HABERMAS VERSUS RORTY: UM DEBATE DE APRENDIZAGEM
Catia Piccolo Viero1
Resumo:
O presente trabalho aborda as discussões controvérsias de Rorty e Habermas que se alicerçam
nos propósitos da pragmática da linguagem, tendo como foco o atendimento das necessidades
do mundo constituído pela diversidade. Trata-se de um empenho lingüístico voltado à
melhoria política do mundo plural e ao desenvolvimento de ações humanitárias. A idéia é
mostrar que os questionamentos e as divergências acerca desses autores, não retiram a
pertinência de suas discussões para a atualidade social, cultural e educacional.
Palavras-chave: Verdade. Contextualismo. Universalidade.
Introdução
As discussões entre Habermas e Rorty se alicerçam nos propósitos da pragmática da
linguagem tendo como foco o atendimento das necessidades do mundo constituído pela
diversidade. As convergências entre eles refletem, além de seus contextos sociais, a formação
filosófica a que se derivam. Enquanto o primeiro segue a trilha da filosofia continental,
apostando no pragmatismo como possibilidade de reconstruir o projeto moderno, o segundo
segue a linha analítica, percebendo no pragmatismo a possibilidade de viver fora das
preocupações modernas. Trata-se de um filósofo ainda moderno e de um filósofo pósmoderno que discutem entre si e com o mundo a possibilidade de desenvolver uma sociedade
mais democrática, justa e solidária.
Apesar de terem em comum a pragmática lingüística, os autores produzem contrapontos
em torno do conceito de verdade. Ambos concordam com a superação da verdade por
correspondência, e com a produção da verdade pela linguagem, mas discordam no tratamento
do que pode ser considerado verdadeiro. Enquanto Rorty percebe a verdade igualada a
justificação, Habermas solicita para a verdade uma justificação validada por pressupostos
universais.
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Doutoranda em Educação, UFSC, CNPq, [email protected]
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Controvérsias sobre a verdade
Habermas lança conceitos de racionalidade e de verdade para oportunizar o acordo
lingüístico, sendo a diferenciação entre verdade e não verdade dependente da suposição
pragmática de um mundo comum. Trata-se de uma razão situada que oferece validade aos
discursos, mesmo diante de múltiplas culturas. Para o autor, a verdade é imanente e, ao
mesmo tempo transcendente ao contexto. Ou seja, apanha os diferentes jogos de linguagem e
uma idéia reguladora. Ele vai dizer que se trata de um terceiro elemento que apreende as
necessidades dos contextos sem precisar se reduzir a eles.
Já Rorty entende a racionalidade como “hábito de atingir nossos fins pela persuasão”,
e inteira que a sua proposta comparada com a proposta de Habermas não é muito diferente.
Diz isso porque enquanto ele defende padrões de justificação, Habermas defende regras de
comunicação, o que para ele parece semelhante. A diferença, nesse caso, seria a
transcendência que Habermas percebe e ele não. A verdade, para Rorty, é resultante da prática
de descrição no sentido da evolução darwinista, se organiza pela naturalização nos contextos
particulares. O autor fala de uma redescrição realizada a partir da utilidade momentânea,
sugerindo que “a distinção entre aparência e realidade seja abandonada em favor da distinção
entre modos de falar mais e menos úteis” (Rorty, 2005, p.7). Assim, afirma que a luta não
deve ser pela diferenciação entre real e não real, mas sim pela diferenciação daquilo que é
justificado aqui e agora e daquilo que será justificado posteriormente.
Rorty não percebe nenhuma utilidade no caráter incondicional, que para Habermas
tem função fundamental no significado da verdade. Contrário a Habermas, pressupõe que a
racionalidade comunicativa deveria abandonar a idéia de que uma justificação poderia servir
para todos os contextos existentes, pois entende que a justificação bem sucedida é suficiente
para os contextos, não existem razões para fazer alegações além deles. A compreensão de
Habermas de que existe uma verdade, que é resistente a refutação social, é vista como a
mesma tentativa de Platão de alcançar o mundo perfeito e virtuoso, tendo a verdade o mesmo
poder do bem metafísico. Para Rorty, a idéia de Habermas de que as proposições são imunes a
refutação, estabelece uma propriedade superior na argumentação, que é similar ao da verdade
absoluta. Segundo ele, “em vez de perguntar: “Existem verdades lá fora que nunca
descobriremos”?”, perguntaríamos: “Existem maneiras de falar e de agir que ainda não
exploramos?” (Id. Ibid, p.14). A compreensão do autor é de que por mais que se suponha que
a discussão deva ser convincente a todos, isso não pode ser entendido como uma propriedade
superior dos argumentos.
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Habermas concorda com Rorty no objetivo de superar o elitismo e desenvolver uma
sociedade solidária, mas discorda com a possibilidade da razão se naturalizar. Pode-se dizer
que, ainda como um metafísico, aposta na verdade que transcende a aceitabilidade dos bons
argumentos. Ressalta que “essa referência transcendental a algo situado no mundo objetivo
lembra os participantes que o conhecimento em pauta surgiu em primeiro lugar do
conhecimento das pessoas enquanto agentes, assim, eles não se esquecem do papel transitório
desempenhado pela argumentação no contexto mais amplo do mundo” (Habermas, 2004, p.
63). Segundo ele, a decisão discursiva neopragmática acarreta a socialização e a criação de
conceitos, porém não oferece o suporte necessário para a legitimação dos saberes, do qual
depende o entendimento universal. Tais propósitos de naturalização da razão trariam o
relativismo, do qual o próprio Rorty nega.
Diferente de Habermas, Rorty entende que apanhar a possibilidade de legitimar a
verdade por pressupostos lingüísticos transcendentes, seria considerar a verdade como algo a
ser descoberto e encontrado no mundo de agora, e não produzido pelas práticas de
argumentação que se modificam constantemente. Rorty entende que é possível que um
conhecimento de hoje só se torne justificável futuramente, e nesse sentido, é necessário
isentar dos acordos a preocupação com a verdade. Para ele o que importa são as justificações
que produzimos no decorrer de nossa evolução, e não aquilo que poderíamos desvendar como
verdadeiro. Rorty afirma que seu método voltado às realizações dos contextos é uma
alternativa não-violenta de melhorar o mundo, o que para Habermas significa desrespeito com
as relações simétricas dos sujeitos lingüísticos.
Os contrapontos de Rorty
Rorty não consegue perceber a verdade da forma como Habermas se refere, visto que a
sua preocupação não é desvendar razões desse mundo, mas sim criar novos mundos e novas
verdades. Para o autor, “abandonar a idéia de que a filosofia se aproxima da verdade, e
interpretá-la como o fez Dewey, significa dar primazia à imaginação sobre o intelecto
argumentativo, ao gênio sobre o profissionalismo” (2005, p.19). Aquilo que Habermas
apresenta como inevitável, o autor vai chamar de senso comum. Contrário a isso, propõe a
edificação, que parece significar uma constante saída do senso comum, sem que esse sirva de
alicerce para o novo. A idéia é pensar em produzir, continuadamente, uma época melhor que
a nossa. Pensar em aceitabilidade alicerçada em um realismo como quer Habermas seria
impedir a produção de um mundo melhor. Rorty ressalta que isso não significa tolerar todo e
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qualquer tipo de argumentação, pois a sociedade democrática exige credenciais que permitem
que o cidadão seja participante da conversação, sendo despedido de preconceitos ou
fundamentalismos. O autor afirma que uma conversação deve ter como requisito convencer o
preconceituoso de pensar diferente, aprendendo os argumentos justificados de forma
democrática nos contextos.
Para Rorty, a verdade transcendental que propõe Habermas não sustenta as
necessidades das províncias locais, pois essas possuem problemas e interesses próprios.
Assim, nega, com argumentos pragmáticos, qualquer versão que submeta aos conceitos
metafísicos, entendendo a verdade como totalmente falível, não percebendo o seu
desligamento com a justificação. Embora concorde com Habermas acerca do abandono de
um conceito especificamente epistêmico da razão, ele discorda com a diferenciação entre
verdade e justificação.
Assim, o que importa são as justificações, não as verdades, pois essas nos remetem ao
um mundo não satisfeito, ou seja, a um mundo além das condições do homem, enquanto
criador e transformador. Para o autor, a incondicionalidade não é relevante, mas sim as
justificações que permitem a harmonia do mundo com as práticas humanas. Embora
concordando com o desenvolvimento lingüístico da racionalidade, Rorty insiste que
Habermas erra ao preservar a noção de verdade, pois a racionalidade é impraticável no
entendimento mútuo. Nessa perspectiva, salienta que o importante não é a verdade, e sim as
justificações que tornam os conceitos desejáveis.
A proposta de Rorty é substituir a verdade pela esperança, ou ainda, parar de buscar a
verdade desse mundo para criar novos mundos, melhores que esses. Conforme suas palavras,
“a tentação de procurar critérios constitui uma classe dentro da tentação mais geral de pensar
que o mundo ou o eu do homem possuem uma natureza intrínseca, uma essência” (1994,
p.27). O que importa é a justificação e aceitabilidade de cada contexto, não aquilo que poderia
ser intrínseco na humanidade. A racionalidade, para o autor, não se afirma como verdade, mas
como virtude para pensar e agir, com persuasão e tolerância, dentro do imprevisto.
No entanto, Rorty insiste que saber se o conhecimento é dependente do contexto ou se
ele é validado universalmente não acrescenta a prática humana. O autor acredita que o
empenho nessa diferenciação é perdido, visto que o mais importante é avistar se o
conhecimento está servindo as práticas democráticas e à criação de um mundo melhor. Para
Rorty, o conhecimento humano não transcende as práticas sociais e por isso os conceitos de
verdade, as incondicionalidades não fazem nenhum sentido.
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Os contrapontos de Habermas
Habermas verifica a pragmática da verdade entre o que ele chama de “certezas
comportamentais” e os discursos justificados, isto é, a verdade é dependente das alegações de
validade do mundo da ação e também da aceitabilidade pública. As certezas comportamentais
são as alegações de validade implícitas, que no discurso são transformadas em hipóteses e
justificadas por argumentos convincentes. Na perspectiva do autor, o mundo vivido possui
certezas que, quando abaladas, são levadas ao campo discursivo, e ali revalidadas (em aberto)
numa competição de bons argumentos.
Para Habermas as proposições são legitimadas pela coerência com o mundo e com
outras proposições, e a verdade é dependente da aceitabilidade pública. A verdade não pode
ser reduzida a coerência e a justificação, sendo a relação existente entre verdade e justificação
apenas interna. Explica que ao justificar uma proposição está se fazendo alegações de verdade
que ultrapassam os contextos, o que não significa fora da linguagem. Assim, o que permite
mostrar que as crenças justificadas e coerentes são verdadeiras é a acessibilidade ao horizonte
lingüístico revelado do mundo vivido, do qual fazem parte os conceitos partilhados e o mundo
independente.
Mesmo na compreensão de enunciados elementares sobre estados ou
eventos no mundo, a linguagem e a realidade se interpenetram de uma
maneira indissolúvel para nós. Não há nenhuma possibilidade natural
de isolar as limitações da realidade que tornam um enunciado
verdadeiro das regras semânticas que fixam essas condições de
verdade. Só podemos explicar o que é um fato com o auxílio da
verdade de enunciado factual; e não podemos explicar o que é real
senão nos termos do que é verdadeiro (Habermas, 2004, p.242).
No entanto, no campo discursivo surge o problema de como distinguir a verdade
justificada, da verdade não-justificada. Para Habermas, a verdade é justificada quando as
argumentações que visa solucionar os problemas das certezas da ação forem guiadas por uma
verdade incondicional, ou seja, além do contexto de discussão. As verdades são produzidas
cooperativamente no mundo do discurso, no interior do contexto de justificação relevante.
Embora as certezas comportamentais ofereçam confiança às práticas de vida, se colocando
como fundamentais para vida cotidiana, são certezas que, continuadamente, passam para o
mundo discursivo por se tornarem duvidosas. A verdade não pode ser identificada com as
certezas do mundo vivido, são percebidas como verdades até serem encaminhadas para o
nível discursivo, onde deverão ser reavaliadas pela comunidade argumentativa.
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Diz Habermas: “enquanto Rorty assimila verdade a justificação sacrificando a intuição
realista cotidiana (...) faço valer um ponto de vista pragmático, contra um deflacionismo que
se apóia no conceito semântico de verdade; de outro, critico desse ponto de vista uma espécie
de epistemização do conceito de verdade, que eu mesmo defendi no passado” (Id. Ibid, p.
229). Desse modo ressalta que a verdade não pode ser abreviada nem pela certeza
comportamental e nem pela argumentação justificada, pois as certezas comportamentais são
verdades do campo de ação que se colocam como referência para as alegações de verdade no
campo de justificação. A compreensão é de que a verdade, que é falível, é dependente tanto
das certezas comportamentais como das justificações.
Considerações finais
Rorty discorda de Habermas sobre a existência, a partir das evidências vividas, da
incondicionalidade da verdade para além da justificação. O autor não entende por que
Habermas insiste em alcançar uma verdade, que embora mundana, seja incondicional. O autor
não concorda que a verdade deva ser defensável em todas as audiências possíveis, pois se
assim fosse, suas crenças em outros contextos seriam sempre injustificadas.
Habermas defende a não assimilação da verdade à aceitabilidade racional para evitar que
a verdade se confunda com as justificações presenciais, visto que tal confusão resultaria em
desacordo entre as culturas e agravaria as injustiças políticas. O propósito do autor é indicar
alguma reserva além da justificação, uma incondicionalidade que coíba a anarquia de decisões
e interesses. A compreensão é que com o contextualismo o mundo solidário cairia em desuso,
pois não se é solidário em desacordo com as diferentes culturas.
A defesa de Rorty pela autoridade epistêmicas da práxis de justificação de uma
comunidade lingüística leva Habermas aos seguintes questionamentos: como é possível a
verdade de um enunciado se limitar no seu contexto de justificação? Como a impossibilidade
de transcender os horizontes de justificação pode coincidir com a intuição de que a verdade
está em harmonia com a realidade? Habermas analisa tais questões e se convence de que a
justificação isolada nos contextos não condiz com a verdade, e de que o contextualismo só é
uma parte da verdade quando se descerra ao diálogo com outros contextos.
Dessa forma, pode-se dizer que Habermas e Rorty oportunizam o diálogo entre a
tradição analítica do lado de cá do atlântico, e a tradição continental, de outro. Apesar das
divergências, são autores que contribuem para a discussão das relações humanas, que refletem
na melhoria do entendimento no mundo, constituindo o intercâmbio das discussões teóricas
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transatlânticas, tornando o conhecimento filosófico mais próximo das necessidades práticas da
educação. Ambos os autores realizam o mesmo objetivo, ou seja, apreender o que há de
razoável na tradição continental, e tentar resolver, pela via pragmática, o que percebem como
problemas. Mesmo aquilo que é razoável para Habermas, não seja razoável para Rorty, e
vice-versa, pode-se dizer que ambos realizam a tarefa comum de realizar a conduta política
por um mundo mais justo e solidário. Cabe a nós, a apropriação e/ou reflexão dos pontos
positivos da discussão.
Referências bibliográficas
HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Lisboa: Ed. Presença, 1994.
___. Verdade e progresso. São Paulo: Ed. Manole, 2005.
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habermas versus rorty: um debate de aprendizagem