ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema Ruy Blas: a peça de Victor Hugo e a adaptação para o cinema de Jean Cocteau CALLIPO, Daniela Mantarro (Docente - UNESP- Assis) RESUMO: Em 1948, ou seja, cento e dez anos após a estreia da peça de Victor Hugo intitulada Ruy Blas, o célebre cineasta, poeta e escritor Jean Cocteau apresentou uma adaptação fílmica da obra hugoana. A crítica recebeu muito mal o filme, devido aos cortes e acréscimos operados e à demasiada liberdade tomada em relação à intriga da peça. Cocteau havia realizado uma adaptação livre de um clássico da literatura francesa do século XIX, inserindo no filme numerosos ingredientes de seu universo cinematográfico. Este trabalho pretende verificar de que maneira Cocteau adaptou a peça Ruy Blas de Victor Hugo, analisando as modificações operadas e o processo de re-criação mediado pelo cineasta francês. PALAVRAS-CHAVE: Ruy Blas, adaptação fílmica, Jean Cocteau ABSTRACT: In 1948, one hundred and tem years after the debut of the play of Victor Hugo entitled Ruy Blas, the celebrated filmmaker, poet and writer Jean Cocteau presented a movie adaptation of Hugo’s work. The criticals received the film very badly, because of the cuts and increases operated and because of the big liberty took by Cocteau in relation of the intrigue. Cocteau did a free adaptation of a french classic literature from 19h century, inseting in the movie a lot of ingredients of his cinematography universe. This presentation aims to examine how Cocteau adapted the play Ruy Blas of Victor Hugo, analyzing the changes and the process of recriation mediated by the french filmmaker. KEY-WORDS: Ruy Blas, movie adaptation, Jean Cocteau Em 1838, ou seja, onze anos depois de escrito o célebre Prefácio de Cromwell e oito anos após a famosa batalha do Hernani, foi encenada a peça Ruy Blas de Victor Hugo. O dramaturgo vivia um momento de solidificação de seu trabalho e desejava ter uma sala de representações exclusiva para o público romântico e para sua troupe. Anténor Joly conseguiu obter a autorização para fundar o Théâtre de la Renaissance, espaço que permitiu a Hugo entusiasmar-se novamente pelo palco, depois de cinco anos de interrupção. A última peça encenada havia sido Angelo, que obtivera um sucesso moderado em relação ao público, mas recebera críticas impiedosas da imprensa conservadora. Na peça, ressurge o grotesco, cuja importância Hugo havia estabelecido no prefácio de Cromwell, e é introduzido o picaresco, revelado ao escritor francês por meio da leitura das comédias de Corneille, Shakespeare e Beaumarchais. A ação da peça se desenvolve na Espanha, país em que Hugo passou boa parte de sua infância e o marcou profundamente. Mas a escolha não resulta apenas de uma lembrança cara ao escritor: ao inserir suas personagens em ambiente estrangeiro, recusa-se a utilizar a “cor Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 675-682 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema local” e pode tratar com maior liberdade de temas fundamentais em sua obra, como a representação do poder e de sua legitimidade. Para realizar suas ambições, o dramaturgo recorre ao poeta e à arma que ele sabia utilizar com maestria: o verso alexandrino. Hugo ocupa-se pessoalmente do cenário que, segundo consta, foi desenhado por ele mesmo. Embora não tenha dirigido a peça, acompanhou de perto a mise-en-scène, dando sugestões, inclusive, na escolha dos atores: o grande Frédérick Lemaître, famoso por interpretar vilões, foi escolhido para interpretar Ruy Blas, oferecendo à personagem uma ambiguidade que a favoreceu; Louise Baudoin foi eleita para o papel da rainha, o que desgostou Juliette Drouet, amante do dramaturgo, cujo intento era se tornar atriz. A peça estreou em 8 de novembro de 1838 e foram feitas 49 representações até maio de 1839, indicando uma boa aceitação do público e um grande sucesso, apesar de algumas cenas que escandalizaram a plateia e de certos versos audaciosos que tiveram de ser cortados. Ao publicar em livro a peça, Victor Hugo escreveu um prefácio que descreve suas intenções ao criá-la. O dramaturgo pretendia atingir um público heterogêneo, composto de mulheres, pensadores e homens comuns: “Cela tient à ce que la foule demande surtout au théâtre des sensations; la femme, des émotions; le penseur, des méditations” (HUGO, 1979, p. 403). Desse modo, era preciso criar um melodrama para os homens comuns, uma tragédia para as mulheres e uma comédia para os pensadores, uma vez que este último gênero se dedicava à análise da humanidade. Ruy Blas reunia esses três gêneros com um objetivo: faire sortir la vie humaine, c’est-à-dire des événements grands, petits, douleureux, comiques, terribles, qui contiennent pour le coeur ce plaisir qu’on appele l’intérêt, et pour l’esprit cette leçon qu’on appelle la morale: tel est le but du drame (HUGO, 1979, p. 404) O drama seria a mais perfeita expressão teatral, ao fundir tragédia e comédia. Na peça de 1838, encontram-se momentos de emoção, de ensinamentos e de riso, momentos estes criados para tratar de um assunto filosófico: o povo que aspira a postos elevados; de um assunto humano: um homem que ama uma mulher; e de um assunto dramático: o lacaio que ama uma rainha. A trama se passa em Madri no século XVII. Um nobre de Espanha, Don Salluste, fora banido pela rainha por ter seduzido sua dama de companhia. Pouco antes de partir para o exílio, descobre que seu criado, Ruy Blas, está apaixonado pela soberana. Para se vingar, introduz o rapaz na corte, como se fosse um parente desaparecido, Don César. A semelhança Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 675-682 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema física entre os dois facilita a farsa, mas Ruy Blas, ao adquirir poder e influência, torna-se um valoroso porta-voz dos pobres e conquista o coração da rainha. Entretanto, Don Salluste retorna e prepara sua vingança contra Doña Maria de Neubourg que é defendida por Ruy Blas: contrariando sua natureza pacífica, o lacaio mata Don Salluste e pede perdão à rainha por ter tentado se fazer passar por Don César. Como a soberana não quer perdoá-lo, ele ingere veneno. Ao perceber que seu amado está morrendo, a rainha perdôa-o, confessa seu amor e Ruy Blas, agradecido, expira. Opondo-se à crítica conservadora, Ruy Blas foi um sucesso financeiro. /.../ Entre os críticos e diretores de teatro, predominava o sentimento de que Hugo perturbara o equilíbrio: um homem açambarcava todo o prestígio que devia ter sido dividido entre os colegas escritores (ROBB, 2000, p. 210) Segundo Florence Nagrette (2008), tanto a peça Hernani quanto Ruy Blas possuem uma construção dramática que alterna os temas habituais das comédias, dos vaudevilles, do teatro histórico, da tragédia, do melodrama, em um jogo de construção admirável, “qui dynamite le système de genres tout en continuant de faire signe vers la tradition littéraire” (IN: LEDDA, p. 12) Com o drama Ruy Blas, Hugo teria alcançado os objetivos expostos no prefácio de Cromwell, Le drame est la poésie complète. L’ode et l’épopée ne le contiennent qu’en germe; il les contient l’une et l’autre en développement; il les résume et les enserre toutes deux /.../ C’est donc au drame que tout vient aboutir dans la poésie moderne (HUGO, 1968, p. 91) Onze anos, porém, separavam Ruy Blas de Cromwell. Victor Hugo amadurecera e, de certa forma, sofrera desilusões que seriam refletidas em sua obra: a morte do irmão Eugène em 1837 e um sentimento de solitude e de incompreensão que resultou no poema “À Olympio”, “hymne désenchanté que l’artiste s’adresse à lui-même et que, dans une certaine mesure, on peut rapprocher de la colère triste de Ruy Blas”. (LEDDA, 2008, p. 37). Em 1948, mais de cem anos após a estreia de Ruy Blas no teatro, o cineasta Jean Cocteau decide adaptá-la para o cinema. Leitor assíduo da obra hugoana, Cocteau entra em contato com os herdeiros do poeta e assina um contrato, segundo o qual se compromete a respeitar o espírito da peça. Embora sejam creditados a ele apenas a “adaptation et paroles”, Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 675-682 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema sabe-se que o diretor de cinema francês assistiu a quase toda filmagem e inseriu na película numerosos ingredientes de seu universo cinematográfico. Num primeiro momento, parece ser mais fácil adaptar uma peça do que um romance para as telas: o drama utiliza uma linguagem muito próxima à do cinema, pois não há um narrador, nem descrições pormenorizadas dos elementos que compõem a ação. Entretanto, existe a necessidade de se desenvolver a trama em um espaço reduzido como o palco, enquanto o cinema permite uma movimentação muito maior. Nota-se que no filme, Cocteau insere cenas de “ação” inexistentes na peça, proporcionando mais movimento à trama: Ruy Blas, por exemplo, para colher as flores prediletas da rainha, percorre um longo caminho num galope selvagem e se arrisca ao mergulhar em um rio agitado, devido à proximidade de uma cachoeira. Por sua vez, Don César, ao tentar fugir da emboscada de Don Salluste, pendura-se em um lustre gigantesco e, quando um soldado tenta cortar a corda que o sustentava, atira-se pelo vitral, pula da janela e monta em seu cavalo, no estilo “capa e espada” celebrizado por Scaramouche. Há, ainda, mais algumas inserções de Cocteau que merecem ser destacadas: enquanto a peça de Victor Hugo mantém uma tensão erótica que não se realiza, pois Ruy Blas e a rainha respeitam as regras impostas à corte espanhola, além de obedecer aos mandamentos da igreja católica que proibía o adultério, a adaptação fílmica exibe cenas em que os protagonistas se beijam e abraçam, o que diminui a violência da injustiça cometida por Don Salluste na peça, ao acusar Maria de Neubourg de trair o rei de Espanha com um lacaio. No filme de Cocteau, a rainha é, de fato, adúltera, enquanto na peça hugoana, os protagonistas se sacrificam em nome da honra: ao se saber amada por Ruy Blas, a soberana lhe dá um beijo na testa. Esse sacrifício deriva do fato de que Victor Hugo acreditava ter o teatro uma missão civilizadora: Le théâtre, on ne saurait trop le répéter, a de nos jours une importance immense, et qui tend à s'accroître sans cesse avec la civilisation même. Le théâtre est une tribune. Le théâtre est une chaire. /.../ L'auteur de ce drame sait combien c'est une grande et sérieuse chose que le théâtre. Il sait que le drame, sans sortir des limites impartiales de l'art, a une mission nationale, une mission sociale, une mission humaine. /.../ Le poète aussi a charge d'âmes. Il ne faut pas que la multitude sorte du théâtre sans emporter avec elle quelque moralité austère et profonde/.../ Il sait bien que l'art seul, l'art pur, l'art proprement dit, n'exige pas tout cela du poète; mais il pense qu'au théâtre surtout il ne suffit pas de remplir seulement les conditions de l'art. (HUGO, 1979, p.47) Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 675-682 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema A inserção de ações romanescas ou mirabolantes desviam a atenção do público daquela descrição de caracteres preciosa para Victor Hugo, que desejava escrever um drama a respeito dos valores éticos de um homem do povo, capaz de todo sacrifício para manter a pureza de seu coração e sua honra, e não a história de uma rainha adúltera. Outro ponto importante, é que a peça hugoana foi escrita em alexandrinos perfeitos, como foi mencionado logo acima. Na adaptação fílmica, a poesia foi substituída pela prosa, o que representa uma perda expressiva da compreensão da medida do talento hugoano. Os versos de doze sílabas, as rimas cuidadosamente elaboradas, revelam mais um traço da modernidade de Hugo: um conteúdo novo expresso em um estilo clássico. Em relação às personagens, Cocteau acreditava que, devido à semelhança, Ruy Blas e Don César deveriam ser interpretados pelo mesmo ator; desse modo, Jean Marais desdobrouse no papel do lacaio e do primo de Don Sallluste. Para compor Ruy Blas, o ator preferiu uma interpretação comedida, elegante, mas apaixonada; já para interpretar Don César, o jovem aventureiro, serviu-se de seus talentos atléticos que lhe garantiriam protagonizar o filme Comte de Monte Cristo, também de Cocteau, em 1955. Nesse ponto, o cinema leva vantagem em relação ao teatro: a intriga hugoana, também um pretexto para se introduzir o tema do duplo e da semelhança, é levada ao extremo por Cocteau, para quem era justamente essa semelhança a responsável por todos os quiprocós da trama. Ainda mais uma vantagem da linguagem cinematográfica: enquanto Hugo devia se ater a uma mudança de cenário por ato, Cocteau pôde tirar grande proveito das mudanças de locação e mostrar paisagens reais da Espanha, as ruas estreitas de Madri, a praça da Catedral e o exílio de Don Salluste em Andaluzia. Além disso, a trilha sonora intensifica os momentos de tensão, perigo ou romance, artifício proibido no teatro do século XIX. De uma forma geral, os momentos mais importantes da peça hugoana são respeitados por Cocteau: a assinatura imprudente de Ruy Blas, que vai comprometer seu destino ao escrever as duas cartas ditadas por Don Salluste, a emoção do lacaio, ao ver passar tão perto dele sua soberana, o tédio da rainha e sua amizade com Casilda, o duelo com Guritan, adiado por intervenção de Maria de Neubourg, o discurso inflamado de Ruy Blas em favor do povo e contra os políticos desonestos, a volta de Don Salluste que obriga seu lacaio a retomar a antiga função e obedecer às suas ordens; o engano que leva Don César a aceitar o duelo com Guritan e matá-lo; a revelação da verdadeira identidade de Ruy Blas, a recusa da rainha em perdoá-lo, o envenenamento, e o perdão. Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 675-682 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema Para Florence Naugrette (2005), portanto, o resultado final é positivo: Cocteau conseguiu manter o “espírito” da obra hugoana, apesar das modificações operadas: le début est certes largement réinventé, l’ordre des scènes est plus qu’une fois inversé, et les possibilités offertes par le medium cinématographique servent à prolonger la fable. Mais, pour le reste, l’esthétique générale du film, avec ses décors inspirés de la peinture espagnole, la flamboyance du jeu de Marais, et le mélange du grotesque et du sublime, est relativement conforme à l’ “esprit” de Hugo: le grand public, moins sensible que les lettrés aux altérations subis par le texte, y a été sensible. (p. 02) A pesquisadora francesa não considera, todavia, alguns elementos fundamentais para que se conserve o “espírito hugoano”, não observados por Jean Cocteau. Primeiramente, se o tema do duplo era tão importante na peça francesa – tão importante que o cineasta escalou um ator para representar os papéis de Don César e de Ruy Blas – a participação do primo de Don Salluste deveria ser intensa na adaptação fílmica, como o é no drama de Hugo. Entretanto, o papel de Don César é reduzido a uma escapada mirabolante e a um duelo rápido com Don Guritan, sem contar uma aparição no início do filme. Victor Hugo havia reservado para Don César o lado cômico de sua peça: a personagem, no ato IV, representa um dos pontos mais altos de Ruy Blas, ao entrar na casa do protagonista, exausto, experimentar um gole de vinho, provar a comida ali deixada, colocar uma roupa nova, trocar os sapatos gastos por lustrosos. Nas cenas II, III e IV, o dramaturgo insere elementos do prosaico e do bufão, que fazem rir graças às trapalhadas de Don César, em seu diálogo com a acompanhante idosa da rainha, com o servo enviado por Don Salluste para dar dinheiro a Ruy Blas e ao gastá-lo todo com antigos credores, prostitutas e bebida. Ao refletir acerca da elevada soma recebida pelo desconhecido lacaio e da maneira irresponsável com que acabara de gastá-lo, aconselha-o: Sois indulgent. Ce sont des hommes comme nous. Et puis il faut, vois-tu, c’est une loi pour tous, Dans ce monde, rempli de sombres aventures, Donner parfois un peu de joie aux créatures. Avec mélancolie Tous ces gens-là seront peut-être un jour pendus! Ayons donc les égards pour eux qui leur sont dus! (HUGO, 1979, p. 506) Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 675-682 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema Todas essas cenas cômicas foram extirpadas por Cocteau; o resultado é a eliminação do pensamento hugoano de escrever comédias para os pensadores. O tripé imaginado pelo dramaturgo “melodrama”, “tragédia” e “comédia” fica bastante comprometido. Outro ponto importante é a criação de fatos inverossímeis pelo cineasta francês: no filme, Ruy Blas confessa a Don Salluste ter conhecido a rainha quando ambos eram crianças em Neubourg e revela amá-la desde então; na peça, o lacaio conhece a rainha no palácio e conta a Don César que a ama. Don Salluste, após ter ouvido a conversa, sem ser percebido, arquiteta a vingança contra a soberana. É curioso observar que, na adaptação fílmica, Marie de Neubourg não reconhece Ruy Blas em momento algum; além disso, por que razão o lacaio contaria ao nobre estar apaixonado pela mulher do rei? Em mais um momento, Cocteau distancia-se de Victor Hugo: no filme, todas as mortes ocorrem diante das câmeras; enquanto na peça, a plateia não assiste ao assassinato de Don Guritan e de Don Salluste. Talvez o dramaturgo francês, que não se intimidava com a crítica, nem com os conservadores, evitasse chocar o público. Ele não desejava mostrar seu nobre protagonista enfiando uma espada no peito do inimigo, embora precisasse fazê-lo para salvar a rainha. No prefácio de Lucrèce Borgia, Victor Hugo explica: é preciso refletir sobre "la portée philosophique de son oeuvre" e levar aos palcos "choses pleines de leçons et de conseils". (HUGO, 1979, p. 48) Finalmente, a última cena do filme também se diferencia daquela imaginada por Hugo: na peça, após ter sido perdoado pela rainha, Ruy Blas alegra-se ao ouvir seu nome ser pronunciado pela amada e, agonizando, diz “Merci”, morrendo em seguida, nos braços da soberana. Ele recupera sua identidade de homem do povo, íntegro, que prefere deixar de viver a se corromper. No filme de Cocteau, a rainha diz “Ruy Blas, je t’aime”, o lacaio responde “Merci”, como se agradecesse o fato de ser amado, não de recuperar seu nome de batismo. Ele morre, a câmera segue o olhar perplexo de Marie de Neubourg que o deixa sozinho e parte com Casilda. Ao longe, ouvem-se as orações da procissão que segue na rua e o filme termina com a imagem de Ruy Blas morto, mas com uma expressão de extase. O final da peça representa o desejo hugoano de criar uma rainha que fosse “ange” e “femme”: “Au cinquième acte, Marie de Neubourg repousse le laquais et s’attendrit sur le mourant; reine, devant la faute, elle redevient femme devant l’expiation”. (HUGO, 1979, p. 541). No filme, a soberana lamenta a morte de Ruy Blas, mas foge rapidamente. Tem-se a Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 675-682 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema impressão de que a Marie de Neubourg de Cocteau não é tão “ange” e “femme”, como desejava Hugo. Apesar de todas as modificações operadas por Cocteau que, evidentemente, desejava inserir sua marca pessoal na adaptação da peça de Victor Hugo, o filme foi menosprezado pela crítica, mas foi bastante apreciado pelo público, exatamente como acontecera com o drama Ruy Blas, cem anos antes. REFERÊNCIAS HUGO, Victor. Ruy Blas, Lucrèce Borgia, Marie Tudor, Angelo, Tyran de Padoue. Paris: GFFlammarion, 1979. ________. Cromwell. Paris: GF-Flammarion, 1968. LEDDA, Sylvain. Hernani et Ruy Blas. De flamme ou de sang. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 2008. NAUGRETTE, Florence. Cocteau, http://www.groupugo.jussieu.fr adaptateur de Ruy Blas. disponível ROBB, Graham. Victor Hugo, uma biografia. São Paulo: Record, 2000. Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 675-682 em