O IRC COMO UMA NOVA SITUAÇÃO DE USO DA LÍNGUA: IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS Inês Duarte, M. João Freitas & Anabela Gonçalves Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa M. João Horta Escola EB 2,3 de Bartolomeu Dias Education is not an autonomous discipline. Like medecine or architecture it relies on other disciplines for its theoretical foundation. But, unlike architecture or medecine, education is still in a primitive stage of development. (OECD, 2002) 1. Introdução Neste trabalho, é feita uma reflexão sobre a utilização, em ambiente educativo, de uma das ferramentas de comunicação em directo disponibilizadas pela Internet e denominada Internet Relay Chat1 (IRC). São nossos objectivos centrais os que a seguir se enunciam: (i) argumentar a favor da utilização do IRC em ambiente educativo, (ii) reflectir sobre a natureza discursiva dos enunciados produzidos por alunos quando usam esta plataforma tecnológica na sala de aula; (iii) listar propriedades lexicais, sintácticas e fonológicas do Português oral nos registos escritos produzidos em IRC; (iv) argumentar a favor da utilização dos registos de IRC na aula de Português, quer na explicitação do conhecimento gramatical quer no tratamento de questões ortográficas. A literatura sobre o assunto relata uma tendência positiva quanto à utilização, na sua componente de comunicação, da Internet nas escolas (Freitas, 1999). No entanto continua a ser notória a pouca investigação feita nesta área. No que diz respeito ao uso da escrita em situações de Comunicação Mediada por Computador (CMC), Carvalho (2001) refere a não existência de resposta à questão sobre as implicações do uso de uma certa forma de escrita no desenvolvimento das tradicionais competências implicadas na comunicação escrita. Na perspectiva do autor, poderão ser adquiridas novas competências de escrita associadas à utilização do IRC que não terão de excluir o desenvolvimento das competências associadas, tradicionalmente, à comunicação escrita. 1.1. A caracterização do IRC O IRC é um programa cuja origem remonta a 1988. Foi idealizado por Jarkko Oikarinen, da Universidade de Oulu na Finlândia, com o objectivo de permitir aos utilizadores de Newsgroups2 a possibilidade de efectuarem as discussões em tempo real (Santos, s.d.). A guerra do Golfo, no início dos anos 90, e o golpe de Moscovo contribuíram para consolidar a fama do IRC e revelaram as potencialidades desta modalidade de conferência electrónica, recomendável pelo baixo custo e pela sua grande flexibilidade (Magalhães, 1995). O IRC não é mais do que um fórum em tempo real onde duas ou mais pessoas podem interagir, tendo como suporte tecnológico a Internet. A participação numa sessão de IRC implica a existência de um computador com ligação à Internet, de um programa que permita a ligação a um servidor de IRC e a selecção de uma ou mais salas ou canais de conversação. Entre os programas mais vulgarizados, encontram-se o mIRC e o Microsoft Chat, ambos de utilização gratuita e 1 "Internet Relay Chat (also known as IRC, or more generally, Chat) is a multiuser, multichannel chatting network. It allows people all over the world to talk to one another in real time." (Serim e Koch, 1996, p.91). A entrada numa sala de chat implica a escolha prévia de uma alcunha ou nickname, que pode ou não corresponder ao verdadeiro nome da pessoa. Existem salas de entrada livre e outras que obrigam a um registo prévio e à identificação do utilizador. A participação numa sessão de IRC faz-se através da escrita na caixa de texto existente na parte inferior do écran do computador. Ao premir a tecla ENTER as sequências de texto introduzidas ficam identificadas, com o nome de quem as produziu e disponíveis nos ecrãs dos computadores de todos aqueles que estiverem a participar na sessão. Como já foi referido, é possível uma só pessoa participar simultaneamente em diferentes salas de IRC. Pode-se ser um observador passivo das sessões, participar activamente na discussão geral ou ainda abrir uma caixa de segredos e dialogar em privado apenas com uma pessoa da sala, sem que as restantes tenham acesso a essa conversa. 2 Newsgroups são placards electrónicos na Internet, associados a diferentes temas e onde podem ser colocadas questões e obtidas respostas em diferido: “Newsgroups significa, em português, grupos de notícias ou grupos de discussão e permitem, aos utilizadores de todo o mundo, trocar ideias entre si através de mensagens que todos podem ler. Imagine, por exemplo, um placard na cafetaria de uma escola que está visível a todos. Se colocar uma mensagem todos os alunos a podem ler. Qualquer um pode, da mesma forma, colocar uma mensagem em resposta à sua. Agora imagine que existe um placard para cada assunto diferente. Os newsgroups funcionam de uma forma muito semelhante.” http://bvi.clix.pt/glossario/index.html em 15/05/2003. disponíveis na Internet. Trata-se de uma tecnologia que possui características de utilização muito simples e que desperta nos jovens grande curiosidade e satisfação relativamente à sua utilização regular em ambientes de carácter lúdico. 1.2. Comunicação, aprendizagem e Internet Ainda que a comunicação seja uma constante no quotidiano escolar, nem sempre ela é gerida a favor dos alunos na sala de aula tradicional, tendo o professor um papel determinante sobre quem participa e quando (Mata, 2002). A utilização de ferramentas de comunicação disponibilizadas pela Internet pode constituir um veículo de alteração deste cenário. A investigação na área do uso de CMC em contexto educativo refere que o computador, quando utilizado na sala de aula, provoca uma mudança nas modalidades tradicionais de comunicação bem como nos canais preferenciais estabelecidos. Assim, a comunicação deixa de acontecer apenas entre alunos e professor, passando a ser o computador um dos vértices do triângulo aluno-professor-tecnologia (Chagas e Abegg, 1996). As tecnologias de comunicação trazidas com a Internet permitem que as redes de comunicação saiam da sala de aula e avancem para locais que até então estavam vedados aos alunos e professores, expondo o trabalho dos alunos a uma audiência real. Sabe-se que a interacção é uma estratégia fundamental capaz de gerar aprendizagens: “Wherever learning is dependent on the incorporation of information that cannot be obtained exclusively from the individual learner’s transactions with the physical environment, linguistic interaction plays a crucial role in the process.” (Wells , Chang & Maher, 1990, p.98). Na realização de tarefas escolares, a interacção é efectuada de forma assíncrona ou em tempo real. Quer numa situação quer noutra, a Internet pode ter um papel fundamental, nomeadamente na abertura do canal de comunicação ao exterior da escola (Serim e Koch, 1996, p.91). Na perspectiva da relação do aluno com a escrita, são vários os autores que concordam com o facto de a CMC motivar os alunos para esta actividade (Day e Batson, 1995 e Berge e Collins, 1995). Para Day e Batson (1995), Most commonly, the form such communication takes is text – writing. People sit at computer terminals and write to each other. As the number of students sitting at terminals writing to each other increased over the last 10 years, many English teachers, who had heard far too many students say they hate to write, were intrigued. (p. 25) Ainda que, muitas vezes, os textos produzidos pelos alunos em situações de CMC sejam de baixa complexidade e com formatos de escrita muito rudimentares, é possível antever a vantagem do interesse que o uso destes recursos de comunicação desperta nos alunos e daqui avançar para propostas de trabalho mais complexas a realizar na sala de aula. 1.3. Os ambientes de ensino e de aprendizagem associados ao IRC Na literatura sobre a utilização do IRC em contexto educativo, são frequentes as referências que apontam para o interesse do uso do IRC na exploração de conteúdos programáticos na sala de aula, em várias áreas do conhecimento (McCormack e Jones, 1998 e Simpson, 1999). Outros autores referem-se ao IRC, em textos que exploram o potencial da Internet, como uma ferramenta a utilizar em ambientes educativos (consultem-se, para este efeito, Abbott, 2001; Bettencourt, 1997; Carvalho, 2001; Eça, 1998; Lynch, 2002; Pinto, 2002; Preece, 2000; Serim e Koch, 1996; Stewart, Shields, Monolescu & Taylor, 1999). Para Eça (1998) o IRC: [...] em termos de aprendizagem tem o inconveniente de não dar igual oportunidade a todos os intervenientes, porque ‘fala’ mais quem escreve mais rapidamente, situação frequente em aulas tradicionais de oralidade em que os alunos mais fluentes e desinibidos têm tendência para monopolizar as intervenções em detrimento de colegas com certas dificuldades linguísticas ou determinadas inibições. (1998, p. 101) Outros autores analisam o IRC numa perspectiva dos procedimentos comunicativos que esta ferramenta possibilita e da sua potencialidade enquanto recurso de transferência de aprendizagens e afirmam que: Quem os utiliza [os chats] sabe que quem aprende as regras de utilização de um chat transfere-as naturalmente para o grupo em presença física. De facto, num chat, não se pode “interromper” o parceiro, por exemplo, até porque é fisicamente impossível, e torna-se muito evidente os efeitos de comunicações menos claras ou precisas. Gera-se, de forma muitas vezes autónoma, a capacidade de participar em simultâneo em diferentes processos comunicacionais. Isso corresponde à utilização de procedimentos mentais complexos de retenção da informação e da sua gestão interna. (Pinto, 2002, p. 160) 60 As questões da aprendizagem associadas à utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação em ambientes educativos são pouco exploradas na literatura consultada no âmbito deste trabalho, ainda que alguns autores apresentem indícios desta relação: “What is now known about learning provides important guidelines for uses of technology that can help students and teachers develop the competencies needed for the twenty-first century.” (Bransford, Brown & Cocking, 2000, p. 206). As redes de aprendizagem e os espaços de partilha que a Internet proporciona começam a ser objecto de investigação e apontam claramente para a importância do estudo das comunidades geradas nestes ambientes (consulte-se, a este propósito, Dias, 2001; Chagas, Bettencourt, Matos & Sousa, 1998). A questão central que se coloca, no estado actual da investigação na área do uso dos recursos educativos disponibilizados pela Internet, é a da adequação destes ambientes de comunicação às necessidades educativas. Independentemente da definição das estratégias a adoptar no uso destas novas ferramentas de comunicação, há autores que defendem o seu papel estruturador no desenvolvimento cognitivo do aluno e na consolidação dos saberes. As comunidades de aprendizagem, que se constituem online através destas tecnologias, conduzem o aluno a situações como as descritas por Harasim et. al.(1996): Putting ideas or information into written form requires intelectual effort and generally aids comprehension and retention. Formullating and articulating a statement is a cognitive act, a process that is particulary valuable if comments such as 'I don't agree' or 'I do agree' are followed by 'because...' . (p. 29) Um dos caminhos integradores das tecnologias de informação e comunicação nos processos de ensino e de aprendizagem é o de estruturar actividades cujo desenvolvimento envolva a utilização dos computadores enquanto ferramentas promotoras da interacção entre alunos e entre alunos e especialistas, nas temáticas em estudo. Um estudo (Horta, 2002) feito com base na integração do IRC em actividades curriculares de Ciências com alunos do 5º e do 8º anos de escolaridade mostra que é fundamental a preparação prévia das sessões e dos alunos que nelas vão participar. A riqueza em conteúdos das sessões depende do investimento prévio que os alunos fizeram na preparação da sessão e da restrição dos assuntos em discussão a tópicos que estão a ser abordados no trabalho regular dos alunos na sala de aula. O IRC é um meio que permite a detecção de concepções alternativas e que pode promover a mudança conceptual. Os registos escritos decorrentes das sessões de IRC fornecem materiais interessantes para serem retomados nas aulas posteriores e com eles construir situações de avaliação formativa em que podem ser retomados os conceitos explorados nas sessões de IRC. Ficou ainda demonstrada a importância da abertura da escola à comunidade, de uma forma simples mas enriquecedora, uma vez que actualmente todas as escolas possuem computadores ligados à Internet e, por correio electrónico, é fácil endereçar um convite a uma escola ou a um especialista da temática que se pretende abordar na sessão de IRC, para que participem no debate previamente preparado. 2. Metodologia Neste trabalho, são observados os registos escritos produzidos por alunos do 5º e do 8º anos de escolaridade em situação de utilização de IRC em contexto educativo. As sessões de IRC avaliadas (2 sessões do 5º ano de escolaridade e 3 sessões do 8º ano de escolaridade) fazem parte do conjunto mais vasto de dados recolhidos e observados no âmbito do trabalho desenvolvido em Horta (2002). Os alunos pertencem a escolas de Lisboa, Viseu e Elvas. Os alunos do 5º ano não tinham qualquer experiência de utilização do IRC enquanto os do 8º ano eram já utilizadores de IRC em contexto lúdico. As sessões realizadas decorreram do trabalho que os alunos estavam a realizar nas aulas de Ciências e tinham por objectivo discutir com colegas de outras escolas ou com especialistas em Ciências temáticas de carácter científico. Todas as sessões são moderadas por um anfitrião, que, em alguns casos, é a professora de Ciências, noutros um dos especialistas convidados para interagir com os alunos. Foi utilizada uma sala de IRC criada especialmente para o efeito (sala #netciencias) e que tinha a característica de ser uma sala moderada, ou seja, nela só podiam participar elementos previamente identificados junto do anfitrião ou moderador da sala. No final das sessões, os registos escritos produzidos no decorrer das mesmas eram gravados no formato de texto, sendo possível editá-los através de um processador de texto. 3. Propriedades dos registos de IRC 3.1. O IRC como uma nova situação de uso da língua Como já foi referido, o IRC permite a comunicação através do computador, sendo que os participantes escrevem no teclado aquilo que é imediatamente reconhecido pelos outros elementos envolvidos no acto de comunicar. Mann e Stewart (2000) consideram esta uma nova forma de comunicação: Qualitative researchers cannot overlook the possibility that technology has produced, and is continuing to developed, new ways of transmitting meaning through language. Features like interaction, rapid feedback 61 and, in some cases, co-present users suggest that CMC, and particulary synchronous CMC, may be a completely new form of communication. (p. 181) Para compreendermos a especificidade desta nova situação de IRC, é necessário compará-la com a situação básica de uso da língua que é a conversa espontânea face a face, uma vez que esta é universal, é nela que as crianças adquirem a língua materna e é aquela em que todos os falantes de uma comunidade estão envolvidos como locutores e interlocutores. De acordo com Clark & Brennan (1991) e Clark (1996), este tipo de situação discursiva caracteriza-se pelas propriedades apresentadas no quadro I, agrupadas de acordo com os parâmetros imediaticidade, modo (oral) e controlo da situação por parte dos participantes: Quadro 1 - Propriedades da conversa espontânea face a face IMEDIATICIDADE Propriedades Co-presença Visibilidade Audibilidade Instantaneidade MODO Evanescência Ausência de registo Simultaneidade CONTROLO Não planeamento Autodeterminação Auto-expressão Caracterização Os participantes partilham o mesmo contexto físico Os participantes vêem-se uns aos outros Os participantes ouvem-se uns aos outros Os participantes apercebem-se das acções uns dos outros sem demora perceptível O modo (oral) é efémero Não fica registo das acções dos participantes A comunicação não é unidireccional: os participantes podem actuar simultaneamente como locutores e interlocutores Os participantes formulam e executam as suas acções em tempo real, pelo que não as planeiam com antecipação São os participantes que decidem que acções vão realizar As acções dos participantes exprimem os propósitos destes As propriedades decorrentes do parâmetro imediaticidade são consequência do facto de os falantes se encontrarem no mesmo contexto físico, razão pela qual elementos não linguísticos como gestos e expressões faciais contribuem para o desenvolvimento da interacção verbal. O modo oral determina, por um lado, que cada unidade conversacional seja efémera e, por outro, que os participantes desempenhem ao mesmo tempo o papel de locutores e de interlocutores. Assim, por exemplo, são traços característicos da conversa interrupções de um participante para pedir um esclarecimento ao locutor, reformulações feitas pelo locutor em função da avaliação que faz das reacções visíveis dos interlocutores e sobreposições de falas. Finalmente, porque existe controlo da situação por parte dos participantes, cada participante é responsável por aquilo que diz, fala em seu próprio nome e determina, em conjunto com os restantes participantes, quem diz o quê em que momento da conversa. Pelo contrário, em situações institucionais e prescritivas, o controlo que os participantes têm da situação é muito menor, enquanto em situações ficcionais e mediadas a actividade verbal do locutor exprime propósitos de terceiros3 . A complexidade das sociedades modernas criou novas situações de interacção, todas elas caracterizáveis por referência à conversa espontânea face a face. O mesmo aconteceu com as tecnologias que, desde o início do século XX, se vêm instalando no dia a dia dos cidadãos. Assim, a invenção do telefone criou um novo tipo de conversa que se distingue da conversa face a face por não existir co-presença nem visibilidade dos participantes, com as consequências discursivas daí resultantes. O corpus discursivo analisado neste trabalho sugere que a generalização dos computadores pessoais nas nossas sociedades e a evolução e sofisticação dos programas de IRC deram origem a uma nova situação de uso da língua. Definida a situação básica que é a conversa espontânea face a face, estamos agora em condições de apresentar as propriedades que caracterizam a situação de IRC. Considerando as propriedades decorrentes do parâmetro imediaticidade, esta situação de uso da língua caracteriza -se por não haver co-presença, visibilidade nem audibilidade, uma vez que os participantes não partilham o mesmo contexto físico, mas por existir instantaneidade, dado que os participantes se apercebem das acções linguísticas uns dos outros sem demora perceptível. Quanto às propriedades decorrentes do parâmetro modo, estamos perante uma situação sem evanescência e com registo, já que na interacção se utiliza o modo escrito, mas com simultaneidade, o que a define imediatamente como um tipo de interacção em tempo real. No que se refere ao parâmetro controlo da situação pelos participantes, todas as propriedades características da conversa espontânea face a face estão presentes. 3 Sobre a tipologia de situações e a caracterização das situações institucionais, prescritivas, ficcionais e mediadas, ver Clark (1996). 62 Em síntese, as propriedades desta situação de uso da língua são as apresentadas no quadro II 4 : Quadro 2 - Propriedades da situação de IRC IMEDIATICIDADE Propriedades ¬Copresença ¬ Visibilidade ¬ Audibilidade Instantaneidade MODO ¬ Evanescência ¬ Ausência de registo Simultaneidade CONTROLO Não planeamento Autodeterminação Auto-expressão Caracterização Os participantes não partilham o mesmo contexto físico Os participantes não se vêem uns aos outros Os participantes não se ouvem uns aos outros Os participantes apercebem-se das acções uns dos outros sem demora perceptível O modo (escrito) não é efémero Fica registo das acções dos participantes A comunicação não é unidireccional: os participantes podem actuar simultaneamente como locutores e interlocutores Os participantes formulam e executam as suas acções em tempo real, pelo que não as planeiam com antecipação São os participantes que decidem que acções vão realizar As acções dos participantes exprimem os propósitos destes Retenha-se como aspecto mais importante da comparação entre os quadros I e II que apenas no que diz respeito ao parâmetro controlo da situação pelos participantes a conversa espontânea face a face e a situação discursiva de IRC exibem as mesmas propriedades; relativamente aos dois outros parâmetros, só a instantaneidade e a simultaneidade são propriedades comuns aos dois tipos. Contudo, como mostraremos adiante, as propriedades comuns acima referidas são suficientes para que o discurso produzido apresente muitas características da conversa espontânea face a face, e se distinga marcadamente do discurso produzido no modo escrito. São também suficientes para que a representação que dela têm os participantes seja a de uma situação conversacional, como os dois exemplos a seguir apresentados indicam: (i) em Horta (2002), foi aplicado um questionário aos alunos envolvidos em actividades de interacção pela Internet. Os sete alunos do 5º ano de escolaridade que responderam a esse questionário sobre a utilização que fizeram do IRC ao longo do ano lectivo, na referência à utilização do IRC, utilizam a palavra ‘escrever’ 4 vezes, enquanto a palavra ‘falar’ é utilizada 11 vezes. Por sua vez, os nove alunos do 8º ano que responderam ao mesmo questionário apenas utilizam a expressão ‘escrever’ 2 vezes, usando10 vezes a palavra ‘falar’. (ii) numa das sessões de IRC observadas e registadas em Horta (2002) com alunos do 5º ano de escolaridade, surge uma reflexão sobre a natureza discursiva dos enunciados produzidos em situação de utilização da plataforma tecnológica em avaliação. O diálogo que a seguir se transcreve revela a dificuldade de classificação da situação de interacção em curso: A: estou a ver... M: nao T: a ver ou a falar? A: as duas... heheheh A: olhem lá... T-M: nem uma nem outra a escrever 3.2. Propriedades conversacionais nos registos de IRC 3.2.1. Propriedades interaccionais, lexicais e sintácticas Nesta secção argumentaremos, com base em dados do corpus analisado, a favor da natureza conversacional do tipo de situação discursiva em avaliação neste trabalho. Uma das propriedades típicas da conversa espontânea face a face é a existência de disfluências, que podem assumir a forma de pausas preenchidas, repetições, falsas partidas e rupturas gramaticais (cf. Rost, 1990). Nos registos de IRC analisados, encontrámos exemplos de pausas preenchidas (cf. (1)) e de rupturas gramaticais (cf. (2), com resolução da ruptura por parte de outro participante, e (23)-(26), adiante): (1) A: Fizeram alguma festa de fim de ano? A: aqui fizemos C: eu acho que não porque dá muito trabalho or C: ganizar tudo CA: hummm! (5º) 4 O símbolo '¬ 'antecedendo uma propriedade significa que é o contrário dessa propriedade que se verifica. 63 (2) CA: para a coagular o sangue B: pra coagulaçao do sangue (8º) Ocorrem também tipicamente na conversa espontânea face a face expressões e fórmulas feitas que têm como objectivo a monitorização do diálogo em curso. Elas ocorrem frequentemente nos registos de IRC analisados, como se pode observar no exemplo (3), em que um dos participantes procura situar-se relativamente ao tom e objectivo da conversa e outro confessa que não está a compreender o curso que o diálogo está a tomar, e no exemplo (4), em que o participante com mais poder institucional convida outro a tomar a palavra sobre um tópico específico: (3) A: tamos a falar a serio ou não? (...) B: nao estou a perceber nada (8.º) (4) CA: diz lá, marta, que observaste? B: Sim, vimos as mais diversas coisas, a epiderme da cebola, o sangue humano... (5.º) Na conversa es pontânea face a face ocorrem igualmente categorias e expressões linguísticas que decorrem da natureza interaccional desta situação de uso da língua. Assim, é frequente a ocorrência de expressões dêicticas, recuperáveis a partir da situação ou do contexto linguístico anterior, que se verifica igualmente nos registos escritos de sessões de IRC. Exemplificando, só é possível fixar o referente do advérbio dêictico aqui em enunciados como aqui fizemos (5.º) porque o falante se identificou, no início da sessão, como pertencendo à escola EB2/3 de Ílhavo, o mesmo acontecendo com os pronomes pessoais que ocorrem no exemplo (5), cujo o referente é fixado porque os participantes na interacção se vão apresentando no início da sessão: (5) CA: Quem es tu? A: sou o jr B: De onde estas a falar' A: da eb23 de Ílhavo CB: e tu? (...) CA: vocês saõ alunasda luis de camões? (5.º) São também características que decorrem da natureza interaccional da conversa espontânea face a face igualmente observadas nos registos de IRC analisados a ocorrência frequente de interrogativas (cf. (3)-(5), (7)), exclamativas (muitas vezes elípticas, como acontece em (6)) e imperativas (cf. (7)), tipos de frases especializados no pedido de informação, no posicionamento avaliativo dos falantes face ao que foi dito antes e na formulação de instruções para a acção: (6) A: seus satânicos (8.º) (7) A: o sangue é constituido por células sanguíneas e plasma B: s C: jura?? C: lol D: sim E: s CA: cala-te (8.º) Característica da natureza interaccional da conversa espontânea face a face igualmente observada nos registos de IRC em análise é a ocorrência de fórmulas informais de saudação (olá, oi) e de despedida (xau), de interjeições que exprimem avaliações de cada participante (ah!, ena!) e de itens de polaridade afirmativa reservados ao oral informal (ok, ta). Em situações de conversa espontânea, é frequente registarem-se sobreposições, ou seja, momentos em que os intervenientes no diálogo falam ao mesmo tempo. Nos registos escritos das sessões de IRC que constituem a nossa amostra, as sobreposições são também frequentes, como se exemplifica em (8): 64 (8) A: Museu de Ciência da Universidade de Lisboa... B: Ou seja C: ah D:ESTA CERTO E:Ah A: fala-se de quê, hoje? F: ah! ja percebi B: Estamos a falar com o Jorge D:tambem eu B: Foi o professor que esteve connosco no Museu E: DA poluiçao (5º) Como na conversa espontânea, as sobreposições nestes registos podem provocar distúrbios ao nível da interacção verbal, facto reconhecido pelos próprios intervenientes no diálogo, como se conclui do excerto que reproduzimos em (9): (9) CA: Quando colocamos questões temos de esperar pelas respostas B: o sangue? CA: Senão isto fica muito confuso (8º) A aproximação dos registos escritos das sessões de IRC à conversa espontânea é ainda motivada pelo facto de se registarem interrupções decorrentes da tomada de palavra de outro interveniente no diálogo, sendo a fala inicial retomada no final da interrupção. Veja -se, a este propósito, o exemplo (10): (10) A: de que gosta mais de fazer B: (...) CB: Tentar perceber o que é que os alunos gostam de aprender em Ciências A: ou estudar CB: E também como é que aprendem (8º) No que diz respeito ao vocabulário utilizado, são características da conversa espontânea face a face também observadas nos registos de IRC analisados, repetições de palavras ou expressões, como se exemplifica em (11), e o uso de itens e expressões típicos de estilos informais (como gira, porreira, vocês tratam-se bem, é só progresso) ou mesmo de estilos identificadores de grupos sócio-etários (garinas, tu picaste, foi fixe), banidos do modo escrito. Relativamente à sintaxe , a conversa espontânea, ou seja, informal e não planeada, apresenta um conjunto de propriedades sintácticas específicas que a distinguem quer do discurso oral formal quer do discurso escrito.5 A forma como as palavras se combinam na frase permite também caracterizar os registos que constituem a nossa amostra como um discurso mais próximo do oral informal do que do escrito típico. Em primeiro lugar, é visível a preferência pela parataxe, ou seja, por períodos simples, períodos compostos formados por coordenação e por unidades sintácticas constituídas por pares pergunta-resposta. Considerem-se, a título ilustrativo, os exemplos em (11), (12) e (13): (11) A: que tal foi a visita? B: foi fixe C: gostei muito D: BOA! E: muito gira (5º) (12) A: Há uns bandidos que querem deitar produtos maus para o mar e só um tem água e nós queremos descobrir o que tem água (5º) (13) A: e onde é que entra a poluição nisso? B: na poluiçao das aguas 5 (5º) Sobre as propriedades específicas do discurso oral, veja-se Duarte (2000: 388-391). 65 Em (11), verifica-se que as respostas à pergunta de A são constituídas por períodos simples, havendo mesmo casos em que o próprio predicador verbal é omitido; vejam-se, por exemplo, as tomadas de vez de D (BOA) e E (muito gira ).6 O exemplo (12), por sua vez, constitui um período composto formado por orações coordenadas. Finalmente, em (13), ocorre um par pergunta-resposta, em que a resposta integra exclusivamente o complemento do predicador verbal que ocorre na tomada de vez do falante A (entrar). O exemplo (13) ilustra, ainda, uma outra propriedade sintáctica específica da conversa espontânea – a ocorrência de elipse, ou seja, de omissão de uma expressão recuperável pelo contexto linguístico ou pela situação. Com efeito, os diálogos, por integrarem com frequência unidades sintácticas constituídas por pares pergunta-resposta, como anteriormente afirmámos, constituem um domínio favorável à ocorrência de elipses, que, aparentemente, têm a função de evitar a repetição de material linguístico redundante.7 Os constituintes afectados pela omissão bem como o material linguístico que ocorre na construção elíptica podem variar, facto corroborado pelos dados que constituem a nossa amostra. Em primeiro lugar, os registos escritos das sessões de IRC integram casos em que são omitidos complementos verbais nominais ou frásicos; ilustram estas construções os exemplos (14) e (15), respectivamente: (14) A: e visitas de campo? B: não C: não CD: Não isso não fizemos, mas vamos fazer (5º) (15) A: estao a tentar entrar (...) CB: e a andreia e a catia estão a tentar (8º) Repare-se que, em (14), o falante D, ao dizer mas vamos fazer, recupera o constituinte nominal visitas de campo, que ocorre na tomada de vez do falante A; por seu turno, na tomada de vez do falante B em (15), é recuperado o complemento frásico do verbo tentar, a saber, entrar, que integra a tomada de vez do falante A. É de salientar que esta tomada de vez integra igualmente uma elipse, já que é omitido o complemento (oblíquo) do verbo entrar. Em certos contextos, o constituinte omitido corresponde ao próprio predicado verbal, como acontece em (16), em que estão omitidos todos os elementos da frase à excepção de um sintagma, que coocorre com expressões adverbiais como não, sim, também, que recuperam o material linguístico omitido: (16) A: É para todos a primeira vez que estão a usar este programa? (...) CB: para mim sim (8º) [onde sim recupera é a primeira vez que estou a usar este programa] Nos registos escritos das sessões de IRC que constituem a nossa amostra são igualmente frequentes respostas abreviadas, que integram um único constituinte com realização lexical, que, por si só, recupera uma frase elíptica: Esta estratégia é ilustrada por exemplos como (17), onde a expressão adverbial sim recupera a frase são contra a coca-cola, e (18), onde a resposta de B exclui o predicador verbal (entrar) presente na tomada de vez do falante A: (17) A: quer dizer que são contra a coca-cola B: sim (8º) (18) A: e onde é que entra a poluição nisso? B: na poluiçao das aguas (5º) Casos há, ainda, em que o constituinte elíptico corresponde a toda a frase, sendo identificado por um sintagma interrogativo, como se ilustra em (19), em que a fala de B recebe a interpretação onde é que 6 7 De estratégias de omissão deste tipo e de outros se dará conta mais adiante. Sobre este assunto, veja-se Matos (2003) e a bibliografia aí citada. 66 fizeste uma coisa muito interessante?: (19) A: eu este ano fiz uma muito interessante (...) B: onde (5º) Na nossa amostra, ocorrem, ainda, casos em que é omitido o núcleo do sintagma nominal, como em (20): (20) A: e visitas de campo? (...) A: eu este ano fiz uma muito interessante (5º) (onde uma muito interessante equivale a uma visita de campo muito interessante) Os registos escritos das sessões de IRC que constituem a nossa amo stra integram inúmeros casos em que o sujeito é omitido, sendo recuperado a partir de uma tomada de vez anterior, possibilidade permitida por uma propriedade gramatical do Português conhecida como Sujeito Nulo: (21) A: que tal foi a visita B: foi fixe (5º) (onde foi fixe equivale a a visita foi fixe) (22) A: e constituido por coracao e vaos sanguineos e tem com funcao:defesa, coagular o sangue e tranporte (8º) (onde o sujeito não expresso equivale a sistema circulatório, presente numa fala anterior) Finalmente, a aproximação dos registos escritos que constituem a nossa amostra à conversa espontânea é motivada, do ponto de vista sintáctico, pela ocorrência de rupturas sintácticas, ou seja, situações em que não são respeitadas ou propriedades dos itens lexicais ou regras categóricas. Tais rupturas decorrem essencialmente do facto de os intervenientes disporem de um tempo limitado para planearem o seu discurso e de reconhecerem o menor grau de formalidade da situação em que se encontram. De entre as rupturas mais frequentes, salientamos a violação de regras categóricas de concordância e de propriedades sintácticas dos itens lexicais. No que diz respeito ao primeiro aspecto, considere-se um exemplo como (23): (23) A: sao formadas na medula ossea (...) B: e são destruidos no figado, baço (8º) Como é sabido, nas construções copulativas, o sujeito e o predicativo do sujeito concordam obrigatoriamente em género e número.8 Ora, o sujeito nulo da frase que constitui a tomada de vez do falante B tem a sua referência fixada pela expressão nominal as células sanguíneas, presente no discurso anterior. Por esta razão, a forma participial do verbo destruir deveria realizar-se como feminino (destruídas) e não como masculino (destruídos). Relativamente às propriedades de construção dos itens lexicais, considerem-se os exemplos (24), (25) e (26): (24) A: mas essas luzinhs caben cerca de 4 terras no minimo (8º) (25) A: qual é a diferença do chat e do mirc (8º) (26) A: sim claro temos milhões de assuntos mas isto aqui já começa a haver zanga (netciencias_5ano_b) 8 Constituem excepções a esta generalização os casos em que o predicativo do sujeito corresponde a uma expressão nominal qualitativa, que se designa como epíteto (cf. Duarte 2003: 291). Ilustram esta construção exemplos como as novas criações desse estilista são um espanto, os resultados dos testes foram um desastre ou os bolos que a minha avó fazia eram uma maravilha. 67 Em (24), o erro decorre do facto de o verbo caber seleccionar um complemento preposicionado, pelo que a contrapartida gramatical seria mas nessas luzinhas cabem cerca de 4 terras no mínimo. Por seu turno, a sequência de (25) não é legítima dado que o nome diferença selecciona um complemento introduzido pela preposição entre; este complemento é obrigatoriamente coordenado, sendo a variante gramatical de (25) uma frase como qual é a diferença entre o chat e o mirc?. Finalmente, (26) não constitui uma sequência bem-formada do Português porque o verbo haver, sendo impessoal, exclui a ocorrência de um sujeito lexical como isto; a sequência seria gramatical se se apresentasse como ..aqui já começa a haver zanga. 3.2.2. Propriedades fonéticas e fonológicas Ao observarmos as sessões de IRC descritas neste trabalho, verificamos que, à imagem do que sucede com as propriedades sintácticas referidas na secção anterior, existem formatos gráficos que remetem para propriedades fonéticas e fonológicas específicas dos enunciados de fala do Português. (i) Registos de supressões de vogais na fala espontânea O Português Europeu apresenta um enfraquecimento das vogais em posição átona. Uma das características dos enunciados de fala espontânea nesta língua é a da frequente supressão destas vogais. A vogal que mais frequentemente sofre supressões é o [? ], sendo também possível detectar quedas de [i] e de [u] (vejam-se os exemplos em (27) 9 ): (27) <feminino> [f? minínu] → [fmnínu]10 <perceber> [p? rs? bér] → [prsbér] <fotografia> [futugr? fí? ] → [ftugr? fí? ] Nos enunciados de IRC observados, e tal como o comprovam os exemplos em (28), é possível encontrar vestígios destes apagamentos vocálicos em diferentes formatos gráficos seleccionados pelos alunos: (28) <espriencias>em vez de <exp eriências> (5º) <expriente> em vez de <exp eriente> (8º) <comçar> em vez de <começar> (8º) <rsponder> em vez de <responder> (8º) A ausência de uma vogal átona pode levar à ocorrência de processos que afectam a sequencialidade de outros segmentos na palavra. A supressão de [? ] na produção da primeira sílaba da palavra <p erguntar> [prg? ?tár] ou a sua metátese na produção possível [pr? g? ?tár] teve como consequência a grafia que se apresenta em (29), desvio muito frequente noutros contextos de uso da ortografia. (29) <preguntar> (5º) Na amostra observada, o não registo de vogais gráficas como consequência do seu apagamento na oralidade é mais frequente nos alunos do 8º ano do que nos do 5º ano, facto que pode estar relacionado, entre outros aspectos, (i) com uma maior preocupação de rigor gráfico nos alunos do 5º ano ou (ii) com uma capacidade mais desenvolvida de relacionar os dois planos oral e gráfico por parte dos alunos do 8ºano. Só investigação direccionada neste sentido poderá vir a confirmar a tendência verificada e a explorar os factores que estão na base deste comportamento dos alunos. (ii) Registos de supressões de consoantes na fala espontânea Embora menos frequentes, é também possível detectar apagamentos de consoantes nos enunciados de fala do Português. Vejam-se os exemplos em (30): (30) <está> [tá] <come r bolo> [kumé bólu] Os registos de IRC em avaliação apresentam também casos de registo gráfico do apagamento de consoantes no Português: (31) <tamos> em vez de <es tamos> (8º) <quer vi participar?> em vez de <quer vir participar?> (8º) (iii) Transcrição de propriedades segmentais 9 Este aspecto permite, por exemplo, distinguir o Português Europeu do Português do Brasil, o qual preserva todas as vogais da palavra nos enunciados de fala ([feminínu], [debilitádu], [peRsebéR], [fotografía]). 10 As transcrições fonéticas das palavras são apresentadas entre [ ]. 68 Em algumas versões gráficas, verifica-se uma utilização dos grafemas de forma a que haja uma aproximação da escrita relativamente às propriedades dos sons que ocorrem na fala espontânea. Neste tipo de registos, a escrita aproxima-se de uma transcrição fonética, havendo uma tentativa de preservação de biunivicidade entre som e grafema. Vejam-se os seguintes exemplos: (32) <inseneradoras> em vez de <in c ineradoras> [? ?s? n? r? dór? ? ] (5º) <otro> em vez de <ou tro> [ótru] (5º) <ora> em vez de <h ora> [? ´ra] (8º) <protaina> em vez de <proteína> [pr? t? ín? ] (8º) <mta bem> em vez de <muit o bem> [mt ? ] (8º) <besbelhotice> em vez de <b isb ilhotice> [b? ? b? lhutís ? ] (8º) <bisbelhoteiros> em vez de <bisbilhoteiros> [b? ? b? lhut? ´jru? ] (8º) <softwer> em vez de <software> [s? ftw? ´r] (8º) (iv) Transcrição de propriedades entoacionais e temporais Na fala espontânea, utilizamos estratégias entoacionais que nos permitem atribuir à produção de palavras ou de sequências de palavras determinadas intenções comunicativas e interpretações que a mesma sequência não teria se não tivesse sido produzida daquela forma. Para levarmos a efeito a produção de tais enunciados, manipulamos a intensidade, a duração e a altura da voz. Assim, a mesma sequência de sons que constitui a frase Vais ao teatro pode ser produzida como afirmação, como interrogação, como dúvida, ou como ordem. Para tal, é possível manter inalterada a sequência de sons [vájz aw tjátru], alterando apenas a entoação e a duração com que a sequência é produzida. Nos enunciados de IRC aqui avaliados, detectam-se representações gráficas correspondentes a estas propriedades entoacionais e temporais do discurso oral. Observem-se os seguintes exemplos: (33) A: Querem pedir ajuda ao professor Jorge (...) B: SIMMMM (34) A: GRAXISTa (35) A: e o prof. deixa? (...) B: vamos tentar convecer, AJUDE-NOS (36) (5º) (8º) (8º) A: vaiiiiiiiiiiii aprenderrrrrrrrrrr a escreverrrrrrrrrr miguellllllllllll (8º) Nos exemplos em (33), (34) e (35), a utilização das maiúsculas pode ser interpretada como uma estratégia gráfica para representar um aumento dos valores de intensidade e de altura na voz, comportamento verbal indiciador de uma atribuição de ênfase à informação contida no enunciado graficamente destacado. No exemplo (36) , a repetição de caracteres pode corresponder a um aumento da duração dos sons na produção de um enunciado oral, facto que remete para uma atitude não neutra do participante no IRC e que pode corresponder, por exemplo, a uma atitude de impaciência ou de chamada de atenção relativamente a um aspecto da interacção. Noutros casos, a representação gráfica de propriedades fonéticas e fonológicas do oral obrigatoriamente feita de acordo com a ortografia oficial não é usada nos registos produzidos pelos participantes no IRC. Vejam-se os exemplos em (37), para a acentuação gráfica, e em (38), para a pontuação11 . Em (37), apresentam-se palavras escritas pelos alunos sem marcação gráfica do acento, embora esta seja obrigatória de acordo com a ortografia do Português, por se tratar de casos com acentuação fonológica não regular: (37) Ausência de acentuação gráfica 11 Embora a pontuação possa fornecer instruções de leitura sobre propriedades fonológicas da língua, tais como os tipos de contornos entoacionais ou a localização das pausas, por exemplo, nem sempre existe isomorfismo entre marcação gráfica de pausas e de entoação e as propriedades de organização temporal e entoacionais do Português (cf. Freitas, 1990 e Duarte, 2000). O papel central da pontuação remete para propriedades sintácticas do Português. Mata (1992) mostra de que forma é possível trabalhar propriedades entoacionais da língua na aula de Português, sem recurso obrigatório à pontuação. 69 <numero> <estas> <ciencias> <varias> <paginas> para para para para para <número> <estás> <ciências> <várias> <páginas> (5º) (5º) (8º) (8º) (8º) Em (38), são fornecidos alguns dos muitos exemplos de não utilização de pontuação, observáveis nas sessões de IRC em avaliação: (38) Ausência de de pontuação <nos nao somos genios mmarina> para <Nós não somos génios, Marina!> (5º) <adeus, liliana até setembro> para <Adeus, Liliana. Até Setembro.> (5º) <não o costa tambem é expriente> para <Não, o Costa também é experiente.> (8º) <epa eu n consigo deixar o que e que queres> para <É pá, eu não consigo deixar. O que é que queres?> (8º) <loucos não brilhantes!> para <Loucos, não, brilhantes!> (8º) Verifica-se, assim, que (a) a procura de meios gráficos para representar propriedades entoacionais e temporais da fala, ilustrada nos exemplos (33) a (36), é acompanhada por (b) uma não aplicação quer das regras ortográficas de marcação do acento fonológico não regular quer dos princípios de utilização da pontuação. Os dois comportamentos revelam uma aproximação dos registos de IRC às propriedades do oral e um afastamento em relação às propriedades da escrita. Note-se que esta tendência é ainda verificável na frequente não utilização de maiúsculas nos contextos definidos pela ortografia oficial: (39) Uso inadequado de minúsculas a) <do oceanote e do ajudante lavadinho> <adeus, liliana até setembro> b) <não o costa tambem é expriente> c) <venus, saturno, e a andromeda (galáxia)> (5º) (5º) (8º) (8º) 4. A situação conversacional de IRC e o seu aproveitamento educativo na aula de Português Nas secções anteriores, reflectimos sobre a natureza discursiva dos enunciados produzidos por alunos quando usam a plataforma tecnológica de IRC na sala de aula, tendo concluído que esta é uma nova situação conversacional, uma vez que a definem propriedades de imediaticidade, simultaneidade e todas as propriedades típicas do parâmetro controlo da situação pelos participantes. Apresentámos depois propriedades linguísticas dos registos escritos produzidos em IRC características da conversa espontânea face a face, e que argumentam a favor da natureza conversacional - i.e., crucialmente, oral e interaccional - desta nova situação de uso da língua. Procuraremos, nesta secção, apresentar argumentos a favor da vantagem educativa de exploração destes materiais na aula de Português. Como é sabido, o conhecimento linguístico exigido para a participação competente na conversa espontânea é um produto da aquisição, i.e., desenvolve-se naturalmente em cada criança, sem necessidade de ensino formal: por outras palavras, não é necessária escolarização para se ser um conversador interessante, e muito menos para interagir conversacionalmente. O mesmo não acontece quanto ao uso da língua no modo escrito, o qual exige conhecimentos que resultam, nas sociedades contemporâneas, de aprendizagens escolarizadas. Os produtos linguísticos do oral informal e do escrito distinguem-se, como é sabido, quer quanto ao canal perceptivo (auditivo vs. visual), quer quanto às propriedades linguísticas decorrentes (i) do canal perceptivo utilizado, (ii) da natureza interaccional vs. unidireccional da situação e (iii) da ausência vs. existência de tempo de planeamento. Dadas as características acima apresentadas dos registos escritos de IRC produzidos em ambiente educativo, estes materiais podem ser usados com muitas vantagens na sensibilização dos alunos para as diferenças entre o oral informal e o escrito, necessariamente planeado, e na sistematização dessas diferenças. Em primeiro lugar, ao disponibilizarem discurso conversacional num registo escrito, os materiais de IRC permitem ultrapassar a dificuldade inicial com que se defronta a análise do oral informal e que consiste na etapa de transcrição do oral para o escrito, uma tarefa longa e complexa, que recruta competências especializadas não dominadas pelos alunos. 70 Em segundo lugar, estes materiais, por serem produzidos pelos próprios alunos ou por colegas seus, suscitam uma maior adesão destes a tarefas de exploração e sistematização desenvolvidas em sala de aula. Assim, estes materiais podem ser utilizados na observação e sistematização das propriedades linguísticas decorrentes da natureza interaccional de situações informais de uso da língua, e, por oposição, dos formatos linguísticos aceitáveis em situações unidireccionais planeadas como são as que caracterizam o modo escrito. Exemplificando muito sumariamente, incluem-se neste objectivo: (i) a observação e sistematização das aberturas e fechos de conversas (por oposição, por exemplo, às aberturas e fechos rotinizados de cartas), (ii) a identificação das propriedades sintácticas de unidades conversacionais constituídas por (sequências de) pares pergunta-resposta (por oposição às propriedades sintácticas da unidade parágrafo de um texto escrito), (iii) a utilização dos dêicticos, recuperáveis pelo contexto situacional (por oposição às estratégias de fixação e manutenção de referentes no texto escrito), (iv) a reflexão sobre o tipo de vocabulário admitido na conversa espontânea (por oposição às exigências quanto ao estilo (ou registo), precisão e diversidade exigidos no escrito), (v) a reflexão sobre as propriedades fonéticas e fonológicas do oral, com base na observação de diferentes versões gráficas usadas por um mesmo aluno para um mesmo alvo lexical, o que permite sistematizar processos da oralidade (entre outros, supressões de vogais e de consoantes, acento fonológico e entoação), (vi) a sistematização de informação relativa a normas do código escrito (entre outros, acento gráfico, pontuação e utilização de maiúsculas). 5. Notas finais Neste trabalho, procedemos a uma reflexão sobre a utilização, em ambiente educativo, do IRC. A análise aqui efectuada sobre registos escritos de sessões de IRC fornece argumentos a favor da natureza conversacional dos enunciados produzidos por alunos quando usam esta plataforma tecnológica na sala de aula. Estes argumentos decorrem da análise das propriedades interaccionais, lexicais, sintácticas e fonológicas do Português observadas no corpus. Foi, ainda, nosso objectivo demonstrar que a realização de sessões de IRC entre alunos de diferentes escolas ou entre alunos e especialistas das áreas em estudo na sala de aula pode funcionar como um mecanismo de motivação para os alunos e promover o interesse destes pela escrita. Estas sessões permitem a abertura da escola ao meio de forma extremamente simples e promovem o encontro de interlocutores, deixando a escrita de ser produzida apenas para a avaliação final a ser efectuada pelo professor. Os registos escritos produzidos no âmbito das sessões de IRC tornam-se, eles próprios, posteriormente, material de reflexão e de trabalho, a realizar pelos alunos na sala de aula de Português, tendo sido também nosso objectivo argumentar a favor da utilização dos registos de IRC quer para a explicitação do conhecimento gramatical quer para o tratamento de questões ortográficas. Referências bibliográficas Abbott, C. (2001) ICT: Changing Education, London: Routledge Falmer. Berge, C., Collins, M. (eds) (1995) Computer Mediated Communication and the Online Classroom, Cresskil: Hampton Press. Bettencourt, T. (1997). Possíveis razões para a utilização educativa da Internet. Actas do 2º Simpósio Investigação e Desenvolvimento de Software Educativo, Departamento de Engenharia Informática da Universidade de Coimbra, http://lsm.dei.uc.pt/simposio/pdfs/c02.PDF, consultado em 15 de Junho de 1999. Bransford, J., Brown, A., Cocking, R. (eds.) (2000) How People Learn, Brain, Mind, Experience, and School, Washington: National Academy Press. Carvalho, J., (2001) O Computador e a Escrita –Algumas reflexões. In Dias, P. e Freitas, C. V. (2001) Actas da II Conferência Internacional de Tecnologias de Informação e Comunicação na Educação – Challenges 2001, pp. 683-691. Chagas, I., Bettencourt, T., Matos, J., Sousa, J. (1998). Utilização do Hipertexto na Comunicação Científica e Educacional. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, (ms). Chagas, I., e Abegg, G. (1996). Teachers as innovators: A case study of implementing the interactive videodisc in a middle school science program. Journal of Computers in Mathematics and Science Teaching, 15, (1/2), 103118. Clark, H. C. & S. A. Brennan (1991). Grounding in Communication. In Resnick, Levine & Teasley (orgs.). Perspectives on Socially Shared Cognition, 127-149. Washington, D.C: APA Books. Clark, H. C. (1996). Using Language. Cambridge: Cambridge University Press. Day, M., Batson, T. (1995) The Network-Based Writing Classroom: The ENFI Idea In Berge, C., Collins, M. (eds) (1995) Computer Mediated Communication and the Online Classroom, Cresskil: Hampton Press. 71 Dias, P. (2001) Collaborative learning in virtual learning communities: the TTVLC project In Actas da II Conferência de Tecnologias de Informação e Comunicação na Educação, Universidade do Minho. Duarte, I. (2000) Língua Portuguesa. Instrumentos de Análise. Lisboa: Universidade Aberta. Duarte, I. (2003) Relações Gramaticais, Esquemas Relacionais e Ordem. In M. H. Mira Mateus, A. M. Brito, I. Duarte e I. Hub Faria (Eds). Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Caminho. Eça, T. (1998) Net Aprendizagem – A Internet na Educação. Porto: Porto Editora Freitas, J.C. (1999) De onde vimos e para onde vamos: o futuro da Internet na Escola. In J. Alves, P. Campoe e P. Brito (Eds). O Futuro da Internet (pp. 183-198). Matosinhos: Edições Centro Atlântico. Freitas, M. J. (1990) Estratégias de organização Temporal da fala em Português. Tese de Mestrado, Universidade de Lisboa. Gouveia, C. (1996). Pragmática. In Faria, Ribeiro, Duarte & Gouveia (orgs). Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, 383-445. Lisboa: Caminho. Harasim, L., Hiltz, S., Teles, L., Turoff, M. (1996) Learning Networks - a field guide to teaching and learning online. Cambridge: MIT Press. Horta, M. J. (2002) O IRC em ambientes de ensino-aprendizagem das Ciências – um estudo exploratório com alunos do 5º e do 8º anos de escolaridade. Tese de Mestrado, Universidade de Lisboa. Clix, (2003) Glossário, http://bvi.clix.pt/glossario/ em 15/05/2003 Lynch, M. (2002) The online educator – a guide to creating the virtual classroom, London: Routledge Falmer. Magalhães, J. (1995) Roteiro Prático da Internet, Lisboa: Quetzal Editores. Mann, C., Stewart, F. (2000) Internet Communication and Qualitative Research – a handbook for researching online, Londres: SAGE Publications. Mata, A. I. (1992) É só ouvir... em Português. In M. R. Delgado-Martins, D. Pereira, A. I. Mata, M. A. Costa, L. Prista e I. Duarte (Eds) Para a Didáctica do Português. Seis Estudos de Linguística. Lisboa: Colibri. Mata , A. I. (2002) Prosódia e domínio da oralidade no ensino do Português. Comunicação apresentada ao Congresso Linguística e Ensino do Português Língua Materna e Língua não Materna. Braga, Setembro de 2002. Matos (2003) Construções Elípticas. In M. H. Mira Mateus, A. M. Brito, I. Duarte e I. Hub Faria (Eds). Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Caminho. McCormack, C., Jones, D. (1998) Web-Based Education System, Wiley Computer Publishing, John Wiley & Sons: New York. OECD (2002). Understanding the Brain. Towards a New Learning Science. Paris: OECD. Pinto, M. (2002) Práticas Educativa numa Sociedade Global, Porto: Asa. Preece, J. (2000) Online Communities – Designing Usability, Supporting Sociability, John Wiley & Sons: New York. Rost, M. (1990). Listening in Language Learning. Londres: Longman. Santos, P. (s.d.) A Internet e o IRC, http://www.ptnet.org/ (consultado em 5 de Junho de 2001). Serim, F., Koch, M. (1996) NetLearning: why teachers use the Internet. Sebastopol: Songline Studios and O’ Reilly. Simpson, C. (1999) Internet Relay Chat In R. Branch and M. Fitzgerald (Eds.) (2000) Educational Media and Technology Yearbook (pp. 62-65), Englewood: Libraries Unlimited. Stewart, C., Shields, S., Monolescu, D. e Taylor, J. (1999) Gender and Participation in Synchronous CMC: an IRC case study. Interpersonal Computing and Thechnology: An Electronic Journal for the 21st Century, V7, N 1-2, pp.1-27. http://www.emoderators.com/ipcf-j/n1-2/stewart.html (consultado na Internet em 6 de Junho de 2001). Wells, G, Chang, G., Maher, A. (1990) Creating Classroom Communities of literate thinkers S. Sharan (ed.) (1990) Cooperative learning – Theory and Research. New York: Praeger. 72