sugerir a não aplicação do dispositivo que deveria
ser vetado; de outro, a rigidez da letra da lei.
É certo que o veto busca eliminar regra
eventualmente inconstitucional ou que não atenda ao interesse público. Daí,
verem alguns autores, no veto, um controle prévio de constitucionalidade,
exercido pelo Executivo.
Fábio Ulhoa Cintra observa que, no embate
entre o artigo 28 e seu parágrafo, se “algum tiver de ceder, será o parágrafo”,
porque, na interpretação contrária, serão postos de lado os fundamentos
teóricos da desconsideração, além de tornar letra morta o caput do artigo e de
desconhecer, definitivamente, o princípio da existência distinta da pessoa
jurídica da de seus sócios.
Uma das regras de interpretação da
jurisprudência, coletada por Washington Monteiro de Barros, dita que deve ser
afastada a exegese que conduz ao contraditório. Também é princípio que a lei
não contém palavras inúteis, a impedir o total esvaziamento do caput do artigo
28, do C.D.C.. Acresça-se ainda que, segundo a boa técnica legislativa, o
artigo deve conter um único comando normativo, posto no seu caput; já o
parágrafo deve completar o sentido ou abrir exceções à regra lançada na
cabeça dele; isto é, o parágrafo não pode estabelecer regra geral, que
excepcione ou mesmo elimine o comando da cabeça do artigo.
É geralmente aceito que o veto faz parte do
processo legislativo, ainda que se mostre num aspecto negativo. Com efeito,
se há alguma norma inconstitucional ou que não atenda ao interesse público
no projeto levado à sanção e ela é extirpada do texto pelo veto, é imperioso
concluir que efetivamente esse ato é parte do processo legislativo. Luiz
Guilherme Marinoni até sustenta o entendimento sobre a possibilidade de se
argüir, judicialmente, a inconstitucionalidade do veto.
É enfático Ives Gandra da Silva Martins ao
afirmar que o veto do Presidente é um ato legislativo e não administrativo, e o
chefe do Executivo não o pratica na condição de chefe da Administração
Pública, mas na de legislador delegado constitucionalmente.
Tem-se que, se há erro ou desvio no processo
legislativo, no caso, veto dirigido equivocadamente a um dispositivo
necessário à boa aplicação da lei, é possível ao juiz não considerar a
disposição viciosa, trocando o útil pelo inútil. Vale dizer, pode, até em nome
do malferimento ao princípio do devido processo legislativo, verificado por
erro, não aplicar o dispositivo que era o destinatário do veto e não o sofreu.
Como parte do processo legislativo, o veto
carrega em si, ainda que na sua face negativa, a vontade do legislador e essa
vontade pode ser objeto de consideração na aplicação da lei.
Ademais, embora o método de interpretação
pela mens legislatoris não goze mais de prestígio, há de se reconhecer que, no
mínimo, é ele útil para entendimento e alcance da lei. Na mesma linha,
observa-se que, no trabalho interpretativo, é válido se recorrer aos trabalhos
legislativos.
Resumindo: se o veto é fase do processo
legislativo, as razões dele hão de ser consideradas na interpretação da lei por
aquele gerada.
Outro aspecto que se observa no procedimento
da desconsideração da personalidade jurídica é a total ausência de
bilateralidade.
Ordinariamente, o sócio envolvido somente
vem a saber da decisão judicial, que lançou aos seus ombros a
responsabilidade pela dívida da sociedade, quando é intimado da penhora.
Não é dada ao sócio a oportunidade de discutir a
questão, senão depois de ter bens constritados, ostentando, assim, situação
pior do que a da sociedade devedora, que teve todas as chances de se defender
no processo de conhecimento, sem ter seu patrimônio agredido. Isto é, litiga o
sócio como se já existisse um titulo executivo judicial reconhecendo sua
responsabilidade, derivado de sentença com trânsito em julgado, obtido
segundo o devido processo legal, e com rigorosa observância dos princípios
do contraditório e da ampla defesa, nos moldes preconizados pela
Constituição Federal.
Não há nada que justifique esse tratamento
que, além de não dar obediência ao princípio da isonomia, torna a defesa
bastante comprometida, ante as limitações da resposta pela via dos embargos à
execução.
Finalmente, encerrando-se estes escritos, há
uma questão não menos grave envolvendo a problemática da desconsideração
da personalidade jurídica: a oportunidade da decretação dessa.
Ordinariamente, passam-se anos até que se chegue à
conclusão de que os bens penhorados da pessoa jurídica não foram suficientes
ou que já não mais existiam, quando do início da execução.
Clito Fornaciari Junior relata um caso julgado
pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região, em que o sócio teve bens
penhorados vinte e cinco anos após a sua retirada da sociedade. Nem mesmo
crimes graves, tipificados no direito pátrio, tem prazo prescricional tão longo.
A estabilidade dos negócios jurídicos é
extremamente importante; sem sua proteção, não se tem segurança jurídica.
Distribuir justiça e garantir a estabilidade jurídica talvez sejam as duas únicas
razões a, efetivamente, legitimar a existência do Poder Judiciário. E sempre se
optou, entre um e outro, pela segurança jurídica, o que se comprova pelo mais
do que viçoso, embora milenar, instituto da prescrição.
Interessante a opinião do processualista de São
Paulo, que coloca a satisfação do julgado no plano do interesse particular, de
natureza patrimonial, e por isso disponível, devendo ser “devidamente
temperado com a preservação da segurança jurídica, que, essa sim, é de
natureza coletiva e, pois, indisponível.”
Revolver fatos de um passado remoto,
retirando deles conseqüências jurídicas que já não são oportunas, é conduta
geradora incertezas e de intranqüilidade no seio da sociedade, solapando a
árdua e permanente busca pela paz social.
Como a lei não tem oculos retro, como
também não é de seu agrado o peculiar atributo bifacial de Jano, a Justiça
igualmente deve preservar situações antigas, estratificadas e já consolidadas
pelo tempo.
Embora se referisse ao tema da irretroatividade
das leis, um dos mentores do Código Napoleão, Portalis, em citação de
Vicente Ráo, registra, de forma elegante, o que o tempo representa na vida
social do homem; talvez seja a mais candente defesa da necessidade de
segurança jurídica para a convivência dos homens.
“O passado”, diz o jurista do Código francês,
“pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas; na ordem da
natureza só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela
esperança, a fiel companheira de nossa fraqueza. Seria agravar a triste
condição da humanidade querer mudar, através do sistema de legislação, o
sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as
nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças”.
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