“O espelho” “Esboço de uma nova teoria da alma humana” O conto ambienta-se em uma pequena sala de uma casa localizada no Morro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Nela fazem-se presentes cinco cavalheiros de meia idade, dentre os quais quatro debatiam sobre assuntos transcendentes e outro apenas observava e cochilava, e limitava-se a alguns resmungos de aprovação. Sendo assim, os cinco homens são descritos como investigadores de coisas metafísicas. Quando a conversa se enveredou pelos assuntos da alma, o cidadão que apenas observava pensativo foi convidado a dar uma opinião sobre o assunto. Jacobina, como se chamava, apenas concordou em relatar a sua experiência sob o pretexto de que não fosse interrompido. Por ser uma experiência própria, sua história não permitiria divergências à sua teoria de que existem duas almas. Ele explicou que a alma exterior é de fora para dentro, e é voltada para as aparências e para os bens materiais ou objetos de conquista. Além disso, a alma exterior não é sempre a mesma, ou seja, é mutável. Em contrapartida, a alma interior seria aquela de dentro para fora, ou seja, voltada para os sentimentos e as coisas imateriais. Quando tinha vinte e cinco anos, Jacobina foi nomeado alferes da Guarda Nacional. O contentamento da família foi tal que a tia Marcolina o intimou a passar um mês em seu sítio e que levasse consigo a sua farda. Os mimos e a bajulação foram vários, o que fez com que sua alma exterior - que antes era o sol, o campo, os olhos das moças e o ar - desse lugar à outra, menos humanizada, cuja necessidade era o seu posto de alferes, sua bajulação, seus mimos. Ele passou do estágio de ser, essencialmente, para o de ter, de posse e poder. Assim ele diz que “o alferes eliminou o homem”. Quando sua tia Marcolina ausentou-se do sítio, em companhia do cunhado, Jacobina sentiuse encarcerado entre quatro paredes, uma vez que ficaria sem a sua adulação. Contudo restavam os escravos, que alimentavam o seu ego chamando-lhe de “nhô alferes de minuto a minuto”. Esse alívio foi passageiro, visto que no outro dia encontrou-se sozinho no sítio e notou que os escravos tinham fugido. A solidão foi amarga e a autoestima de Jacobina foi sugada juntamente com sua alma exterior. Os minutos eram vagarosos e “as horas batiam de século a século”. O tic-tac do relógio ressoava em sua mente como um tilintar de sinos que esvaíam seus pensamentos e faziam-no mergulhar profundamente em um estado de torpor sem fim. O lustroso espelho que foi afixado em seu quarto por ordem de sua tia, como merecimento pelo posto que ocupava, ficou esquecido durante o tempo em que o alferes permaneceu só. O receio de olhar-se no espelho tomou conta de Jacobina, mas seu desespero foi maior que o medo. Defronte ao espelho olhou a imagem e recuou quase instantaneamente. Sua imagem estava deformada, difusa. Após alguns minutos de aflição, o alferes teve um insight: pegou sua farda e vestiu-a. Ainda com receio, olhou furtivamente para o espelho e desta vez vislumbrou um homem fardado impecavelmente. A partir de então, o aferes reencontrou a sua alma exterior, “essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos”. Dia após dia, em determinado momento, Jacobina vestia a sua farda e contemplava a sua imagem refletida no espelho, saciando seu ego e aguardando que os dias passassem até que sua tia chegasse para continuar a mimá-lo e a chamá-lo “senhor alferes”. Vamos a uma análise geral da obra. Situado no contexto histórico do Realismo, Machado de Assis é considerado o maior expoente da Literatura Brasileira. Por ser Realista, tem sua obra fundamentada nas características básicas dessa corrente literária, que se opõe radicalmente ao Romantismo. São elas: determinismo biológico, objetivismo, racionalismo (análise psicológica e social), pessimismo em relação à natureza humana, dentre inúmeras outras especificidades do Realismo. O racionalismo é visto no fato de Machado fazer uma análise psicológica de Jacobina. Há também análise sociológica, visto que debate sobre a corrupção da alma humana pelas coisas materiais e questões de aparência, ou seja, a sobreposição da alma exterior à alma interior. O pessimismo quanto à natureza humana é comprovando pelo fato de que o ser humano “usa uma máscara social”, vivendo de aparência em detrimento da essência, tanto isso acontece que o próprio Jacobina diz que “o alferes eliminou o homem”. Outra marca do Realismo é a preferência por temas que abordam a vaidade e o inventário de mesquinharias e atitudes hipócritas que satisfazem a moral das aparências, assim como a experiência do alferes, que se encanta com os prazeres do seu posto e despreza seus valores de homem. Em “O espelho” Machado firma sua situacionalidade na alma humana, como é previsto no subtítulo da obra em questão. O conto é um dossiê fundamentado na experiência de Jacobina, cujo exemplo é usado para dar embasamento a uma teoria plausível acerca dos recônditos da psique do ser humano. Essa teoria teatraliza a dualidade da alma, sendo esta composta por duas outras, a interior e a exterior. “Nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas” (NIETZSCHE, 1993, § 19, p. 25). Para conseguirmos compreender a crítica pretendida na obra, precisamos primeiramente analisar as personagens. Jacobina é um homem de aproximadamente 45 anos, “provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico.” É dito como casmurro e a princípio apresenta sua alma exterior voltada para a essência. É, também, uma pessoa implicante, que se acha o dono da verdade e não admite ser replicado, dizendo: “se me replicarem acabo o charuto e vou dormir”. Outra personagem descrita no conto é a tia Marcolina, esta é viúva de um capitão, mora em um sítio com o cunhado e com os escravos. É uma mulher brincalhona que confessou ter inveja da mulher que se casasse com Jacobina. Jacobina, que de início apenas observava a conversa dos outros homens, demonstrando-se apático ao que eles estão dizendo, acaba se revelando um homem distinto e de opiniões bem fundamentadas, uma vez que ele faz um discurso categórico sobre a natureza da alma: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro (...) A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.” Contudo, o verdadeiro centro da explicação de Jacobina é o fato de que a natureza da alma exterior é efêmera, ou seja, segundo ele “é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma. (...) muda de natureza e de estado”. Um fato curioso é que ele assume que não está ileso ao preceito dessa tese, dizendo: “Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...”. Durante toda a narrativa da sua experiência de moço, ele faz questão de salientar que as gentilezas oriundas da família, mais especificamente de Marcolina, e também dos escravos do sítio da tia, fizeram com que sua alma interior fosse corrompida, inundada pela sua alma exterior que estava em franca expansão, uma vez que o seu posto atraía elogios. “ E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Não apenas os elogios fizeram com que Jacobina se pervertesse, mas também os mimos que recebia da tia e dos outros habitantes do sítio: “Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. (...) tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples. (...) O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...”. Após tanta lisonja, não houve escapatória, o que sucedeu-se foi o que o próprio alferes atesta: “O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou”. Ou seja, “O alferes eliminou o homem. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem”. Doravante, a sua alma interior ia, paulatinamente, cedendo espaço para a sua alma exterior. “No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes”. Acontece que em meio a esse turbilhão de mudanças psicológicas, a tia Marcolina precisa se ausentar do sítio por motivo de doença da sua filha, e leva consigo o cunhado que morava no sítio. Nesse momento, Jacobina começa a se sentir encarcerado. Não bastasse esse sentimento de opressão, no dia seguinte Jacobina notou a ausência dos escravos, concluindo que estes haviam fugido furtivamente na calada da noite. Cabe aqui o ensejo de salientar que uma das obrigações da Guarda Nacional era vigiar os escravos, e sendo alferes, cabia a Jacobina esta função. Aqui alcançamos o clímax do conto, quando Jacobina encontra-se deveras solitário no sítio da sua tia. Um momento em que sentimentos como tédio, nervosismo, aborrecimento, desespero e angústia invadem e confundem a sua mente. Vejamos o que o próprio Jacobina tem a dizer sobre esse momento: “À tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. (...) O sono dava-me alívio (...) eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver”. (...) Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava”. Agora podemos adentrar mais profundamente na análise desse primoroso conto machadiano. O que podemos notar é que o motivo pelo qual Jacobina ficou tão consternado não foi o medo, mas sim a perda da alma exterior, uma vez que esta foi-lhe tomada com a partida da tia e a fuga dos escravos, visto que não havia quem alimentasse o seu ego com elogios e obséquios. Só mesmo o sono trazia paz e tranquilidade ao nosso protagonista, posto que este é um estágio subconsciente no qual reina a alma interior. Um patamar em que as exterioridades não são determinantes da maneira de ser ou de pensar. Um momento sublime da vivência do “eu” sem interferência do “outro”, pois a alma exterior só existe porque os outros existem. Tomando-se esta última frase por verdadeira, é necessário entender o motivo pelo qual a alma exterior do alferes não se reconstituiu, uma vez que ele estava só. A resposta para este questionamento é a seguinte: “Máscara não é simples aparência, mas algo que pertence à condição humana” (BORNHEIM, 1976, p. 74). Ou seja, como disse ROUSSEAU, “em sociedade, o homem seria apenas máscara”, e como o homem não vive isolado do mundo, independente de alguns momentos de solidão, este mascaramento é inerente ao ser humano. “Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois.” O espelho é uma metáfora que julga o materialismo presente nas ambições do homem, em que ele só é feliz quando alcança aquilo que deseja ou quando os outros o veem como ele acha que deve ser visto. Ou seja, ao fitar-se no espelho e não se ver como o alferes, Jacobina acredita que ele não tem valor, e talvez seja esse o motivo da sua solidão. Esta atitude do personagem é compreensível pelo fato de que se ele não se reconhece, como os outros -os seus familiares- iriam tratá-lo como um alferes? Sendo assim, ele sente a necessidade de “reencontrar-se”, de recuperar a sua alma perdida, para então olhar-se no espelho e poder reconhecer-ser. Quando, finalmente, Jacobina resolve enfrentar a sua condição, o medo o contagiou. O motivo para essa reação é que: “O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. De repente, um impulso tomou conta do alferes e ele se lembrou de vestir a sua farda, uma prova do seu posto, um razão para merecer a sua alma exterior. Estando fardado e posicionando-se frente ao espelho: “(...) o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. (...) Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho”. Estando de posse, novamente, da sua alma exterior, Jacobina passou a se sentir inteiro novamente. Ele reencontrou a outra metade da sua laranja, sua essência. Aqui a análise se finda e começamos a identificar as verdadeiras intenções machadianas. Em primeiro lugar é importante ressaltar que, apesar de fundamentar seu texto nas corrupções da alma exterior, Machado de Assis, pessoalmente, valoriza a alma interior em detrimento da exterior. A concepção machadiana faz eco a vários autores oitocentistas. O principal objetivo de Machado é mostrar o jogo de “Essência X Aparência”, ou seja, a máscara social travestida pelo homem. Em uma sociedade capitalista, competitiva, cujos padrões são ditados pela elite, boa parte da sociedade deixa-se influenciar pela hegemonia desses padrões e acaba por deturpar a sua alma, ou seja, rejeita a essência em prol da aparência. Uma sociedade que agrega maior valor às coisas de valor material como bens, cargos e poder, que às relativas à alma, à essência. Importa-se mais com o “ter” que com o “ser”. Sobre esse assunto, recorrente na vida social desde a gênese do capitalismo, Jean-Jacques Rousseau diz: “Ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes, e dessa distinção provieram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhes formam o cortejo. Por outro lado, o homem, de livre e independente que era antes, passou a estar, em virtude de uma profusão de novas necessidades, (...) sobretudo a seus semelhantes, de quem num sentido se torna escravo.” Dentre as inúmeras consequências dessa exploração social podemos citar: depressão, consumismo, uso de drogas, assassinatos, suicídios, dívidas, desigualdade social, de forma que as diferenças entre as classes tornam-se cada vez mais evidentes, além de uma infinidade de outros efeitos gerados por uma efeito cascata. Assim, podemos notar que segundo os valores realistas, Machado de Assis identifica e evidencia a leviandade e a mediocridade do caráter humano, ou seja, apresenta uma concepção negativa quanto à natureza do ser humano.