Title: " Verdade e Política" Author: Hannah Arendt Translator: Manuel Alberto Date: 1967 [] Título: Verdade e Política Título original: «Truth and Politics». Este texto foi publicado pela primeira vez em The New Yorker, em Fevereiro de 1967 e integrado no livro «Between Past and Future», editado no ano seguinte. Autor: Hannah Arendt Tradução: Manuel Alberto Capa: Fernando Mateus sobre quadro de Chirico ***** Hannah Arendt Verdade e Política Tradução de Manuel Alberto ***** NOTA O motivo deste ensaio foi a pretensa polémica surgida depois da publicação de «Eichmann em Jerusalém».(*) O seu objectivo é clarificar dois problemas diferentes, ainda que intimamente ligados, de que não tivera consciência antes, e cuja importância parec ultraassar as circnstâncias daquela polémica. O primeiro diz respeito à questão de saber se é sempre legítimo dizer a verdade - acreditaria, sem reservas, no «Fiat ventas, et pereat mundus» ? O segundo nasceu da espantosa quantidade de mentiras utilizadas na «polémica» - mentiras sobre aquilo que eu escrevera, por um lado, e sobre os factos que relatara, por outro. As reflexões que se seguem tentam enfrentar esses dois problemas. Podem também servir de exemplo do que acontece a um assunto eminentemente actual quando é conduzido nessa brecha entre o passado e o futuro que é, talvez, o habitat próprio de qualquer reflexão. *** {*} 1963 *** I O objecto destas reflexões é um lugar comum. Nunca ninguém teve dúvidas que a verdade e a política estão em bastante más relações, e ninguém, tanto quanto saiba, contou alguma vez a boa fé no número das virtudes políticas. As mentiras foram sempre consideradas como instrumentos necessários e legítimos, não apenas na profissão de político ou demagogo, mas também na de homem de estado. Por que será assim? E o que é que isso significa no que se refere à natureza e à dignidade do domínio político, por um lado, e à natureza e à dignidade da verdade e da boa-fé, por outro? Será da própria essência da verdade ser impotente e da própria essência do poder enganar? E que espécie de realidade possui a verdade se não tem poder no domínio público, o qual, mais do que qualquer outra esfera da vida humana, garante a realidade da existência aos homens que nascem e morrem - quer dizer, seres que sabem que surgiram do não-ser e que voltarão para aí depois de um breve momento? Finalmente, a verdade impotente não será tão desprezível como o poder despreocupado com a verdade? Estas são questões embaraçosas, mas que as nossas convicções correntes sobre a matéria necessariamente suscitam. O que torna este lugar comum altamente plausível pode ainda resumir-se no velho adágio latino: «Fiat justitia, et pereat mundus» («Faça-se justiça, ainda que o mundo acabe»). Exceptuando o seu provável autor do século XVI (Fernando I, sucessor de Carlos V), ninguém dele fez uso a não ser como de uma questão retórica: deverá ser feita justiça se a sobrevivência do mundo estiver em causa? E o único grande pensador que ousou tomar a questão a contrapelo foi Emmanuel Kant, que explicou audaciosamente que a «sentença proverbial... significa em linguagem simples: "A justiça deve prevalecer, mesmo que daí resulte o desaparecimento de toda a canalha do mundo!"». Como os homens acham que não vale a pena viver num mundo inteiramente desprovido de justiça, esse «direito humano deve ser considerado sagrado, sem ter em conta a quantidade de sacrifício exigido aos poderes... sem ter em conta aquilo que daí poderia resultar em termos de consequências físicas(1)». Mas não será esta resposta absurda? A preocupação pela existência não terá primazia nítida em relação ao resto qualquer virtude e qualquer princípio? Não é evidente que estes se tornariam puras quimeras se o mundo, sem o qual não poderiam manifestar-se, estiver em perigo? Não teria o século XVII razão quando era quase unânime em declarar que toda a comunidade tem o dever imperioso de reconhecer, de acordo com a palavra de Espinosa, «que não existe lei mais alta que a sua própria segurança(2)»? Porque certamente todo o princípio que transcende a simples existência pode ser colocado em lugar da justiça, e se nós aí colocarmos a verdade - «Fiat veritas, et pereat mundus» -, a velha sentença parece-nos ainda mais plau*** {1} Paz Perpétua, Apêndice l (Edições 70, 1988). {2} Eu cito o Tratado Político de Espinosa (Estampa, 1978) porque é notável que mesmo Espinosa, para quem a libertas philosophandi era o verdadeiro fim do governo, tivesse tido que tomar uma posição tão radical. *** sível. Se concebemos a acção política em termos de meios e de fins, podemos mesmo chegar à conclusão, só na aparência paradoxal, que a mentira pode muito bem servir para estabelecer ou salvaguardar as condições da procura da verdade - tal como há muito assinalou Hobbes, cuja lógica implacável nunca deixa de levar os argumentos para esses extremos em que o seu absurdo se torna evidente(1). E as mentiras, precisamente porque são muitas vezes utilizadas como substitutos de meios mais violentos, podem facilmente ser consideradas como instrumentos relativamente inofensivos do arsenal da acção política. No caso de ser reconsiderada a velha sentença latina, parecerá um pouco surpreendente que o sacrifício da verdade à sobrevivência do mundo seja menos grave que o sacrifício de qualquer outro princípio ou virtude. Porque, enquanto se pode ir até recusar a pergunta de se a vida valeria a pena ser vi*** {1} No Leviatã (cap. XLVI) Hobbes explica que «a desobediência pode legitimamente ser punida naqueles que contra as leis ensinam a verdade filosófica». Porque o «lazer» não é a «mãe da filosofia; e a República (Commonwealth) a mãe da paz e do lazer»? E não resulta daí que a República age no interesse da filosofia quando suprime uma verdade que mina a paz? Por consequência aquele que diz a verdade, para cooperar com um empreendimento que é tão necessário à paz do seu próprio corpo e da sua própria alma, decide escrever o que sabe «ser falsa filosofia». Hobbes suspeitava que era isso o que fez Aristóteles e todos os que, como ele, «escreviam [uma filosofia] em consonância com a religião [dos gregos], e vem corroborá-la - temendo o destino de Sócrates». Hobbes nunca notou que toda a procura da verdade se destruiria ela própria se as suas condições só podem ser garantidas através de mentiras deliberadas. Então, certamente, toda a gente poderia revelar-se mentiroso, como o Aristóteles de Hobbes. Diferente desse produto da fantasia lógica de Hobbes, o verdadeiro Aristóteles era certamente suficientemente razoável para deixar Atenas quando começou a recear ter o destino de Sócrates; e ele não era suficientemente perverso para escrever aquilo que sabia ser falso, nem suficientemente estúpido para resolver o seu problema de sobrevivência destruindo tudo aquilo que contava para ele. *** vida num mundo privado de noções como a justiça e a liberdade, o mesmo, estranhamente, não é possível relativamente à ideia, na aparência muito menos política, de verdade. O que está em causa é a sobrevivência, a perseverança na existência (in suo esse perseverare), e nenhum mundo humano destinado a durar mais tempo que a breve vida dos mortais nele, poderá alguma vez sobreviver sem homens que queiram fazer o que Heródoto foi o primeiro a empreender conscientemente - a saber, , dizer o que é. Nenhuma permanência, nenhuma persistência no ser podem sequer ser imaginadas sem homens querendo testemunhar aquilo que é e lhes parece ser porque é. É uma velha e complicada história a do conflito entre a verdade e a política, e a simplificação ou a predicação moral de nada serviriam. No decurso da história, os investigadores e aqueles que dizem a verdade estiveram sempre conscientes dos riscos que corriam; enquanto não se misturavam nos negócios do mundo eram cobertos de ridículo, mas aquele dentre eles que forçava os seus concidadãos a toma-lo a sério procurando livrá-los da falsidade e da ilusão, esse arriscava a vida: «Se lhe fosse possível pôr a mão num tal homem... matá-lo-iam», diz Platão na última frase da alegoria da caverna. O conflito platónico que opõe os que dizem a verdade e os cidadãos não pode explicar-se pelo adágio latino, nem por nenhuma das teorias posteriores que, implícita ou explicitamente, justificam entre outras faltas, a mentira, se a sobrevivência da cidade está em causa. Não é feita qualquer menção a um inimigo na história de Platão; todos vivem entre si pacificamente, simples espectadores de imagens; não estão envolvidos em nenhuma acção e, por isso, ameaçados por ninguém. Os membros desta comunidade não têm qualquer razão para considerar a verdade e os que dizem a verdade como os seus piores inimigos e Platão não fornece nenhuma explicação do seu amor perverso pelo erro e a falsidade. Se pudéssemos confrontá-lo com um dos seus colegas ulteriores em filosofia política - e, nomeadamente, com Hobbes que defendia que «uma verdade que não se opõe a nenhum interesse ou prazer humano recebe bom acolhimento de todos os homens» (afirmação evidente que, no entanto, ele julgou ser bastante importante pois com ela termina o seu Leviatã) - ele estaria talvez de acordo em relação ao lucro e ao prazer, mas não com a asserção que possa existir uma espécie de verdade bem acolhida por todos os homens. A existência de uma verdade indiferente, a existência de «assuntos» com os quais os homens não se preocupam - por exemplo a verdade matemática, «a doutrina das linhas e das figuras» que não «contraria nenhuma ambição, nenhum lucro, nem nenhuma cobiça», consolava Hobbes, mas não Platão. Porque, escrevia Hobbes, «não duvido que, se fosse coisa contrária ao direito de um homem à dominação, ou ao interesse dos homens que detêm a dominação, que os três ângulos de um triângulo sejam iguais a dois ângulos de um quadrado, esta doutrina teria sido, se não contestada, pelo menos suprimida pelo lançamento à fogueira de todos os livros de geometria, se aquele a quem ela dizia respeito tivesse meios para isso(1)». Existe, sem dúvida, uma diferença decisiva entre a evidência matemática de Hobbes e a norma verdadeira da conduta humana que é suposto a filosofia de Platão trazer da sua viagem ao céu das ideias, ainda que Platão, que acreditava que a verdade matemática abria os olhos do espírito a todas as verdades, disso não tivesse consciência. O exemplo de Hobbes impressiona-nos pelo seu carácter relativamente inofensivo. Estamos inclinados a supor que o espírito será sempre capaz de reproduzir enunciados tão evidentes como «os três ângu*** {1} Ibid., cap. XI *** los de um triângulo devem ser iguais a dois ângulos de um quadrado» e concluímos que o «lançamento à fogueira de todos os livros de geometria» não teria qualquer efeito radical. O perigo seria consideravelmente maior no que diz respeito às afirmações científicas; se a história tivesse seguido um outro curso, todo o desenvolvimento científico moderno desde Galileu até Einstein poderia não ter tido lugar. E certamente, numa tal ordem a verdade mais vulnerável seria a desses edifícios do pensamento altamente diferenciados e sempre únicos - de que a doutrina das ideias de Platão é um exemplo eminente - através dos quais, desde tempos imemoriais, os homens procuraram pensar racionalmente para além dos limites do conhecimento humano. A época moderna, que acredita que a verdade não é nem dada, nem revelada ao espírito humano, mas produzida por ele tem, desde Leibniz, reconduzido as verdades matemáticas, científicas e filosóficas ao género comum da verdade da razão, diferente da verdade de facto. Utilizarei esta distinção por preocupação de comodidade sem discutir a sua legitimidade intrínseca. No desejo de descobrir o prejuízo que o poder político é capaz de causar à verdade, examinaremos os problemas por razões mais políticas que filosóficas, e, por isso, podemos permitir-nos negligenciar a questão de saber o que é a verdade, contentando-nos em tomar a palavra no sentido em que os homens comummente a entendem. E se pensamos agora em verdades de facto - em verdades tão modestas como o papel, durante a revolução russa, de um homem de nome Trotsky que não surge em nenhum dos livros da história da revolução soviética vemos imediatamente como elas são mais vulneráveis que todas as espécies de verdades racionais tomadas no seu conjunto. Além disso, como os factos e os acontecimentos - que são sempre engendrados pelos homens vivendo e agindo em conjunto - constituem a própria textura do domínio político, é, naturalmente, a verdade de facto que nos interessa mais aqui. Quando combate a verdade racional, a dominação(*) (para usar a linguagem de Hobbes), ultrapassa, por assim dizer, os seus limites. Mas trava batalha no seu próprio terreno quando falsifica e apaga os factos. São efectivamente muito ténues as possibilidades que a verdade de facto tem de sobreviver ao assalto do poder; ela corre o constante perigo de ser colocada fora do mundo, através de manobras, não apenas por algum tempo, mas, virtualmente, para sempre. Os factos e os acontecimentos são coisas infinitamente mais frágeis que os axiomas, as descobertas e as teorias - mesmo as mais loucamente especulativas - produzidas pelo espírito humano; ocorrem no campo perpetuamente modificável dos assuntos humanos, no seu fluxo em que nada é mais permanente que a permanência, relativa, como se sabe, da estrutura do espírito humano. Uma vez perdidos, nenhum esforço racional poderá fazêlos voltar. Talvez as possibilidades de que as matemáticas euclidianas ou a teoria da relatividade de Einstein - já para não falar da filosofia de Platão - fossem reproduzidas com o tempo se os seus autores tivessem sido impedidos de as transmitir à posteridade, também não fossem muito boas. Mas mesmo assim são infinitamente melhores que as possibilidades de um facto de importância esquecido ou, mais verosimilmente, apagado, ser um dia redescoberto. II Ainda que as verdades politicamente mais importantes sejam verdades de facto, o conflito entre a verdade e a política foi descoberto e articulado pela primeira vez relativamente à *** {*} Dominion (N.T.) *** verdade racional. O contrário de uma afirmação racionalmente verdadeira é, ou o erro e a ignorância, nas ciências, ou a ilusão e a opinião, em filosofia. A falsidade deliberada, a vulgar mentira, desempenha apenas o seu papel no domínio dos enunciados de facto, e parece significativo, ou melhor, bizarro que no longo debate que incide sobre o antagonismo da verdade e da política, de Platão a Hobbes, aparentemente ninguém tenha acreditado que a mentira organizada, tal como hoje a conhecemos, pudesse ser uma arma apropriada contra a verdade. Em Platão aquele que diz a verdade põe a sua vida em perigo, e em Hobbes onde ele se tornou autor, é ameaçado de ver os seus livros lançados à fogueira; a mentira pura e simples não é um problema. O sofista e o ignorante ocupam mais o pensamento de Platão que o mentiroso, e quando ele distingue entre o erro e a mentira - quer dizer, entre o « involuntário e voluntário» - é, de modo significativo, mais duro em relação àqueles que «chafurdam na ignorância de porcos», que em relação aos mentirosos(1). Terá isso *** {1} Espero que ninguém me venha mais dizer que Platão foi o inventor da «mentira nobre». Essa crença repousa numa interpretação errónea de uma passagem crucial (414 c) da República onde Platão fala de um dos seus mitos - «uma lenda fenícia» - como de um . Como a mesma palavra grega significa «ficção», «erro» e «mentira» de acordo com o contexto - quando Platão quer distinguir entre erro e mentira, a língua grega constrange-o a falar de «involuntária» e «voluntária» - o texto pode querer dizer, como na tradução de Cornford, «Audacioso desenvolvimento da imaginação», ou pode-se, com Eric Voegelin (Order and History: Plato and Aristotle, Louisiana State University, 1957, t. III, p. 106) atribuir-lhe uma intenção satírica; em caso algum pode ser entendido como um convite a mentir, no sentido em que compreendemos essa palavra. Platão, certamente, tolerava mentiras de circunstância, destinadas a enganar o inimigo ou então loucos - A República, 382; são «úteis... à maneira de um remédio... que só o médico deve manejar», e o médico da polis é aquele que governa (388). Mas contrariamente à alegoria da caverna, estas passagens não elaboram nenhum princípio. *** acontecido porque era ainda desconhecida a mentira organizada, que domina a coisa pública, à diferença do mentiroso privado que tenta a sua sorte por sua própria conta? Ou terá isso alguma coisa a ver com o facto surpreendente de que, à excepção do zoroastrismo, nenhuma das grandes religiões incluiu a mentira enquanto tal, e ao contrário do que sucede em relação ao falso testemunho, no seu catálogo de pecados mortais? Foi apenas com o surgimento da moral puritana, que coincide com a da ciência organizada, cujo progresso deveria ser assegurado no terreno firme da confiança na absoluta sinceridade de todos os sábios, que as mentiras foram consideradas infracções sérias. Como quer que seja, historicamente o conflito entre a verdade e a política surge de dois modos de vida diametralmente opostos - a vida do filósofo tal como foi inicialmente interpretado por Parménides e em seguida por Platão, e o modo de vida do cidadão. Às opiniões sempre mutáveis do cidadão sobre os assuntos humanos, eles próprios num estado de constante fluxo, o filósofo opôs a verdade sobre as coisas que são por sua própria natureza eternas e de onde, por consequência, é possível derivar princípios para estabilizar os assuntos humanos. Daí resultou que o contrário da verdade foi a simples opinião, apresentada como equivalente da ilusão, e é esta degradação da opinião que dá ao conflito a sua acuidade política; porque a opinião e não a verdade, é uma das bases indispensáveis de todo o poder. «Todos os governos se baseiam na opinião», diz James Madison, e mesmo o mais autocrático dos soberanos ou dos tiranos nunca poderia aceder ao poder - a questão da conservação do poder é outra coisa - sem apoio daqueles que são do mesmo parecer. Além disso, a pretensão, no domínio dos assuntos humanos, a uma verdade absoluta, cuja validade não necessita de apoio por parte da opinião, abala os fundamentos de qualquer política e de qualquer regime. O antagonismo entre a verdade e a opinião foi prolongado por Platão (especialmente no Górgias) num antagonismo entre a comunicação sobre a forma de «diálogo», discurso apropriado à verdade filosófica, e a comunicação sobre a forma da «retórica», através da qual o demagogo, como o diríamos hoje, persuade a multidão. Traços deste conflito original podem ainda ser observados nos primeiros tempos da época moderna, mas mais dificilmente no mundo em que vivemos. Em Hobbes, por exemplo, encontramos ainda uma oposição de duas «faculdades contrárias», o «raciocínio sólido» e a «eloquência poderosa», sendo a primeira fundada nos princípios da verdade, e a outra sobre as opiniões e as paixões e os interesses humanos que são diferentes e variáveis(1). Mais de um século depois, na época das luzes, estes aspectos quase desapareceram mas não completamente, e quando o antigo antagonismo sobrevive, o acento é colocado noutro lado. De acordo com a filosofia pré-moderna, o magnífico Sage jeder, was ihm Wahrheit dünkt, und die Wahrheit selbst sei Gott empfohlen («Que cada um diga o que lhe parece a verdade, e que a autêntica verdade seja recomendada a Deus») de Lessing teria muito simplesmente querido dizer: o homem não é capaz de verdade, todas as verdades, são , simples opiniões, enquanto que para Lessing isso significava pelo contrário: Devemos dar graças a Deus por não conhecermos a verdade. E mesmo que a nota de regozijo - a intuição que, para os homens vivendo em comunidade, a inesgotável riqueza do discurso humano é infinitamente mais significativa e rica de sentido que qualquer verdade única poderá alguma vez ser - esteja ausente, a consciência da fragilidade da razão humana prevaleceu a partir do século XVIII, sem suscitar queixas nem lamenta*** {1} Leviatã, Conclusão. *** ções. Está presente na grandiosa Crítica da razão pura(1) de Kant, onde a razão é levada a reconhecer os seus próprios limites, como nas palavras de Madison que sublinha, mais de uma vez, que «a razão do homem, como o próprio homem, é tímida e circunspecta quando é abandonada a si própria; adquire firmeza e confiança em proporção do número a que está associada(2)». Considerações desta ordem, bem mais do que ideias sobre o direito do indivíduo a exprimir-se, desempenharam um papel decisivo na luta, que acabou por ser mais ou menos coroada de sucesso, para obter a liberdade de pensamento para a palavra dita e escrita. Assim, Espinosa, que acreditava ainda na infalibilidade da razão humana e que é muitas vezes erradamente exaltado como um campeão da liberdade de pensamento e de palavra, sustentava que «todo o homem é, por direito natural e imprescritível, o senhor dos seus próprios pensamentos», que «cada qual segue o seu próprio parecer e que a diferença entre as cabeças é tão grande como entre os palácios», concluindo que «é preferível concordar com aquilo que não pode ser abolido» e que as leis que proíbem o livre pensamento apenas podem ter como resultado que «os homens pensem uma coisa e digam outra», e além disso levar à «corrupção da boa fé» e ao «encorajamento da perfídia». No entanto, Espinosa não pede nunca a liberdade da palavra; o argumento segundo o qual a razão humana tem necessidade de entrar em comunicação com os outros e por consequência de ser tornada pública no seu próprio interesse, brilha pela ausência. Ele conta mesmo a necessidade de comunicação do homem, a sua incapacidade em ocultar os seus pensamentos e permanecer silencioso, entre os defeitos comuns que o filósofo não parti*** {1} Edições Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. {2} The Federalist, n° 49 *** lha(1). Kant, pelo contrário, afirmava que «o poder exterior que priva o homem da liberdade de comunicar os seus pensamentos publicamente, priva-o ao mesmo tempo da sua liberdade de pensar» (o sublinhado é nosso), e que a única garantia da «correcção» dos nossos pensamentos está em «pensarmos, por assim dizer, em comunidade com os outros, a quem comunicamos os nossos pensamentos como eles nos comunicam os seus». Dado que a razão do homem é falível, não pode funcionar a não ser que dela se possa fazer um «uso público», e isso é igualmente verdadeiro para aqueles que, ainda num estado de «tutela», são incapazes de se servir do seu pensamento «sem a direcção de outra pessoa», e também para o «letrado» que tem necessidade de «todos aqueles que lêem» a fim de examinar e de controlar os seus resultados(2). Neste contexto, a questão do número, mencionado por Ma-dison, é de particular importância. A passagem da verdade racional à opinião implica uma passagem do homem no singular aos homens no plural; o que quer dizer uma passagem de um domínio em que, de acordo com Madison, apenas se conta o «sólido raciocínio» de um espírito, para um domínio em que «a força da opinião» é determinada pela confiança do indivíduo no «número que é suposto ter as mesmas opiniões» - número que, seja dito de passagem, não está necessariamente limitado aos seus contemporâneos. Madison distingue ainda esta vida no plural, que é a vida do cidadão, da vida do filósofo para quem tais considerações devem ser «negligenciadas», mas esta distinção não tem consequências práticas porque uma nação de filósofos é tão pouco verosímil como a raça filosófica dos reis desejada por Platão(3). Podemos notar *** {1} Tratado Teológico-Político, cap. XX (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988). {2} Ver «O que são as luzes?» e «O que é orientar-se no pensamento?» {3} The Federalist, nº 49. *** de passagem que a própria ideia de uma nação de filósofos teria sido uma contradição nos termos para Platão cuja filosofia política, com os seus aspectos abertamente tirânicos, repousa na convicção que a verdade não pode vir da massa, nem ser-lhe comunicada. No mundo em que vivemos, os últimos traços deste antigo antagonismo entre a verdade do filósofo e as opiniões expressas na praça pública, desapareceram. Nem a verdade da religião revelada, que os pensadores políticos do século XVII tratavam ainda como um obstáculo maior, nem a verdade do filósofo revelada ao homem na solidão, influenciam os assuntos do mundo. No que diz respeito à primeira, a separação da Igreja e do Estado deu-nos a paz, e quanto à outra, há muito tempo que cessou de ter pretensões à dominação - a menos que se considere seriamente as ideologias modernas como filosofias, o que é verdadeiramente difícil, a partir do momento em que os seus aderentes proclamam abertamente que elas são armas políticas e consideram despropositada toda a questão da verdade e da boa fé. A pensar de acordo com a tradição, podemo-nos sentir autorizados a concluir deste estado de coisas que o velho conflito foi finalmente resolvido, e especialmente que a sua causa original, o conflito entre a verdade racional e a opinião, desapareceu. Estranhamente, no entanto, não é esse o caso, pois o conflito entre a verdade de facto e a política, que se produz hoje sob os nossos olhos numa tão vasta escala, tem - pelo menos sobre certos aspectos - traços muito semelhantes. Provavelmente nenhuma época passada tolerou tantas opiniões diversas sobre as questões religiosas ou filosóficas. Mas a verdade de facto, quando lhe sucede opor-se ao lucro e ao prazer de um dado grupo, é hoje acolhida com uma hostilidade maior do que alguma vez o foi. Certamente que existiram sempre os segredos de estado; todo o governo deve classificar certas informações, subtraí-las ao conhecimento do público, e aquele que revela autênticos segredos foi sempre tratado como um traidor. Não me ocuparei disso aqui. Os factos que tenho em vista são conhecidos do público, e no entanto esse mesmo público que os conhece pode com sucesso e muitas vezes continuamente proibir a sua discussão pública e tratá--los como se fossem aquilo que não são - a saber, segredos. Que o seu enunciado possa revelar-se tão perigoso como, por exemplo, o facto de outrora se pregar o ateísmo ou qualquer outra heresia, parece um fenómeno curioso, e adquire importância quando o reencontramos em países que são dirigidos tiranicamente por um poder ideológico. (Mesmo na Alemanha hitleriana e na Rússia estalinista, era mais perigoso falar de campos de concentração e de extermínio, cuja existência não era um segredo, do que exprimir pontos de vista «heréticos» sobre o antisemitismo, o racismo e o comunismo.) O que parece ainda mais perturbante é que as verdades de facto incómodas são toleradas nos países livres, mas ao preço de serem muitas vezes, consciente ou inconscientemente, transformadas em opiniões - como se factos como o apoio de Hi-tler pela Alemanha ou o desmoronamento da França diante dos exércitos alemães em 1940, ou a política do Vaticano durante a segunda guerra mundial, não fossem da ordem da história mas da ordem da opinião. Dado que estas verdades de facto dizem respeito a problemas cuja importância política é imediata, o que está em causa aqui é muito mais do que a tensão, talvez inevitável, entre dois modos de vida no quadro de uma realidade comum e comummente reconhecida. O que está em jogo aqui, é essa própria realidade comum e efectiva, tratando-se verdadeiramente de um problema político de primeira ordem. E dado que a verdade de facto, ainda que se preste muito menos à discussão do que a verdade filosófica e seja tão manifestamente algo que a todos pertence, parece muitas vezes sofrer um destino similar quando é exposta na praça pública - quer dizer ser contraditada não através de mentiras e de falsificações deliberadas, mas pela opinião - vale talvez a pena reabrir a antiga e aparentemente antiquada questão da relação entre a verdade e a opinião. Pois, do ponto de vista daquele que diz a verdade, a tendência para se transformar o facto em opinião, para apagar a linha de demarcação que as separa, não é menos embaraçosa que a situação difícil e mais antiga daquele que diz a verdade tão vigorosamente expressa na alegoria da caverna, em que o filósofo, num regresso da sua viagem solitária pelo céu das ideias eternas, tenta comunicar a sua verdade à multidão, com o resultado de a ver desaparecer na diversidade dos pontos de vista que para ele são ilusões e em que ela é rebaixada ao nível incerto da opinião, de tal modo que agora, de regresso à caverna, a própria verdade assume o aspecto de («parece-me») - dos que os filósofos tinham esperado abandonar de uma vez por todas. Contudo, a situação daquele que apresenta a verdade de facto é ainda pior. Ele não regressa de uma viagem por regiões situadas para além do domínio dos assuntos humanos e não pode consolar-se pensando que se tornou um estranho neste mundo. Do mesmo modo, não temos o direito de nos consolar com a ideia que a sua verdade, se verdade aí houver, não é deste mundo. Se os simples factos que ele enuncia não são aceites - as verdades vistas e atestadas pelos olhos do corpo, e não pelos olhos do espírito - surge a suspeita de que é talvez da natureza do domínio político negar ou perverter toda a espécie de verdade, como se os homens fossem incapazes de se entender com a sua inflexibilidade obstinada, gritante e que desdenha convencer. Se fosse esse o caso, as coisas pareceriam ainda mais desesperadas do que Platão as supunha, porque a verdade de Platão descoberta na solidão transcende, por definição, o domínio da multidão e o mundo dos assuntos humanos. (Pode-se compreender que o filósofo, no seu isolamento, ceda à tentação de utilizar a verdade como uma norma que é necessário impor aos assuntos humanos, quer dizer de igualar a transcendência inerente à verdade filosófica como a «transcendência» de um tipo completamente diferente pelo qual o metro e os outros padrões de medida são separados da multidão de objectos que devem medir, e pode-se igualmente compreender bem que a multidão recuse essa norma na medida em que ela deriva realmente de uma esfera estranha ao domínio dos assuntos humanos e cuja ligação com ela só pode ser justificada por uma confusão.) A verdade filosófica, quando surge na praça, muda de natureza e torna-se opinião, porque se produz uma verdadeira , um deslocamento não apenas de uma espécie de raciocínio para outro, mas de um modo de existência humano para outro. A verdade de facto, pelo contrário, é sempre relativa a várias pessoas: ela diz respeito a acontecimentos e circunstâncias nos quais muitos estiveram implicados; é estabelecida por testemunhas e repousa em testemunhos; existe apenas na medida em que se fala dela, mesmo que se passe em privado. É política por natureza. Ainda que se deva distingui-los, os factos e as opiniões não se opõem uns aos outros, pertencem ao mesmo domínio. Os factos são a matéria das opiniões, e as opiniões, inspiradas por diferentes interesses e diferentes paixões, podem diferir largamente e permanecer legítimas enquanto respeitarem a verdade de facto. A liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os factos não estiver garantida e se não forem os próprios factos o objecto do debate. Por outras palavras, a verdade de facto fornece informações ao pensamento político tal como a verdade racional fornece as suas à especulação filosófica. Mas existirá algum facto independente da opinião e da interpretação? Não demonstraram gerações de historiadores e filósofos da história a impossibilidade de constatar factos sem os interpretar, na medida em que têm de começar por ser extraídos de um caos de puros acontecimentos (e os princípios de escolha não são certamente dados de facto), serem em seguida organizados numa história que não pode ser contada a não ser numa certa perspectiva, que nada tem a ver com o que aconteceu originalmente? Não há dúvida que estas dificuldades e muitas outras ainda, inerentes às ciências históricas, são reais, mas não constituem uma prova contra a existência da matéria factual, tal como não podem servir de justificação para o esbatimento das linhas de demarcação entre o facto, a opinião e a interpretação, nem de desculpa ao historiador para manipular os factos a seu bel--prazer. Mesmo se admitirmos que cada geração tem o direito de escrever a sua própria história, recusamo-nos a admitir que cada geração tenha o direito de recompor os factos de harmonia com a sua própria perspectiva; não admitimos o direito de se atentar contra a própria matéria factual. Para ilustrar este ponto e desculparmo-nos por não levar a questão mais longe: nos anos vinte, Clemenceau, pouco antes da sua morte, estava envolvido numa conversa amistosa com um representante da República de Weimar sobre as respon-sabilidades quanto ao desencadeamento da Primeira Guerra mundial. Perguntaram a Clemenceau: «Na sua opinião, o que é que os historiadores futuros pensarão deste problema embaraçoso e controverso?» Ele respondeu: «Sobre isso nada sei, mas do que estou certo é que eles não dirão que a Bélgica invadiu a Alemanha». Ocupamo-nos aqui de dados elementares brutais desse género, cujo carácter inatacável foi admitido até pelos partidários mais convictos e sofisticados do historicismo. É verdade que seria necessário muito mais do que os caprichos de um historiador para eliminar da história o facto de que na noite de 4 de Agosto de 1914, as tropas alemãs franquearam a fronteira belga; isso exigiria, nada mais nada menos, do que o monopólio do poder sobre a totalidade do mundo civilizado. Ora um tal monopólio do poder está longe de ser inconcebível, e não é difícil imaginar qual seria o destino da verdade de facto se o interesse do poder, quer seja nacional ou social, tivesse a última palavra em tais questões. O que nos reconduz à nossa suspeita de que possa ser da natureza do domínio político estar em guerra contra a verdade em todas as suas formas, e daí à questão de saber por que é que uma submissão, mesmo em relação à verdade de facto, é sentida como uma atitude antipolítica. III Quando eu dizia que a verdade de facto, ao contrário da verdade racional, não se opõe à opinião, enunciava uma se-miverdade. Todas as verdades - não apenas as diferentes espécies de verdade racional mas também de verdade de facto - são opostas à opinião no seu modo de asserção da validade. A verdade contém em si mesma um elemento de coerção e as tendências frequentemente tirânicas que tão deploravel-mente se manifestam nos que dizem a verdade por profissão podem dever-se menos a uma falta de carácter que ao seu esforço para viver habitualmente sob uma espécie de constrangimento. Afirmações como «A soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos rectos», «A terra gira em torno do sol», «É preferível sofrer o mal que fazer o mal», «Em Agosto de 1914 a Alemanha invadiu a Bélgica» são muito diferentes pelo modo como foram estabelecidas, mas, uma vez entendidas como verdadeiras e declaradas tais, têm em comum estar para lá do acordo, da discussão, da opinião, do consentimento. Para aqueles que as aceitam, não são alteradas por ser maior ou menor o número daqueles que admitem a mesma proposição; a persuasão ou a dissuasão são inúteis porque o conteúdo da afirmação não é de natureza persuasiva mas coerciva. (Assim Platão, no Timeu, traça uma linha de separação entre os homens capazes de perceber a verdade e aqueles que conseguem defender opiniões justas. Nos primeiros, o órgão de percepção da verdade [ ] é despertado graças à instrução, que implica, é claro, a desigualdade e em relação à qual podemos dizer que é uma forma suave da coerção, enquanto que os outros foram simplesmente persuadidos. Os pontos de vista dos primeiros são imutáveis, diz Platão, enquanto é sempre possível persuadir os outros a mudar de parecer(1).) O que Mercier de la Rivière observou um dia a propósito da verdade matemática aplica-se a todas as espécies de verdade: «Euclide est un véritable despote; et lês vérités géométriques qu'il nous a transmises sont des lois vé-ritablement despotiques(*).» Na mesma ordem de ideias, Grotius, aproximadamente cem anos mais tarde - desejando limitar o poder do monarca absoluto -, insistira no facto que «nem sequer Deus pode fazer que duas vezes dois não sejam quatro». Invocava a força constrangedora da verdade face ao poder político; a limitação da omnipotência divina que isso implicava não o interessava. Estas duas observações ilustram como a verdade surge na perspectiva puramente política, do ponto de vista do poder, e a questão é a de saber se o poder *** {l} Timeu, 51d-52. (*) Em francês no texto (N.T.)- «Euclides é um verdadeiro déspota; e as verdades geométricas que nos transmitiu são leis verdadeiramente despóticas.» *** pode e deve ser controlado não apenas por uma constituição, uma carta, e por uma multiplicidade de poderes como no sistema de «freios e contrapesos» onde, segundo Montesquieu: «le pouvoir arrete le pouvoir(*)» - quer dizer por factores que nascem do domínio próprio do político e lhe pertencem - mas também por qualquer coisa que nasce do exterior, que tem a sua origem fora do domínio da política, e é tão independente dos votos e dos desejos dos cidadãos como da vontade do pior dos tiranos. Considerada de um ponto de vista político, a verdade tem um carácter despótico. Ela é por isso odiada pelos tiranos, que temem, com razão, a concorrência de uma força coerciva que não podem monopolizar; e goza de um estatuto relativamente precário aos olhos dos governos que repousam sobre o consentimento e que dispensam a coerção. Os factos estão para além do acordo e do consentimento, e toda a discussão acerca deles - toda a troca de opiniões que se funda sobre uma informação exacta - em nada contribuirá para o seu estabelecimento. Pode-se discutir uma opinião importuna, rejeitála ou transigir com ela, mas os factos importunos têm a exaspe-rante tenacidade que nada pode abalar a não ser as mentiras puras e simples. O aborrecido é que a verdade de facto, como toda a verdade, exige peremptoriamente o reconhecimento e recusa a discussão enquanto que a discussão constitui a própria essência da vida política. Os modos de pensamento e de comunicação que têm a ver com a verdade são, quando considerados na perspectiva política, necessariamente tirânicos; não têm em conta opiniões de outros, quando esse ter em conta é a marca de todo o pensamento estritamente político. O pensamento político é representativo. Eu formo uma opinião considerando uma questão dada sob diferentes pon*** {*} Em francês no texto (N.T.). «O poder trava o poder.» *** tos de vista, e tendo presente ao espírito as posições daqueles que estão ausentes; quer dizer represento-os. Este processo de representação não adopta cegamente os pontos de vista reais daqueles que estão algures e olham o mundo numa perspectiva diferente; não se trata de simpatia, como se procurasse ser ou sentir como outra pessoa, nem contabilizar os votos de uma maioria para me juntar a ela, mas de ser e de pensar na minha própria identidade onde eu não estou realmente. Quanto mais numerosas forem as posições das pessoas que trouxer ao espírito quando refuto sobre uma questão dada, tanto mais posso imaginar como me sentiria e pensaria se estivesse no seu lugar, mais forte será a minha capacidade de pensamento representativa e mais válidas serão as minhas conclusões finais, a minha opinião. (É esta aptidão para uma «mentalidade alargada» que torna os homens capazes de julgar; como tal, foi descoberta por Kant na primeira parte da sua Crítica do Juízo, ainda que ele não reconhecesse as implicações políticas e morais da sua descoberta.) O verdadeiro processo de formação de opinião é determinado por aqueles em lugar dos quais alguém pensa e usa o próprio espírito, e a única condição para esse emprego da imaginação é a de ser desinteressado, estar liberto dos seus interesses privados. Por isso, mesmo que evite toda a companhia e mesmo que esteja completamente isolado enquanto formo uma opinião, não estou simplesmente sozinho comigo na solidão do pensamento filosófico, permaneço nesse mundo de universal interdependência onde me posso fazer representante de qualquer outra pessoa. Posso, bem entendido, recusar-me a isso e formar uma opinião que tenha apenas em conta os meus próprios interesses ou os interesses do grupo ao qual pertenço; nada é evidentemente mais comum, mesmo em pessoas altamente sofisticadas, do que a obstinação cega que se manifesta na falta de imaginação e na incapacidade de julgar. Mas a própria qualidade de uma opinião, tanto como a de um julgamento, depende do seu grau de imparcialidade. Nenhuma opinião é evidente ou se impõe por si. Em matéria de opinião, mas não em matéria de verdade, o nosso pensamento é verdadeiramente discursivo, correndo por assim dizer, de um lugar para o outro, de uma parte do mundo para outra, passando por todas as espécies de pontos de vista antagónicos, até que finalmente se eleva das suas particularidades até a uma generalidade imparcial. Comparada a este processo, no qual uma questão particular é trazida com esforço ao dia claro, para poder mostrar-se sob todos os seus aspectos e em todas as perspectivas possíveis até estar inundada de luz e se tornar transparente para a plena luz da compreensão humana, a afirmação de uma verdade possui uma singular opacidade. A verdade racional ilumina o entendimento humano, e a verdade de facto deve servir de matéria às opiniões, mas estas verdades, ainda que não sejam nunca obscuras, não são transparentes por isso, e está na sua própria natureza recusar--se a uma elucidação ulterior, como é da natureza da luz recusar-se a ser iluminada. Em nenhum lado, de resto, essa opacidade é mais evidente e mais irritante do que nos casos em que somos confrontados com os factos e com a verdade de facto, pois não há nenhuma razão decisiva para os factos serem aquilo que são; teriam podido sempre ser outros e esta incómoda contingência é literalmente ilimitada. É devido ao carácter ocasional dos factos que a filosofia pré-moderna se recusou a tomar a sério o domínio dos assuntos humanos, impregnado como está de factualidade, ou acreditar que alguma verdade importante possa ser descoberta na «desolante contingência» (Kant) de uma série de acontecimentos que constitui o curso do mundo. De igual modo, nenhuma filosofia moderna da história foi capaz de se reconciliar com a tenacidade intratável e irracional da pura factualidade; os filósofos modernos evocaram todos os géneros de necessidade, desde a necessidade dialéctica de um espírito do mundo ou das condições materiais, até às necessidades de uma natureza humana conhecida e pretensamente imutável, com o objectivo de expurgar os últimos vestígios do aparentemente arbitrário «isso teria podido ser de outro modo» (que é o preço da liberdade) do único domínio em que os homens são verdadeiramente livres. É verdade que retrospectivamente - quer dizer na perspectiva histórica - toda a sucessão de acontecimentos permite pensar que ela teria podido produzir-se de outro modo, mas é uma ilusão de óptica, ou melhor uma ilusão existencial: nada poderia acontecer se a realidade, por definição, não suprimisse as outras possibilidades originalmente inerentes a uma qualquer situação dada. Por outras palavras, a verdade de facto não é mais evidente que a opinião, e essa é talvez uma das razões pelas quais os detentores de opinião consideram relativamente fácil rejeitar a verdade de facto como se fosse uma outra opinião. A evidência factual, além disso, é estabelecida graças ao testemunho de testemunhas oculares - sujeitas a caução como se sabe - e graças a arquivos, documentos e monumentos - de cuja falsidade pode sempre suspeitar-se. Em casos de contestação, só é possível invocar outros testemunhos, mas não uma terceira e mais alta instância e a decisão é em geral o resultado de uma maioria; quer dizer, o que acontece é o mesmo que para a solução dos conflitos de opinião - processo totalmente insatisfatório, pois nada impede uma maioria de testemunhos de ser uma maioria de falsos testemunhos. Pelo contrário, em certas circunstâncias o sentimento de pertencer a uma maioria pode até favorecer o falso testemunho. Por outras palavras, na medida em que a verdade de facto está exposta à hostilidade dos detentores de opinião, ela é pelo menos tão vulnerável como a verdade filosófica racional. Fiz mais acima a observação de que aquele que diz a verdade se encontra numa situação pior que o filósofo de Platão - que a sua verdade não tem origem transcendente e não possui sequer as qualidades relativamente transcendentes de princípios políticos tais como a liberdade, a justiça, a honra, a coragem, todas elas podendo inspirar a acção humana e, a partir daí, tornar-se manifestas nela. Vamos ver agora que essa desvantagem tem consequências mais sérias do que aquilo que tínhamos pensado; a saber, consequências que dizem respeito não apenas à pessoa que diz a verdade, mas - o que é mais importante - às possibilidades de sobrevivência da sua verdade. O facto de inspirar a acção humana e de se manifestar nela pode ser incapaz de fazer concorrência à evidência constrangedora da verdade, mas pode rivalizar como adiante veremos, com a força de persuasão inerente à opinião. Tomei a proposição socrática: «é preferível sofrer o mal do que fazer o mal» como exemplo de uma tese filosófica que diz respeito à conduta humana e tem, por consequência, implicações políticas. A razão porque o fiz foi a de que por um lado, esta frase se tornou o início do pensamento ético ocidental e, por outro lado, que, tanto quanto eu sei, permaneceu a única proposição ética que pode ser derivada directamente da experiência especificamente filosófica. (Poder-se-ia despojar o imperativo categórico de Kant, seu único rival neste campo, dos seus elementos judaico-cristãos, que explicam a sua formação como imperativo e não como simples proposição. O princípio que lhe está subjacente é o axioma da não-contradi-ção - o ladrão contradiz-se a si próprio porque quer guardar na sua propriedade bens que roubou - e esse axioma deve a sua validade às condições do pensamento que Sócrates foi o primeiro a descobrir.) Os diálogos de Platão dizem-nos com muita frequência como a tese socrática (proposição e não imperativo) parecia paradoxal, como era facilmente refutada na praça do mercado em que a opinião se erguia contra a opinião e como Sócrates era incapaz de a provar e de a demonstrar de maneira a satisfazer não apenas os seus adversários mas também os seus amigos e os discípulos. (Pode-se encontrar a mais dramática dessas passagens no início da República(1).) Tendo tentado em vão convencer o seu adversário Trasimaco que a justiça vale mais que a injustiça, Sócrates ouviu dizer os seus discípulos, Glaucon e Adimante, que a sua prova estava longe de convencer. Sócrates exprime a sua admiração pelos seus discursos: «É preciso que haja em vós qualquer coisa de verdadeiramente divino, para que possam defender tão eloquentemente a causa da injustiça sem no entanto estarem convencidos que vale mais que a justiça». Por outras palavras, eles estavam convencidos antes do início da discussão, e tudo isso era dito para mostrar que a verdade da proposição não apenas falhava na sua tentativa da convencer os não convencidos, como não tinha sequer força suficiente para reforçar a sua convicção.) Tudo aquilo que pode ser dito em sua defesa encontramo-lo nos diferentes diálogos de Platão. O argumento principal sustenta que para o homem, cujo ser é ser um, é preferível estar indisposto com o mundo inteiro do que estar indisposto e em contradição consigo próprio(2) - argumento *** {1} Ver A República (Guimarães Editores, 1971). Cf. também Criton: «Porque eu sei que apenas um pequeno número de homens são e serão alguma vez dessa opinião. Entre aqueles que são dessa opinião e aqueles que o não são, não pode haver deliberação comum; consideram-se necessariamente uns aos outros com desprezo em relação aos seus diferentes objectivos. {2} Ver Gorgias, em que Sócrates diz ao seu adversário Calicles que «não concordará nunca consigo próprio, antes se contradirá a si próprio durante toda a vida». E acrescenta então: «Eu prefiro de longe que o mundo inteiro esteja em desacordo comigo e fale contra mim do que encontrar-me, eu, que sou um, em desacordo comigo próprio e contradizer-me.» *** que é na verdade irresistível para o filósofo, cujo pensamento é caracterizado por Platão como um diálogo silencioso consigo próprio, e cuja existência depende de uma relação cons-tantemente articulada consigo mesmo - de uma cisão em dois do um que ele no entanto é; porque uma contradição fundamental entre os dois parceiros que prosseguem o diálogo pensante destruiria as próprias condições do filósofo(1). Por outras palavras, já que o homem contém em si mesmo um parceiro de que não pode nunca libertar-se, o seu interesse é o de não viver em companhia de um assassino ou de um mentiroso. Ou ainda, já que o pensamento é o diálogo silencioso perseguido entre mim e eu mesmo, devo ter o cuidado de preservar a integridade desse parceiro; de outro modo perderia certamente por completo a capacidade de pensar. Para o filósofo - ou melhor, para o homem na medida em que é um ser pensante - esta proposição ética relativa ao mal feito e sofrido não é menos constrangedora do que a verdade matemática. Mas para o homem na medida em que ele é um cidadão, um ser actuante relacionado com o mundo e o bem público mais do que no seu próprio bem estar - incluindo, por exemplo, a sua «alma imortal», cuja «saúde» deveria prevalecer sobre as necessidades do corpo perecível - a tese socrática não é verdadeira de todo. As consequências desastrosas para toda a comunidade que começou com uma total seriedade a seguir os preceitos éticos derivados do homem no singular - quer sejam socráticas, platónicas ou cristãs - foram já muitas vezes evidenciadas. Muito antes de Maquiavel recomendar que se protegesse o domínio público contra o princípio puro da fé cristã (aqueles que recusavam *** {l} Por uma definição do pensamento como diálogo silencioso entre mim e eu próprio, ver sobretudo Teeteto (Inquérito, 1985), e O Sofista. É no fio desta tradição que Aristóteles chama ao amigo com o qual fala sobre a forma de um diálogo um , um outro eu. *** resistir ao mal permitiam aos maus «fazer tanto mal quanto quisessem») já Aristóteles prevenia contra a outorgação da palavra ao filósofo nas coisas políticas. (Aos homens que por razões profissionais devem preocupar-se tão pouco «com aquilo que é bom para eles próprios» não se poderia confiar o que é bom para os outros, e menos que tudo o «bem comum», os vulgares interesses da comunidade(1).) Como a verdade filosófica diz respeito ao homem na sua singularidade, ela é não política por natureza. Se apesar disso o filósofo deseja ver prevalecer a sua verdade sobre as opiniões da multidão, sofrerá uma derrota, e é susceptível de concluir dessa derrota que a verdade é impotente - truísmo tão pleno de sentido como o do matemático, que incapaz de realizar a quadratura do círculo, lamentasse o facto de o círculo não ser um quadrado. Pode então ser tentado, como Platão, a tornar-se conselheiro de um qualquer tirano de tendência filosófica, e no caso, por felicidade, altamente improvável de um sucesso poderia instituir uma dessas tiranias da «verdade» que conhecemos principalmente graças às diferentes utopias políticas, e que certamente, e falando politicamente, são tão tirânicas como quaisquer outras formas de despotismo. No caso, ligeiramente menos improvável, da sua verdade vencer sem recurso à violência, simplesmente porque os homens se puseram de acordo para isso, teria obtido uma vitória a Pirros. Porque a verdade deveria então o seu triunfo não à sua própria essência constrangedora mas à concordância da maioria, que poderia mudar de ideia no dia seguinte e chegar a acordo sobre qualquer outra coisa diferente; o que tinha sido verdade filosófica ter-se-ia tornado simples opinião. Mas como a verdade filosófica traz em si um elemento de constrangimento, pode tentar o homem de Estado em certas *** {l} Ética a Nicomaco, liv. VI. *** condições, tal como o poder da opinião pode tentar o filósofo! Assim, na Declaração da Independência, Jefferson afirma que «certas verdades são evidentes por si» porque desejava colocar fora do litígio e fora do debate a unanimidade fundamental dos homens da revolução; tal como os axiomas matemáticos, deveriam exprimir «crenças dos homens» que «não dependem da sua vontade, mas seguem involuntariamente a evidência proposta aos seus espíritos»(1). Mas ao dizer «consideramos essas verdades evidentes», reconhecia, sem se dar conta disso, que a afirmação «todos os homens nascem iguais» não é evidente mas exige o acordo e o assentimento - que a igualdade, a ter um significado político, é um assunto de opinião, e não de «verdade». Existem, por outro lado, teses filosóficas ou religiosas que correspondem a essa opinião - por exemplo que todos os homens são iguais perante Deus, perante a morte, ou na medida em que pertencem todos à mesma espécie de animal racional - mas nenhuma delas foi alguma vez de importância política prática, porque o nivelador, quer se trate de Deus, da morte ou da natureza, transcendia o domínio em que têm lugar as relações humanas e permanecia exterior a elas. Tais «verdades» não têm lugar entre os homens mas acima deles, e nada se encontra delas por detrás da aquiescência moderna ou antiga - em particular grega - à igualdade. Que todos os homens nasçam iguais não é nem evidente em si nem demonstrável. Fazemos nossa essa opinião porque a liberdade é possível apenas entre os iguais, e acreditamos que as alegrias e as satisfações da livre companhia devem ser preferíveis aos duvidosos prazeres da existência da dominação. Tais preferências são politicamente da maior importância, e há poucas coisas pelas quais os homens *** {l} Ver o «Projecto de preâmbulo para a lei da Virginia estabelecendo a liberdade religiosa». *** se distinguem tão profundamente uns dos outros. Estamos inclinados a dizer que a sua qualidade humana, e certamente a qualidade de qualquer espécie de relação com eles depende de tais escolhas. Contudo, trata-se aqui de opiniões e não de verdade - como Jefferson, bem apesar dele, o admitiu, a sua validade depende do livre acordo e do livre consentimento; são o resultado de um pensamento discursivo, representativo; e são comunicadas através da persuasão e da dissuasão. A proposição socrática «É preferível sofrer o mal a fazer o mal» não é uma opinião mas pretende ser a verdade, e ainda que se possa duvidar que tenha tido alguma vez uma consequência política directa, é inegável o seu impacto como preceito ético sobre a conduta prática; só os mandamentos religiosos, absolutamente obrigatórios para a comunidade dos crentes, podem ter pretensões a um tão grande reconhecimento. Não estará este facto em clara contradição com a impotência geralmente admitida da verdade filosófica? E já que sabemos pelos diálogos de Platão como a tese de Sócrates era pouco convincente tanto para os seus amigos como para os seus inimigos de cada vez que tentava demonstrá-la, é necessário interrogarmo-nos sobre como poderá ela ter obtido o seu elevado grau de validade. Manifestamente, isso ficou a dever--se a um modo bastante invulgar de persuasão; Sócrates decidiu apostar a sua vida nesta verdade, para dar o exemplo, não quando compareceu diante do tribunal ateniense, mas ao recusar-se a escapar à sentença de morte. Este ensinamento pelo exemplo é, de facto, a única forma de «persuasão» de que a verdade filosófica é capaz sem perversão nem alteração(1); além disso, a verdade filosófica pode tornar-se «prática» e *** {l} É essa a razão da observação de Nietzsche no «Schopenhauer als Er-zieher»: «Ich mache mir aus einem Philosophen gerade so viel, als er imstande ist, ein Beispiel zu geben». *** inspirar a acção sem violar as regras do domínio político quando é feita de modo a tornar-se manifesta sobre a forma de exemplo. É a única oportunidade para um princípio ético ser provado e validado. Assim, para provar, por exemplo, a noção de coragem, podemos lembrar Aquiles e para provar a noção de bondade estamos inclinados a pensar em Jesus da Nazaré ou em S. Francisco; estes exemplos ensinam ou persuadem pela inspiração, de tal modo que de cada vez que tentamos concretizar um acto de coragem ou de bondade é como se imitássemos outro - imitatio Christi, por exemplo. Foi muitas vezes observado que, como diz Jefferson, «um sentido vivo e durável do dever filial é mais eficazmente impresso no espírito de um filho ou de uma filha pela leitura do Rei Lear que por todos os volumes áridos de ética e de teologia que até agora foram escritos(1)», e que, como diz Kant, «os preceitos gerais que se vão buscar a padres ou a filósofos ou mesmo aos recursos próprios, nunca são tão eficazes como um exemplo de virtude ou de santidade(2)». A razão, como explica Kant, está em que temos sempre necessidade de «intuições... para confirmar a realidade dos nossos conceitos». «Se se trata de puros conceitos do entendimento», tais como o conceito de triângulo, «as intuições tomam o nome de esquemas», como o triângulo ideal, perseguido apenas pelos olhos do espírito e no entanto indispensável ao reconhecimento de todos os triângulos reais; se, no entanto, os conceitos são de ordem prática e se relacionam com a conduta, «as intuições serão chamadas exemplos(3)». E, diferentemente dos esquemas que o nosso espírito cria espontaneamente através da imaginação, estes exemplos provêm da história e da poesia, graças às quais, como sublinhou Jefferson, «se abre para nosso uso um campo de imaginação inteiramente diferente». Esta transformação de uma afirmação teórica ou especulativa numa verdade exemplar - transformação de que só a filosofia moral é capaz - é uma experiência limite para a filosofia: estabelecendo um exemplo e «persuadindo» a multidão pela única via que lhe está aberta, começou a agir. Hoje quando quase nenhuma afirmação filosófica, por mais audaciosa que seja, será tomada suficientemente a sério para colocar em perigo a vida do filósofo, desapareceu a própria e rara oportunidade de ver uma verdade filosófica politicamente verificada. No nosso contexto é, pelo menos, importante observar que existe uma tal possibilidade para aquele que diz a verdade racional; porque ela não existe, quaisquer que sejam as circunstâncias, para aquele que diz a verdade de facto, que a esse respeito, como de outros, se encontra numa situação bem pior. Não apenas as afirmações factuais não contêm princípios a partir dos quais os homens possam agir tornando-os assim manifestos no mundo, mas também o seu próprio conteúdo recusa-se a esse género de verificação. Aquele que diz a verdade de facto, na improvável eventualidade de querer arriscar a vida por um facto particular, cometeria apenas uma espécie de erro. O que se tornaria manifesto no seu acto seria a sua coragem, ou talvez a sua tenacidade, mas não a verdade do que ele tinha a dizer, nem mesmo a sua boa fé. Pois porque não preservaria um mentiroso nas suas mentiras com grande coragem, sobretudo em política, onde poderia eventualmente ser motivado pelo patriotismo ou qualquer outra espécie de legítima parcialidade de grupo? *** {1} Numa carta a W. Smith, 13 de Novembro de 1787. {2} «Crítica do Juízo», § 32. {3} Ibid, § 59. *** IV A marca distintiva da verdade de facto está em que o seu contrário não é nem o erro nem a ilusão, nem a opinião, nenhuma delas tendo a ver com a boa fé pessoal, mas a falsidade deliberada ou a mentira. O erro é evidentemente possível, e mesmo corrente, em relação à verdade de facto, e neste caso esse tipo de verdade não é de modo algum diferente da verdade científica ou racional. Mas o importante é que naquilo que diz respeito aos factos existe uma outra possibilidade, e que esta possibilidade, a falsidade deliberada, não pertence à mesma espécie de proposições que, justas ou erradas, pretendem apenas dizer o que é, ou de como qualquer coisa que é me aparece. Uma afirmação factual - a Alemanha invadiu a Bélgica no mês de Agosto de 1914 - só adquire as suas implicações políticas se for colocada num contexto interpre-tativo. Mas a proposição contrária, que Clemenceau, ainda ignorante da arte de reescrever a história, julgava absurda, não necessita de nenhum contexto para ter uma incidência política. É claramente uma tentativa de mudar a narrativa da história e enquanto tal, é uma forma de acção. Acontece o mesmo quando um mentiroso, não dispondo do poder necessário para impor as suas mentiras, não insiste no carácter evangélico da sua afirmação, mas pretende que se trata da sua «opinião» para a qual invoca o seu direito constitucional. Isso é frequentemente praticado pelos grupos subversivos, e num público politicamente imaturo pode ser considerável a confusão que daí resulta. O esbatimento da linha de demarcação que separa a verdade de facto e a opinião pertence às numerosas formas que a mentira pode assumir, todas elas sendo formas de acção. Enquanto o mentiroso é um homem de acção, o que diz a verdade, quer diga a verdade racional ou a científica, nunca o é. Se aquele que diz a verdade de facto quer desempenhar um papel político, e por isso ser persuasivo, irá, quase sempre, proceder a consideráveis desvios para explicar por que é que a sua verdade serve melhor os interesses de qualquer grupo. E, tal como o filósofo obtém uma vitória à Pirros quando a sua verdade se torna uma opinião dominante entre os que são opinião, aquele que diz a verdade de facto, quando penetra no domínio político e se identifica com qualquer interesse particular e com qualquer grupo de poder, compromete a única qualidade que teria podido tornar a sua verdade plausível, a saber, a sua boa fé pessoal, cuja garantia é a imparcialidade, a integridade e a independência. Não há figura política mais susceptível de despertar uma suspeita justificada que o dizedor profissional da verdade que descobriu uma qualquer feliz coincidência entre a verdade e o interesse. Pelo contrário, o mentiroso, não tem necessidade desses arranjos duvidosos para aparecer na cena política; tem a grande vantagem de estar desde sempre, por assim dizer, em pleno meio. É actor por natureza; diz aquilo que não é porque quer que as coisas sejam diferentes daquilo que são - ou seja, quer mudar o mundo. Tira partido da inegável afinidade da nossa capacidade de agir, de mudar a realidade, com essa outra misteriosa faculdade que temos, que nos permite dizer «O sol brilha» quando chove a potes. Se o nosso comportamento fosse tão profundamente condicionado como certos filósofos desejaram que fosse, nunca seríamos capazes de realizar esse pequeno milagre. Por outras palavras, a nossa capacidade para mentir - mas não necessariamente a nossa capacidade para dizer a verdade - faz parte dos dados manifestos e demonstráveis que confirmam a existência da liberdade humana. O facto de podermos mudar as circunstâncias nas quais vivemos deve-se ao facto de sermos relativamente livres em relação a elas, e é essa liberdade que é subutilizada e desnaturada pela mentira. Se é uma tentação quase irresistível do historiador profissional cair na ratoeira da necessidade e negar implicitamente a liberdade de acção, é igualmente uma tentação quase tão irresistível do político profissional sobrestimar as possibilidades dessa liberdade e encontrar implicitamente desculpas para a denegação mentirosa ou a desnaturação dos factos. Certamente, que quando se trata da acção, a mentira organizada é um fenómeno marginal, mas a dificuldade está em que o seu oposto, a simples narração dos factos, não leva a nenhuma espécie de acção; ela tende mesmo, em circunstâncias normais, para a aceitação das coisas tais como são (isto, naturalmente, não é dito para negar que a revelação dos factos possa ser legitimamente utilizada por organizações políticas ou que, em certas circunstâncias, factos trazidos à atenção do público possam encorajar ou reforçar consideravel-mente as exigências de grupos étnicos e sociais). A boa fé nunca se contou entre o número das virtudes políticas, porque ela tem, na verdade, pouco com que contribuir para essa mudança do mundo e das circunstâncias que são parte integrante das actividades políticas mais legítimas. É só quando a comunidade está lançada na mentira organizada principial-mente, e não unicamente nos detalhes, que a boa fé como tal pode, desapoiada como está pelas forças desnaturantes do poder e do interesse, tornar-se um factor político de primeira ordem. Onde toda a gente mente sobre tudo o que é importante, aquele que diz a verdade, quer o saiba ou não, começou a agir; também ele se envolveu no trabalho político, pois, no improvável caso de sobreviver, deu um primeiro passo para a mudança do mundo. Nesta situação, depressa se encontrará, porém, em desagradável desvantagem. Mencionei mais acima o carácter contingente dos factos, que teriam podido sempre passar-se de outro modo, e que por isso não possuem por si nenhum traço de evidência ou de plausibilidade para o espírito humano. Como o mentiroso é livre de acomodar os seus «factos» ao benefício e ao prazer, ou mesmo às simples esperanças do seu público, pode apostar-se que será mais convincente do que aquele que diz a verdade. Terá mesmo, em geral, a verosimilhança do seu lado; a sua exposição parecerá mais lógica, por assim dizer, pois que o elemento surpresa - um dos traços mais impressionantes de todos os acontecimentos - desapareceu providencialmente. Não é apenas a verdade racional que, na frase hegeliana, inverte o sentido comum; muito frequentemente a realidade não perturba menos a tranquilidade do raciocínio do bom senso do que o faz ao interesse e ao prazer. Devemos agora voltar a nossa atenção para o fenómeno relativamente recente da manipulação de massa do facto e da opinião tal como se tornou evidente na reescrita da história, no fabrico de imagens e na política dos governos. A mentira política tradicional, tão manifesta na história da diplomacia e da habilidade política, incidia habitualmente ou sobre segredos autênticos - dados que nunca tinham sido tornados públicos - ou sobre intenções que, de qualquer modo, não possuem o mesmo grau de certeza que os factos concretiza-dos; como tudo o que se passa apenas no interior de nós mesmos, as intenções, são apenas potencialidades, e aquilo que queria ser uma mentira pode sempre revelar-se finalimente verdade. Inversamente, as mentiras políticas modernas tratam eficazmente as coisas que não são de modo nenhum segredos mas são conhecidas praticamente de toda a gente. Isso é evidente no caso da reescrita da história contemporânea sob os olhos daqueles que dela foram testemunhas, mas é igualmente verdadeiro para o fabrico de imagens de todo o género, onde, de novo, todo o facto conhecido e estabelecido pode ser negado ou negligenciado se for susceptível de atentar contra essas imagens; porque à diferença do que se passava com um retrato à moda antiga, não se espera que uma imagem torne mais agradável a realidade, mas que dela ofereça um substituto completo. E esse substituto, devido às técnicas modernas e dos mass-media é, certamente, muito mais acessível do que alguma vez o foi o original. Encontramo-nos, afinal de contas, na presença de homens de estado altamente respeitados que, como de Gaulle e Adenauer, foram capazes de edificar as suas políticas de base sobre não-factos tão evidentes como estes: a França faz parte dos vencedores da última guerra e é pois uma das grandes potências, e «a barbárie do nacional-socialismo tinha afectado apenas uma percentagem relativamente fraca do país»(1). Todas estas mentiras, quer os seus autores o saibam ou não, encerram um elemento de violência; a mentira organizada tende sempre a destruir tudo o que decidiu negar, ainda que só os governos totalitários tenham conscientemente adoptado a mentira como primeiro passo para a morte. Quando Trotsky tomou conhecimento de que nunca tinha desempenhado qualquer papel na revolução russa, deve ter sabido que a sua condenação à morte fora assinada. É claro que é mais fácil eliminar dos arquivos da história uma figura pública se ela for eliminada ao mesmo tempo do mundo dos vivos. Noutros termos, a diferença entre a mentira tradicional e a mentira moderna remete o mais das vezes para a diferença entre ocultar e destruir. Além disso, a mentira tradicional, implicava apenas particulares e nunca visava enganar literalmente toda a gente; di*** {1} No que diz respeito à França, ver o excelente artigo «De Gaulle: pose et politique», in Foreign Affairs, Julho de 1965. A citação de Adenauer é retirada das suas Memórias 1945-1953, Chicago, 1966, p. 89, onde, no entanto, coloca essa ideia no espírito das autoridades de ocupação. Mas repetiu muitas vezes o essencial dessa ideia quando era chanceler. *** rigia-se ao inimigo e só a ele queria enganar. Estas duas limitações restringiam o prejuízo infligido à verdade em tal medida que, retrospectivamente, ele nos pode parecer quase anódino. Como os factos se produzem sempre num contexto, uma mentira particular - quer dizer, uma falsificação que não se esforça por alterar todo o contexto - faz por assim dizer um buraco no tecido dos factos. Como todo o historiador sabe, pode-se detectar urna mentira observando incongruências, buracos, ou junturas dos espaços consertados. Enquanto a textura no seu todo for conservada intacta,a mentira mostrar-se-á imediatamente de modo espontâneo. A segunda limitação diz respeito àqueles que estão envolvidos na actividade de engano. Pertencem em geral ao círculo restrito dos homens de Estado e dos diplomatas que, entre si, conhecem ainda e podem preservar a verdade. Não estavam dispostos a tornar-se vítimas das suas próprias falsificações; podiam enganar os outros sem se enganarem a si próprios. Estas duas circunstâncias atenuantes da velha arte de mentir estão notavelmente ausentes da manipulação dos factos com que hoje estamos confrontados. Qual é, pois, o significado dessas limitações, e por que é que estamos justificados quando lhes chamamos circunstâncias atenuantes? Por que é que o engano de si próprio se tornou um instrumento indispensável no empreendimento da fabricação de imagens, e por que é que deverá ser considerado pior para o mundo mas também para o próprio mentiroso, quando se engana com as suas próprias mentiras, do que quando se limita a enganar os outros? Que melhor desculpa moral poderia oferecer um mentiroso do que afirmar que a sua aversão pela mentira era tão grande que teve de se convencer ele próprio antes de poder mentir aos outros, que, corno António na Tempestade, teve de fazer «da sua própria memória uma pecadora para acreditar na sua própria mentira»? E, finalmente, e de modo talvez ainda mais perturbante, se as mentiras políticas modernas são tão grandes que requerem um completo rearranjo de toda a textura factual - o fabrico de uma outra realidade, por assim dizer na qual se encaixam sem costuras, fendas nem fissuras, exactamente como os factos encaixavam no seu contexto original - o que é que impede estas histórias, imagens e não factos novos de se tornarem um substituto adequado da realidade e da factualidade? Uma anedota medieval ilustra a dificuldade que pode haver em mentir aos outros sem se o fazer a si próprio. É a história do que aconteceu uma noite numa cidade: uma sentinela estava postada na guarida noite e dia para prevenir as pessoas da aproximação do inimigo. A sentinela era um homem dado às brincadeiras de mau gosto e naquela noite tocou o alarme apenas para causar algum medo às pessoas da cidade. Teve um sucesso espantoso: toda a gente se lançou para as muralhas e a nossa sentinela acabou por fazer o mesmo. Esta história mostra como a nossa apreensão da realidade depende da nossa partilha do mundo com os outros homens, e que força do carácter é necessário para nos atermos a qualquer coisa, verdade ou mentira, que não é partilhada. Por outras palavras, quanto mais um mentiroso tem êxito, mais verosímil é que seja vítima das suas próprias invenções. De resto, o brincalhão preso na sua própria mentira, que embarca no mesmo navio que as suas vítimas, parecerá infinitamente mais digno de confiança que o mentiroso de sangue frio que se permite saborear a sua farsa do exterior. Só o engano de si é susceptível de criar uma aparência de credibilidade e, num debate sobre os factos, o único factor persuasivo que tem, por vezes, uma possibilidade de prevalecer sobre o prazer, o medo e o interesse, é a aparência pessoal. O preconceito moral corrente tende a ser mais severo em relação ao mentiroso de sangue frio, enquanto que a arte muitas vezes altamente desenvolvida do engano de si é habitualmente considerada com grande tolerância e indulgência. Entre os vários exemplos que é possível citar na literatura contra esta avaliação corrente, há a célebre cena no mosteiro no início dos Irmãos Karamazov. O pai, mentiroso inveterado, pergunta ao Starets: «E o que é que devo fazer para obter a salvação?» e o Starets replica: «Sobretudo, nunca minta a si próprio!» Dostoïevski não acrescenta qualquer explicação ou desenvolvimento. Os argumentos destinados a sustentar a afirmação: «É melhor mentir aos outros do que enganar-se a si próprio» deviam sublinhar que o mentiroso de sangue frio permanece consciente da distinção entre o verdadeiro e o falso, e que desse modo a verdade que ele está a ocultar aos outros não é completamente eliminada do mundo; encontrou o seu último refúgio no mentiroso. A ofensa feita à realidade não é completa nem definitiva e, ao mesmo tempo, a ofensa feita ao próprio mentiroso não é nem completa nem definitiva. Ele mentiu, mas não é, no entanto, um mentiroso. Ele próprio e o mundo que enganou não estão ao mesmo tempo para além da «salvação» - para usar a linguagem de Starets. A possibilidade da mentira completa e definitiva, ainda desconhecida nas épocas anteriores, é o perigo que nasce da manipulação moderna dos factos. Mesmo no mundo livre onde o governo não monopolizou o poder de decidir ou de dizer o que é ou o que não é factualmente, gigantescas organizações de interesses generalizaram uma espécie de mentalidade da raison d'état(*) que estava antes limitada ao tratamento dos assuntos estrangeiros e, nos seus piores excessos, às situações de perigo claro e actual. E a propaganda à escala governamental aprendeu mais de uma habilidade com os usos do mundo dos negócios e os métodos da Madison Avenue. Dife*** {*} Em francês no texto (N.T.) *** rentemente das mentiras que se dirigiam a um adversário estrangeiro, as imagens fabricadas para consumo doméstico, podem tornar-se uma realidade para todos, e antes de mais para os próprios fabricantes de imagens que, enquanto estão ainda a preparar os seus «produtos» ficam esmagados só ao pensarem no número das suas possíveis vítimas. Não há dúvida que aqueles que estão na origem da imagem mentirosa «inspirada» pelos persuasores ocultos, sabem ainda que querem enganar o inimigo à escala social ou nacional, mas o resultado é que todo um grupo de pessoas, mesmo de nações inteiras, pode orientar-se de acordo com um encadeamento de enganos aos quais os dirigentes desejavam submeter os opositores. O que então acontece surge quase automaticamente. O esforço principal, ao mesmo tempo do grupo enganado e daqueles que enganam, terá como objectivo a conservação intacta da imagem de propaganda, e esta imagem é ameaçada menos por um inimigo e os interesses verdadeiramente hostis do que pelos que, no interior do próprio grupo, conseguiram escapar à sua influência e se obstinam em falar dos factos e dos acontecimentos que não se harmonizam com essa imagem. A história contemporânea está cheia de exemplos em que aqueles que dizem a verdade de facto passaram por ser mais perigosos, e mesmo mais hostis, que os opositores reais. Estes argumentos contra o engano de si não devem ser confundidos com os protestos dos «idealistas», qualquer que seja o seu mérito, contra a mentira considerada má por princípio e contra a imemorial arte de enganar o inimigo. Politicamente, o importante é que a arte moderna do engano de si próprio é susceptível de transformar um problema exterior em questão interior, de tal modo que o conflito entre nações ou entre grupos retroage sobre a cena da política interna. Os enganos de si praticados dos dois lados durante o período da guerra fria são demasiado numerosos para poderem ser enumerados, mas é claro que são um caso desse género. Os críticos conservadores da democracia de massa sublinharam muitas vezes os perigos que esta forma de governo introduz nos assuntos internacionais - sem, no entanto, mencionar os peri-gos particulares das monarquias ou oligarquias. A força dos seus argumentos reside no facto inegável que em condições plenamente democráticas, um engano sem engano de si próprio é quase impossível. No nosso sistema actual de comunicação à escala planetária que cobre um grande número de nações independentes, nenhum poder existente é suficientemente grande para tornar a sua «imagem» definitivamente mistificadora. De igual modo as imagens têm uma esperança de vida relativamente curta; acontece-lhes explodir não apenas quando se partem em pedaços e a realidade faz a sua reaparição pública, mas mesmo antes disso, porque fragmentos de factos perturbam cons-tantemente e arruinam a guerra de propaganda entre imagens adversas. No entanto, essa não é a única maneira, nem sequer a maneira mais significativa com que a realidade se vinga dos que ousam desafiá-la. A esperança de vida das imagens não podia sequer ser aumentada de modo significativo sob um governo mundial ou qualquer outra versão moderna da Pax Romana. Isso é bem mostrado pelos sistemas relativamente fechados dos governos totalitários e das ditaduras de partido único que são, certamente, de longe, os agentes mais eficazes para proteger as ideologias e as imagens do impacto da realidade e da verdade. (E uma tal correcção dos factos passados nunca se verifica sem dificuldade. Vemos, num memorando de 1935, encontrado nos Arquivos de Smolensk as inúmeras dificuldades que rodeiam este género de empreendimentos. Por exemplo, «que fazer dos discursos de Zino-viev, Kamenev, Rykov, Boukharine, et al., nos congressos do Partido, aos plenários do Comité central, ao Komintern, ao Congresso dos Sovietes, etc.? Das antologias do marxismo... escritas ou editadas conjuntamente por Lenin, Zino-viev,... e outros? Dos escritos de Lenin editados por Kame-nev?... Que fazer quando Trotsky... escreveu um artigo num número do Communiste International? Confiscar toda a tiragem?»(1). São questões certamente embaraçosas, acerca das quais estes Arquivos não contêm resposta.) A dificuldade está em que têm de alterar constantemente as falsificações que oferecem como substitutos da história real; circunstâncias mutáveis requerem a substituição de um livro de história por outro, a substituição de páginas nas enciclopédias e livros de referência, o desaparecimento de certos nomes em benefício de outros desconhecidos ou pouco conhecidos antes. E ainda que esta instabilidade permanente não dê nenhuma indicação daquilo que a verdade poderá ser, é em si própria uma indicação, e uma poderosa indicação, do carácter mentiroso de todas as afirmações publicadas sobre o mundo factual. Observouse com frequência que o resultado a longo prazo mais seguro da lavagem do cérebro é um género particular de cinismo - uma recusa absoluta de acreditar na verdade de qualquer coisa, por mais bem estabelecida que possa estar essa verdade. Por outras palavras, o resultado de uma substituição coerente e total de mentiras à verdade de facto não é as mentiras passarem a ser aceites como verdade, nem que a verdade seja difamada como mentira, mas que o sentido através do qual nos orientamos no mundo real - e a categoria da verdade relativamente à falsidade conta-se entre os recursos mentais para prosseguir esse objectivo - fique destruído. *** {l} Uma parte dos arquivos foi publicada em Merle Fainsod, Smolensk under Soviet Rule, Cambridge, Mass., 1958. Ver p. 374. *** E para essa dificuldade não existe remédio. É tão só o reverso da perturbante contingência de toda a realidade factual. Já que tudo o que é efectivamente produzido no domínio dos assuntos humanos teria podido acontecer de modo diferente, as possibilidades de mentir são ilimitadas, e esta ausência de limites vai no sentido da autodestruição. Só o mentiroso de ocasião achará possível ater-se a uma mentira particular com uma coerência inabalável; os que ajustam imagens e histórias a circunstâncias perpetuamente mutáveis sentir-se-ão eles próprios flutuando sobre o largo horizonte aberto da potencialidade, derivando de uma possibilidade para a seguinte, incapazes de se aterem a uma qualquer das suas próprias invenções. Longe de realizarem um substituto adequado da realidade e da factualidade, fizeram regressar os factos e os acontecimentos à potencialidade de que originalmente saíram. E o sinal mais seguro da factualidade dos factos e dos acontecimentos é precisamente esse obstinado estar lá, cuja contingência intrínseca desafia, afinal de contas, todas a tentativas de explicação definitiva. As imagens, pelo contrário, podem sempre ser explicadas e tornadas plausíveis - o que lhe dá a sua momentânea vantagem sobre a verdade de facto - mas não podem nunca rivalizar em estabilidade com o que é, simplesmente porque acontece que é assim e não de outro modo. E essa a razão por que a mentira coerente, metaforicamente falando, desmorona o solo sob os nossos pés sem fornecer outro sobre o qual seja possível apoiarmo-nos. (Nas palavras de Montaigne: «Se, como acontece com a verdade, a mentira tivesse apenas um rosto, estaríamos em melhor situação. Porque tomaríamos por certo o oposto daquilo que dissesse o mentiroso. Mas o reverso da verdade tem cem mil figuras e um campo indefinido.») A experiência de um estremecimento e da vacilação de tudo aquilo em que baseávamos o nosso sentido de orientação e da realidade conta-se no número das experiências mais comuns e mais vivas dos homens sobre o domínio totalitário. Em consequência, a inegável afinidade da mentira com a acção, com a mudança do mundo - em resumo, com a política - está limitada pela própria natureza das coisas que estão abertas à faculdade humana da acção. O convencido fabricante de imagens engana-se quando acredita que pode antecipar as mudanças mentindo sobre aspectos factuais que toda a gente deseja de qualquer modo eliminar. A edificação das aldeias de Potemkine, tão cara aos políticos e propagandistas dos países subdesenvolvidos, não conduz nunca ao estabelecimento de algo real mas apenas a uma proliferação e a uma perfeição da ilusão. Não é o passado - e toda a verdade de facto, como é evidente, diz respeito ao passado - mas o futuro que está aberto à acção. Se o passado e o presente são tratados como categorias do futuro - quer dizer, reconduzidos ao seu anterior estado de potencialidade.- o domínio político fica privado não apenas da sua principal força estabilizadora, mas ainda do ponto de partida a partir do qual poderia mudar, começar qualquer coisa de novo. O que então começa é essa constante fuga em frente na completa esterilidade que é característica de muitas nações novas que tiveram o azar de nascer numa época de propaganda. É evidente que os factos não estão seguros nas mãos do poder. Mas o importante é que aqui o poder, pela sua própria natureza, não pode nunca produzir um substituto para a sólida estabilidade da realidade factual que, por ser passado, cresceu até a uma dimensão fora do nosso alcance. Os factos afirmam-se a si próprios pela sua obstinação e a sua fragilidade está estranhamente combinada com uma grande resistência à distorção - essa mesma irreversibilidade que é o cunho de toda a acção humana. Na sua obstinação, os factos são superiores ao poder; são menos passageiros que as formações do poder, que surgem quando os homens se reúnem com um objectivo, mas desaparecem quando esse objectivo é alcançado ou fracassa. Esse carácter transitório faz do poder um instrumento altamente incerto para levar a bom termo uma permanência seja ela qual for e, por consequência, não apenas a verdade e os factos não estão em segurança entre as suas mãos, mas também a não verdade e os não factos. A atitude política em relação aos factos deve, com efeito, seguir o caminho muito estreito que existe entre o perigo de os tomar como resultado de qualquer desenvolvimento necessário que os homens não podem impedir, e sobre o qual não podem pois ter qualquer influência, e o perigo de os negar, ou tentar eliminar do mundo manipulandoos. V Em conclusão, regresso às questões que suscitei no início destas reflexões. A verdade, ainda que sem poder e sempre derrotada quando choca de frente com os poderes existentes quaisquer que eles sejam, possui uma força própria: sejam quais forem as combinações dos que estão no poder, são incapazes de descobrir ou inventar um substituto viável. A persuasão e a violência podem destruir a verdade, mas não podem substituí-la. Isto vale para a verdade racional e religiosa, tanto como, de um modo mais evidente, para a verdade de facto. Considerar a política na perspectiva da verdade, como o fiz aqui, quer dizer lançar pé fora do domínio do político. Esta posição é a posição do dizedor da verdade que transgride a sua posição - e com ela a validade do que tem a dizer - se tenta intervir directamente nos assuntos humanos e falar a linguagem da persuasão ou da violência. E para esta posição e a sua importância para o domínio político que devemos voltar agora a nossa atenção. A posição no exterior do domínio político - no exterior da comunidade à qual pertencemos e da companhia dos nossos pares - é claramente caracterizada como um dos diferentes modos de estar só. Eminentes entre os modos essenciais do dizer-averdade são a solidão do filósofo, o isolamento do sábio e do artista, a imparcialidade do historiador e do juiz, e a independência do descobridor de facto, da testemunha e do repórter. (Esta imparcialidade difere da que tem a opinião qualificada, representativa, mencionada atrás, na medida em que não é adquirida no interior do domínio político, mas é inerente à posição de estranho requerida por tais ocupações.) Estes modos de sersó diferem sob muitos aspectos, mas têm em comum que durante tanto tempo quanto um deles dure, nenhum compromisso político, nenhuma adesão a uma causa, é possível. Eles são, certamente, comuns a todos os homens; são os modos de existência humana como tal. No entanto, quando um deles é adoptado como modo de vida - e mesmo então a vida não é vivida numa solidão, um isolamento ou uma independência completos - é susceptível de entrar em conflito com as exigências do político. É absolutamente natural que tomemos consciência da natureza não política e, virtualmente, antipolítica, da verdade - Fiat veritas, et pereat mundus - apenas em caso de conflito, e até agora coloquei o assento tónico nesse aspecto da questão. Mas isso não pode realmente explicar toda a história. Deixa fora de consideração algumas instituições públicas, estabelecidas e sustentadas pelos poderes existentes, nas quais, contrariamente a todas as regras políticas, a verdade e a boa fé sempre constituíram o mais alto critério da palavra e do esforço. Entre elas encontramos nomeadamente o judiciário que, seja como ramo do governo, seja como administração directa da justiça, é cuidadosamente protegido contra o poder social e político, assim como todas as instituições de ensino superior, às quais o Estado confia a educação dos seus futuros cidadãos. Na medida em que a Academia se lembra das suas origens antigas, deve saber que foi fundada pelo mais resoluto e o mais influente dos opositores da polis. Certamente, o sonho de Platão não se realizou: a Academia nunca se tornou uma contra-sociedade, e em lado algum ouvimos falar de uma tentativa das universidades para tomar o poder. Mas aquilo com que Platão nunca tinha sonhado tornou-se verdade: o domínio político reconheceu que tinha necessidade de uma instituição exterior à luta do poder acrescentando--se à imparcialidade requerida na aplicação da justiça; o facto desses lugares de ensino superior estarem em mãos privadas ou entre as mãos públicas tem pouca importância; a sua integridade como a sua própria existência dependem de qualquer modo da boa vontade do governo. Verdades inoportunas emergiram das universidades e o anfiteatro produziu inúmeras vezes verdades inoportunas; e essas instituições, tal como outros refúgios da verdade, permaneceram expostas a todos os perigos que nascem do poder social e político. De qualquer modo, as possibilidades da verdade prevalecer em público são, certamente, altamente favorecidas pela simples existência de tais locais e pela organização dos homens de ciências independentes, em princípio desinteressados, que lhe estão associados. E não se pode de modo algum negar, que, pelo menos nos países governados constitucionalmente, o domínio político reconheceu, mesmo em caso de conflito, que tem interesse na existência de homens e instituições sobre os quais não tem poder. Este significado autenticamente político da Academia é hoje facilmente negligenciado devido ao surgimento em primeiro plano das suas escolas especializadas e ao desenvolvimento das suas divisões consagradas às ciências da natureza, onde, de uma forma inesperada, a investigação pura teve tantos resultados decisivos que se revelaram vitais para todos os países. Não é possível a ninguém negar a utilidade social e técnica das universidades, mas essa importância não é política. As ciências históricas e as humanidades, que supostamen-te devem estabelecer, assumir, e interpretar a verdade de facto e os documentos humanos, são politicamente de uma importância maior. O facto de dizer a verdade de facto compreende muito mais que a informação quotidiana fornecida pelos jornalistas, ainda que sem eles nunca nos pudéssemos situar num mundo em mudança perpétua, e no sentido mais literal, não soubéssemos nunca onde estávamos. Isso é, certamente, da mais imediata importância política; mas se a imprensa se tornasse alguma vez realmente o «quarto poder» deveria ser protegida contra todo o governo e agressão social ainda mais cuidadosamente do que o é o poder judicial. Porque essa função política muito importante que consiste em divulgar a informação é exercida do exterior do domínio político propriamente dito; nenhuma acção nem nenhuma decisão políticas estão, ou deveriam estar, implicadas. A realidade é diferente da totalidade dos factos e dos acontecimentos e é mais do que esta, que, de qualquer modo, não pode ser determinada. Aquele que diz o que é - conta sempre uma história, e nessa história os factos particulares perdem a sua contingência e adquirem um significado humanamente compreensível. É perfeitamente verdade que «todas as dores podem ser suportadas se as transformarmos em história ou se contarmos uma história sobre elas», de acordo com as palavras de Karen Blixen, que não foi apenas uma das maiores contistas do nosso tempo mas também - e nesse aspecto foi quase única - sabia aquilo que fazia. Ela teria podido acrescentar que, igualmente, a alegria e a felicidade apenas se tornam suportáveis e significativas para os homens quando eles podem falar delas e contá-las como uma história. Na medida em que aquele que diz a verdade de facto é também um contador de histórias, realiza essa «reconciliação com a realidade» que Hegel, o filósofo da história par excellence(*), entende ser o fim último de todo o pensamento filosófico, e que, certamente, foi o motor secreto de toda a historiografia que transcende a pura erudição. A transformação do material bruto dos simples acontecimentos que o historiador, como o romancista (um bom romance não é de modo algum uma simples concocção nem uma ficção puramente fantasista), deve efectuar é estritamente aparentada com a transfiguração poética dos estados de alma ou dos movimentos do coração - a transformação da dor em lamento ou da alegria em celebração. Nós podemos ver, com Aristóteles, na função política do poeta, a realização de uma catarsis, purificação ou purgação de todas as paixões que podem impedir o homem de agir. A função política do contador de histórias - historiador ou romancista - consiste em ensinar a aceitação das coisas tais como elas são. Desta aceitação, que pode também chamar-se boa fé, surge a faculdade de julgar - que, de novo nas palavras de Karen Blixen, «no fim teremos o privilégio de ver e rever isso - e é aquilo a que chamamos o dia do juízo». Está fora de dúvida que todas estas funções politicamente importantes são realizadas do exterior do domínio político. Requerem o não-envolvimento e a imparcialidade, a libertação do interesse pessoal no pensamento e no juízo. A procura desinteressada da verdade tem uma longa história; a sua origem precede, de modo característico, todas as nossas tradições teóricas e científicas, incluindo a nossa tradição do pensamento filosófico e político. Penso que é possível fazê-la remontar ao momento em que Homero decidiu cantar as acções *** {*} Em francês no texto (N.T.) *** dos Troianos não menos que a dos Aqueus, e celebrar a glória de Heitor, o adversário e o vencido, não menos que a glória de Aquiles, o herói do seu povo. Isso nunca se tinha verificado antes; nenhuma outra civilização, qualquer que fosse o seu esplendor, tinha sido capaz de considerar com igual olhar o amigo e o inimigo, o êxito e a derrota - que, desde Homero, não foram reconhecidos como critérios decisivos do juízo dos homens, mesmo que sejam decisivos para os destinos humanos. A imparcialidade homérica ecoa através de toda a história grega e inspirou o primeiro grande contador da verdade de facto, que se tornou o pai da história: Heródoto conta-nos em todas as frases iniciais das suas histórias que tem o objectivo de «impedir as grandes e gloriosas acções dos Gregos e dos Bárbaros de perderem o tributo de glória que lhes é devido». Isso é a raiz daquilo a que se chama objectividade - essa paixão curiosa, desconhecida fora da civilização ocidental, pela integridade intelectual a qualquer preço. Sem ela nenhuma ciência teria podido existir. Dado que tratei aqui da política na perspectiva da verdade, e por consequência de um ponto de vista exterior ao domínio político, omiti a referência, mesmo que de passagem, à grandeza e à dignidade do que nela se passa. Falei como se o domínio político não fosse mais do que um campo de batalha de interesses parciais e adversos, onde nada contaria além do prazer e do lucro, do espírito partidário e do desejo de dominação. Em resumo, falei da política como se, também eu, acreditasse que todos os assuntos públicos são governados pelo interesse e o poder, e não existisse, em caso algum, domínio político se fôssemos obrigados a preocupar-nos com as necessidades da vida. A razão desta deformação é que a verdade de facto entra em conflito com a política apenas a esse nível mais baixo dos assuntos humanos, tal como a verdade filosófica de Platão chocou com a política ao nível consideravelmente mais elevado da opinião e do acordo. Nesta perspectiva, permanecemos na ignorância do conteúdo real da vida política - da alegria e da satisfação que nascem do facto de estarmos em companhia dos nossos semelhantes, de agir em conjunto e de aparecermos em público, de nos inserirmos no mundo pela palavra e pela acção, e assim adquirirmos e sustentarmos a nossa identidade pessoal e começarmos qualquer coisa inteiramente nova. Contudo, aquilo que pretendia mostrar aqui é que toda essa esfera, apesar da sua grandeza, é limitada - que não envolve a totalidade da existência do homem e do mundo. É limitada por coisas que os homens não podem mudar à vontade. E é apenas respeitando os seus próprios limites que esse domínio, em que somos livres de agír e de transformar, pode permanecer intacto, conservar a sua integridade e manter as suas promessas. Conceptualmente, podemos chamar verdade àquilo que não podemos mudar; metaforicamente, ela é o solo sobre o qual nos mantemos e o céu que se estende por cima de nós. [] /\\//\