atividades e atos
administrativos
Autor: Sérgio Guerra
COLABORAÇÃO: Patrícia Sampaio
Professor: Ricardo Couto de Castro
2ª edição
ROTEIRO De CURSO
2008.2
Sumário
Atividades e atos administrativos
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................................................................4
Conteúdo da disciplina................................................................................................................... 4
Metodologia................................................................................................................................... 5
Desafios/Dificuldades do Curso...................................................................................................... 5
Método de avaliação....................................................................................................................... 5
Atividades complementares............................................................................................................. 5
Plano de aula...............................................................................................................................................................................6
Bloco 1: Princípios da Administração Pública.................................................. 6
Aula 1: O princípio da supremacia do interesse público e sua releitura na pós-modernidade........... 7
Aula 2: Princípio da legalidade e poder regulamentar.................................................................... 11
Aula 3: Princípio da legalidade, vinculação e discricionariedade administrativa............................. 18
Aula 4: Princípio da legalidade e a densificação de conceitos jurídicos indeterminados pela
Administração Pública...................................................................................................... 22
Aula 5: Os princípios da finalidade, da impessoalidade e da motivação.......................................... 29
Aula 6: Os princípios da segurança jurídica, boa-fé e proibição do venire contra factum proprium
da Administração............................................................................................................. 34
Aula 7: Os princípios da moralidade, da eficiência e da publicidade dos atos administrativos........ 38
Bloco II – Poder de Polícia.......................................................................................... 45
Aula 8: Poder de polícia: significado e conteúdo............................................................................ 46
Aula 9: Poder de polícia II: limites da intervenção do Estado sobre a atividade econômica.
Licenciamento e autorizações........................................................................................... 49
Bloco III – Administração Pública Direta e Indireta................................... 52
Aula 10: Administração pública direta e indireta: o regime jurídico das autarquias e das
universidades................................................................................................................... 53
Aula 11: Administração pública direta e indireta: o regime jurídico das empresas públicas e das
sociedades de economia mista.......................................................................................... 56
Bloco IV: Ato administrativo.................................................................................... 61
Aula 12: Elementos e características do ato administrativo............................................................ 62
Aula 13: Extinção do ato administrativo....................................................................................... 65
Bloco V: Licitações e contratos administrativos....................................... 69
Aula 14: Princípios da licitação..................................................................................................... 70
Aula 15: Modalidades da licitação, dispensa e inexigibilidade........................................................ 74
Aula 16: As fases da licitação......................................................................................................... 80
Aula 17: Regime jurídico dos contratos administrativos................................................................ 83
Aula 18: Extinção do contrato administrativo............................................................................... 89
Bloco VI: Bens públicos................................................................................................. 96
Aulas 19 e 20: Regime jurídico dos bens públicos......................................................................... 97
Bloco VII: Limitações à propriedade privada.................................................. 103
Aula 21: Tombamento, requisição e ocupação temporária. Limitações administrativas................ 104
Aula 22: Servidões administrativas.............................................................................................. 108
Aula 23: Desapropriação............................................................................................................. 111
Bloco VIII – Serviços públicos.................................................................................. 116
Aula 24: Regime jurídico dos serviços públicos........................................................................... 117
Aula 25: Prestação dos serviços públicos . ................................................................................... 120
Anexo 1 – Legislação complementar...................................................................................................................................... 123
Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967.......................................................................... 123
Medida Provisória no 2.220, de 4 de setembro de 2001.............................................................. 135
Anexo 2 – Jurisprudência........................................................................................................................................................ 138
Supremo Tribunal Federal – PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES............................ 138
AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)...................................... 169
AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)...................................... 173
AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)...................................... 175
atividades e atos administrativos
INTRODUÇÃO
O objetivo do Curso de Atividades e Atos Administrativos é apresentar aos alunos uma
visão sistêmica de alguns dos principais temas afetos ao direito que regem a atividade da
Administração Pública, por meio de uma abordagem principiológica e crítica dos principais
institutos de Direito Administrativo.
Conteúdo da disciplina
O curso inicia-se com a discussão das mutações observadas na relação poder público
– cidadão ao longo do tempo e, conseqüentemente, do conteúdo do princípio da supremacia do interesse público desde a consolidação dos Estados modernos.
Em seguida serão apresentados os princípios constitucionais que regem a Administração Pública, problematizando o seu conteúdo e a sua abrangência.
Na seqüência, explana-se sobre a disciplina do poder de polícia e, posteriormente, a
formação da estrutura administrativa do Estado, quando se terá oportunidade de observar
as distintas configurações jurídicas das entidades que participam da Administração Pública,
distinguindo-se entre Administração Direta e Indireta, assim como entre pessoas jurídicas
de direito público e privado afetas à atividade estatal.
Passa-se, então, à atividade administrativa, discutindo-se os principais temas atinentes ao ato administrativo prosseguindo com ao estudo da disciplina jurídica das licitações
públicas – a forma ordinária de contratação pela Administração Pública – e dos contratos
administrativos.
O Curso abordará ainda o tema dos bens públicos e as formas de intervenção do Estado sobre a propriedade privada, dentre elas, a desapropriação, a servidão administrativa,
a requisição e o tombamento.
O semestre terminará com a introdução do tema dos serviços públicos, abordando-se a
evolução histórica do conceito e suas principais características. Esse conteúdo será essencial
para o Curso de Serviços Públicos e Controle da Administração Pública, o qual será iniciado
com a discussão da reforma do Estado vivenciada pelo país ao longo da década de 90 do
século XX e a conseqüente reafirmação do instituto da delegação da prestação de serviços
públicos à iniciativa privada como elemento central nesse processo. Em síntese, o Curso será
composto dos seguintes blocos:
• Bloco I: Princípios da Administração Pública
• Bloco II: Poder de polícia
• Bloco III: Administração pública direta e indireta
• Bloco IV: Ato administrativo
• Bloco V: Licitações e contratos administrativos
• Bloco VI: Bens públicos
• Bloco VII: Intervenção do Estado sobre a propriedade privada
• Bloco VIII: Serviços públicos
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atividades e atos administrativos
Metodologia
A metodologia do curso é eminentemente participativa, requerendo intensa interação dos alunos nos debates em sala e preparo prévio para as aulas, mediante a
leitura das indicações bibliográficas obrigatórias e, sempre que possível, das leituras
complementares. Também serão produtivas as iniciativas dos alunos que trouxerem
assuntos ligados aos temas tratados, e que estejam nas pautas dos principais veículos da
imprensa.
Em razão desta natureza eminentemente dialética, a presente apostila foi estruturada
em 25 aulas para um total de 28 encontros, já antevendo que algumas matérias poderão se
prolongar por mais de uma aula.
Desafios/Dificuldades do Curso
O Curso exigirá do aluno uma visão reflexiva do Direito Administrativo e capacidade
de relacionar a teoria exposta na bibliografia e na sala de aula com outras disciplinas, especialmente o Direito Constitucional. O desafio é construir uma visão contemporânea e pósmoderna do Direito Administrativo, centrado na proteção da dignidade da pessoa humana
e no respeito aos direitos dos cidadãos, buscando sempre cotejar o conteúdo da disciplina
com a realidade do país.
Método de avaliação
A avaliação será composta por duas provas de igual peso. A média final será a média
aritmética entre as duas notas obtidas pelo aluno, notas por conceito e eventuais atividades
complementares que venham a ser oportunamente solicitadas aos alunos.
Atividades complementares
Poderão ser definidas atividades complementares, de acordo com a evolução das discussões sobre os temas.
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atividades e atos administrativos
Plano de aula
Bloco 1: Princípios da Administração Pública
Objetivo:
Há que se considerar no Direito Administrativo um conjunto de condições que envolvem apenas a estrutura burocrática do Governo e que integram a organização administrativa
necessária para manter o funcionamento dos serviços essenciais do Estado e superintender ou
controlar o funcionamento daqueles sujeitos à iniciativa privada ou criados com autonomia.1
Direito Administrativo é o conjunto de princípios que regem a atividade administrativa
não contenciosa do Estado, e a instituição dos meios e órgãos da sua ação em geral.2
Não. Este não é mais o objeto do Direito Administrativo vivenciado na denominada
pós-modernidade. Há, por certo, um enriquecimento do direito administrativo no século
XXI com o intercâmbio de questões com o direito privado e com o direito administrativo
alienígena, este num ambiente de internacionalização do próprio direito.
Nesse sentido, o direito administrativo atual deve observar as normas principiológicas
e o novo rol de temas que permeia a sociedade de riscos, notadamente a eloqüente tecnicidade que impõe uma análise sistêmica do campo jurídico para se alcançar a justiça.
O objetivo deste bloco é debater, em profundidade, os princípios que regem a atuação
da Administração Pública na pós-modernidade, tendo em vista a sua importância como
intérprete de toda a disciplina do Direito Administrativo constitucionalizado ou legalizado.
O bloco é composto pelas Aulas 1 a 7.
CAVALCANTI, Themístocles
Brandão. Curso de Direito Administrativo. 7.ed. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1954.
1
Mazagão, Mario. Preleções de
Direito Administrativo. São Paulo: LINOTECHNICA, 1937, p. 61.
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Aula 1: O princípio da supremacia do interesse público e sua
releitura na pós-modernidade
Objetivo:
O objetivo desta primeira aula é apresentar um breve panorama histórico do desenvolvimento do princípio da supremacia do interesse público, buscando demonstrar a necessidade de sua releitura na pós-modernidade, a partir de um ordenamento jurídico centrado
na proteção da dignidade da pessoa humana.
Introdução:
Para abordamos o tema da releitura da supremacia do interesse público sobre o interesse de cada um dos cidadãos, deve-se marcar, como ponto fundamental, o debate surgido
no constitucionalismo do século XX a partir da sua segunda metade.
Nessa fase histórica, verificou-se, em diversos Estados, a experimentação de uma forte
aspiração por democracia, podendo-se destacar dois importantes marcos simbólicos deste
período: a queda do muro de Berlin (1989) e o fim da União Soviética (1991).
Os movimentos responsáveis em grande parte por essas mudanças decorrem da globalização, do amplo processo desestatizante surgido no bojo do modelo neoliberal, e da
complexidade cotidiana denominada de a era das informações3. Pelo modelo neoliberal cabe
ao setor privado o papel de “organizar” a economia de mercado, de modo que à iniciativa
privada seriam destinados os bônus e os ônus da flutuação mercadológica.
Contudo, a simples redução do Estado ao patamar mínimo – a exemplo do que ocorreu no modelo liberal oitocentista – não corresponderia aos anseios da sociedade nem,
tampouco, às necessidades de equilíbrio do sistema econômico (em benefício dele próprio),
do sistema social e dos interesses individuais.
No Brasil, se é certo que a Carta Magna de 1988 absorveu os influxos neoliberalizantes, pautando a Ordem Econômica sob o princípio da livre iniciativa e na valorização do
trabalho humano, também é certo afirmar que, seguindo a linha aberta pelas Cartas da Alemanha (1949), Grécia (1975), Portugal (1976) e Espanha (1978), a nossa Lei Fundamental
colocou o cidadão – e o respeito a sua dignidade – no centro do ordenamento jurídico.
Nesse novo sistema, o jusnaturalismo liberal e o intervencionismo social cedem lugar
à intervenção estatal na ordem econômica e social, com vistas à busca do bem-estar social
e individual, numa permanente ponderação dos interesses envolvidos. Sob esse enfoque,
busca-se, a partir da década de 90 do século passado, um novo marco teórico para a administração pública, que substitua a perspectiva burocrática weberiana até então aplicada, despontando entidades estatais em setores estratégicos, que mantêm uma maior proximidade
do cidadão.
Há um reconhecimento de que as democracias contemporâneas não se configuram em
instrumentos para garantir apenas a propriedade e os contratos. Ao contrário, as modernas
formas de administração dos diversos interesses – não mais encarando um interesse público
predeterminado como poder supremo – devem formular e implementar políticas estratégicas para suas respectivas sociedades, tanto no sistema social como no campo científico e
Sobre a era da informação,
economia, sociedade e cultura, ver o primeiro volume da
trilogia de CASTELLS, Manuel.
A sociedade em rede. 8.ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2005.
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atividades e atos administrativos
tecnológico, ambos umbilicalmente atados ao sistema econômico. Nesse contexto, o Estado
se vê compelido a adotar práticas gerenciais modernas e eficientes, sem perder de vista sua
função eminentemente pública.
No atual período pós-moderno, a relativização do positivismo (pós-positivismo), a
conciliação e convivência harmônica entre valores, princípios e regras se traduzem em alguns dos assuntos mais relevantes do Estado Democrático de Direito. No estágio em que
se encontra o multilateralismo e pluralismo social há um conjunto de valores conflituosos,
com numerosas dependências recíprocas, de modo que a intervenção estatal, em um determinado aspecto do conjunto social, acaba por refletir em outro segmento. Isso faz com que,
em determinadas situações, os benefícios advindos da intervenção para um “determinado
interesse público” sejam irrazoáveis e desproporcionais aos problemas e desvantagens que
acarretarão para “outros interesses públicos” ou para direitos individuais.
Pelos aspectos antes ressaltados, deve se fazer uma releitura da concepção clássica da noção e primazia do interesse público, adotado como fundamento para a legitimação dos atos e
medidas no âmbito da Administração Pública. Na atualidade há, de maneira muito mais clara, necessidade de se perseguir uma verdade objetiva – e não absoluta – dando-se importância
aos indivíduos e a dignidade humana, com relevo dos direitos e garantias fundamentais.
A problemática do tema tem o seu cerne na impossibilidade de adoção de um interesse
público unívoco, e, portanto, a inviabilidade de se cogitar a existência de um “princípio” de
supremacia desse mesmo interesse público.
Vale lembrar que a doutrina majoritária, com destaque para Ronald Dworkin, sustenta que na pós-modernidade a estrutura normativa é composta por princípios e regras
jurídicas.4 Os princípios, que são mais genéricos e abstratos do que as regras, não estão subsumidos a uma situação de fato, possuindo uma dimensão de peso ou importância. Para sua
aplicação, não importa que os princípios estejam previstos no texto constitucional ou não.
Nessa linha, Karl Larenz define os princípios como sendo normas jurídicas que não
possuem uma situação fática determinada. Segundo esse doutrinador, princípios:
enquanto “idéias jurídicas materiais” são manifestações especiais da idéia de Direito, tal
como esta se apresenta no seu grau de evolução histórica, alguns deles estão expressamente
declarados na Constituição ou noutras leis; outros podem ser deduzidos da regulação legal,
da sua cadeia de sentido, por via de uma “analogia geral” ou do retorno à ratio legis; alguns
foram “descobertos” e declarados pela primeira vez pela doutrina ou pela jurisprudência, as
mais das vezes atendendo a casos determinados, não solucionáveis de outro modo, e que logo
se impuseram na “consciência jurídica geral”, graças à força de convicção a eles inerente. Decisiva permanece a sua referência de sentido à idéia de Direito.5
A teoria principiológica teve fundamental contribuição com os estudos elaborados
por Ronald Dworkin, em 1967, contra o positivismo. Para esse autor, as regras são adotadas
pelo método all or nothing, vale dizer, “dados os fatos que uma regra estipula, então ou a
regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste
caso em nada contribui para a decisão”.6 Assim, se uma regra se confronta com outra, uma
delas deve ser considerada inválida.7
De outra parte, Dworkin destaca a questão dos pesos entre princípios (dimension of
weight), de modo que na hipótese de colisão prevalece o de maior peso sem excluir o outro
totalmente:
CANOTILHO apresenta cinco critérios para distinguir
regras e princípios: “a) grau
de abstração: os princípios
são normas com um grau
de abstração relativamente
elevado; de modo diverso, as
regras possuem uma abstração relativamente reduzida;
b) grau de determinabilidade
na aplicação do caso concreto:
os princípios, por serem vagos
e indeterminados, carecem de
mediações concretizadoras,
enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta; c)
grau de fundamentalidade no
sistema das fontes de direito:
os princípios são normas de
natureza ou com um papel
fundamental no ordenamento
jurídico devido à sua posição
hierárquica no sistema das
fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância
estruturante dentro do sistema
jurídico (ex. princípio do Estado
de Direito); d) proximidade da
idéia de direito: os princípios
são ‘standards’ juridicamente
vinculantes radicados na idéia
de ‘justiça’ (DWORKIN) ou na
‘idéia de direito’ (LARENZ); as
regras podem ser norma vinculativas com um conteúdo meramente funcional; e) Natureza
normogenética: os princípios
são fundamento de regras,
isto é, são normas que estão
na base ou constituem a ratio
de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função
normogenética fundamentante”. Direito Constitucional
e Teoria da Constituição. 4.ed.
Coimbra: Almedina, 1993, pp.
166/167.
4
Metodologia na ciência do
direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1989,
p. 577.
5
6
Op. cit., p. 39.
DWORKIN, Ronald. Taking
rights seriously. Harvard University Press, 1977, p. 43. Há
tradução para o vernáculo:
Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
7
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atividades e atos administrativos
Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou
importância. Quando os princípios se entrecruzam (...), aquele que vai resolver o conflito tem
de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração
exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular seja mais
importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar
que peso ele tem ou quão importante ele é.8
E conclui: “O homem que deve decidir uma questão vê-se, portanto, diante da exigência de avaliar todos esses princípios conflitantes e antagônicos que sobre ela incidem e
chegar a um veredicto a partir desses princípios, em vez de identificar um dentre eles como
‘válido’”.9
O professor alemão Robert Alexy complementou o pensamento de Dworkin, ao sustentar que o princípio, como espécie de norma jurídica, não determina as conseqüências
normativas de forma direta, ao contrário das regras. Daí definir os princípios como “mandamentos de otimização”, aplicáveis em vários graus normativos e fáticos.10 Por suas palavras,
“princípios são proposições normativas de um tão alto nível de generalidade que podem via
de regra não ser aplicados sem o acréscimo de outras premissas normativas e, habitualmente, estão sujeitos às limitações por conta de outros princípios”.11
Nesse sentido, quando ocorre uma colisão de princípios é preciso que a Administração
Pública verifique qual deles possui maior peso. A solução somente advém da ponderação
do caso concreto.
Deste modo, como pensar em um suposto princípio da supremacia do interesse público, prevalente teórica e antecipadamente12 sobre o interesse privado, enquanto a Constituição Federal de 1988 se volta, como eixo central, à proteção do indivíduo e de sua dignidade?
Por isso a doutrina sustenta que “tende a modificar-se também o entendimento de sacrifício
de um interesse em benefício de outro, ou de primazia de um sobre outro interesse”.13
Nessa ordem de convicções, desponta de capital importância o estudo do tema, notadamente sob o enfoque da proporcionalidade como mecanismo de ponderação de interesses.
Leitura obrigatória:
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, capítulos I e III.
Caso gerador:
A participação em aula será exigida a partir da discussão do caso citado abaixo, decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (AgRg na SL nº 57/DF), na qual se observa um
profundo embate entre interesses públicos e interesses privados. O inteiro teor da decisão
encontra-se no Anexo II desta apostila. Eis uma breve apresentação da controvérsia nela
enfrentada:
O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública em face da Agência Nacional
de Telecomunicações – ANATEL, com vistas à sustação dos atos da agência reguladora que
8
Op. cit., pp.42-43.
9
Op. cit., p. 114.
“Os princípios são mandatos
de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que
podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida
devida de seu cumprimento
não apenas depende das possibilidades reais como também
das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras
opostos.” Teoria de los Derechos
Fundamentales. Tradução de
Ernesto Garzón Valdés. Madri:
Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 86. Ver, ainda,
o artigo “Colisão de direitos
fundamentais e realização de
direitos fundamentais no Estado de Direito Democrático”.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.217: I-VI,
pp. 67-79, jul./set.1999, que
sintetiza sua palestra no Brasil
no ano de 1998.
10
Teoria da Argumentação
Jurídica. Tradução de Zilda
Hutchinson Schild Silva. São
Paulo: Landy, 2001, p.248.
11
BINENBOJM, Gustavo. Uma
teoria do direito administrativo.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 105.
12
MEDAUAR, Odete. O Direito
Administrativo em Evolução.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 183.
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atividades e atos administrativos
haviam permitido o reajuste da tarifa de telefonia fixa comutada com base no IGP-DI, o
índice previsto nos contratos de concessão celebrados por ocasião do Programa Nacional de
Desestatização.
Em sua petição, o Ministério Público sustentou que a implementação do reajuste
contratualmente previsto teria por efeito o aumento em 25% da tarifa residencial, onerando
demasiadamente o orçamento da população brasileira como um todo, com grave dano ao
interesse público.
Dessa forma, o Parquet requereu a substituição do referido índice pelo INPC, que
naquele ano havia apresentado variação significativamente inferior ao IGP-DI. Na visão do
Ministério Público, os atos da ANATEL violavam o direito difuso dos usuários do serviço
público a tarifas módicas.
De outro lado, alegavam as concessionárias que a promoção do interesse público,
no caso, consistia na preservação dos contratos celebrados pela Administração Pública e
na manutenção do seu equilíbrio econômico-financeiro, meio necessário para permitir às
concessionárias conservarem a qualidade, a continuidade e as metas de universalização dos
serviços públicos concedidos. Alegavam, ainda, que caso o Poder Judiciário determinasse a
alteração no índice de recomposição inflacionária contratualmente acordado, estaria promovendo a insegurança jurídica e afugentando novos investidores, realidade que, inclusive,
feriria a Ordem Econômica constitucionalmente estabelecida.
Com base nas considerações acima tecidas, analise criticamente o conteúdo do princípio da supremacia do interesse público.
Bibliografia complementar:
ARAGÃO, Alexandre Santos de. “A ‘supremacia do interesse público’ no advento do Estado
de Direito Contemporâneo e na hermenêutica do direito público contemporâneo”. In:
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo
o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp.
1-22.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Princípios informativos e interpretativos do
direito administrativo”. In: Mutações do Direito Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
pp. 265-313.
SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida
social e histórica. Porto Alegre: Celso Antonio Fabris Ed., 1986;
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Aula 2: Princípio da legalidade e poder regulamentar
Objetivo:
Discutir o conteúdo do poder regulamentar da Administração Pública face ao princípio da legalidade estrita
Introdução:
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello14, o princípio da legalidade é capital para a
configuração do regime jurídico-administrativo, pois é aquele que qualifica o Estado de Direito e que lhe dá identidade própria. A idéia de administração pública só pode ser exercida
em conformidade com a lei, sendo, portanto, sublegal, infralegal, consistente em comandos
complementares à lei. A finalidade é que a lei possa combater a exacerbada personificação
dos governantes, sendo o antídoto natural do poder monocrático ou oligárquico, pois tem
como raiz a idéia de soberania popular, de exaltação da soberania.
Malgrado esse pensamento, parte da doutrina sustenta que estamos vivendo no período da pós-modernidade15, e, no campo do Direito, isto representa a transposição do
positivismo jurídico clássico, doutrina de pensamento que se hospedou em diversos países
– como o Brasil – filiados ao tronco jurídico romano-germânico.
Se de um lado a doutrina contemporânea16 perfilha o entendimento de que a estrutura normativa é composta por princípios e regras jurídicas, isto é, os princípios, que são
mais genéricos e abstratos do que as regras, não estão subsumidos a uma situação de fato
(possuindo uma dimensão de peso ou importância), o normativismo lógico, nos termos
sustentados pela Escola de Viena (e que teve no gênio de Hans Kelsen o seu grande luminar
- criador da chamada Teoria Pura de Direito), ainda impregna o mundo jurídico e vincula os
atos da Administração Pública no Brasil.
Vale lembrar que para o positivismo, o ser (realidade) não pode derivar do dever-ser
(o direito). Essa, em apertada síntese, representa a tese primordial dessa doutrina gerada no
seio do liberalismo econômico burguês. A dissociação entre realidade (ser) e direito (deverser) conduz à ilusão de que o direito cria a sua própria realidade, puramente normativa e
meramente ideativa, por conseguinte, infensa a valores, considerações políticas, sociológicas, econômicas etc., dissociada da realidade complexa e sempre dinâmica da vida, notadamente no campo do sistema econômico.
Esse distanciamento entre o “ser” e o “dever-ser”, contudo, não resiste a muitas necessidades cotidianas e à alta complexidade e tecnicidade da vida, e, portanto, deve ser
repensado.
Entretanto, para compor a relação entre os interesses públicos e privados o Estado
intervém sob várias formas, mas, essencialmente, adota políticas públicas para direcionar a
relação entre o âmbito social e econômico. Para o exercício desse poder-dever o Estado se
vale de normas jurídicas, conduzindo as políticas econômicas e sociais de modo a manter
(ou perseguir) o equilíbrio entre os interesses pluralistas envolvidos e que, em grande parte,
encontram-se em situação contraposta, numa permanente ambivalência.
Curso de Direito Administrativo. 14.ed. São Paulo: Malheiros, p. 83.
14
Sobre o não cumprimento
das “promessas da modernidade” e os aspectos da ambivalência na pós-modernidade,
ver: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Trad.
Marcus Penchel. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1999. A
obra original, denominada
Modernity and ambivalence, foi
publicada, em sua 3ª edição,
no ano de 1995, pela Polity
Press, Cambridge, Inglaterra.
Ver, ainda, questões sobre
ambivalência nos artigos de
BECK, Ulrich e LASH, Scott na
obra Modernização reflexiva:
política, tradição e estética na
ordem social moderna.
15
Nesse sentido, ver Ronald
Dworkin. Taking rights seriously. Harvard University Press,
1977. O assunto também é
abordado pelo Autor nas obras:
O império do direito. Tradução
de Jefferson Luiz Camargo. São
Paulo: Martins Fontes, 1999;
e Uma questão de princípio.
Tradução de Luiz Carlos Borges.
São Paulo: Martins Fontes,
2001.
16
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atividades e atos administrativos
Nessa ordem de idéias, é de notar-se que, se de um lado o poder de decisão das questões
de natureza política primária compete ao Poder Legislativo na edição de normas jurídicas,
por outro é indisputável que a lei não pode regular o direito nos detalhes que a solução dos
problemas cotidianos exige. Daí porque há necessidade de que o Poder Executivo tenha, em
muitas situações, de atuar sem uma conduta totalmente pré-determinada por uma norma,
sempre, porém, balizado por certos limites jurídicos.
Sob uma visão atual, discorre Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao tecer comentários sobre a transição da fase legalista e totalmente avessa a qualquer tipo de delegação
normativa, para inaugurar, nas sociedades pluralistas e de massa dos dias de hoje, a fase
de uma legalidade temperada, em que se admite o instituto da delegação normativa e da
deslegalização:
Este princípio de reserva legal, que se constitui numa garantia individual fundamental,
tem sido, por longa tradição, adotado nos ordenamentos constitucionais, ditando uma interpretação restritiva do princípio da separação de poderes, que assim prevaleceu durante um
longo período de amadurecimento do Direito Público, passando por duas fases: a primeira,
de absoluta inaceitação e, depois, da aceitação limitada da delegabilidade da função normativa (...) A lei, como conceito iluminista-racionalista, enquanto produto do Estado formalmente manifestado pelos órgãos legislativos constitucionais, parece ter atingido seu zênite como
instrumento regrador de condutas sociais. Com efeito, o pluralismo, ao multiplicar os centros
de poder na sociedade, tornando-a policrática, fez despontar novas fontes normativas autônomas e semi-autônomas que atuam com vantagem como sucedânea da norma legal. Por outro
lado, a omnímoda submissão da sociedade a uma excessiva padronização e detalhamento de
comportamentos por via legislativa, a pretexto de racionalizá-los e de impor critérios tidos
como superiores, acaba paradoxalmente desservindo à ordem jurídica, não só por banalizá-la,
como pelo desgaste que causa a babel provocada pelo incontrolável chorrilho legiferante a que
se dedicam legisladores federais, estaduais e municipais de milhares de casas legislativa”.17
Uma legislação minuciosa e exaustiva sobre a conduta administrativa não é garantia de
lisura ou proteção aos cidadãos. Esse equívoco foi cometido no passado recente, quando as
leis que tratavam de matéria administrativa procuravam esgotar todas as situações possíveis
sob a sua égide. A clareza das diretrizes e fundamentos da função administrativa, ao contrário, se expostas ao conhecimento e à deliberação dos cidadãos, podem funcionar como
poderoso meio de constrangimento ao abuso do aparelho administrativo para fins que não
interessam à coletividade.18
Qual seria, então, o espaço do Poder Executivo na produção de normas que ditem as
condutas necessárias para a manutenção do Estado Democrático de Direito?
Sobre a natureza do regulamento Gaston Jèze se manifestou, em obra clássica do Direito Administrativo do início do século XX, no sentido de que toda manifestação de vontade
que, no exercício de um poder legal, cria ou organiza uma situação geral, impessoal e objetiva, é um ato legislativo.19 Para esse jurista, pouco importa a qualidade do autor do ato, não
interessando tampouco suas formas e o procedimento seguido para realizá-lo. Isto porque
não há diferença de natureza jurídica entre a lei propriamente dita, isto é, a regra de direito
geral e impessoal, formulada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República, e
o regulamento simples, ou seja, a regra jurídica geral e impessoal formulada pelo presidente
da República ou qualquer outro agente público investido do poder regulamentar.
MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Direito regulatório.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003,
pp. 118 e 124.
17
BUCCI, Maria Paula Dallari.
Direito administrativo e políticas públicas. São
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Paulo: Saraiva, 2002, pp. 15-16.
18
Principios generales del
derecho administrativo. v. I.
Tradução de Julio N. San Millán
Almagro. Buenos
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Aires: Editorial Depalma, 1948, p. 33.
19
FGV DIREITO RIO
12
atividades e atos administrativos
Na França o tema não chega a ser polêmico, haja vista que, nos termos da Constituição de 1958, há espaços pré-definidos para a lei e para o regulamento. Mas, diante da
realidade pós-moderna, o tema que envolve a pluralidade de fontes normativas no contexto
jurídico-constitucional brasileiro ainda não chegou próximo do consenso.
Com o advento do pós-positivismo,20 há que se repensar o alcance do princípio da legalidade e da separação de poderes, não para aboli-los ou combatê-los, mas para adequá-los
à realidade, nem sempre acolhida sob o ângulo do formalismo excessivo, com a predominância da letra dos textos sobre a complexidade da vida cotidiana.
É nessa ordem de questões que a doutrina pátria vem apresentando teses controvertidas acerca dos limites do poder regulamentar de competência do chefe do Poder Executivo,
órgãos e entidades estatais independentes. O aspecto central do debate tem a ver com a
possibilidade ou não do chefe do Poder Executivo editar regulamentos autônomos, assim
como acerca da constitucionalidade de uma função regulamentar diversa daquela exercida
pelo chefe do Poder Executivo – e seus ministros – por titular de órgão ou entidade da Administração Pública indireta.21
Regulamento Autônomo
O regulamento autônomo é aquele que retira seu fundamento de validade diretamente
da Constituição, na ausência de lei em sentido formal que regule a matéria.
A maioria da doutrina administrativa clássica sustenta que, à luz da Constituição de
1988 e ao menos até o advento da Emenda Constitucional nº 32, não havia a possibilidade
de a Administração Pública exarar regulamentos autônomos, tendo em vista o dever de obediência ao princípio da legalidade (art. 37, caput, CRFB/88) e o fato de a redação original
do art. 84, VI, exigir que os decretos de organização da Administração fossem expedidos
“na forma da lei”.
A Emenda Constitucional nº 32/2001 veio alterar a redação do art. 84, VI, da Constituição, retirando a expressão “na forma da lei”, passando referido dispositivo, então, a ter
a seguinte redação:
BARROSO, Luís Roberto.
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o
triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista
da EMERJ, v. 9, n. 33, 2006, p.
43,ss.
20
Acerca do surgimento e
evolução dos regulamentos
administrativos, vale colher os
esclarecimentos trazidos por
Eduardo García de Enterría:
“um dos problemas capitais é,
sem dúvida, o que se planteia
com uma legislação especial
não imaginada apenas pelo
pensamento clássico, a menos
em sua importância desbordante, a legislação de formulação administrativa. Sobre uma
mínima base no constitucionalismo tradicional, em realidade
como resíduo do antigo poder
régio de ordenança que se
salva na fórmula da monarquia
constitucional baixo a etiqueta
imprecisa de ‘poder executivo’,
a Administração começará no
século XIX a ditar uma normatização de segundo grau, os
Regulamentos”. Legislación delegada. potestad reglamentaria
y control judicial. 3.ed. Madri:
Civitas, 1998, pp. 40-41.
21
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
VI – dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
b) extinção de funções ou cargos públicos quando vagos.”
Dessa forma, o chefe do Poder Executivo pode expedir decretos autônomos - isto é,
que prescindem de lei – quando a matéria regulada diga respeito à auto-organização da Administração Pública federal, desde que de suas disposições não decorra a criação de novos
cargos ou sua extinção, ou aumento de dispêndio para a Administração Pública. Trata-se,
assim, de possibilidade relativamente limitada.
Sobre a possibilidade de existirem regulamentos autônomos no direito brasileiro após
a EC nº 32/2001, Gustavo Binembojn destaca a existência de três diferentes correntes doutrinárias, nos seguintes termos:
FGV DIREITO RIO
13
atividades e atos administrativos
(I) a primeira, composta por aqueles que continuam a negar a existência dos regulamentos autônomos, no Brasil, a partir de uma compreensão rígida do princípio da legalidade,
como vinculação positiva da Administração à lei;
(II) a segunda, em sentido diametralmente oposto, entendendo que a nova modalidade
do art. 84, VI, (a), ocorrerá em âmbito de reserva de administração (na modalidade de reserva
de poder regulamentar), imune à lei em sentido formal, que simplesmente não mais poderá
dispor sobre organização e funcionamento da Administração Pública em matérias que não
importem aumento de despesa, exceto no que disser respeito à criação e extinção de órgãos,
sob pena de configuração de inconstitucionalidade formal;
(III) e a terceira, reconhecendo a existência de uma nova espécie de regulamento ou do
velho regulamento autônomo, agora apenas admitido formalmente pelo novel texto constitucional, mas mantendo incólume o princípio da preferência da lei; ou seja: a matéria relativa à
organização e funcionamento da Administração Pública pode até ser tratada por regulamento,
mas no caso de superveniência de lei de iniciativa do Presidente da República, esta prevalecerá
no que dispuser em sentido diverso. De igual modo, será cabível a expedição de regulamentos
autônomos em espaços normativos não sujeitos constitucionalmente a reserva de lei (formal
ou material), sempre que à míngua do ato legislativo, a Administração Pública estiver compelida a agir para cumprimento de seus deveres constitucionais. Também neste caso, por evidente,
assegura-se a preeminência da lei superveniente sobre os regulamentos até então editados.22
Para além da discussão sobre a admissibilidade de regulamentos autônomos no ordenamento jurídico pátrio, tem-se observado a importância crescente dos chamados “regulamentos
autorizados”, isto é, aqueles que dispõem sobre matérias que, embora não cheguem a ser disciplinadas detalhadamente em lei formal, mas nela encontram seu fundamento de validade.
Assim, por exemplo, as leis que instituem as agências reguladoras comumente atribuem a essas entidades competência para editar atos normativos abstratos em matérias que
exijam conhecimentos técnicos específicos. Veja-se, a título de ilustração, o art. 22 da Lei nº
10.233/2001, que instituiu a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ:
Art. 27. Cabe à ANTAQ, em sua esfera de atuação: ...
IV - Elaborar e editar normas e regulamentos relativos à exploração de vias e terminais,
garantindo isonomia no seu acesso e uso, bem como à prestação de serviços de transporte,
mantendo os itinerários outorgados e fomentando a competição;”
Note-se, entretanto, que esses atos normativos secundários (instruções normativas ou
resoluções da diretoria colegiada) não chegam a ser considerados regulamentos autônomos,
pois possuem previsão na lei de criação da agência reguladora, além de deverem obediência
aos princípios estatuídos em referido diploma legal. Assim, no exemplo acima apresentado,
a competência normativa para regulamentar a exploração de vias e terminais advém do art.
27 da Lei nº 10.233/2001, lei em sentido estrito.23
BINENBOJM, Gustavo. Uma
teoria do direito administrativo.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
pp. 168 e 169.
22
Função Regulamentar
Até o momento estivemos analisando a posição jurídica dos regulamentos à luz do
princípio constitucional da legalidade. Passa-se, agora, a discutir brevemente quem são os
titulares da competência para a edição de regulamentos.
A abrangência da competência normativa das agências reguladoras será tema de Direito
Administrativo II.
23
FGV DIREITO RIO
14
atividades e atos administrativos
Caio Tácito sustenta que se o “poder regulamentar” é um princípio e dominantemente
exercido pelo presidente da República, em razão de sua competência constitucional, nada
impede – antes em determinadas circunstâncias aconselha – possa a lei habilitar outras
autoridades à prática do poder normativo.24 A norma de competência do presidente da República é enumerativa, não sendo válido o raciocínio a contrario sensu, excludente de outra
fórmula de ação normativa que a discricionariedade do Legislativo entenda necessária ou
conveniente.25
Neste contexto, Carlos Roberto Siqueira Castro anota que uma das mais acentuadas
peculiaridades do Estado contemporâneo é a denominada descentralização normativa.26 O
constitucionalista leciona que não se ignora que o vocábulo “lei” nem sempre é utilizado em
sua acepção formal, isto é, como ato legislativo típico produzido no âmbito das Casas Legislativas investidas da representação popular. Há outras espécies de atos normativos, sejam
equiparados à lei formal de acordo como o processo legislativo previsto nas Constituições,
sejam a ela inferiores, mas praticados com base nela, nas quais se confere aptidão para regrar
o exercício da liberdade individual e coletiva.
Trata-se dos atos-regras gerados pelos inúmeros agentes da Administração Pública, que
proliferam a toda hora e que expressam um “poder regulamentar” difuso da burocracia
estatal.27
Nesse sentido, Marçal Justen Filho, ao tecer uma série de considerações acerca do
poder regulamentar, aduz que a competência para editar regulamentos não é privativa do
presidente da República, ou seja, a redação do art. 84, IV, da CF/88 não significa uma reserva constitucional privativa para o presidente da República editar normas gerais, de natureza
regulamentar, visando à perfeita execução das leis. Assim, para o autor, essa competência se
distribui entre as diversas entidades integrantes da Administração Pública.28
Na mesma senda, Alexandre Santos de Aragão adverte que muitas vezes a lei confere
“poder regulamentar” a titular de órgão ou a entidade da Administração Pública distinta
do chefe do Poder Executivo. O autor se vale da expressão cunhada por San Tiago Dantas,
“descentralização do poder normativo do Executivo” para órgãos ou entidades tecnicamente mais aparelhados. Por essa descentralização, o poder de baixar regulamentos, isto é, de
estatuir normas jurídicas inferiores e subordinadas à lei, mas que nem por isso deixam de
reger coercitivamente as relações sociais, é uma atribuição constitucional do presidente da
República, mas a própria lei pode conferi-la, em assuntos determinados, a um órgão da
Administração Pública ou a uma dessas entidades autônomas que são as autarquias.29
De forma semelhante, Egon Bockmann Moreira também admite essa tese ao dizer
que o presidente da República e os ministros de Estado são titulares de competência constitucional para expedir decretos, regulamentos e instruções para a fiel execução das leis,
mas tal previsão não é exaustiva e supressora de outros títulos competenciais, detidos pelas
demais entidades da Administração Pública. Nesse sentido, sustenta que cada qual detém,
dentro de seu âmbito de atuação e na medida da competência a si conferida, possibilidade
de emanar regulamentos.30
Sérgio Varella Bruna com visão intermediária, ao tratar do tema do regulamento no
“poder hierárquico” inerente à organização administrativa, leciona:
não é só chefe do Executivo que é investido na competência para editar regulamentos
de execução. Todo agente administrativo que, dotado de poder hierárquico, tiver a atribuição
de dar cumprimento à lei, pode expedir comandos normativos gerais a seus subordinados
TÁCITO, Caio. “Comissão de
valores mobiliários: poder
regulamentar”. In: Temas de
direito público, v.2. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, pp. 1079
e 1088.
24
25
Op. cit..
O congresso nacional e as
delegações legislativas. Rio de
Janeiro: Forense, 1986, p. 105.
26
27
Op. cit;, pp. 105-121.
O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São
Paulo: Dialética, 2002, p. 519.
28
Agências reguladoras e a
evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro:
Forense, 2002, p. 381.
29
Agências administrativas,
poder regulamentar e o sistema financeiro nacional. Revista Diálogo Jurídico. Salvador,
CAJ – Centro de Atualização
Jurídica, v.1, n. 7. out/2001.
Disponível em http://www.
direitopublico.com.br. Acesso
em 25 de março de 2003.
30
FGV DIREITO RIO
15
atividades e atos administrativos
para, nos limites dessa lei, estabelecer regras para disciplinar a execução do comando legal.
Desse modo, a competência atribuída, em caráter supremo, ao Presidente da República, pelo
art. 84, IV, da CF, não exclui a competência das demais autoridades dotadas de poder hierárquico para expedir normas gerais aos seus subordinados, no intuito de viabilizar o cumprimento da lei.31
Outra corrente doutrinária defende alguns pontos contrários à função regulamentar
por órgãos ou pelas entidades estatais descentralizadas. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por
exemplo, sustenta que, da mesma maneira que os Ministérios, outros órgãos administrativos de nível inferior também têm reconhecidamente o “poder” de praticar atos normativos,
como portarias, resoluções, circulares, instruções, porém nenhum deles podendo ter caráter
regulamentar, à vista da competência indelegável do chefe do Executivo para editá-los.32
Destaca a autora que inúmeros órgãos administrativos e entidades da administração indireta editam atos normativos por meio especialmente de resoluções e portarias, em grande
parte dos casos por expressa atribuição legal. Para a administrativista, esses órgãos baixam
normas inovadoras na ordem jurídica, em uma quantidade assustadora, absolutamente
incom­preensível e contraditória com a política governamental de reforma do Estado, em
que se insere ou deveria inserir-se a desregulação, se se pretende prestigiar a liberdade do
cidadão.33
Da mesma forma, Clèmerson Merlin Clève entende que “o regulamento não se confunde com os demais atos normativos da Administração”. Para o autor, os regulamentos residem numa posição hierárquica superior aos demais atos normativos do Executivo, sendo,
portanto, unicamente editados pelo presidente da República.34
Malgrado a polêmica sobre o tema, Manoel Gonçalves Ferreira Filho adverte que é
difundida e tolerada a prática de que órgãos autárquicos regulamentem as leis, “lembrando
que todos têm presentes as circulares e as portarias de que certos órgãos da Administração
Pública usam e abusam, fazendo ‘leis’ que não raro mais interferem na vida do cidadão que
as leis propriamente ditas”.35
Daí a polêmica sobre se aos órgãos e entidades descentralizadas da Administração Pública pode ser conferida uma função normativa e, em caso positivo, qual a sua abrangência.
Leitura obrigatória:
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 17a ed. São Paulo: Malheiros, 2004 capítulo VI (“O regulamento no direito brasileiro”).
Caso gerador:
A Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, visando ao bem estar dos
usuários dos diversos serviços de transportes públicos concedidos a empresas privadas (rodoviário, metroviário, ferroviário e aquaviário), determinou que todas as concessionárias
teriam que construir, em suas instalações, banheiros públicos com capacidade mínima para
6 usuários, com, no mínimo, 20 metros quadrados, em um prazo máximo de 180 dias, sob
pena de multa diária por descumprimento da norma.
Agências reguladoras: poder
normativo, consulta pública,
revisão judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 86.
31
Parcerias na administração
pública: concessão, permissão,
franquia, terceirização e outras
formas. 5.ed. São Paulo: Atlas,
2005, p. 143.
32
33
Op. cit.
Atividade legislativa do poder executivo. 2.ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p.
285. Em igual sentido, Vicente
Ráo, ao assinalar a tendência
de se conferir às autarquias a
faculdade de editar normas
obrigatórias de direito, impor
e arrecadar impostos e exercer
função de jurisdição judicial,
sustenta ser contrário à “suposta função normativa” dessas
entidades autárquicas. Por seu
pensamento, se a delegação,
ao Executivo, que é um dos
poderes políticos, de qualquer
faculdade pertencente ao
legislativo ou ao Judiciário,
merece a condenação dos
juristas, com maior energia se
há de condenar semelhante
delegação a entidades autônomas, embora de caráter administrativo. E complementa
seu pensamento afirmando
que nas organizações políticas,
onde a delegação de poderes
é vedada por textos constitucionais, onde as faculdades
do Legislativo, com caráter de
exclusividade, são enumeradas, expressamente, pelas disposições políticas estatutárias,
não se compreendem, nem se
justificam, delegações dessa
espécie. O direito e a vida dos
direitos. 5.ed. anotada e atualizada por Ovídio Rocha Barros
Sandoval. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1999, p. 319.
34
FERREIRA FILHO, Manoel
Gonçalves. “Reforma do estado: o papel das agências
reguladoras e fiscalizadoras”.
In: MORAES, Alexandre de.
Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002, p. 142.
35
FGV DIREITO RIO
16
atividades e atos administrativos
Como se vê, a referida lei entrou em muitos detalhes, a exemplo do número de sanitários e dimensões que deveriam ser construídos em cada terminal, estação ou porto. Algumas
concessionárias, notadamente, a que opera o sistema metroviário, constatou, por estudos
técnicos, que não haveria como construir o número de sanitários nas estações com muita
profundidade. A questão é altamente complexa, e demanda uma alta tecnologia para se
tentar adaptar os equipamentos.
Considerando (i) a tecnicamente das especificidades de cada caso; (ii) as dificuldades
que o Poder Legislativo tem para apurar quais serviços comportam a construção de banheiros públicos; (iii) o impacto desses custos para as tarifas, (iv) o prazo em deveriam ser construídos e sua dimensão, reflita sobre a convivência do princípio da legalidade estrita com os
demais princípios constitucionais que regem a atuação da Administração Pública. Especialmente, busque identificar os vários interesses públicos envolvidos no caso, à luz da discussão
anteriormente travada sobre o vetusto princípio da supremacia do interesse público.
Leitura complementar:
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, capítulo X (controle de legalidade).
FGV DIREITO RIO
17
atividades e atos administrativos
Aula 3: Princípio da legalidade, vinculação e discricionariedade
administrativa
Objetivo:
Trazer argumentos aos alunos acerca da vertente discricionária do poder regulamentar
da Administração Pública, de modo que os mesmos possam enfrentar criticamente o tema.
Introdução:
A atuação vinculada da Administração Pública ao princípio da legalidade se apresenta
quando a norma a ser cumprida determina, com exatidão, a conduta da Administração
Pública face a certa situação fática. Isto quer dizer que a norma indica o único e possível
comportamento que o administrador público deverá adotar diante do caso concreto, não
permitindo ao mesmo qualquer espaço para um julgamento subjetivo. No ato vinculado o
fim é o legal, de objetividade incondicional. O comportamento da Administração, além de
ser exigido, é exatamente determinado, haja vista que “o traço original do poder vinculado
é o automatismo, pois a autoridade administrativa não necessita procurar qual a melhor
solução, em determinada circunstância, pois só há uma solução, aquela previamente determinada pela lei”.36
Por outro lado, na escolha discricionária o Administrador tem uma dose de liberdade,
sob os critérios de conveniência e oportunidade (mérito do ato), da melhor solução para
a efetivação do fim público. Em virtude das exigências de clara identificação das funções
que a norma primária atribui ao Poder Executivo, a lei acaba por remeter a Administração
à valoração subjetiva quanto às condições não identificadas, notadamente quanto à integração da norma diante do caso concreto. Nas palavras de García de Enterría e Tomás-Ramon
Fernández:
Definindo a Lei, porque não o pode deixar de fazer, em virtude das exigências de explicitude e especificidade da potestade que atribui à Administração, algumas das condições de
exercício dessa potestade remete à estimação subjetiva da Administração o resto das referidas
condições, bem como quanto à integração última do suposto de fato (...) bem como quanto
ao conteúdo concreto, dentro dos limites legais, da decisão aplicável (...), bem como de ambos os elementos.37
MEDAUAR, Odete. Poder
discricionário da administração. Revista dos Tribunais, São
Paulo, v. 610, p.38-45, ago.
1996, p.42.
36
O exercício da discricionariedade pela Administração Pública comporta um elemento
subjetivo para a completa integração do comando legal ao caso particular. Nessa hipótese, a
integração da norma não será considerada uma faculdade ilegal, proveniente de um suposto
e hipotético poder originário da Administração. Ao contrário, trata-se de uma atribuição
estabelecida pela própria lei exatamente com esse caráter, de modo que a discricionariedade não se configura uma liberdade da Administração Pública em face da norma, mas, em
sentido oposto, apresenta-se como um caso típico de submissão legal. Com efeito, “o poder
discricionário aparece, assim, como necessário elemento na gradual formação do direito, ou
das normas jurídicas; é ele que as torna sucessivamente mais concretas”.38
Curso de derecho administrativo. Tomo I. 10.ed. Madri:
Civitas, 2001, p. 453.
37
QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A
teoria do “desvio de poder” em
direito administrativo. Revista
de Direito Administrativo, Rio
de Janeiro, n. 6, p.41-78, out.
1946, p. 44.
38
FGV DIREITO RIO
18
atividades e atos administrativos
O conceito doutrinário de discricionariedade está longe de ser uníssono. Por isso, Miguel Sánchez Morón, ao ressaltar a discricionariedade administrativa como um conceito clássico da Teoria do Direito Público, assevera que é difícil a esta altura dizer algo novo acerca
do tema. Considera um problema sempre recorrente, sobre o qual a polêmica jamais parece
se esgotar.39 A partir da segunda metade do século XX a função discricionária detida pelo
Poder Executivo vem sendo extremamente debatida em sede doutrinária, entre nós e alhures,
haja vista as profundas mudanças ocorridas no sistema capitalista pós-moderno analisado em
nossa primeira aula, notadamente nas duas últimas décadas do século passado.
Um começo para o debate sobre o efeito polissêmico de “discricionariedade” está na
obra de Hans Kelsen. Em sua Teoria Pura do Direito, observou, acerca da relativa indeterminação do ato de aplicação do Direito, que a relação entre um escalão inferior da ordem
jurídica e um superior é uma relação de determinação ou vinculação, ou seja, a norma do
escalão superior regula o ato por meio do qual é produzida a norma do escalão inferior.40
Entretanto, para o Autor, esta determinação nunca é completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato por meio do qual
é ampliada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação,
de tal forma que a norma de escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção
normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por
este ato. Sustenta que mesmo uma ordem, o mais pormenorizada possível, tem de deixar
àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer.41
É certo que o pensamento desse mestre da Escola de Viena sofreu inúmeras críticas,
haja vista que na teoria de formação do direito por degraus, o mesmo identifica discricionariedade e interpretação, quando é sabido que na interpretação só deve haver uma única
solução correta inserida no processo cognitivo, enquanto que na discricionariedade há o
dever de escolha entre as opções decorrentes da norma.42
Ademais disso, entre as atividades vinculadas e discricionárias da Administração Pública deve haver uma certa dosagem, equilíbrio, conforme o pensamento de Jean Rivero.43 Para o publicista francês, a atividade da Administração não pode conformar-se com
uma generalização da competência vinculada. É indispensável adaptar-se constantemente
às circunstâncias particulares e mutáveis que a norma não pôde prever. Inversamente, uma
Administração amplamente discricionária não ofereceria aos administrados qualquer segurança. Ela seria voltada ao arbítrio.44
Diante dessas considerações, como se deve compreender a discricionariedade administrativa? Tradicionalmente, define-se a discricionariedade como sendo uma margem de
liberdade da Administração que surge quando a sua atividade não está plenamente definida
em lei.45
A discricionariedade não surge da coincidência de um espaço de liberdade da Administração Pública com relação ao legislador e ao juiz. Ao contrário, a discricionariedade
decorre da eleição feita Poder Legislativo de permitir ao Poder Executivo uma contribuição
no processo de determinação do interesse geral, a partir da ponderação de interesses particulares e coletivos.46
A esse respeito, Eva Desdentado Daroca47, uma das maiores estudiosas contemporâneas sobre o tema da teoria da discricionariedade, ao ressaltar a ausência de consenso doutrinário em torno da utilização da discricionariedade administrativa, define a discricionariedade
como sendo a realização de eleições de diferentes alternativas, quando do exercício de poderes conferidos pela norma aberta. Por suas palavras, a discricionariedade administrativa:
Discrecionalidad administrativa y control judicial. Madri:
Tecnos, 1994, p. 9. Nas lições
de Karl Engisch, “o conceito de
discricionariedade (poder discricionário) é um dos conceitos
mais plurissignificativos e mais
difíceis da teoria do Direito”. Introdução ao pensamento jurídico. 8.ed. Tradução de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2001,
p. 214. Nesse mesmo sentido,
César David Ciriano Vela aduz
que com independência dos
distintos conceitos e técnicas
de controle utilizados, em todos os países se considera que
o estudo da discricionariedade
é uma das questões mais importantes do Direito de nossos
dias e, em especial, do Direito
administrativo. Por isso, é
absolutamente necessário um
aprofundamento na sua análise. Administración económica
y discrecionalidad (un análisis
normativo e jurisprudencial. Valladolid: Lex Nova, 2000, p. 65.
Em idêntico posicionamento,
Francisco López Menudo sustenta que a discricionariedade
é um tema clássico, ou quiçá
possa qualificá-lo como neoclássico. El control judicial de
la administración en la CE. In:
Discrecionalidad administrativa
y control judicial. Eduardo
�������������
Hinojosa Martínez; Nicolás Gonzáles-Deleito Domínguez (Orgs.)
Madri: Civitas, 1996, p. 39.
39
Teoria pura do direito. 6.ed.
Tradução de João Baptista
Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 1998, p. 388.
40
41
Idem.
Sobre a crítica ao pensamento de Kelsen, a publicista Maria
Sylvia Zanella Di Pietro aponta,
ainda, a dificuldade, se não
a impossibilidade, de se distinguir a atividade vinculada
da atividade discricionária da
Administração Pública, “já que,
para ele, cada ato implica um
acréscimo em relação à norma
de grau superior, quando, na
realidade, em se tratando de
atividade vinculada, a Administração tem que se limitar a
constatar o atendimento dos
requisitos legais, sem possibilidade de optar por solução
diversa daquela prevista em
lei”. Discricionariedade administrativa na constituição de
1988. 2.ed. São Paulo: Atlas,
2001, p. 72.
42
FGV DIREITO RIO
19
atividades e atos administrativos
Consiste na realização de escolhas entre diferentes alternativas com a finalidade de exercer uma potestade conferida pelo ordenamento jurídico e que este, no entanto, não regulou
plenamente. A discricionariedade é, pois, um modus operandi que se caracteriza pelos seguintes traços: 1) supõe a adoção de decisões dentro de uma margem de livre apreciação deixado
pelo ordenamento jurídico; 2) implica um ato de escolha sobre a base de argumentos valorativos acerca dos quais pessoas razoáveis podem diferir; e 3) a escolha se adota sempre conforme
critérios valorativos extrajurídicos.
José Cretella Júnior, por sua vez, definindo o ato administrativo discricionário como
conseqüência de um “poder discricionário” da Administração, aduz que a discricionariedade é a manifestação concreta e unilateral da vontade da Administração. Fundamentada em
regra objetiva de direito que a legitima e lhe assinala o fim, concretiza-se livremente, desvinculada de qualquer lei que lhe dite previamente a oportunidade e conveniência da conduta,
sendo, pois, neste campo, insuscetível de revisão judiciária.48
No mesmo diapasão, Diogo de Figueiredo Moreira Neto define a discricionariedade
como sendo a qualidade encarregada pela lei à Administração Pública para determinar, de
forma abstrata ou concretamente, o resíduo de legitimidade necessário para integrar a definição de elementos essenciais à sua execução, diretamente referido a um interesse público
específico.49
Em vista das conceituações trazidas à colação, pode-se concluir que a norma primária
não aponta todos os caminhos a serem trilhados pela Administração diante do caso concreto, de modo que há diversos questionamentos quanto a poder ou não seus atos serem revisados totalmente pelo Poder Judiciário em vista do princípio da separação de poderes.50
Malgrado respeitáveis posicionamentos doutrinários acerca da conceituação da discricionariedade, referindo-se, unicamente, ao resíduo deixado pela lei para ser integrado
pelo Administrador diante do caso concreto (abertura da norma), isto é, somente estando
presente quando o legislador assim determinar, é certo que uma corrente de pensamento
sustenta a possibilidade da discricionariedade administrativa quando estiverem presentes na
norma os conceitos jurídicos indeterminados, objeto da nossa próxima aula.
Diante de todas essas questões, fica patente que o tema da discricionariedade administrativa está no centro do debate acerca dos limites da atuação da Administração Pública e
seu controle pelo Poder Judiciário. Nesse contexto, reflita sobre os limites de atuação administrativa, para enfrentar o caso abaixo apresentado.
Leitura obrigatória:
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 17a ed. São Paulo: Malheiros, 2004, capítulo VI (“O regulamento no direito brasileiro”).
Caso gerador:
Ticio ajuizou ação que questionava a ilegalidade e inconstitucionalidade de multa de
trânsito recebida por excesso de velocidade, em razão de haver trafegado acima da velocidade permitida pela Fundação Departamento de Estradas de Rodagem para determinado
RIVERO, Jean. Direito administrativo. Tradução de Rogério
Ehrhardt Soares. Coimbra: Almedina, 1981, p. 94.
43
44
Op. cit.
Nesse sentido, BULLINGER,
Martin. La discrecionalidad
de la administración pública.
Madri: La Ley, VII, 1986. Ver
MAGIDE HERRERO, Mariano.
Límites constitucionales de las
administraciones independientes. Madri: INAP, 2000, p. 247.
45
Nessa linha de pensamento,
ver MAGIDE HERRERO, Mariano. Límites constitucionales de
las administraciones independientes. Madri: INAP, 2000,
p. 252. Em sentido próximo,
Afonso Rodrigues Queiró sustenta que a discricionariedade
representa uma faculdade
de escolher uma entre várias
significações contidas num
conceito normativo prático,
relativos às condições de fato
do agir administrativo, escolha
feita sempre dentro dos limites
da lei. Op. cit., pp. 77-78.
46
Los problemas del control
judicial de la discrecionalidad
técnica. Madri: Ed. Civitas,
1997, p. 22.
47
Controle jurisdicional do ato
administrativo. 4.ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2001, p. 150.
Pensa em igual sentido o saudoso Hely Lopes Meirelles. Para
o Autor, discricionariedade é o
que o Direito concede à Administração de modo explícito ou
implícito, para a prática de atos
administrativos com liberdade
na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito
administrativo brasileiro. 18 ed.
São Paulo: Malheiros, 1993,
p. 102.
48
FGV DIREITO RIO
20
atividades e atos administrativos
trecho de uma estrada, fixada em 40 km/h. O autor asseverou, em sua demanda, que o
referido limite apresentava-se excessivamente baixo, violando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como as diretrizes dispostas no art. 61 do Código Brasileiro
de Trânsito, que fixa, como regra geral, o limite máximo de velocidade nas estradas em 60
km/h, conforme se observa da transcrição abaixo:
Art. 61. A velocidade máxima permitida para a via será indicada por meio de sinalização, obedecidas suas características técnicas e as condições do trânsito.
§1º. Onde não existir sinalização regulamentadora, a velocidade máxima será de:
I – nas vias urbanas:
a) oitenta quilômetros por hora, nas vias de trânsito rápido;
(...)
II – nas vias rurais:
1) nas rodovias, cento e dez quilômetros para automóveis, caminhonetas e motocicletas;51
2) Noventa quilômetros por hora, para ônibus e microônibus;
3) Oitenta quilômetros por hora, para demais veículos;
b) nas estradas, sessenta quilômetros por hora.
§2º. O órgão ou entidade de trânsito ou rodoviário local com circunscrição sobre a
via poderá regulamentar por meio de sinalização velocidades superiores ou inferiores àquelas
estabelecidas no parágrafo anterior.
O juízo de primeira instância julgou procedente a demanda, em um arrazoado no qual
manifestou sua inconformidade quanto à “indústria de multas” que estaria sendo criada arbitrariamente pelo ânimo arrecadatório dos Estados, com a fixação de limites de velocidade
extremamente baixos para tráfego em estradas e rodovias, prática que ofenderia o princípio
da razoabilidade.
Corroborada a decisão em segunda instância, a Fundação recorreu ao Superior Tribunal Justiça, sustentando a legalidade da velocidade fixada para a referida estrada, pois havia
sinalização indicativa no local, em obediência, portanto, à exigência do art. 61, §2º, do Código Brasileiro de Trânsito. Além disso, argumentou que a fixação do limite de velocidade
em 40 km/h era fruto do exercício legítimo de sua competência discricionária, sobre a qual
não teria o Poder Judiciário competência revisional.
Fundamentado em que você estudou sobre o conteúdo e os limites da discricionariedade
administrativa, procure analisar os valores juridicamente protegidos envolvidos na demanda.
Como você acredita que deveria ter sido decidida a demanda pelo STJ? Caso o Poder Judiciário decidisse que o limite de velocidade é desproporcional, poderia o juiz fixar novo limite?
Leitura complementar:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 42 a 50.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000 (título III, cap. III)
Legitimidade e discricionariedade: novas reflexões sobre
os limites e controle da discricionariedade. Rio de Janeiro:
Forense, 1989, p.22. Para a
administrativista Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, o conceito de
discricionariedade administrativa pode ser resumido na faculdade que a lei confere à Administração para avaliar o caso
concreto, segundo critérios de
oportunidade e conveniência,
e escolher uma dentre duas
ou mais soluções, sendo todas
elas válidas perante o direito.
Discricionariedade administrativa na constituição de 1988.
2.ed. São Paulo: Atlas, 2001,
p. 67. Em idêntico sentido,
Germana de Oliveira Moraes
aduz que a discricionariedade
resulta da abertura normativa,
em função da qual a lei confere
ao administrador uma margem
de liberdade para constituir
o Direito no caso concreto, ou
seja, para complementar a
previsão aberta da norma e
configurar os efeitos parcialmente previstos, mediante
a ponderação valorativa de
interesses, com vista à realização do interesse público
geral. Controle jurisdicional
da administração pública. São
Paulo: Dialética, 2002, p. 39.
Eis, por seu turno, o trecho do
magistério de Weida Zancaner,
para quem a discricionariedade pode ocorrer quando a lei
legitima o juízo subjetivo do
administrador, para que complete o quadro regulativo necessário ao exercício do poder,
ou para que exercite o dever de
integrar in concreto o conteúdo
rarefeito insculpido na regra de
direito. Da convalidação e da
invalidação dos atos administrativos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1990, p. 49.
49
Sobre esse aspecto, há quem
já sustente que o advento do
neoconstitucionalismo, ou melhor, com a constitucionalização do direito administrativo,
não se deva admitir o instituto
da discricionariedade administrativa, e sim uma juridicidade
administrativa. BINENBOJM,
Gustavo. Uma teoria do direito
administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalismo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006.
50
As motocicletas foram incluídas pela lei 10.830/2003.
51
FGV DIREITO RIO
21
atividades e atos administrativos
Aula 4: Princípio da legalidade e a densificação de conceitos
jurídicos indeterminados pela Administração Pública
Objetivo:
Examinar os aspectos da função regulamentar e os limites ao poder discricionário da
Administração Pública face a leis que apresentam conceitos jurídicos indeterminados.
Introdução:
Os conceitos utilizados nas normas jurídicas podem ser determinados ou indeterminados.
Os conceitos determinados delimitam o âmbito da realidade ao qual a norma se refere,
de forma clara e específica, como, por exemplo, o limite de velocidade de um automóvel em
uma determinada estrada, a idade para se atingir a maioridade etc.
A aplicação desses conceitos, por serem precisamente determinados, não suscita aparente dúvida, devendo, portanto, ser empregada no caso concreto.
De outro lado, pela técnica de utilização de conceitos jurídicos indeterminados no
processo legiferante, as regras para sua adoção não aparecem bem delineadas, não obstante
indiquem a sua aplicação em determinados casos concretos. Nessas circunstâncias, a norma
não determina o exato e preciso sentido desses conceitos, haja vista que estes não admitem
uma rigorosa e abstrata quantificação ou limitação, somente devendo ser identificados, caso
a caso, diante do fato real.
Grosso modo, esses conceitos previstos na norma expressam e qualificam necessidades
públicas, a exemplo das expressões “utilidade pública”, “urgência”, “relevância”, “risco iminente à saúde”, “serviço adequado”, “modicidade tarifária”, “eficiência” etc. A questão a se
indagar é a seguinte: há correlação entre a discricionariedade e os denominados conceitos
jurídicos indeterminados?
Conforma-se a tese de que os conceitos jurídicos indeterminados devem ser integrados
pelo método interpretativo, e, assim, admitir apenas uma única solução justa (afastada a
oportunidade e conveniência do ato), os resultados decorrentes desses mesmos atos devem
ser controlados com maior intensidade pelo Poder Judiciário. Por outro lado, considera-se
que os conceitos jurídicos indeterminados se inserem no contexto da discricionariedade
administrativa, visto que o mérito desses atos administrativos, salvo em alguns casos52, não
deve ser revisto positivamente pelo Poder Judiciário.
Vale notar, que esse tema tem sido objeto de intenso questionamento no âmbito do direito administrativo, cabendo aos estudiosos alemães o mérito pelas profundas investigações
contemporâneas sobre a questão. Sobre o tema, Martin Bullinger denota que:
A experiência durante a ditadura conduziu de novo na Alemanha – igualmente como
na Espanha, por certo – a uma aberta influência das idéias de democracia e de Estado de
Direito na teoria e na dogmática do Direito Administrativo. Assim, tanto na Alemanha como
na Espanha se postulou o pleno controle judicial da aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, a fim de proteger o cidadão frente a uma Administração que havia evidenciado sua
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Conforme a construção teórica da “redução da discricionariedade a zero”, que ocorre
quando as circunstâncias do
caso concreto eliminam a
possibilidade de escolha entre
diversas opções, de modo que
subsista apenas uma solução
juridicamente possível. Sobre
essa teoria, ver capítulo específico sobre o tema na obra de
Germana de Oliveira Moraes.
Controle jurisdicional da administração pública. São Paulo:
Dialética, 2002.
52
FGV DIREITO RIO
22
atividades e atos administrativos
inclinação a um exercício unilateral e arbitrário do poder. Agora, ao contrário, uma vez que
a democracia e o Estado de Direito tenham sido reconstruídos, os jovens juristas – ao menos
na Alemanha – tendem novamente a preconizar uma ordem jus científica e dogmática pura,
na qual se evite, na medida do possível, o recurso direto à história e ao contexto político. Não
se há de estranhar, por conseguinte, que a teoria pura do Direito, que Hans Kelsen conduziu
a seu apego na década de vinte, encontre agora, em sua substância, uma nova acolhida na
Alemanha.53
Almiro do Couto e Silva sustenta que a discussão entre discricionariedade e conceitos
jurídicos indeterminados remonta ao confronto estabelecido no direito austríaco entre Bernazik e Tezner:
O primeiro sustentava a existência de uma discricionariedade técnica, pretendendo
com isso referir-se à extrema complexidade com que freqüentemente se apresentam os problemas administrativos. Estes suscitarão várias opiniões ou propostas de solução, a respeito
das quais, porém – muito embora no plano estritamente lógico só possa existir uma única
solução correta -, será freqüentemente difícil ou mesmo impossível afirmar qual a mais acertada. (...) Foi Tezner, entretanto, quem primeiro, na verdade, estabeleceu o discrimen entre
poder discricionário e conceitos jurídicos indeterminados. A distinção foi por ele realizada
ao criticar a Corte Administrativa da Áustria, que considerava como poder discricionário
da Administração Pública e insuscetíveis de revisão judicial casos de aplicação de conceitos
jurídicos indeterminados, como ‘interesse público’, ‘paz e ordem pública’, ‘conveniência’, ‘necessidade’ etc.54
A descrição mais consistente da estrutura lógico-semântica dos conceitos jurídicos
vem de uma obra doutrinária de Walter Jellinek (Gesetz, Gesetzesanwendun und Zweckmässigkeitserwägungen), de 1913, segundo a qual o conceito normativo indeterminado constitui
a antítese do conceito jurídico determinado. Para esse autor, o conceito jurídico determinado, assim como o conceito indeterminado também tem limites, pois, do contrário, não seria
um conceito. Porém, o primeiro tem um só limite, que permite realizar um juízo seguro
(certo) sobre a pertinência ou não do mesmo a um determinado fenômeno, ao passo que o
segundo tem dois limites.55
Nessa ordem de convicções, o conceito jurídico indeterminado também permite realizar juízos seguros (certos), mas entre o juízo positivo e o negativo existe um terreno limítrofe de mera possibilidade. Assim, o aplicador de todo conceito indeterminado sabe que
existem fenômenos que indubitavelmente estão compreendidos dentro do conceito e outros
que seguramente não estão compreendidos no mesmo. Deste modo, surgem as esferas de
certeza positiva e negativa e a esfera da dúvida possível.56
Por considerar que a clarificação dos conceitos jurídicos indeterminados se dá na aplicação em casos concretos, a doutrina alemã criou uma teoria de que só existe uma única
solução justa em cada caso, determinável segundo um processo cognitivo.57
No final da primeira década seguinte ao segundo pós-guerra, a jurisprudência contencioso-administrativa da Alemanha foi se consolidando no sentido de que o Estado de
Direito, proclamado com a promulgação da Lei Fundamental de Bonn, de 1949, excluía a
discricionariedade da Administração Pública na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados.
Prefácio
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à obra de BACIGALUPO, Mariano. La discrecionalidad administrativa (estructura
normativa, control judicial y
límites constitucionales de su
atribució. Madri: Marcial Pons,
1997, p. 10.
53
“Poder discricionário no direito administrativo brasileiro”.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 179, p. 5192, jan./jun. 1980, p. 57-58.
54
Cf. BACIGALUPO, op. cit., pp.
194. Essa teoria é contestada
por Afonso Rodrigues Queiró,
dizendo-a totalmente errada
sob o seguinte argumento:
“mesmo que sobre muitos conceitos não teoréticos existisse
uma inequívoca concepção por
parte da comunidade (o que é
contestabilíssimo), ela não podia ser senão uma norma, um
conjunto de conceito, que, por
sua vez, teriam de ser submetidos à interpretação dum órgão,
se sempre poderá ficar como
resíduo um conjunto de conceitos práticos imprecisáveis”.
QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A
teoria do “desvio de poder” em
direito administrativo. Revista
de Direito Administrativo, Rio
de Janeiro, n. 6, p.41-78, out.
1946, , p. 63.
55
Cf. BACIGALUPO, op. cit., p.
195.
56
Nesse sentido, ver César David CIRIANO VELA, Administración económica y discrecionalidad (un análisis normativo e
jurisprudencial. Valladolid: Lex
Nova, 2000, p. 127 e Magide
HERRERO, Límites constitucionales de las administraciones
independientes. Madri: INAP,
2000, p. 253. Este Autor comenta que, definidos desde a
perspectiva do controle judicial, tem sido relativamente
tradicional diferenciar discricionariedade e conceitos
jurídicos indeterminados a
partir da afirmação de que a
primeira supõe a existência de
uma pluralidade de soluções
juridicamente corretas (justas), enquanto que a aplicação
dos últimos admite uma única
solução justa, permitindo-se,
assim, ao juiz, uma intensidade
máxima no controle da atuação
administrativa. Idem, p. 249.
57
FGV DIREITO RIO
23
atividades e atos administrativos
Caracterizada a discricionariedade administrativa por oferecer à Administração Pública várias possibilidades juridicamente possíveis, os Tribunais se inclinavam a considerar,
cada vez mais, que a aplicação de um conceito jurídico indeterminado somente comportava
uma única solução justa, adequada ao ordenamento legal. Desse modo, o controle judicial
do ato de integração desses conceitos fluidos poderia ser total, ou seja, os Tribunais aprofundavam a sindicância e até mesmo substituíam a decisão executiva.58 Nesses termos, consolidou-se a teoria dominante da completa separação entre o exercício da discricionariedade
administrativa e a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados.59
Vale esclarecer que essa corrente de pensamento – pela qual não há uma vinculação
entre a discricionariedade administrativa e os conceitos jurídicos indeterminados – foi introduzida na doutrina espanhola no ano de 1962, por Eduardo García de Enterría60, vindo
depois a ser assumida pela maioria da doutrina e jurisprudência ibérica.61
Para García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, a lei utiliza conceitos de experiência (incapacidade para o exercício de suas funções, premeditação, força irresistível) ou de
valor (boa fé, standard de conduta do bom pai de família, justo preço), porque as realidades
referidas não admitem outro tipo de determinação mais precisa.62
Porém, ao se referirem a fatos concretos e não a vagas, imprecisas ou contraditórias
situações, entendem esses Autores que a aplicação de tais conceitos ou a qualificação de
circunstâncias concretas não admite mais que uma solução: ou se dá ou não se dá o conceito.63
Em se considerando somente uma solução justa para determinado conceito jurídico
indeterminado, não haveria, portanto, de se cogitar a existência de discricionariedade. Isto
porque, se o primeiro só admite uma única solução justa, o segundo, se fundamentando
normalmente em critérios metajurídicos de conveniência e oportunidade, permite diversas
soluções justas. Em outros termos, permite optar entre diversas alternativas que são igualmente justas à luz do direito.64
Nesse sentido, García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández sustentam que a diferença entre a discricionariedade e os conceitos jurídicos indeterminados é vital, capital. Vale
dizer, em sendo a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados um caso de aplicação e
interpretação da lei que utilizou tal conceito, o juiz pode controlar tal aplicação valorando
se a solução a que com ela se chegou é a única solução justa que a lei permite.65
Asseveram esses doutrinadores que, ao contrário, o juiz não pode fiscalizar a entranha da decisão discricionária, haja vista que, seja esta no sentido que seja, se foi produzida
dentro dos limites da remissão legal da apreciação administrativa, é necessariamente justa.
A discricionariedade é basicamente uma liberdade de eleição entre alternativas igualmente
justas, porque a decisão se fundamenta em critérios extrajurídicos que não estão incluídos
na lei, e sim no juízo subjetivo da Administração Pública. Por outro lado, o conceito jurídico indeterminado é um caso de aplicação da lei, posto que se trata de subsumir, em uma
categoria legal, determinadas circunstâncias reais.66
Delineados os principais aspectos da teoria germânica da existência de apenas uma
solução justa em cada caso concreto, endossados e difundidos por García de Enterría e
Tomás-Ramón Fernández, cumpre trazer, em sentido oposto, o pensamento de Miguel Sánchez Morón, que suscita interessantes e profundos questionamentos acerca da real diferença
entre os conceitos jurídicos indeterminados e a discricionariedade administrativa. Sobre a
técnica germânica - que defende a existência de apenas uma solução justa na integração de
um conceito jurídico indeterminado - Morón observa que não está claro que exista sempre
Cesar Ciriano Velaesclarece
a questão: “O que se passa,
na realidade, é que as normas
recorrem à utilização de conceitos em maior ou menor medida vagos e indeterminados,
nos quais é preciso realizar um
trabalho de interpretação pelo
órgão competente. Trata-se
dos chamados conceitos jurídicos indeterminados. E estes
casos, durante boa parte deste
século [século XX] se considerava serem conceitos discricionários. No entanto, a doutrina
alemã cunhou várias décadas
depois a teoria dos conceitos
normativos indeterminados
(Umbestimmterechtsbegriffe)
que, diferentemente do que se
considerava até então, em sua
interpretação dariam lugar a
uma única solução justa.” Op
cit., p.127.
58
Cf. BULLINGER, Martin. La
Discrecionalidad de la Administración Pública. Evolución,
funciones, control judicial. ����
Tradução de Miguel Sánchez Morón, e M. Cancio Mella, La Ley,
ano VIII, n. 1831, 1987. Considerando que algumas decisões
judiciais seguiam reconhecendo o poder discricionário
da Administração Pública na
aplicação de alguns conceitos
jurídicos indeterminados de
difícil controle judicial, a partir dos conceitos doutrinários
trazidos por Otto Bachof e Carl
Hermann Ule foram surgindo
teses em sentido contrário
àquela que defendia a existência de apenas uma solução
justa. Por essa linha de pensamento, os tribunais deveriam
reconhecer, na interpretação
de alguns conceitos jurídicos
indeterminados, uma certa
margem de apreciação (Beurteilungsspilraum, na terminologia
de Bachof), considerando-o
como algo estruturalmente
distinto da discricionariedade.
Na esteira desse raciocínio, a
“margem de apreciação” se
refere ao suposto do fato da
norma (Tatbestand), a sua interpretação e a subsunção aos
fatos a que se refira. Por outro
lado, a discricionariedade se
manifesta na conseqüência jurídica da norma (Rechtsfolge),
pois consistiria na faculdade
da Administração de decidir se
aplicaria ou não a conseqüência jurídica, uma vez verificado
o cumprimento do suposto do
fato, ou na possibilidade de
eleger, nesse caso, entre as
59
FGV DIREITO RIO
24
atividades e atos administrativos
uma diferença entre conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa,
como presume uma parte da doutrina espanhola e se constata em alguns pronunciamentos
jurisprudenciais.67
Para esse doutrinador, nem sempre é factível assegurar com total exatidão qual seria
a única solução justa, fato este que está exigindo que os juízes resolvam essa dúvida sob
seus próprios valores. Assim, prevalecendo a tese de que existe apenas uma solução justa na
interpretação dos conceitos jurídicos indeterminados, ter-se-ia que apoiar essa idéia em um
conceito transcendental de justiça (e de verdade) e em uma fé absoluta da possibilidade de
discernimento humano, idealismo esse de difícil aceitação.68
No mesmo sentido, Mariano Magide Herrero, que se deteve em profundo estudo sobre a questão em ensaio voltado às Administrações Independentes da Espanha, sustenta que
é inevitável uma margem de apreciação que há de se conceder à Administração na aplicação
de certos conceitos normativos indeterminados, de modo que é impossível seguir afirmando
que em sua aplicação existe uma unidade de solução justa.69
Por seu pensamento, quando se admite uma margem de apreciação em favor da Administração na aplicação de um conceito normativo indeterminado, se está admitindo que
podem existir distintas interpretações lícitas e, em conseqüência, que não cabe falar em uma
única solução justa. Ou seja, a defesa que García de Enterría faz em termos disjuntivos da
idéia da “unidade de solução justa” não serviria para rechaçar estas críticas.70
Do mesmo modo, Miguel Beltrán de Felipe sustenta que para a determinação de
alguns conceitos jurídicos indeterminados, o direito oferece pautas, critérios ou regras interpretativas, mas, para outros conceitos indeterminados, a densidade normativa é muito
escassa. Nestes casos, tem-se, ao mesmo tempo, margem de apreciação e escassa ou nula
densidade normativa.71
Nesse contexto, o Autor conclui que o Direito não oferece parâmetros suficientes ou
positivos, razão pela qual resulta complicado, quando não impossível, encontrar essa única
solução legal que anularia a discricionariedade.72
Como alhures, a doutrina pátria também controverte acerca da correlação entre os
conceitos jurídicos indeterminados e o poder discricionário da Administração Pública.73
Eros Roberto Grau comparte do mesmo pensamento de García de Enterría, chegando
a sustentar que não existem conceitos jurídicos indeterminados, ao argumento de que todo
conceito é uma soma de idéias que, para ser conceito, tem de ser, no mínimo, determinada.
Para ele, é, na verdade, “noção, vale dizer, idéia temporal e histórica, homogênea ao desenvolvimento das coisas; logo, passível de interpretação”.74
E, peremptoriamente, conclui: “Se o conceito não for, em si, uma suma determinada
de idéias, não chega a ser conceito”.75
Nessa quadra, e com arrimo em Ascarelli, Eros Roberto Grau distingue entre os conceitos jurídicos meramente formais (regulae juris) e os tipológicos (fattispecie), que cumprem diferentes funções na linguagem jurídica. Sobre este último, os tipológicos, inserem-se os conceitos jurídicos apontados como indeterminados, pois “universalmente, são
expressões da história e indicam os ideais dos indivíduos e grupos, povos e países. Ligam-se
a esquemas e elaborações de caráter lógico – independentemente das quais é eventualmente impossível a disciplina e que poderão ser diferentes, mesmo obedecendo, cada uma, a
uma coerência própria – bem como a preocupações e hábitos econômicos e fés religiosas;
à história do Estado e à estrutura econômica; a orientações filosóficas e concepções do
mundo”.76
diversas conseqüências jurídicas previstas pela norma. Cf.
MAGIDE HERRERO, op. cit., pp.
261-262. Karl Engisch, após
examinar o pensamento de
Rudolf Laun, Jellinek, Forsthoff, Bruns e Bachof, e partindo
da premissa de que é possível
admitir a existência de discricionariedade no seio da ordem
jurídica em um Estado de Direito, denota que no domínio da
administração ou da jurisdição,
a convicção pessoal de quem
quer que seja chamado a decidir é elemento decisivo para
determinar qual das várias
alternativas que se oferecem
como possíveis, dentro de certo “espaço de jogo”, será havida
como sendo a melhor e justa.
O Autor entende que é um
problema da hermenêutica jurídica indagar onde e com que
latitude discricionária existe. E,
no plano terminológico, assim
como metodologicamente,
reconhece uma posição particular do conceito de discricionariedade, em confronto com
os “conceitos indeterminados”
e “conceitos normativos”. Introdução ao pensamento jurídico.
8.ed. Tradução de J. Baptista
Machado. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2001, pp.
227-228.
La
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lucha contra las inmunidades del poder en el derecho
administrativo (poderes discrecionales, poderes de gobierno,
poderes normativos). Revista
de Administración Pública, nº
.38, p.171.
60
É digno de nota que a
doutrina germânica sobre os
conceitos jurídicos indeterminados - e a noção de uma única
solução justa - foi adotada com
grande entusiasmo na Espanha
como instrumento de redução
da discricionariedade, dentro
da perspectiva de um amplo
controle judicial desses atos.
61
FGV DIREITO RIO
25
atividades e atos administrativos
Após suas digressões sobre o tema, esse mesmo jurista conclui que só existirão atos
discricionários quando a norma jurídica atribuir ao Administrador Público, juízos de oportunidade; vale dizer, fora dessa hipótese, que o agente público estará jungido, unicamente,
à lei. Em suma, sustenta que os conceitos jurídicos indeterminados se submetem, exclusivamente, a um processo interpretativo/aplicativo de textos normativos.77
Tércio Sampaio Ferraz Júnior também sustenta que a vagueza e ambigüidade de certos
termos dão lugar a uma distinção entre conceitos indeterminados e conceitos discricionários, pois, para o Autor, nem sempre o vago e ambíguo gera discricionariedade. E conclui:
“quando o conceito é determinado, apesar de vago e ambíguo, o ato com base nele é vinculado”.78
Pelo entendimento do Autor, dispositivos tradicionalmente tidos como “poderes discricionários” são, na verdade, simples enunciados de conceitos jurídicos indeterminados.
Ou melhor, conceitos como calamidade pública, ordem pública, utilidade pública, não
permitem em sua aplicação uma pluralidade de soluções justas, mas, apenas, uma só solução
em cada caso concreto.
Em sentido diametralmente oposto, ao conceituar discricionariedade administrativa
Celso Antonio Bandeira de Mello sustenta que a margem de liberdade que remanesça ao
administrador para eleger um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, diante de
um caso concreto, surge quando há fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida
no mandamento.79
Por suas palavras, isso ocorre porque, muitas vezes, e exatamente porque o conceito
é fluido, e é impossível contestar a possibilidade de conviverem intelecções diferentes, em
que, por isto, uma delas tenha de ser havida como incorreta, desde que quaisquer delas
sejam igualmente razoáveis. Por isso o Autor não aceita a tese de que o tema dos conceitos
legais fluidos seja estranho ao tema da discricionariedade.80
Em amparo a sua tese, Celso Antonio aduz que os efeitos de direito são idênticos
quando o Administrador, ao aplicar a regra ao caso concreto, apreende o significado de um
conceito impreciso dentro da significação contextual que comportavam, ou decide segundo
critérios de conveniência e oportunidade (este traduzindo uma opção por um dentre dois
ou mais comportamentos que se conformam à finalidade da norma a ser aplicada).
Nesse preciso sentido, defende que nenhuma diferença existe entre estas análises, e
em ambas a extensão da investigação judicial é a mesma. Assim, tanto em uma como em
outra, se for o caso, o ato administrativo não é passível de censura porque a Administração atuou dentro de esfera legítima, isto é, dentro do campo de liberdade (intelectiva ou
volitiva) que a lei lhe proporcionava, seja porque não se excedeu ao decidir que tal ou qual
comportamento era o mais conveniente e oportuno, por ter se mantido dentro dos limites
da razoabilidade.81
Essas são as correntes doutrinárias que polarizam a aceitação ou não de haver uma solução justa na integração dos conceitos jurídicos indeterminados, impactando, diretamente,
nos limites do controle judicial dos atos administrativos editados pelo Poder Executivo.
Com os elementos acima, notadamente o amplo debate sobre o tema ao longo do
século XX, examine os principais aspectos da aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, escolha uma das duas correntes, e enfrente o caso gerador abaixo.
Curso de derecho administrativo. 10.ed. Madri: Civitas,
2001, tomo I, p. 457. É de capital importância ressaltar que
em uma leitura mais apressada
da doutrina sustentada pelos
Autores, de que a “unidade de
solução justa (...) não significa
que haja somente uma e única
conduta capaz de merecer, entre todas as possíveis, a qualificação àquela que o conceito
aponta”, pode levar o leitor a
um equivocado entendimento
de que eles não defendem a
corrente antes exposta. Nos
referimos precisamente ao trecho em que denotam: “Convém
notar a esse respeito, para evitar um mal entendido bastante
freqüente sobre o qual costumam ser construídas as críticas
ulteriores, que essa ‘unidade de
solução justa’ à qual nos referimos não significa que haja
somente uma e única conduta
capaz de merecer, entre todas
as possíveis, a qualificação à
qual o conceito aponta. O que
quer dizer exatamente é que
em um dado caso a concreta
conduta objeto de ajuizamento
ou é de boa-fé ou não o é, o
que remete a uma ‘apreciação
por juízos distintivos’, na expressiva fórmula alemã, já que
não pode ser as duas coisas ao
mesmo tempo, como é evidente.” Op. cit., p. 458.
62
Op. cit. Alejandro Nieto García, em obra doutrinária de
1964, sustentou nesse mesmo
sentido: quando se exercita
uma função discricionária
stricto sensu, a operação que
deve realizar a Administração é
de natureza volitiva, e quando
esta se aplica aos conceitos
jurídicos indeterminados a
operação que realiza é de natureza intelectiva. “Reducción
jurisdiccional de la discrecionalidad en materia disciplinaria”. Revista de Administración
Pública, n.44, p.147. É certo
que a consolidação dessa teoria deu-se naquela nação da
Europa Continental por obra
de Fernando Sáinz Moreno, no
ano de 1976, com uma tese
em que aprofundava o tema
a partir de uma construção
dogmática, contendo vários
exemplos. Conceptos jurídicos,
interpretación y discrecionalidad administrativa. Madri:
Civitas, 1976.
63
GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, op. cit., p. 458.
64
65
Op. cit., p. 459.
FGV DIREITO RIO
26
atividades e atos administrativos
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 40 a 42.
Caso gerador:
Nos termos do art. 7o, inciso XIV, da Lei nº. 9.782, de 26 de janeiro de 1999, compete
à Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA:
interditar, como medida de vigilância sanitária, os locais de fabricação, controle, importação, armazenamento, distribuição e venda de produtos e de prestação de serviços relativos à
saúde, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde.
Pode-se dizer que “risco iminente à saúde” é um conceito jurídico indeterminado,
passível de integração, portanto, pela autoridade administrativa.
Em uma fiscalização de rotina nas instalações de um fabricante de medicamentos,
com atuação em vários países, os técnicos da agência reguladora constatam a fabricação de
remédios com a utilização de novas técnicas, ainda não experimentadas em nosso país. Sob
esse ponto de vista, a entidade reguladora poderia paralisar as atividades até que fossem
atendidas todas as normas técnicas então vigentes. Ocorre que, se assim proceder, estará
impedindo que uma grande parte da população, notadamente a mais carente, tenha acesso
aos referidos medicamentos, essenciais para a sobrevivência daqueles que dependem do
mesmo.
Por outro lado, não há notícia de haver fabricantes, locais ou no exterior, que possam,
em curto espaço de tempo, suprir o mercado com esses medicamentos, com a mesma fórmula ou por meio de outra com igual eficácia. Diante desse caso concreto, a ANVISA tem
as seguintes alternativas:
a) permitir a continuidade da fabricação desses medicamentos até que a empresa comprove, em prazo compatível e por meio de laudos técnicos idôneos, a eficácia dessas novas
técnicas, de modo a que possam ser admitidas em nosso país;
b) assinalar com um prazo razoável para que a empresa altere os seus procedimentos,
de forma que passe a adotar as técnicas então vigentes, ainda que supostamente não tão
avançadas;
c) interditar as instalações da indústria e proibir a venda dos medicamentos para evitar
maiores riscos aos consumidores.
A ANVISA escolhe a solução da letra “a”. O Ministério Público, por sua vez, ingressa
com Ação Civil Pública requerendo a interdição do estabelecimento, alegando violação ao
direito difuso à saúde.
Diante desse caso, como deve decidir o magistrado?
Nas palavras de García
de Enterría e Fernández: “a
discricionariedade é essencialmente uma liberdade de
escolha entre alternativas
igualmente justas, ou, caso
se prefira, entre indiferentes
jurídicos, porque a decisão se
fundamenta normalmente
em critérios extrajurídicos (de
oportunidade, econômicos,
etc.), não incluídos na Lei e
remetidos ao juízo subjetivo da
Administração. Ao contrário, a
aplicação de conceitos jurídicos
indeterminados é um caso de
aplicação da Lei, pois se trata
de subsumir em uma categoria
legal (configurada, entretanto,
sua imprecisão de limites, com
a intenção de limitar uma
suposição concreta), umas
circunstâncias reais determinadas, justamente por isso é
um processo regrado, que se
esgota no processo intelectivo
de compreensão de uma realidade no sentido em que o
conceito legal indeterminado
pretendeu, processo no qual
não interfere nenhuma decisão
de vontade do aplicador, como
é próprio de quem exerce uma
um poder discricionário”. Op.
cit., pp. 458-459.
66
Discrecionalidad administrativa y control judicial. Madri:
Tecnos, 1994, p. 116.
67
Op.
�����������������������������
cit., p. 118. �����������
Mariano Bacigalupo, um dos autores que
mais se destacou na Espanha
na defesa da corrente de pensamento que sustenta a possibilidade da discricionariedade
administrativa quando existirem, nessas mesmas normas,
os denominados conceitos jurídicos indeterminados, denota,
em igual entendimento, que
tanto a aplicação de conceitos
jurídicos indeterminados em
sua zona de incerteza, como o
exercício da discricionariedade
consiste em uma mesma tarefa de integração da norma na
aplicação em um fato concreto,
ou seja, ambas se concebem
como manifestações de um
mesmo fenômeno de natureza
materialmente normativa. O
Autor se recusa a admitir que
se possa estabelecer alguma
distinção entre discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados em vista do grau
de vinculação normativa e, em
conseqüência, a intensidade
de sua sindicância judicial. Op.
cit., p. 203.
68
69
Op. cit., p. 268.
70
Op. cit, pp. 268-269.
FGV DIREITO RIO
27
atividades e atos administrativos
Leitura complementar:
GUERRA, Sergio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005,
pp. 161 a 246.
Discrecionalidad administrativa y constituición. Madri:
Tecnos, 1995, p. 110.
71
72
Op. cit.
Nesse sentido, Tércio Sampaio Ferraz Júnior adverte
que a doutrina não é pacífica
a esse respeito, e a distinção
entre conceito indeterminado
e discricionário é disputada.
Discricionariedade nas decisões do CADE sobre atos de
concentração. Revista do IBRAC,
São Paulo, v. 4, n. 6, p. 87-89,
1997, p. 88.
73
O direito posto e o direito
pressuposto. 4. ed. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 202.
74
75
Op. cit., p. 196.
76
Op. cit., p. 199.
Op. cit., pp. 203-204. O Autor
defende o seu ponto de vista
trazendo de forma literal para
o vernáculo as conclusões dos
mestres García de Enterría e
Tomás-Ramón Fernández.
77
Discricionariedade nas decisões do CADE sobre atos de
concentração. Revista do IBRAC,
São Paulo, v. 4, n. 6, p. 87-89,
1997, p. 88.
78
Discricionariedade e controle
jurisdicional. 2. ed. 5. Tiragem.
São Paulo: Malheiros, 2001,
p. 23.
79
80
Op. cit.
Op. cit., p. 27. Germana de
Oliveira Moraes, nessa linha
de pensamento, aduz que a
abertura da norma tanto pode
residir na previsão incompleta
dos pressupostos necessários
à edição do ato administrativo, quanto na indeterminação
parcial dos efeitos a serem
produzidos com a sua edição.
Para a Autora, a primeira hipótese se evidencia em face da
utilização pela lei de conceitos
indeterminados atributivos de
discricionariedade, como por
exemplo, “conveniência para o
serviço”. Op. cit., p. 39.
81
FGV DIREITO RIO
28
atividades e atos administrativos
Aula 5: Os princípios da finalidade, da impessoalidade
e da motivação.
Objetivo:
Apresentar o conteúdo do princípio da finalidade, enfatizando sua relação com o princípio da legalidade. Apresentar a teoria do abuso ou desvio de poder. Enfrentar com os
alunos o conteúdo do princípio da impessoalidade no cotidiano brasileiro.
Introdução:
Finalidade
O ato administrativo, para ser lícito e legítimo, deve atender aos fins a que se destina. Deste modo, o princípio da finalidade corresponde a uma orientação obrigatória da
atividade administrativa ao interesse público.82 Na mesma senda vigora o princípio da impessoalidade, que impõe à autoridade pública, no exercício da atividade administrativa, a
consideração, de modo objetivo, dos vários interesses públicos e privados a avaliar.83
O não atendimento do fim público ou se a decisão administrativa for fundamentada
em favoritismos pessoais do administrador público, ou de determinados grupos, considerase vício de finalidade ou desvio de poder.
Os vícios de finalidade ou do fim dos atos administrativos “escondem a intenção do
administrador sob a capa da legalidade”.84 Assim é que “demonstrados, mediante prova
irrefutável, permitem o controle jurisdicional da medida viciada, por desvio de poder, acarretando a anulação do ato, eivado desse defeito ou vício”.
Caio Tácito, pioneiro no estudo do desvio de poder no Brasil, denota que o desvio
de poder é, por definição, um limite à ação discricionária, um freio ao transbordamento da
competência legal além de suas fronteiras. A relevância do estudo sobre o tema do desvio de
poder foi assim sustentada no remoto ano de 1951 por Caio Tácito:
“a escassa invocação, entre nós, de tão importante modalidade de controle da Administração, inspirou-nos o propósito de estudar-lhe as características, na esperança de conquistar a
atenção dos nossos juristas. Não pretendemos inovar a matéria, tão profundamente analisada
na bibliografia francesa e italiana, mesmo porque a originalidade científica é sempre difícil,
até para os mais doutos. Desejamos somente conceituar o desvio de poder e assinalar a sua
compatibilidade com a lei e a tradição jurídica nacionais. Não se trata de importância exótica,
oriunda de regime contencioso diverso de nosso sistema judiciarista. Depõe, aliás, nesse sentido, os julgados brilhantes, embora isolados, que já o acolheram como razão de decidir”.85
José Cretella Júnior, autor que sistematizou entre nós, no ano de 1965, o tema do desvio de poder ou, na expressão utilizada pelos franceses, détournement de pouvoir86, denota que
se trata de aspecto vicioso do ato administrativo que, ultrapassando-lhe a epiderme, chega ao
próprio cerne da medida, devassando a intenção do administrador e eivando de nulidade a
providência tomada. Trata-se de distorção da discricionariedade de que é detentor o agente
público, que se inclina fundado no interesse próprio e não no interesse da Administração.87
MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Curso de direito
administrativo. 12. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2002, p. 92.
82
FIGUEIREDO, Lúcia Valle.
Curso de Direito Administrativo.
5.ed. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 62.
83
CRETELLA JÚNIOR, José. Controle jurisdicional do ato administrativo. 4.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2001, p. 271.
84
CRETELLA JÚNIOR, José. O
“desvio de poder” na administração pública. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 126.
85
Para Afonso Rodrigues Queiró, “a jurisprudência francesa,
mais liberal que a legislação
em que rigorosamente deveria basear-se, arranjara
sutilmente um limite ao poder
discricionário pelo lado dos
fins, dos motivos ou móbeis da
Administração”. In: A teoria do
desvio de poder em direito administrativo. Revista de Direito
Administrativo, Rio de Janeiro,
n.7, p.52-80, jan./mar., 1947,
pp. 62-63.
86
O desvio de poder.., ob. cit.,
p. 3.
87
FGV DIREITO RIO
29
atividades e atos administrativos
O desvio de poder, fundamento para anulação do ato administrativo que nele incide,
difere dos outros casos, porque não se trata aqui de apreciar objetivamente a conformidade
ou não-conformidade de um ato com a regra de direito, mas de proceder-se a uma dupla
investigação de intenções subjetivas: é necessário indagar se os móveis que inspiraram o
legislador deveriam realmente inspirá-lo. Os outros casos de anulação dos atos administrativos fundamentam-se em razões de existência objetiva e que podem justificar a decisão.
Aqui, o móvel, ao contrário, é o sentimento, o desejo que inspirou o autor do ato, mas na
forma o ato é perfeito.88
No mesmo sentido, sustenta Agustin Gordillo que existe um desvio de poder toda vez
que o funcionário atua com uma finalidade distinta da perseguida pela lei. O ato está assim
viciado ainda que seu objeto não seja contrário ao ordenamento jurídico.89 Com efeito,
as normas que conferem uma determinada faculdade ao administrador o fazem para que
o servidor satisfaça a finalidade expressa ou implícita do ordenamento jurídico, não para
realizar questões pessoais. O administrador tem sua competência circunscrita ao que as normas determinam, pelo que a faculdade que elas conferem está necessariamente restringida e
orientada ao cumprimento da própria finalidade do sistema normativo.
Dessa forma, o que vicia o ato, inquinando-o de desvio de poder, é o fim privado,
isto é, a vontade distorcida do agente público que deixa de ser administrador para tornarse dominus, praticando ato com finalidade absolutamente incompatível com o espírito de
objetividade e imparcialidade que deve nortear os atos do agente público.90 Esse limite visa
impedir que a prática do ato administrativo possa dirigir-se à consecução de um fim de
interesse privado, ou mesmo de outro fim público estranho à previsão legal.91
Nesse sentido, Gaston Jèze aduz que, dada a natureza humana e o egoísmo dos indivíduos, deve prever-se que os governantes e os agentes públicos exerçam sua competência,
a fim de obter vantagens particulares para eles, ou para seus amigos pessoais, ou políticos,
representando abuso de poder.92
Sobre os tipos insertos nessa teoria, colhe-se o magistério de Celso Antonio Bandeira
de Mello, para quem o vício de desvio de poder pode apresentar-se sob dupla modalidade:
Em uma delas, o agente administrativo, servindo-se de uma competência que em abstrato possui, busca uma finalidade alheia a qualquer interesse público. Neste caso atua para
alcançar um fim pessoal, que tanto pode ser de perseguição a alguém como de favoritismo
ou mesmo para atender um interesse individual do próprio agente. Em outra modalidade,
manejando também uma competência que em abstrato possui, busca atender uma finalidade
pública que, entretanto, não é aquela própria, específica, da competência utilizada. Aí terse-á valido de uma competência inadequada, de direito, para o atingimento da finalidade
almejada.93
Impessoalidade
Dentre os princípios constitucionais regedores da Administração Pública elencados no
art. 37, caput, da Constituição Federal, merece menção ainda o princípio da impessoalidade, cujo conteúdo é assim apresentado por Odete Medauar:
88
Op. cit., p. 5.
Tratado de derecho administrativo. 5.ed. Buenos Aires:
Fundación de Derecho Administrativo, 2000, pp. IX-23-24.
89
CRETELLA JÚNIOR, O “desvio
de poder”, p. 47.
90
TÁCITO, Caio. “O desvio de
poder no controle dos atos
administrativos, legislativos
e jurisdicionais”. Revista de
Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, v.228, p.1-12, abr./jun.
2002, p. 2.
91
JÈZE, Gaston. Principios generales del derecho administrativo. v. I. Tradução de Julio N. San
Millán Almagro. Buenos Aires:
Editorial Depalma, 1948, p. 79.
92
Discricionariedade e controle
jurisdicional. 2. ed. 5. Tiragem.
São Paulo: Malheiros, 2001,
pp. 58-59.
93
Com o princípio da impessoalidade a Constituição visa a obstaculizar atuações geradas por antipatias, simpatias, objetivos de vingança, represálias, nepotismo, favorecimentos
FGV DIREITO RIO
30
atividades e atos administrativos
diversos, muito comuns em licitações, concursos públicos, exercício do poder de polícia (...)
Em situações que dizem respeito a interesses coletivos ou difusos, a impessoalidade significa a
exigência de ponderação equilibrada de todos os interesses envolvidos, para que não se editem
decisões movidas por preconceitos ou radicalismos de qualquer tipo.94
Conforme se terá oportunidade de concluir, por meio da análise dos vários casos geradores que compõem este primeiro bloco do Curso, o princípio da impessoalidade guarda
direta relação com os princípios da moralidade, da publicidade e da motivação dos atos
administrativos.
Motivação
A motivação das decisões administrativas, como leciona Tomás-Ramón Fernández, é
um primeiro critério de deslinde entre a discricionariedade e a arbitrariedade, de maneira
que o que não é motivado é, só por esse fato, arbitrário.95
A doutrina pátria é pacífica no entendimento de que a inexistência do motivo alegado
como fundamento para a prática de qualquer ato administrativo acarreta a nulidade do
mesmo. Nesse sentido, colhe-se a lição de Caio Tácito:
MEDAUAR, Odete. Direito
administrativo moderno. 6ª ed.
São Paulo: RT, 2002, p. 252.
94
Arbitrariedad y discrecionalidad. Madri: Civitas, 1991, p.
107. Nesse sentido, Miguel
Sánchez Morón expõe que, na
medida em que a motivação é
um instrumento para explicitar
as razões que levaram à decisão, não se pode estranhar que
se considere um requisito imprescindível do ato discricionário. SÁNCHEZ MORÓN, Miguel.
Discrecionalidad administrativa
y control judicial. Madri: Tecnos,
1994, p. 151.
95
Os atos administrativos são nulos quando o motivo invocado é falso ou inidôneo. Ou
o antecedente é inexistente, ou a autoridade lhe deu uma apreciação indevida, sob o ponto
de vista legal. São as duas formas que, na doutrina francesa, se qualificam de inexistência
material e inexistência jurídica dos motivos.96
Para a aferição da validade dos atos do Poder Público, isto é, para a verificação de
sua conformação com o sistema normativo, faz-se indispensável, “além da perquirição dos
elementos externos do ato (competência, forma, etc.), o exame da motivação intestina em
que radicou a sua edição”.97 Qual se passou com a evolução dos requisitos das decisões judiciais nas instâncias penais e civis, onde a existência de fundamentação legítima e racional
erigiu-se em estereótipo da garantia do devido processo legal, também na esfera do Direito
Administrativo a existência de motivação é vista hoje como condição de validade dos atos da
Administração. A declinação dos motivos nas manifestações estatais criadoras, extintivas ou
modificadoras de direitos, que caracterizam os pronunciamentos de caráter decisório do Poder Público, tornou-se por toda parte uma exigência do Estado Democrático de Direito.98
Desse modo, para que o Poder Judiciário possa perscrutar o mérito do ato administrativo, há que se ter uma perfeita e clara identificação dos reais motivos que levaram o agente
na adoção da decisão. O mérito do ato identifica-se com a análise e apreciação da oportunidade e conveniência na tomada da decisão, em que o administrador possui a faculdade
discricionária, concedida por lei, para decidir entre as soluções que melhor atendam ao
interesse público.
Quer dizer, o mérito engloba a valoração procedida pelo administrador quanto a
determinados fatos concretos, com base nos quais deverá escolher, após uma ponderação
dos interesses envolvidos, a solução que entender seja a mais adequada, razoável e proporcional.
Em síntese, o conteúdo do princípio da motivação é apresentado por Celso Antônio
Bandeira de Mello nos seguintes termos:
Controle dos motivos do ato
administrativo. Temas de direito público: estudos e pareceres.
Rio de Janeiro: Renovar, 1997,
v. 1, p. 333. Celso Ribeiro Bastos, discorrendo sobre a teoria
dos princípios determinantes
do ato administrativo, é taxativo ao afirmar: “De acordo
com esta teoria, os motivos que
servem de suporte para a prática do ato administrativo, sejam
eles exigidos por lei, sejam eles
alegados facultativamente pelo
agente público, atuam como
causas determinantes de seu
cometimento. A desconformidade entre os motivos e a realidade acarreta a invalidade do ato”.
Curso de Direito Administrativo.
5.ed. São Paulo: Saraiva, 2001,
pp. 97-98.
96
O devido processo legal e a
razoabilidade das leis na nova
constituição do Brasil. 2.ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1989,
p. 322.
97
98
Op. cit..
FGV DIREITO RIO
31
atividades e atos administrativos
Dito princípio implica para a Administração o dever de justificar seus atos, apontandolhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e
situações que deu por existentes e a providência tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a consonância da conduta administrativa com a lei que
lhe serviu de arrimo.99
Embora não previsto expressamente dentre os princípios constitucionais da Administração Pública constantes do art. 37, caput, da Constituição Federal, a doutrina aponta
possuir o referido princípio uma guarida constitucional.
Nesse sentido, para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da motivação
constitui uma derivação necessária da garantia constitucional do devido processo legal (art.
5º, LIV, Constituição Federal).100 Já para Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da
motivação encontra fundamento constitucional implícito no art. 1º, II, da Constituição –
princípio da cidadania – e em seu parágrafo único, ao explicitar que todo poder emana do
povo e em seu nome deve ser exercido.
Celso Antônio Bandeira de Mello cita, ainda, como fundamento constitucional do
dever de motivação dos atos administrativos, a garantia inscrita no art. 5º, XXXV, da Constituição, segundo a qual é dado a qualquer cidadão o direito à apreciação judicial em caso de
lesão ou ameaça a direito.101 De fato, o dever de motivação dos atos administrativos constitui uma exigência a que esses possam se submeter ao posterior controle do Poder Judiciário,
lembrando que, quanto a esse último, o dever de motivação encontra-se expressamente
consagrado na Constituição Federal (art. 93, IX, CF/88).102
Por fim, cumpre mencionar que a motivação foi expressamente prevista dentre os
princípios informadores da atuação da Administração Pública no art. 2º da Lei nº 9.784/99
( Lei do Processo Administrativo Federal).
Leitura obrigatória:
Curso de direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004,, p. 102.
99
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 35 a 39.
Caso gerador:
Trata-se de mandado de segurança impetrado por servidora pública lotada na Secretaria
de Educação, que foi nomeada para cargo em comissão no Tribunal Regional do Trabalho
por indicação direta de parente seu, que à época ocupava o cargo de vice-presidente do Tribunal. Os vencimentos do cargo em comissão se apresentavam substancialmente mais elevados
do que os percebidos pela servidora no exercício de sua função na Secretaria de Educação.
O Tribunal de Contas da União veio a considerar ilícita a referida nomeação, tendo o
TRT, então, determinado a exoneração da servidora e o seu retorno à Secretaria de origem.
Inconformada com a redução dos seus proventos e pela perda do adicional a que fazia
jus pelo cargo comissionado, a servidora sustenta a inconstitucionalidade do ato que determinou a sua exoneração, que teria violado as garantias individuais do respeito ao direito
adquirido e do ato jurídico perfeito.
Nesse sentido, Diogo de
Figueiredo Moreira Neto: “o
princípio da motivação é instrumental e conseqüente do
princípio do devido processo da
lei (art. 5º, LIV, CF), tendo necessária aplicação às decisões
administrativas e às decisões
judiciárias, embora se encontre
também, de modo implícito
no devido processo de elaboração das normas legais, no
sentido amplo (cf. arts. 59 a
69 da Constituição Federal e os
diversos regimentos das casas
legislativas)”. Mutações do
direito público. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 290.
100
Curso de direito administrativo, op. cit., p. 103.
101
MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Mutações do direito
público, op. cit., p. 291.
102
FGV DIREITO RIO
32
atividades e atos administrativos
Busque refletir sobre o caso em comento, decidido pelo Supremo Tribunal Federal, à
luz dos princípios da finalidade e da impessoalidade. Que outros princípios informadores da
atividade da Administração pública poderiam ser invocados para o seu deslinde?
Leitura complementar:
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed.
5. Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001, 58 ss.
FGV DIREITO RIO
33
atividades e atos administrativos
Aula 6: Os princípios da segurança jurídica, boa-fé e proibição do
venire contra factum proprium da Administração
Objetivo:
Analisar as especificidades dos princípios da segurança jurídica, da boa-fé e da proibição do venire contra factum proprium aplicados especificamente às relações entre Administração Pública e os cidadãos.
Introdução:
Nesta aula somar-se-ão aos princípios anteriormente discutidos a importância da boafé objetiva e da segurança jurídica no trato da Administração Pública com os cidadãos.
Princípios gerais de direito, esses merecem análise pormenorizada no que se refere à sua
aplicação específica no campo aplicado do direito administrativo.
Ambos encontram expressão positiva na Lei de Processo Administrativo Federal (Lei
nº 9.784/99), cujo art. 2º, caput e parágrafo único, IV e XIII, da Lei nº 9.784/1999 determina que:
Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, contraditório e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;
...
XII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada a aplicação retroativa de nova interpretação.”
A importância da boa-fé e da segurança jurídica reside em proteger a legítima expectativa do Administrado, isto é, aquela que se origina de práticas passadas e dos precedentes da
Administração Pública, que fazem nascer para o cidadão expectativa, à luz do princípio da
isonomia, de que a Administração se comportará, naquele caso concreto, de forma consistente com comportamentos e decisões precedentes, seja naquele mesmo processo administrativo
(os atos e decisões futuras têm de guardar coerência lógica com os atos e decisões anteriores),
bem como com relação a outros atos e decisões praticados relativamente a terceiros.
Assim, a boa-fé guarda relação direta com o princípio da confiança jurídica, segundo
o qual:
O Estado é instrumento da sociedade e sua existência só tem sentido se estiver a serviço
de todos e de cada um. Por isso, justifica-se a confiança que legitimamente os membros da
sociedade nele depositam, não se admitindo que os agentes públicos possam desempenhar
suas funções traindo essa confiança.103
MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Mutações do direito
público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 285.
103
FGV DIREITO RIO
34
atividades e atos administrativos
À legítima expectativa conjuga-se o princípio da segurança jurídica na atuação da Administração Pública face aos cidadãos.
De fato, as garantias e direitos fundamentais não se tornam efetivos caso estejam fora
do manto da segurança das relações jurídicas entre o Estado e cada membro da sociedade.
A segurança jurídica representa, assim, um conjunto de condições que tornam possível à
sociedade o prévio conhecimento das conseqüências de seus atos à luz das normas pré-estabelecidas pelo sistema jurídico.
Essa ordem de pensamento não encontra dissenso doutrinário. Isto é, a segurança jurídica foi – e continua sendo – um dos principais pilares de sustentação do Estado de Direito,
como indica John Locke na defesa intransigente do Poder Legislativo como poder supremo
da comunidade. Para Locke o objetivo primordial do homem seria formar a sociedade de
modo que pudesse desfrutar da propriedade em paz e segurança.104
Mesmo buscando conciliar interesses antagônicos, conquistados pelos revolucionários,
e interesses defendidos pelo regime monárquico, Benjamin Constant105 também ressaltou
a relevância da segurança e sua vinculação à justiça e às garantias individuais. Nas conclusões apresentadas por William Simon106 “o ideal libertário exige que as pessoas tenham
conhecimento dos seus direitos e obrigações antes de agir, para que possam planejar os seus
negócios”. Por isso, e ao comentar os princípios da boa fé e da confiança legítima, ambos
derivados da segurança jurídica, Jesús Gonzáles Pérez107 denota que o princípio da segurança jurídica supõe garantia e certeza do direito nas relações com o poder público, certeza esta
que se materializa na manutenção de determinadas situações, ainda que não sejam de todo
conforme o Direito, mas exista confiança na sua legitimidade.
De igual pensamento e sob um viés formalista, José Afonso da Silva108 assevera que os
valores constitucionais esvanecem-se todos se não forem protegidos pela indeclinável couraça da segurança jurídica. Segurança jurídica, sob esse viés formal, é o conjunto de condições
que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das conseqüências de
seus fatos à luz da liberdade reconhecida.109
Nesse contexto, e sobre a importância da preservação da segurança jurídica em um
Estado Democrático de Direito, expõe Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
O direito tem dupla vocação: a de proporcionar segurança a uma sociedade e a de fazer
imperar a justiça em suas relações (...) O princípio da segurança jurídica é, assim, tão valioso,
que sua violação compromete toda a instituição que o transgride, ao trair a confiança geral,
cimento das civilizações, e a boa-fé dos que deveriam ser protegidos pela ordem jurídica.110
Da mesma forma, nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
Trata-se, portanto, a segurança jurídica, e um megaprincípio do Direito, o cimento das
civilizações, que, entre outras importantes derivações relevantes para o Direito Administrativo, informa o princípio da confiança legítima, o princípio da boa-fé objetiva, o instituto da
presunção de validade dos atos do Poder Público e a teoria da evidência.111
Dos princípios da boa-fé, da legítima expectativa e da segurança jurídica, aplicados à
Administração Pública, decorre a incidência, nos atos da Administração, do princípio da
não contradição, ou da proibição do venire contra factum proprium. É nesse sentido que a
própria lei de Processo Administrativo Federal dispõe que a mudança de interpretação, por
“Assim, mesmo o que tem o
direito de seu lado, não possui
geralmente mais que a própria
força individual, que não é
suficiente para se defender de
agressões ou punir delinqüentes. Para evitar esses percalços
que perturbam os homens no
estado de natureza, estes se
unem em sociedade para que
a somatória de suas forças
reunidas lhes garanta e assegure a propriedade, e para
desfrutarem de leis fixas que
limitem, que esclareçam a todos o que lhes pertence. É essa
finalidade dos homens transferirem todo poder que possuem
naturalmente à sociedade à
qual se filiam, sociedade que
deposita o poder legislativo
nas mãos que julga mais aptas
para esse encargo, para que
os homens sejam governados
por leis explícitas; caso contrário, a paz, a propriedade e
a tranqüilidade continuariam
na mesma incerteza em que
se encontravam no estado de
natureza.(...) Todo o poder
que o governo tem destina-se
apenas ao bem da sociedade, e
da mesma forma que não deve
ser arbitrário ou caprichoso,
também deve ser exercido
mediante leis estabelecidas e
promulgadas; e isso para que
não só os cidadãos saibam qual
o seu dever, achando garantia
e segurança dentro dos limites
das leis, como também para
que os governantes, limitados
pela lei, não sofram a tentação, pelo poder que têm nas
mãos, de exercê-lo para fins e
por meios que os homens não
conheçam e nem aprovariam
de boa vontade.” LOCKE, John.
Segundo tratado sobre o governo. Trad. Alex Marins. São
Paulo: Martins Claret, 2005,
pp. 98-102.
104
“Coloca-se em perigo a
segurança pública quando os
cidadãos vêm na autoridade
uma ameaça em lugar de
salvaguarda. A arbitrariedade
é o verdadeiro inimigo da segurança pública. Somente há
segurança pública quando há
justiça, justiça nas leis, leis na
ação. A liberdade de um único
cidadão interessa tanto à comunidade social que as causas
de qualquer delito devem ser
apuradas com todo rigor necessário para submeterem-se
aos juízes ordinários. Esse é o
fim principal, o fim sagrado,
de toda instituição política.
Nenhuma Constituição pode
legitimar-se de outra maneira
105
FGV DIREITO RIO
35
atividades e atos administrativos
parte da Administração Pública, não pode ser utilizada para vedar ou limitar o gozo de direitos pelo Administrado (art. 2º, parágrafo único, XII, Lei nº 9.784/99).
Os princípios supracitados, embora positivados na legislação administrativa processual, podem ser considerados princípios gerais de direito administrativo, aplicáveis em toda
relação entre Administração Pública e o cidadão. Conforme observa Anderson Shreiber,
a aplicação do princípio da proibição do comportamento contraditório, nas relações de
direito público, decorre dos princípios da moralidade e da igualdade dos administradores
perante a Administração Pública (cf. art. 37, caput, CF/88), bem como do princípio da solidariedade social, considerado, pelo autor, “o seu fundamento normativo mais elevado”112.
Possui, portanto, inegável fundamento constitucional.
Leitura obrigatória:
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, pp. 73 a 94.
Caso gerador:
O Sr. Manoel da Silva ajuizou ação de desapropriação indireta contra o Estado de São
Paulo, sustentando que a criação do Parque Estadual da Serra do Mar havia tido por conseqüência a desapropriação indireta de dois terrenos de sua propriedade, que haviam sido
adquiridos do próprio Estado alguns anos antes.
Em contestação, o Estado de São Paulo alegou que os títulos aquisitivos de propriedade do senhor Manoel da Silva apresentavam-se eivados de nulidade, pois que celebrados
em desobediência ao diploma legal específico que determinava a forma de alienação de
terras devolutas pelo Estado. De acordo com a defesa, os instrumentos de transferência da
propriedade teriam sido celebrados desconsiderando a edição de norma de ordem pública,
já vigente à época do ato, que havia alterado os procedimentos para a alienação de terras
devolutas. Dessa forma, sustentava a nulidade dos títulos de propriedade do autor da ação,
em que pese esse ter sido celebrado na presença de membro do alto escalão da Administração Pública, dotado dos devidos poderes para a prática do ato, e ter o Estado permanecido
silente por todo o lapso temporal entre a data da celebração do instrumento traslativo da
propriedade e o momento da propositura da ação.
Na qualidade de magistrado, como você decidiria a controvérsia acima? Em sua análise, procure elencar os fundamentos jurídicos que embasaram a propositura da ação e a
defesa da Fazenda Pública do Estado de São Paulo. Procure refletir sobre o caso à luz, dentre
outros, dos princípios da legalidade estrita, da essencialidade da forma para a transferência
de propriedade imobiliária, da eficiência da Administração Pública e da proibição do venire
contra factum proprium da Administração Pública.
e seria ilusão buscar outro fundamento de força e persuasão.
(...) Nossa Constituição, ao tornar inamovíveis todos os juízes
nomeados, lhes dá uma independência da qual precisam
há muito tempo. Saberão que
do julgamento de um ministro,
acusado, como qualquer outro,
não lhes recairá nenhuma censura constitucional, que não
se defrontam com nenhum
perigo. Da segurança dos juízes nascerá a imparcialidade,
a moderação e a coragem.”
CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais.
Trad. De Maria do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Liber Juris,
1989, pp. 141-142. Esta obra
foi originalmente publicada
em 1814 com a denominação
de Principes de Politique Applicables à tous lês Gouvernements
Représentatifs et Particulièrment à la Constituition Actuelle
de la France.
SIMON. William H. A prática
da justiça. São Paulo: Martins
Fontes, 2001, p. 67.
106
GONZÁLES PÉREZ, Jesús. El
principio general de la buena
fe en el derecho administrativo. 3.ed. Madrid:Civitas, 1999,
p. 53.
107
SILVA, José Afonso da. Curso
de direito constitucional positivo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 412.
108
No mesmo sentido Celso
Antônio Bandeira de Mello
denota que o “princípio da
segurança jurídica é, provavelmente, o maior de todos os
princípios fundamentais do Direito, já que se encontra em sua
base, em seu ponto de partida.”
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Reforma da previdência.
Rio de Janeiro: CONAMP, 2004,
p. 67.
109
MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Mutações do direito
público, p. 275.
110
FGV DIREITO RIO
36
atividades e atos administrativos
Leitura complementar:
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e
‘venire contra factum proprium’. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, especialmente pp. 202 a
208 (“venire contra factum proprium da Administração Pública”).
SILVA, Almiro do Couto e. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no
direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios
atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da
União (Lei nº 9.784/99). Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte,
ano 2, nº 6, pp. 1-59, jul./set. 2004;
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo.
12ª. edição, Ed. Atlas, São Paulo, 2000, p. 85. A teoria da evidência é adiante exposta pela
autora nos seguintes termos:
“condicionante da aplicação do
princípio da segurança jurídica,
é o objeto da denominada teoria da evidência, que sustenta,
em síntese, que o vício manifesto e grave, cuja existência
não suscita discordância quando de sua edição, dispensando
o discernimento técnico de
profissionais do direito para ser
caracterizado, não é sanável.
Na mesma linha, a contrario
sensu, o ato praticado, ainda
que possa ser acoimado de
vícios, se não eram evidentes desde sua origem a uma
pessoa de mediana cultura e
de bom senso, demandando
conhecimentos jurídicos especializados de um bacharel para
caracteriza-los, será sanável”.
(Ob. cit., p. 216)
111
112
SCHREIBER, Anderson. A
proibição de comportamento
contraditório: tutela da confiança e ‘venire contra factum proprium’. Rio de Janeiro: Renovar,
2005, p. 208.
FGV DIREITO RIO
37
atividades e atos administrativos
Aula 7: Os princípios da moralidade, da eficiência e da
publicidade dos atos administrativos
Objetivo:
O objetivo desta aula será travar um amplo debate acerca do conteúdo dos princípios
da moralidade, eficiência e publicidade dos atos da Administração Pública, permitindo,
sobretudo, observar como esses princípios se entrecruzam e constituem importante rol de
garantias do cidadão face a atos comissivos e omissivos do poder público.
Introdução:
Os três princípios constitucionais da Administração Pública que constituem o objeto
de reflexão desta aula encontram-se positivados no art. 37, caput, da Constituição, informando todos os atos da Administração, nas suas mais diversas esferas de atuação.
A seguir buscar-se-á apresentar brevemente algumas considerações tecidas pela doutrina sobre cada um desses princípios para que, em seguida, e utilizando os elementos obtidos
a partir das leituras realizadas pela aula, possa-se discutir o caso gerador.
Moralidade
Foi Maurice Hauriou, em 1914113, quem teorizou, inicialmente, o princípio da moralidade administrativa em uma de suas notas à jurisprudência do Conselho de Estado
Francês.114
Ao comentar a linha de pensamento do mestre de Toulouse, Celso Antonio Bandeira
de Mello115 afirma a impossibilidade de a Administração Pública agir de modo malicioso
e/ou astucioso:
De acordo com ele (Hauriou) a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio direito, configurando
ilicitude que assujeita a conduta viciada à invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros
de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição. Compreendem-se em seu
âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e da boa-fé, tão oportunamente
encarecidos pelo mestre espanhol Jesus Gonzáles Peres em monografia preciosa. Segundo os
cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso,
eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de
direitos por parte dos cidadãos.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro observa sobre a convivência entre o princípio da moralidade administrativa e o princípio da legalidade que “antiga é a distinção entre moral e
direito, ambos representados por círculos concêntricos, sendo que o maior corresponde à
moral e, o menor, ao direito. Licitude e honestidade seriam os traços distintivos entre o
Ver em sua obra Précis de
Droit Administratif, Larose.
113
Entre nós o estudo da moralidade administrativa teve o
pioneirismo do Professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho O Controle da moralidade
Administrativa. São Paulo: Ed.
Saraiva, 1974.
114
Elementos de Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo:
Malheiros, 1992, p. 61.
115
FGV DIREITO RIO
38
atividades e atos administrativos
direito e a moral, numa aceitação ampla do brocardo segundo o qual non omne quod liced
honestum est (nem tudo o que é legal é moral)”.116
Em sentido semelhante, é a distinção assinalada por José Augusto Delgado117, que
assevera que enquanto o princípio da legalidade exige ação administrativa de acordo com a
lei, o da moralidade prega um comportamento do administrador que demonstre haver assumido como móbil da sua ação a própria idéia do dever de exercer uma boa administração.
Dessa forma, uma vez reconhecida, pela doutrina publicista a diferença ontológica entre a moralidade administrativa e o princípio da legalidade, foi possível que a Constituição
Federal de 1988 pudesse estabelecer esses dois valores do Estado Democrático de Direito,
como princípios informativos e tutelares da Administração Pública, na forma do caput de
seu artigo 37, in verbis:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e também, aos seguintes:
A moralidade administrativa, a partir da Constituição de 1988, passou a ser princípio jurídico explicitamente positivado no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que o
preceito ético deixa de ser valor e passa a ser princípio, deixa de ter um caráter teleológico e
passa a ter um valor deontológico.118
Por isso, José Augusto Delgado sustenta que o princípio da moralidade administrativa
não deve acolher posicionamentos doutrinários que limitem a sua extensão. Para o Autor,
imoral é o ato administrativo que não respeita o conjunto de solenidades indispensáveis
para a sua exteriorização; quando foge da oportunidade ou da conveniência de natureza
pública; quando abusa no seu proceder e fere direitos subjetivos ou privados; quando a ação
é maliciosa, imprudente, mesmo que somente no futuro essas feições ou algumas delas se
tornem reais.119
Diogo de Figueiredo Moreira Neto ressalta o conteúdo eminentemente finalístico do
princípio da moralidade da Administração Pública, nos seguintes termos:
Considera-se, portanto, na moral administrativa, o resultado, desvinculadamente da
intenção de produzi-lo, pois está-se diante de um conceito orientado pela finalidade. (...)
Ora, esse bom resultado, objetivamente considerado, a que moralmente deve tender a Administração Pública, só pode ser o que concorra para a realização da boa administração,
inegavelmente o que satisfaz o direcionamento aos interesses públicos, o que vem a ser seu
fim institucional.120
Não se pode deixar de considerar que a moralidade administrativa pode ser violada
tanto por atos comissivos quanto omissivos. É nesse sentido que Iara Leal Gasos, ao tratar
da atitude omissiva do Estado, invoca o princípio da moralidade:
Direito Administrativo. 19ª
ed. São Paulo: Atlas, 2006,
p. 66.
116
O Princípio da Moralidade
Administrativa e a Constituição
Federal de 1988, Revista dos
Tribunais, v. 680, 1992, p. 35.
117
GRAU, Eros Roberto. O Direito posto e o Direito pressuposto,
São Paulo, Malheiros, 1996, p.
78-79.
118
O princípio da moralidade
administrativa e a constituição
federal de 1988. Revista dos
Tribunais, São Paulo, v. 680,
p.38, jun. 1992. No mesmo
diapasão, vale colacionar o posicionamento de Sergio Ferraz
e Adilson de Abreu Dallari em
obra específica sobre processo
administrativo: “Em síntese,
não faz sentido atentar-se
contra as instituições e seus
valores fundamentais, em holocausto a concepções pessoais
de moral, mas é perfeitamente
possível zelar pela moralidade
administrativa, por meio da
correta utilização dos instrumentos para isso existentes
na ordem jurídica, entre os
quais merece posição de destaque exatamente o processo
administrativo, pela extrema
amplitude de investigação
que nele se permite, chegando
mesmo ao mérito do ato ou da
decisão, ao questionamento de
sua oportunidade e conveniência”. FERRAZ, Sérgio; DALLARI,
Adilson Abreu. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros
Editores, 2001, p. 70.
119
MOREIRA NETO, Digo de Figueiredo. Mutações de direito
administrativo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 59.
120
Um ato flagrantemente omisso, injusto, que deixa o particular ou a coletividade sofrer
lesão, ou coloca-os em situação de perigo iminente, é um ato atentatório à moral da sociedade; estando, então, acobertados pelo manto constitucional, pelo interesse e pela legitimidade,
a bater à porta do Judiciário, por se virem lesados em seus direitos.121
GASOS, Iara Leal. A omissão
abusiva do poder de polícia. Rio
de Janeiro: Lumen Iuris, 1994,
p. 91.
121
FGV DIREITO RIO
39
atividades e atos administrativos
A moralidade administrativa possui atualmente uma dimensão de extrema relevância,
consistente no dever de atuação proba da Administração Pública. É nesse sentido que o art.
37, §4º, da Constituição determina:
§4º. Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na
forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Em obediência a esse mandamento constitucional, foi promulgada a Lei nº 8.429, de
02.06.1992, a qual dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício do mandato, cargo, emprego ou função na administração
direta, indireta ou fundacional. Nesse sentido, o art. 4º da Lei nº 8.429 determina:
Art. 4° Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela
estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no
trato dos assuntos que lhe são afetos.
A Lei nº 8.429/92 apresenta três distintas classes de atos de improbidade administrativa. O art. 9º elenca os atos de improbidade administrativa dos quais decorre enriquecimento ilícito; o art. 10 dispõe sobre os atos de improbidade administrativa que causam
prejuízo ao erário; e o art. 11, por sua vez, disciplina os atos de improbidade administrativa
que atentam contra os princípios da Administração Pública.
Além dos instrumentos processuais previstos na Lei nº 8.429/92, também a ação popular e a ação civil pública constituem instrumentos jurídicos eficazes na tutela do princípio
da moralidade contra atuações da Administração pública capazes de gerar dano ao erário.
Eficiência
De acordo com o princípio da eficiência, o Administrador Público possui o dever de
realizar suas atribuições com presteza e rendimento funcional, de modo que as atividades
administrativas sejam executadas com agilidade e rapidez, para não deixarem desatendidos
e prejudicados os interesses coletivos e de cada um dos cidadãos. O mandamento da eficiência significa que a gestão pública deverá perseguir o máximo de eficácia com o mínimo
de sacrifício para a coletividade.
O princípio da eficiência, positivado em nosso ordenamento constitucional desde
a edição da Emenda nº 19/98, na lição de Odete Medauar, “determina que a Administração deve agir, de modo rápido e preciso, para produzir resultados que satisfaçam as
necessidades da população. Eficiência contrapõe-se a lentidão, a descaso, a negligência, a
omissão”.122
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, por sua vez, comenta que as raízes do princípio
da eficiência residem no desenvolvimento da teoria da administração pública gerencial, de
matriz anglo-saxônica, a partir da qual:
Passou-se a reconhecer não ser o bastante o praticarem-se atos que simplesmente estivessem aptos a produzir os resultados deles juridicamente esperados, o que atenderia apenas
ao conceito clássico de eficácia. Exigiu-se mais: que esses atos devessem ser praticados com
MEDAUAR, Odete. Direito
administrativo moderno. 6ª ed.
São Paulo: RT, 2002, p. 157.
122
FGV DIREITO RIO
40
atividades e atos administrativos
tais qualidades intrínsecas de excelência, que possibilitassem lograr-se o melhor atendimento
possível das finalidades previstas em lei.123
Dessa forma, Antônio Carlos Cintra do Amaral observa que “o princípio da eficiência,
contido no caput do art. 37 da Constituição, refere-se à noção de obrigações de meios. Ao
dizer-se que o agente administrativo deve ser eficiente está-se dizendo que ele deve agir (...)
com a ‘diligência do bom pai de família’”.124
Deve-se observar que as qualidades exigidas da atuação do administrador devem apresentar caráter objetivo e ser pré-conhecidas, de forma a possibilitar o controle de sua atuação (seja no próprio âmbito da Administração, pelo Tribunal de Contas ou pelo Poder
Judiciário). É preciso ressaltar a importância de se tratar a exigência de eficiência dos atos
da Administração Pública sempre sob um prisma objetivo, ou seja, o atingimento do parâmetro de eficiência não poderá jamais ser uma questão de natureza subjetiva, sob o risco de
instaurar-se o arbítrio quando do controle de tais atos.125
De todo modo, é relevante destacar que a eficiência administrativa não pode ser examinada no caso concreto de forma isolada dos demais princípios jurídicos. “Quando se
entende que a eficiência deve abranger a análise dos meios e dos resultados, não significa que
somente devem ser considerados a celeridade, prestabilidade, a racionalidade e a economicidade, ou quaisquer dos critérios metajurídicos propostos pela doutrina especializada. A sua
natureza abrangente manifesta-se claramente quando se considera que não pode ser eficiente um ato que afronte outro princípio, devido à possibilidade de anulação do mesmo.”126
Especialmente com relação à legalidade, é preciso ter sempre em consideração que somente existem atos administrativos eficientes dentro do ambiente da legalidade. Conforme
destaca Antonio Carlos Cintra do Amaral, “dizer-se que a Administração está autorizada a
praticar atos ilegais, desde que isso contribua para aumentar sua eficiência, é no mínimo tão
absurdo quanto dizer-se que uma empresa privada pode praticar atos ilícitos, desde que isso
contribua para aumentar sua eficiência”.127
Como podemos ver, também o mandamento da eficiência deve ser observado em um
ambiente de valorização e sopesamento principiológico, conjugando-se a eficiência com
outros princípios informadores do Estado Democrático de Direito.
Mutações do direito público,
p. 310.
123
Publicidade
Conforme explana Odete Medauar, o princípio de publicidade refere-se ao dever de
transparência das atividades administrativas. Nas palavras da autora, “O tema da transparência ou visibilidade, também tratado como publicidade da atuação administrativa, encontra-se associado à reivindicação geral de democracia administrativa”128.
No entanto, algumas autoridades públicas costumam confundir o dever de informação subjacente ao princípio da publicidade com a realização de propaganda comercial.
Considerando o princípio da publicidade atrelado ao da moralidade, reflita sobre se a
propaganda promovida pelos governos representa uma forma de concretização do princípio
da publicidade. Busque elencar outros meios de concretização do princípio da publicidade
à disposição do poder público.
AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. O princípio da eficiência
no direito administrativo. Revista Diálogo Jurídico, Salvador,
CAJ – Centro de Atualização
Jurídica, nº 14, junho-agosto,
2002, Disponível em <http://
www.direitopublico.com.br>
Acesso em 24.06.2006, p. 5.
124
Conforme Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Mutações
do direito público, p. 311.
125
GABARDO, Emerson. Princípio constitucional da eficiência
administrativa. São Paulo: Dialética, 2002, p. 97.
126
127
Op. cit., p. 6.
Direito administrativo moderno. São Paulo: RT, 2002,
p. 155.
128
FGV DIREITO RIO
41
atividades e atos administrativos
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 17 a 21.
Casos geradores:
Caso Gerador 1:
A empresa de radiodifusão ABC Ltda., rádio comunitária, impetrou mandado de segurança preventivo, objetivando obter tutela jurisdicional ao seu direito de seguir exercendo
sua atividade econômica, na pendência de análise, pelo Poder Executivo, de pleito de autorização de funcionamento formulado à Administração Pública.
A sociedade impetrante iniciou suas atividades em uma época na qual não havia tal exigência, atualmente prevista no art. 223 da Constituição Federal e na Lei nº 9.612/1998. Além
disso, desde 1996 havia requerido ao Ministério das Comunicações a outorga de autorização
para o exercício da atividade de radiodifusão, em processo administrativo que permanecia em
análise na data da propositura da ação. Mesmo assim, a impetrante vinha sendo ameaçada de
autuação, por estar funcionando sem requisito legalmente exigível (a autorização).
Em primeira instância, foi concedida a segurança, determinando o Juízo que o poder
público se abstivesse de qualquer medida no sentido de impedir o funcionamento da impetrante, até que finda a análise do processo de deferimento da autorização. Em sua decisão, o
Magistrado mencionou que ofenderia o juízo de proporcionalidade obstar o funcionamento
de empresa que presta serviço de relevante interesse coletivo, se na verdade o requisito legal
que lhe é exigível depende de ato da própria Administração. Invocou, nesse sentido, os
arts. 48 e 49 da Lei nº 9.784/1999 (a Lei de Processo Administrativo Federal), segundo os
quais, finda a instrução, a Administração tem o dever de decidir no prazo de 30 dias, salvo
prorrogação motivada por igual período.
Contra a decisão recorreram a União Federal e a ANATEL, alegando que, sem a autorização em tela, a Impetrante estaria atuando de forma clandestina, conduta que constituía
inclusive crime punível nos termos do art. 70 do Código Brasileiro de Telecomunicações
(Lei nº 4.117/1962). Adicionalmente, a Impetrante estaria operando em freqüência distinta da prevista na Lei nº 9.612/1998, de forma que seu pleito, realizado fora das condições
estabelecidas pela superveniente Lei nº 9.612/1998 - à qual não buscara se adequar – caracterizava infração à legislação regedora das empresas de radiodifusão, devendo, portanto, ser
reformada a sentença proferida.
A partir dos dados acima apresentados, reflita sobre a incidência, no caso, do princípio
da eficiência da Administração, do princípio da legalidade, do dever de tutela do interesse
coletivo pela Administração Pública e demais valores juridicamente relevantes discutidos no
caso em comento.
Caso gerador 2:
O Ministério Público do Estado de São Paulo ingressou com ação civil pública em
face do prefeito da Cidade de Dracena, acusando-o de improbidade administrativa por ter
FGV DIREITO RIO
42
atividades e atos administrativos
utilizado frases como “Dracena Todos por Todos Rumo ao Ano 2000” e “Dracena Rumo
ao Ano 2000”, as quais tinham sido utilizadas em sua campanha eleitoral, em fachadas
de órgão públicos municipais, veículos e placas de inauguração, uniformes dos alunos das
escolas e creches públicas, jornais da região, carnês de pagamento de tributos e publicações
especiais da Prefeitura.
A ação foi julgada procedente em parte, sendo que o político teve seus direitos políticos suspensos por três anos, além de ter ficado proibido de contratar, receber benefício,
incentivo fiscal ou creditício, direto ou indireto, junto ao Poder Público, por igual prazo,
além de ter sido condenado ao pagamento de multa, no valor equivalente a dez vezes a sua
atual remuneração, e a ressarcir ao Município os gastos efetuados com recursos públicos na
inserção das expressões em bens e atos da Administração.
Após a decisão de segunda instância confirmando os termos da sentença proferida, o
prefeito recorreu especialmente ao STJ, que então exarou seu entendimento sobre o tema,
em acórdão que restou assim ementado:
2. A ação civil pública protege interesses não só de ordem patrimonial como, também,
de ordem moral e cívica. O seu objetivo não é apenas restabelecer a legalidade, mas também
punir ou reprimir a imoralidade administrativa a par de ver observados os princípios gerais da
administração. Essa ação constitui, portanto, meio adequado para resguardar o patrimônio
público, buscando o ressarcimento do dano provocado ao erário, tendo o Ministério Público
legitimidade para propô-la. Precedentes. Ofensa ao art. 267, IV, do CPC, que se repele.
3. A violação de princípio é o mais grave atentado cometido contra a Administração Pública porque é a completa e subversiva maneira frontal de ofender as bases orgânicas do complexo administrativo. A inobservância dos princípios acarreta responsabilidade, pois o art. 11
da Lei 8.429/92 censura “condutas que não implicam necessariamente locupletamento de
caráter financeiro ou material” (Wallace Paiva Martins Júnior, “Probidade Administrativa”,
Ed. Saraiva, 2ª ed., 2002).
4. O que deve inspirar o administrador público é a vontade de fazer justiça para os
cidadãos, sendo eficiente para com a própria administração. O cumprimento dos princípios
administrativos, além de se constituir um dever do administrador, apresenta-se como um
direito subjetivo de cada cidadão. Não satisfaz mais às aspirações da Nação a atuação do
Estado de modo compatível apenas com a mera ordem legal, exige-se muito mais: necessário
se torna que a gestão da coisa pública obedeça a determinados princípios que conduzam à
valorização da dignidade humana, ao respeito à cidadania e à construção de uma sociedade
justa e solidária.
5. A elevação da dignidade do princípio da moralidade administrativa ao patamar constitucional, embora desnecessária, porque no fundo o Estado possui uma só personalidade,
que é a moral, consubstancia uma conquista da Nação que, incessantemente, por todos os
seus segmentos, estava a exigir uma providência mais eficaz contra a prática de atos dos agentes públicos violadores desse preceito maior.
6. A tutela específica do art. 11 da Lei 8.429/92 é dirigida às bases axiológicas e éticas da
Administração, realçando o aspecto da proteção de valores imateriais integrantes de seu acervo com a censura do dano moral. Para a caracterização dessa espécie de improbidade dispensa-se o prejuízo material na medida em que censurado é o prejuízo moral. A corroborar esse
entendimento, o teor do inciso III do art. 12 da lei em comento, que dispõe sobre as penas
aplicáveis, sendo muito claro ao consignar, “na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do
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atividades e atos administrativos
dano, se houver...” (sem grifo no original). O objetivo maior é a proteção dos valores éticos
e morais da estrutura administrativa brasileira, independentemente da ocorrência de efetiva
lesão ao erário no seu aspecto material.
7. A infringência do art. 12 da Lei 8.429/92 não se perfaz. As sanções aplicadas não
foram desproporcionais, estando adequadas a um critério de razoabilidade e condizentes com
os patamares estipulados para o tipo de ato acoimado de ímprobo.
Com base nos seus estudos sobre o princípio da moralidade administrativa e a Lei de
Improbidade Administrativa, busque encontrar, na decisão do Superior Tribunal de Justiça,
elementos que auxiliem no delineamento do conteúdo desse princípio.
Leitura complementar:
DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos. São Paulo: Max Limonad, 2002, pp.
135 a 153.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo, RT, pp. 151 a 156.
SOUTO, Marcos Juruena Villela. “Privatização e eficiência”. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (coord.) Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 233 a 241;
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atividades e atos administrativos
Bloco II – Poder de Polícia
Objetivo:
O poder de polícia constitui um dos mais clássicos institutos do Direito Administrativo. O objetivo deste bloco é apresentar uma visão atual desse poder-função do poder
público, calcada nos limites ao exercício da atividade de polícia da Administração Pública
que decorrem da perspectiva constitucional do Estado Democrático de Direito.
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atividades e atos administrativos
Aula 8: Poder de polícia: significado e conteúdo
Objetivo:
Apresentar e discutir os possíveis conteúdos insertos na expressão “poder de polícia”,
incluindo breve abordagem histórica, seus aspectos preventivo e repressivo e suas principais
modalidades (ordem consentimento, fiscalização e sanção)
Introdução:
O Estado Democrático de Direito estabelece um regime de liberdades fundamentais,
assegurando aos cidadãos um elenco de direitos individuais, constitucionalmente protegidos, os quais devem ser exercidos com observância e respeito aos direitos dos demais cidadãos. Por ter o Estado avocado para si a obrigação de manter incólumes os direitos individuais, tornou-se indispensável disciplinar os aspectos da vida social e dotar a Administração
Pública de funções para restringir o direito e proibir o abuso.
Bem por isso, há necessidade de que os “direitos-liberdades” sejam assegurados e dispostos pelo Estado, de forma que o mesmo passe a gozar de coercibilidade.129
Nesse sentido, a Administração Pública detém o denominado “poder de polícia”, que
consiste em um conjunto de intervenções do poder público, no sentido de disciplinar a ação
dos particulares, objetivando prevenir ou reprimir perturbações à ordem pública. Tome-se,
como exemplo, um veículo estacionado em plena rodovia, causando transtornos para os
usuários daquele espaço público. Neste caso, a Administração Pública tem que ser dotada
de poder para retirar o veículo, queira o seu proprietário ou não.
Desta forma, a Administração Pública pode (i) condicionar o exercício de direitos
individuais, (ii) delimitar a execução de atividades, e (iii) condicionar o uso de bens que afetem a coletividade ou contrariem a ordem jurídica estabelecida ou se oponham aos objetivos
permanentes da nação. Conforme lição de Marcello Caetano,
a polícia é atuação da autoridade, pois pressupõe o exercício de um poder condicionante de atividades alheias, garantido pela coação sob a forma característica da Administração,
isto é, por execução prévia. É uma intervenção no exercício de atividades individuais e a
possibilidade da sua violação por estes. (...) A polícia intervém nas atividades individuais de
fazer perigar interesses gerais. Só aquilo que constitua perigo susceptível de projetar-se na vida
pública interessa à Polícia, e não o que apenas afete interesses privados ou a intimidade das
existências pessoais.130
Cumpre destacar que por poder de polícia deve-se entender, na esteira do conceito
positivado no art. 78, do Código Tributário Nacional, como sendo:
a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse
ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público
concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do
mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do
JEAN-MARIE BÉCET e DANIEL COLARD. Les Conditions
d’Existence des Libertes, Paris :
La Documentation Française,
1985, p. 25.
129
Princípios Fundamentais do
Direito Administrativo”, Coimbra, Almeidina, 1992, p. 270.
130
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atividades e atos administrativos
Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais
ou coletivos.
Considera-se como regular exercício do poder de polícia, de acordo com o disposto no
parágrafo único do citado art. 78 do CTN, o “desempenhado pelo órgão competente nos
limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a
lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder”. Ou seja, é pressuposto legal
para o exercício do poder de polícia que o mesmo seja exercido pela autoridade pública a
qual a lei atribuiu competência.
De acordo com Diogo de Figueiredo Moreira Neto131, o poder de polícia pode ser
exercido de quatro distintas formas: (i) através da ordem de polícia, que vem a ser uma determinação geral e abstrata para que não se faça aquilo que possa prejudicar o interesse geral ou
para que não se deixe de fazer alguma coisa que poderá evitar ulterior prejuízo público; (ii)
pelo consentimento de polícia, que são as hipóteses nas quais o legislador exige um controle
prévio da compatibilidade do uso do bem ou do exercício de uma atividade com o interesse
público (por exemplo, as atividades que requerem licenciamento ambiental ou autorização
prévia da Prefeitura); (iii) pela fiscalização de polícia, que se destina a verificar se estão sendo cumpridas as ordens de polícia e se estão ocorrendo abusos no exercício das atividades
privadas que foram objeto de consentimentos de polícia, e (iv) pela sanção de polícia, que
consiste na aplicação dos instrumentos de intervenção punitiva do Estado sobre propriedade
privada e as atividades particulares.
Assim, é preciso considerar que o poder de polícia possui tanto uma feição executiva
quanto uma face normativa. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, “o poder
de Polícia Administrativa se manifesta tanto através de atos normativos e de alcance geral
quanto de atos concretos e específicos”.132
Leitura obrigatória:
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, capítulo XIII (“poder de polícia”), itens I a IX.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 63 a 83.
Caso gerador:
Mércio, advogado de grande reputação na cidade onde atua, sentiu-se profundamente
abalado em sua moral com a instalação de detectores de metais na entrada do Tribunal de
Justiça.
Dessa forma, impetrou habeas corpus, sustentando que referido ato administrativo do
Tribunal violava o seu direito ao efetivo exercício da advocacia, tendo sido exarado com
abuso de poder por parte da Administração do Tribunal. Em suas razões, aduz sentir-se
profundamente constrangido com as revistas em sua pasta e pertences a que, por vezes,
foi forçado a se submeter, o que lhe acarreta dano moral inestimável. Frisa ser o advogado
função essencial à administração da Justiça, sendo que o Tribunal subverteria esse ditame
MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Curso de direito administrativo. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ed. Forense,
1997. pp. 301/4.
131
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Apontamentos sobre
o poder de polícia”. Revista de
Direito Público nº 9, p. 61.
132
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
constitucional, ao presumir que os advogados poderiam trazer consigo instrumentos metálicos capazes de pôr em risco a integridade física daqueles que diariamente transitam por
suas instalações.
O Tribunal, por sua vez, argumenta que a medida foi adotada em prol da segurança
pública de todos os cidadãos, que é seu dever zelar pela integridade física de todos os usuários e funcionários do Poder Judiciário, tratando-se, por conseguinte, de medida de polícia
administrativa que obedece ao ditame da proporcionalidade. Aduz, ainda, que todos aqueles
que ingressam no Tribunal são submetidos ao detector de metais, e que liberar os advogados
de tal dever constituiria privilégio que ofenderia o princípio da isonomia no trato de todos
os cidadãos que freqüentam prédios públicos.
Como deve ser resolvida a demanda? Se, além de passagem pelo detector de metais,
fossem os ingressantes submetidos à revista pessoal, o seu parecer permaneceria o mesmo?
Leitura complementar:
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005, pp.
385 a 402.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro,
Forense, 2006, pp. 391 a 423.
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48
atividades e atos administrativos
Aula 9: Poder de polícia II: limites da intervenção do Estado sobre
a atividade econômica. Licenciamento e autorizações
Objetivo:
Apresentar a doutrina clássica sobre o tema dos licenciamentos e autorizações em
Direito Administrativo, discutindo-a à luz do princípio da legalidade e das competências
vinculadas e discricionárias da Administração Pública. Essa aula deverá ser retomada em
Direito Administrativo II, quando serão analisadas as modernas “autorizações” introduzidas
pelo direito regulatório.
Introdução:
Conforme visto na aula anterior, uma das dimensões do poder de polícia da Administração Pública consiste na necessidade de essa consentir ao exercício de determinadas
atividades pelos indivíduos para que essas possam ser desempenhadas licitamente (“consentimento de polícia”). Nesse sentido, expõe José dos Santos Carvalho Filho:
Os consentimentos representam a resposta positiva da Administração Pública aos pedidos formulados por indivíduos interessados em exercer determinada atividade, que dependa do referido consentimento para ser considerada legítima. Aqui a Polícia Administrativa
resulta da verificação que fazem os órgãos competentes sobre a existência ou inexistência de
normas restritivas e condicionadoras, relativas à atividade pretendida pelo administrado.133
De fato, na complexidade da vida em sociedade, algumas atividades requerem prévia
aprovação da Administração Pública, tais como atividades com potencial impacto ambiental, as quais devem, por conseguinte, ser objeto de licenciamento ambiental, e a construção
de imóveis em propriedades privadas, que requerem aprovação da prefeitura previamente à
edificação, e assim sucessivamente.
Dessa forma, algumas atividades privadas são submetidas a processo de licenciamento,
outras são objetos de autorização. Classicamente, costuma-se distinguir os institutos com
base em que a licença constituiria um direito do administrado passível de ser exercido por
todo aquele que se conforme às exigências legais para sua expedição, tratando-se, portanto,
de competência administrativa vinculada. Já as autorizações constituiriam exercício de competência discricionária, podendo a Administração Pública exercer um juízo de conveniência
e oportunidade quanto ao seu deferimento.134 Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella di Pietro
conceitua as autorizações como:
Ato administrativo unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração faculta ao particular o uso privativo de bem público, ou o desempenho de atividade material, ou a
prática de ato que, sem esse consentimento, seriam legalmente proibidos.135
Já a licença é “o ato administrativo unilateral e vinculado pelo qual a Administração
faculta àquele que preencha os requisitos legais o exercício de uma atividade”.
CARVALHO FILHO, José dos
Santos. Manual de direito administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2006, p. 71.
133
SUNDFELD, Carlos Ari.
“Licenças e autorizações no
direito administrativo”. Revista
Trimestral de Direito Público,
p. 68. Nesse sentido, veja-se
a seguinte passagem de José
dos Santos Carvalho Filho: “As
licenças são atos vinculados
e, como regra, definitivos, ao
passo que as autorizações espelham atos discricionários e
precários”. Op. cit., p. 71.
134
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo.
São Paulo: Atlas, 2000, p. 211.
135
FGV DIREITO RIO
49
atividades e atos administrativos
Em decorrência dessa diferenciação, uma das questões debatidas pela doutrina reside
em se o ato administrativo concessivo da licença apresenta natureza meramente declaratória, ou se também possui uma carga constitutiva. Geralmente, atribui-se carga meramente
declaratória às licenças, e constitutiva às autorizações, conforme se observa da seguinte passagem de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
No caso da licença, há um direito preexistente, embora não exeqüível, à atividade ou ao
uso do bem. O consentimento administrativo se vincula à constatação de que as limitações
opostas foram removidas, ou seja, a conditio iuris para seu exercício, satisfeita. É inexato,
portanto, afirmar-se que a licença gere direitos; ela apenas os declara exeqüíveis.
Já, distintamente, no caso da autorização, não há qualquer direito preexistente à atividade privada ou ao uso do bem particular. A atividade pretendida pelo particular é, em
princípio, vedada, existindo meras expectativas da exceção a serem consideradas administrativamente em cada caso concreto.136
Recusando-se a reconhecer uma natureza unicamente declaratória às licenças, veja-se
pensamento de Carlos Ari Sundfeld, ao analisar as licenças para construir:
O proprietário é legalmente proibido de edificar sem a prévia obtenção de licença. De
conseguinte, o ato que faculta o início da construção não pode ser meramente declaratório. Sua
expedição pressupõe, decerto, haver o Poder Público constatado que, por atender aos requisitos
da lei, o proprietário tem direito de ver deferida a licença (se se quiser, tem o direito de construir);
nesse aspecto, o ato é recognitivo do direito. No entanto, não é meramente declaratório, mas
também constitutivo, visto atribuir ao proprietário faculdade de que não dispunha antes: a de
iniciar as obras. Por mais que se queira classificar a licença como ato declaratório, ninguém negará
que o proprietário não tem qualquer espécie de direito de iniciar a edificação antes dela.137
Assim, na visão do autor, o proprietário, antes de expedida a licença, não tem direito
adquirido a construir. Como observa Carlos Ari Sundfeld, mesmo em casos de vinculação
administrativa, ou seja, quando não haja espaço para exercício de juízo de conveniência e
oportunidade pela Administração Pública, ainda assim o direito não preexiste ao ato autorizativo ou concessivo da licença. Isso porque existem hipóteses em que a autoridade deve
considerar, além do enquadramento subjetivo do demandante aos requisitos da lei, fatores
exógenos, como no caso em que um empreendedor pretenda construir um shopping center,
cuja licença estará necessariamente subordinada à análise do potencial impacto ambiental
decorrente do empreendimento. Em síntese, na visão do autor:
O quanto visto demonstra a necessidade de distinguir ao menos dois tipos de atos ordenadores ampliativos de direito privado, praticados sem qualquer discricionariedade: a) ato
em cuja emanação o poder público deve analisar apenas as condições próprias do sujeito ou
do objeto a que a atividade se refere, para verificar se correspondem às exigidas pela lei (caso
da típica licença para construir); e b) caso em cuja produção a Administração analisa não só
as condições do sujeito ou do objeto mas, também, atos externos a eles.138
Cumpre mencionar que, em algumas ocasiões, apresentam-se limitadas as quantidades de licenças e autorizações que o poder público é capaz de conceder (a própria lei pode
MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006 p. 399. No
mesmo sentido, veja-se Maria
Sylvia Zanella di pietro: “A autorização é um ato constitutivo
e a licença é ato declaratório
de direito preexistente”. Direito administrativo. São Paulo:
Atlas, 2000, p. 212.
136
SUNDFELD, Carlos Ari.
“Licenças e autorizações no
direito administrativo”. Revista
Trimestral de Direito Público, v.
3, p. 66.
137
138
Op. cit., p. 69.
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
limitá-las, por exemplo). Nesses casos, o ato concessivo da licença ou autorização deverá ser
precedido de licitação, a fim de se respeitar o princípio da isonomia entre os administrados
potencialmente interessados na sua obtenção.
Leitura obrigatória:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, pp. 117 a
125.
Caso gerador:
A Prefeitura de Petrópolis concedeu à sociedade empresarial ABC Confecções Ltda.,
no ano de 2000, autorização para colocação de painel publicitário iluminado em seu estabelecimento comercial, mediante pagamento de taxa à municipalidade.
No entanto, no ano de 2002, foi promulgada pela Câmara de Vereadores nova lei de
posturas municipais, visando proteger o conjunto arquitetônico da cidade, e com a qual o
referido letreiro não mais se conforma. Em conseqüência, a municipalidade revogou as autorizações anteriormente concedidas a diversos comerciantes que mantinham letreiros não
condizentes com a novel legislação, e tem realizado fiscalizações constantes no sentido de
autuar aqueles que insistirem em desrespeitar a lei de posturas do município.
Ante a iminência de ser autuada, a sociedade ABC Confecções Ltda. pretende impetrar mandado de segurança contra o ato do prefeito que cassou a sua autorização para
exibição do letreiro, pois que concedida anteriormente da entrada em vigor da nova lei.
Como advogado da sociedade, o que você aconselharia?139
Leitura complementar:
SUNDFELD, Carlos Ari. “Condicionamentos e sacrifícios de direitos – distinções”. Revista
Trimestral de Direito Público, v. 4, pp. 79 a 83;
SUNDFELD, Carlos Ari. “Licenças e autorizações no direito administrativo”. Revista Trimestral de Direito Público, v. 3, pp. 66 a 72.
Inspirado na decisão proferida no AI 2005.002.14088,
Sexta Câmara Cível do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro.
139
FGV DIREITO RIO
51
atividades e atos administrativos
Bloco III – Administração Pública Direta e Indireta
Objetivo:
Neste bloco serão apresentadas as pessoas que compõem a Administração Pública,
diferenciando-se as suas funções, bem como a sua natureza jurídica pública ou privada.
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
Aula 10: Administração pública direta e indireta: o regime jurídico
das autarquias e das universidades
Objetivo:
Explanar a possibilidade de descentralização das atividades administrativas, com ênfase nas autarquias, instituto cuja importância foi novamente posta em destaque a partir dos
anos 90, com a criação das agências reguladoras.
Introdução:
A Administração Pública centralizada ou direta é aquela exercida diretamente pela
União, Estados e Municípios que, para tal fim, utiliza-se de ministérios, departamentos, e
outros órgãos. Por outro lado, a Administração Pública descentralizada ou indireta é exercida por outras pessoas jurídicas que não se confundem com os entes federados, criadas pelos
mesmos, a saber: autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista.
Para o objeto da nossa aula, vamos examinar os seguintes entes da administração indireta: a
autarquia e as universidades.
Autarquia
O termo autarquia surgiu na Itália em 1897 quando Santi Romano discorria sobre
o tema “decentramento amministrativo”, referindo-se às comunas, províncias e outros entes
públicos existentes nos Estados unitários.140
No direito positivo brasileiro, as autarquias surgiram no Decreto-Lei nº 6.016, de 22
de novembro de 1943, como sendo o serviço estatal descentralizado com personalidade de
direito público, explícita ou implicitamente reconhecida por lei.
Em 1949, a Lei nº 830, de 23 de setembro, que reorganizou o Tribunal de Contas da
União, regulamentando o artigo 97 da Constituição Federal então vigente, definiu em seu
artigo 139 as entidades autárquicas como sendo: (i) o serviço estatal, descentralizado, com
personalidade jurídica, custeado mediante orçamento próprio, independente do orçamento
geral; e (ii) as demais pessoas jurídicas especialmente instituídas por lei para execução de
serviço de interesse público ou social, custeadas por tributos de qualquer natureza ou por
outros recursos oriundos do Tesouro.
Por sua vez, o Decreto-Lei nº 200, de 25/2/1967, que dispõe sobre a organização da
Administração Federal e estabeleceu diretrizes para a Reforma Administrativa, definiu autarquia como sendo:
o serviço autônomo criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita
próprios, para executar atividades típicas da administração pública que requeiram, para seu
melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo.
14a ed. São Paulo: Atlas, 2002,
p. 366
140
A definição trazida pelo Decreto-Lei nº 200/1967 deixa extreme de dúvidas que as
autarquias exercem funções administrativas – “atividades típicas da administração pública”,
FGV DIREITO RIO
53
atividades e atos administrativos
sendo, por conseguinte, pessoas jurídicas de direito público. As autarquias possuem determinado grau de autonomia face à Administração Pública Direta, uma vez que lhe são inerentes as características de personalidade jurídica própria, bem como patrimônio e receitas
próprios.
As autarquias, sendo pessoas jurídicas de direito público interno, são instituídas por lei
em sentido estrito, nos termos do art. 37, XIX, da Constituição Federal de 1988:
Somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de
empresa pública, sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar,
neste último caso, definir as áreas de atuação.
Sendo parte da Administração Pública, o anteprojeto de lei que as institui será de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo, a teor do art. 61, §1º, II, ‘e’, CF/88:
Art. 61. (...)
“§1º. São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: (...)
II – disponham sobre: (...)
e) Criação e extinção de Ministérios e órgãos da Administração pública, observado o
disposto no art. 84, VI;”
Com a reforma do Estado empreendida ao longo da década de 90, o instituto da
autarquia foi revisitado, com a criação das agências reguladoras, as quais possuem natureza
jurídica de autarquias especiais. As características que tornam as agências reguladoras autarquias “especiais” serão objeto de estudo em Direito Administrativo II.
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de
Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 369 a 403; 422 a 446.
Caso gerador:
Trata-se de mandado de segurança impetrado pelo Sindicato Nacional dos Docentes
das Instituições de Ensino Superior em face da União Federal, alegando violação ao princípio da autonomia universitária, esculpido no art. 207, caput, da Constituição Federal de
1988.
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de
gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão.
O writ foi impetrado porque a União Federal suspendeu, por meio de ato administrativo, aumento nos vencimentos outorgados por universidade pública aos seus servidores,
a partir de extensão conferida, na esfera administrativa, sem lei específica nem previsão
FGV DIREITO RIO
54
atividades e atos administrativos
orçamentária, a uma decisão judicial que havia conferido determinado benefício a um
único professor, de uma universidade federal. De acordo com a Administração, o ato da
universidade ofenderia os arts. 37, X e 169, §1º, I, II e III da Constituição de 1988.
Sustentando a legalidade do ato que conferiu referido aumento, o Sindicato clama
pelo respeito ao princípio da autonomia universitária, que daria aos seus dirigentes o poder
de fixar os vencimentos dos servidores públicos que prestam serviço naquela entidade.
Na sua análise, considere a seguinte passagem, da lavra de Alexandre Santos de Aragão:
Com efeito, as leis costumam denominar as entidades da Administração Indireta de
autônomas, e, realmente, como pessoas jurídicas que são, não podem deixar de ser dotadas
de alguma autonomia. A disciplina legal dada à autonomia dessas entidades é, porém, muito
restrita, havendo, geralmente, até mesmo a previsão do chamado recurso hierárquico impróprio, pelo qual um ato da entidade da Administração Indireta pode ser anulado por agente do
Estado, pessoa jurídica dela distinta.
Do ponto de vista estritamente jurídico, não há nada a criticar na disciplina comumente dada pelas leis às entidades da Administração Indireta cuja autonomia não tem sede constitucional. Estamos diante de normas da mesma hierarquia, e, “quem pode dar, pode tirar”.
Sendo, todavia, a autonomia das universidades estabelecida pela Constituição, os seus
limites e conteúdo só podem ser buscados na própria Constituição, jamais na legislação infraconstitucional, não sendo entidades da Administração Indireta, desvestidas de quaisquer
garantias institucionais de nível constitucional.
(...)
As universidades, contudo, devem observar não apenas este princípio constitucional
específico, mas todos os que, explícita ou implicitamente, lhe são aplicáveis. As universidades não são entes à parte do ordenamento jurídico constitucional, muito pelo contrário: só
possuem a autonomia assegurada pela Constituição enquanto nela fundamentarem a sua
atuação.141
À luz dos valores que inspiram a descentralização da Administração Pública, como, em
sua opinião, deve ser resolvida a controvérsia?
Leitura complementar:
ARAGÃO, Alexandre Santos de. “As fundações públicas e o novo Código Civil”. Revista dos
Tribunais. São Paulo: RT, v. 815;
ARAGÃO, Alexandre Santos de. A autonomia universitária no Estado contemporâneo e no
direito positivo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2001.
DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, item 10.4 (“Fundação”).
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, pp. 243 a 261;
ARAGÃO, Alexandre Santos
de. A autonomia universitária
no Estado contemporâneo e no
direito positivo brasileiro. Rio de
Janeiro: Lumen Iuris, 2001, pp.
69 a 71.
141
FGV DIREITO RIO
55
atividades e atos administrativos
Aula 11: Administração pública direta e indireta: o regime jurídico
das empresas públicas e das sociedades de economia mista
Objetivo:
Apresentar o regime jurídico das empresas públicas, sua natureza de direito privado.
Discutir com os alunos as semelhanças e diferenças entre empresas públicas e privadas.
TÁCITO, Caio. Agências Reguladoras da Administração. Revista de Direito Administrativo,
v. 221, p.1-5
142
Introdução:
As empresas do setor público foram constituídas para acompanhar o desenvolvimento
e participação do Estado no domínio econômico. Na verdade, “são satélites do regime da
administração pública direta.”142
No Brasil, destaca-se a criação do Instituto de Resseguros do Brasil, em 1939, quando
se passou a ter em nosso país a primeira empresa pública com os contornos atuais.143
O processo de criação dessas empresas cresceu no Brasil durante a 2a Grande Guerra
Mundial, período esse em que houve redução na oferta de artigos industrializados, o que
obrigou tanto a substituição das importações quanto o fomento do desenvolvimento das
indústrias locais.
Sobre os aspectos históricos relevantes dessas sociedades no Brasil, afirma-se que:
não tinham nas suas origens essa denominação genérica e nem representaram um deliberado avanço na técnica da execução do setor industrial dos serviços públicos. Razões diversas, todas de ordem prática, foram propiciando ao Poder Público o ensejo de associar-se a empresas particulares para o desempenho de certos serviços de natureza comercial ou industrial.
A inovação substancial do sistema consistiu em que o Estado passou a associar-se a ‘empresas
privadas’ para a realização de seus objetivos. A sociedade comercial, que já se havia revelado
um importante instrumento na expansão da economia particular, quer pelas possibilidades
de aglutinação de pequenas parcelas de capital, quer pelas novas técnicas de organização e de
racionalização do trabalho, que começavam a ser utilizadas, passou, então, a ser adotada pelo
Poder Público, mediante variados processos de coparticipação público-privada.144
O fato é que “visando a lhes conferir a mesma agilidade, eficiência e produtividade das
empresas do setor privado e sobretudo para impedir concorrência desleal, foram criadas à
imagem e semelhança destas, principalmente pela atribuição de personalidade jurídica de
direito privado, do que decorreria a incidência precípua do direito privado sobre sua atuação. Regidas pelo direito privado, deixariam de usar de prerrogativas públicas, podendo, no
entanto, submeter-se às sujeições pertinentes. Por isso, a presença do poder estatal impede
a equiparação total.”145
O conceito de empresa estatal foi elaborado durante anos pela doutrina. Contudo, a
edição do Decreto-Lei nº 200/1967, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº
900/1969, trouxe o conceito legal de empresa pública e de sociedade de economia mista.146
A obrigatoriedade de criação das empresas públicas por lei foi elevada ao plano constitucional em 1988, nos termos do que dispõe o art. 37, incisos XIX e XX.147 Assim é que não
143
TACITO, Caio. Op. cit. p. 22.
PINTO, Bilac. O declínio das
sociedades de economia mista
e o advento das modernas
empresas públicas. RDA v.32,
p. 1-15
144
MEDAUAR, Odete. Op. cit.
p. 101.
145
“Art. 5º Para os fins desta lei,
considera-se: (...) II - Empresa
Pública - a entidade dotada
de personalidade jurídica de
direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo
da União ou de suas entidades
da Administração Indireta,
criada por lei para desempenhar atividades de natureza
empresarial que o Governo seja
levado a exercer, por motivos
de conveniência ou contingência administrativa, podendo tal
entidade revestir-se de qualquer das formas admitidas em
direito. III - Sociedade de Economia Mista - a entidade dotada de personalidade jurídica
de direito privado, criada por
lei para o exercício de atividade
de natureza mercantil, sob a
forma de sociedade anônima,
cujas ações com direito a voto
pertençam, em sua maioria, à
União ou à entidade da Administração Indireta.”
146
BRASIL. Constituição (1988).
“Art. 37. XIX – somente por lei
específica poderá ser criada
autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de
sociedade de economia mista
e de fundação, cabendo à lei
complementar, neste último
caso, definir as áreas de sua
atuação; XX - depende de autorização legislativa, em cada
caso, a criação de subsidiárias
das entidades mencionadas no
inciso anterior, assim como a
participação de qualquer delas
em empresa privada”.
147
FGV DIREITO RIO
56
atividades e atos administrativos
se configura uma empresa pública pelo simples fato do Estado deter transitória e eventual
participação societária. Deve ser criada por lei, exclusivamente para atender os interesses
públicos.
Note-se que a Emenda Constitucional nº 19/1998 acabou por flexibilizar a criação
das empresas estatais. Com efeito, as empresas públicas e sociedades de economia mista, ao
contrário do que ocorre com as autarquias, não são criadas por lei, a qual apenas autoriza a
sua criação. Assim é que a instituição de empresa estatal somente se dará quando editado o
comando administrativo pelo chefe do Poder Executivo.
Celso Antonio Bandeira de Mello assim define a empresa pública:
pessoa jurídica criada por lei como instrumento de ação do Estado, com personalidade
jurídica de Direito Privado, mas submetida a certas regras especiais decorrentes de ser coadjuvante da ação governamental, constituída sob quaisquer das formas admitidas em Direito
e cujo capital será formado unicamente por recursos de pessoas jurídicas de Direito Público
interno ou pessoas de suas Administração Indiretas, com predominância acionária residente
na esfera federal148.
Esse mesmo doutrinador adverte que “esta não é a definição que lhe confere o Decreto-Lei 200, com a redação alterada pelo Decreto-Lei 900, mas é a que se tem de adotar por
inarredável imposição lógica, em decorrência do próprio Direito Positivo brasileiro.”149
Por sua vez, sociedade de economia mista, para o administrativista, é uma “pessoa jurídica cuja criação é autorizada por lei, como um instrumento de ação do Estado, dotada de
personalidade jurídica de Direito Privado, mas submetida a certas regras especiais decorrentes
dessa sua natureza auxiliar da atuação governamental, constituída sob a forma de sociedade
anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou entidade de
sua Administração indireta, sob remanescente acionário de propriedade particular.”150
Pela natureza jurídica das empresas estatais, é comum surgirem dúvidas acerca das diferenças entre as empresas públicas e sociedades de economia mista. As diferenças existentes
entre ambas consistem nos seguintes aspectos: o capital da empresa pública é de titularidade
exclusiva de pessoa de direito público, enquanto que na sociedade de economia mista há
conjugação de recursos públicos e privados; a empresa pública pode adotar qualquer forma
societária, ao passo que a sociedade de economia mista tem que se revestir sob a forma de
sociedade anônima; as causas judiciais em que for parte a empresa pública federal tramitam
perante a Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal151; já as sociedades de economia mista terão seus feitos judiciais apreciados e julgados pela Justiça estadual.
Ademais desses pontos divergentes, Celso Antonio Bandeira de Mello aduz que “empresas públicas estão sujeitas à falência, ao passo que algumas das sociedades de economia
mista, a prestadora de serviço público, não estão.”152
Quanto ao regime jurídico das empresas estatais, é justo destacar que, em qualquer
estudo acerca da personalidade jurídica das empresas do setor público, desponta o conflito
em sede doutrinária que versa sobre o enquadramento dessas entidades na disciplina de
direito privado e sua regulação em norma institucional de direito público.
Não se contesta a afirmação de que as empresas públicas e as sociedades de economia
mista regem-se pelo regime jurídico próprio das empresas privadas, não lhes sendo aplicáveis normas de direito administrativo, salvo quando especialmente assentadas em preceito
constitucional específico.
148
Op. cit. p. 164.
149
Op. cit.
Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros,
2002, p. 168
150
BRASIL. Constituição (1988).
“Art. 109 - Aos juízes federais
compete processar e julgar: I
- as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa
pública federal forem interessadas na condição de autoras,
rés, assistentes ou oponentes,
exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas
à Justiça Eleitoral e à Justiça do
Trabalho.”
151
152
Op. Cit. p. 171.
FGV DIREITO RIO
57
atividades e atos administrativos
Assim é que, com relação à natureza dos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias, ressalvadas algumas exceções, a legislação aplicável é a de direito privado, a teor do art. 173, da Constituição Federal de 1988, que dispõe:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá
o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias
que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação
de serviços, dispondo sobre: II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas,
inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.
Houve verdadeira evolução desse dispositivo na Constituição Federal de 1988, haja
vista o texto da Carta de 1967, com a Emenda nº 1/1969, que assim estabelecia: Art. 170.
– (...) § 2o – Na exploração, pelo Estado, da atividade econômica, as empresas públicas e
as sociedades de economia mista reger-se-ão pelas normas aplicáveis às empresas privadas
inclusive quanto ao direito do trabalho e ao das obrigações.
Sobre essa evolução da Carta Política, colhe-se a manifestação doutrinária de Jose
Edwaldo Tavares Borba, para quem “a Constituição revogada distinguia, portanto, as relações externas da sociedade, âmbito no qual se desenvolve a exploração da atividade econômica, das relações internas, as quais têm lugar entre os acionistas, destes para com a sociedade, e ainda entre o controlador e a administração da sociedade, subordinando à legislação
privada apenas as relações externas. A Constituição em vigor eliminou a restritiva ‘na exploração da atividade econômica’, e submeteu as sociedades de economia mista e empresas públicas, de modo completo, ‘ao regime jurídico próprio das empresas privadas’. (...) Afastada,
portanto, qualquer distinção entre atividade interna e externa da empresa governamental,
daí se deduz que toda a sua atuação, todos os seus negócios e todas as suas relações deverão
observar, plenamente, as mesmas normas que incidem sobre as sociedades comerciais em
geral, ressalvadas naturalmente as exceções que decorrem da própria Constituição.”153
É certo, porém, que, não obstante a natureza privada das obrigações das empresas públicas
e sociedade de economia mista há exceções a serem observadas por essas espécies de sociedades.
Nesse sentido colhe-se o magistério de Celso Antonio Bandeira de Mello, que bem resume o
assunto ao relacionar os artigos da Constituição Federal de 1988 que impedem a perfeita simetria de regime jurídico entre as empresas do setor público e as empresas privadas:
(1) O art. 5o, LXXIII, confere a qualquer cidadão legitimidade para propor ação popular
que vise a anular atos lesivos ao patrimônio público ou a entidade de que o Estado participe, à
moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e artístico. (2) O art.
14 cogita dos casos de inexigibilidade e em seu §9o prevê que lei complementar estabelecerá
outros, bem como seus prazos de cessação, a fim de proteger a normalidade das eleições contra
a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de cargo, emprego ou função na
“Administração direta ou indireta”. (3) O art. 37, caput declara submissas aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência a Administração direta, indireta
ou fundacional, em todas as esferas e níveis de governo. (4) O inciso II do mesmo artigo impõe
concurso público, de provas e títulos, para a admissão de cargos ou empregos na Administração direta e indireta. (5) O inciso XVII estabelece que a proibição de acumular cargos públicos,
Sociedade de Economia Mista
e Privatização. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 1997, p. 14
153
FGV DIREITO RIO
58
atividades e atos administrativos
salvo exceções constitucionalmente previstas (estatuída no inciso XVI), estende-se também a
empregos e funções e abrange autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e
fundações governamentais. (6) O inciso XIX dispõe que somente por lei específica pode ser
autorizada a criação de empresa pública, sociedade de economia mista ou fundação governamental e criada autarquia. (7) O inciso XX estatui que depende de autorização legislativa, em
cada caso, a criação de subsidiárias de tais pessoas, ou a participação delas em empresas privadas. (8) O art. 49, X, submete à fiscalização e controle do Congresso Nacional os atos do Poder
Executivo, incluídos os da Administração indireta. (9) O art. 52, VII, submete as operações
de crédito externo e interno da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias
e demais entidades controladas pelo Poder Público Federal a limites e condições fixados pelo
Senado Federal. (10) O art. 54 estabelece vedação a que deputados e senadores, em certos
casos desde a diplomação e em outros desde a posse, aceitem ou exerçam cargos, funções ou
empregos e firmem ou mantenham contratos com pessoas de Direito Público, autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista ou concessionárias de serviço público, ou que
patrocinem causas em que tais pessoas sejam interessadas, sob pena de perderem o mandato,
conforme dispõe o art. 55, I. (11) O art. 71 e incisos II, III e IV, respectivamente, submetem
ao julgamento do Tribunal de Contas as contas dos administradores e demais responsáveis por
bens e valores públicos da Administração direta e indireta, incluídas as fundações e as sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público; determinam que pelo referido Tribunal sejam
examinados quanto à legalidade, para fins de registro, os atos de admissão de pessoal a qualquer
título, bem como as concessões de aposentadoria, reforma e pensões. Tais normas aplicam-se,
mutatis mutandis, nas esferas estaduais e municipais e do Distrito Federal, no que concerne ao
âmbito fiscalizatório dos respectivos Tribunais ou Conselhos de Contas. (12) O art. 165, §5o,
estabelece que a lei orçamentária anual compreenderá o orçamento fiscal referente aos Poderes
da União, seus fundos, órgãos e entidades da Administração direta e indireta, orçamentos
de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria
acionária votante e o orçamento da seguridade social, abrangendo órgãos e entidades da Administração direta e indireta. (13) O art. 169, § 5o, estabelece que a concessão de qualquer
vantagem, aumento de remuneração, criação de cargos ou alteração de estrutura de carreiras,
bem como a admissão de pessoal a qualquer título pelos órgãos e entidades da Administração
direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, só poderão
ser feitas se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa
de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes.154
Como se vê, e não obstante a natureza privada das obrigações das empresas estatais, o
fato é que, ao se considerar algumas exceções a regra, tem-se um verdadeiro sistema híbrido155. Assim é que, se de um lado a criação e existência de uma empresa estatal depende de
lei, e somente nos casos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo,
de outro, o funcionamento dessas entidades deve pautar-se, em regra, nas disposições legais
de natureza privada.156
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 403 a 422.
154
Op. cit. p. 179-180
Nesse sentido, Hely Lopes
Meirelles leciona ser inegável
o caráter híbrido da sociedade
de economia mista, “que associando o capital particular ao
investimento público, erige-se
em entidade de Direito Privado, mas realiza determinadas
atividades de interesse estatal,
por delegação do Poder Público. Concilia-se, deste modo, a
estrutura das empresas privadas com os objetivos de interesse público. Vivem, portanto,
em simbiose o empreendimento particular com o amparo
estatal.” Direito Administrativo
Brasileiro. 18a ed. São Paulo:
Malheiros, 1993, p. 330)
155
BRASIL. Constituição (1988).
Art. 173 - Ressalvados os casos
previstos nesta Constituição, a
exploração direta de atividade
econômica pelo Estado só será
permitida quando necessária
aos imperativos da segurança
nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
156
FGV DIREITO RIO
59
atividades e atos administrativos
Caso gerador:
O art. 173, §1º, da Constituição Federal, ao dispor sobre as empresas públicas e às
sociedades de economia mista, determinou que viesse a ser promulgada lei estabelecendo o
seu regime jurídico, na qual estaria obrigatoriamente prevista:
Art. 173, §1º. (...)
II - A sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos
direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.
Entretanto, o próprio art. 173, §1º, III, da Constituição, já estabelece uma distinção
entre o regime das empresas públicas e privadas, ao submeter as primeiras ao princípio da
licitação e demais princípios da Administração Pública na contratação de obras, serviços,
compras e alienações. Adicionalmente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estabeleceu uma diferença entre as empresas públicas prestadoras de serviços públicos e àquelas que
desenvolvem atividades econômicas em sentido estrito, conferindo às primeiras prerrogativas
próprias da Fazenda Pública, tais como a impenhorabilidade de seus bens e o pagamento de
suas dívidas por meio de precatório. Veja-se, nesse sentido, Recurso Extraordinário julgado
pelo Supremo Tribunal Federal, no qual se discorre sobre a Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos, cuja natureza jurídica é de empresa pública de titularidade da União Federal:
À Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção
do artigo 12 do Decreto-lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173,
§1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e
outras entidades que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas,
inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. 2. Empresa pública que não exerce atividade econômica e presta serviço público da competência da União Federal e por ela mantido.
Execução. Observância ao regime de precatório, sob pena de vulneração do disposto no artigo
100 da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 229.696)
À vista do acima relatado, reflita sobre a competitividade entre empresas públicas e privadas, considerando o mandamento constitucional de isonomia quanto às condições civis, comerciais, trabalhistas e tributárias (art. 173, §1º, II, CF/88). A partir do entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal sobre as empresas públicas prestadoras de serviços públicos,
pense sobre a implementação do princípio da liberdade de concorrência em setores da economia no qual sociedades empresárias privadas e entes paraestatais convivem. Quais as possíveis
dificuldades que podem ser enfrentadas pelo agente econômico privado nessas situações?
Leitura complementar:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens 10.5 a 10.8.
GUERRA, Sérgio. “Neoempreendedorismo Estatal e os Consórcios com Empresas do Setor Privado”. In: Direito Empresarial Público II. Organizadora: Carla Marshall. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2004;
VILLELA SOUTO, Marcos Juruena. Direito administrativo da economia. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2003, pp. 57 a 107.
FGV DIREITO RIO
60
atividades e atos administrativos
Bloco IV: Ato administrativo
Objetivo:
No bloco anterior foram estudadas as pessoas que compõem a Administração Pública.
Nesta fase será conferida aos atos por elas executados, os seus requisitos de validade e suas
formas de extinção.
FGV DIREITO RIO
61
atividades e atos administrativos
Aula 12: Elementos e características do ato administrativo
Objetivo:
Apresentar os principais elementos e as características do ato administrativo
Introdução:
A Administração Pública manifesta-se sempre por meio de atos administrativos. Nesse
sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto define o ato administrativo como “manifestação de vontade da Administração destinada a produzir efeitos jurídicos”157, sendo, portanto,
uma espécie do gênero ato jurídico.
No entanto, havendo distintas formas de manifestação da Administração Pública – que
ora age investida do múnus público, regendo-se seus atos então pelo direito público, como
por outras vezes age em igualdade de condições com os agentes privados – Renato Alessi
já ressaltava a dificuldade em se construir uma teoria unitária sobre o ato administrativo.158
Sob o aspecto eminentemente formal/subjetivo, o ato administrativo constitui qualquer
ato praticado pela Administração Pública. A dificuldade maior surge quando se busca uma
definição dentro da perspectiva material, a qual, no entanto, pode ser compreendida como a
exigência de que o ato administrativo tenha por objeto um “assunto administrativo”.159
A Administração Pública pratica tanto atos unilaterais quanto de natureza negocial
(como os contratos administrativos, os quais serão objetos de discussões adiante neste curso).
A doutrina alude classicamente a cinco elementos do ato administrativo, quais sejam:
• Competência: característica que exige que a autoridade administrativa da qual emane a manifestação de vontade tenha sido regularmente investida na função e possua competência conferida por lei para fazê-lo160.
• Objeto: corresponde, nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho, à “alteração
no mundo jurídico que o ato administrativo se propõe a processar”, ou seja, “o objetivo
imediato da vontade exteriorizada pelo ato, a proposta, enfim, do agente que manifestou a
vontade com vistas a determinado ato”161.
• Forma: a exteriorização da vontade do agente administrativo deve ocorrer na forma prevista em lei. Sobre a importância da forma para o ato administrativo, Themístocles
Brandão Cavalcanti já asseverava que “o elemento formal predomina na conceituação do
ato administrativo, não obstante ser indispensável também a manifestação da vontade para
caracterizar o ato, ou melhor, para atribuir existência ao ato”.162 A forma às vezes exige a
observância de todo um procedimento prévio à realização do ato administrativo. Nesse
sentido, verifica-se que a assinatura de um contrato administrativo deve, de forma geral, ser
precedida do devido processo licitatório.
• Motivo: constitui as razões de fato e de direito que determinam a realização de um
ato. A administração pública não pode realizar atos de forma imotivada.
• Finalidade: compreende a exigência de que todo ato administrativo deve voltar-se à
realização de uma finalidade pública.
Os atos administrativos podem ser simples ou complexos. Serão simples quando a
manifestação de apenas uma autoridade administrativa for suficiente à formação válida do
Manual de direito administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, p. 135.
157
Nas palavras do autor: “frente a esta heterogeneidade que
apresenta a atividade desenvolvida pela autoridade administrativa, não nos parece útil
construir uma teoria unitária
do ato administrativo (exercício
genérico de atividade administrativa) uma vez que somente
se poderiam enunciar princípios de caráter muito geral e,
portanto, de escassa utilidade”.
ALESSI, Renato. Instituciones
de derecho administrativo.
Barcelona: Bosch, 1960, tomo
1, p. 249.
158
CAVALCANTI, Themítocles
Brandão. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1961,, p. 49.
159
Themístocles Brandão
Cavalcanti, Curso de Direito
Administrativo. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1961, p. 49. Nas
palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “o que importa é saber se a manifestação de
vontade de Administração partiu do ente, órgão ou agente a
quem a lei cometeu função de
exprimi-la e vinculá-la juridicamente. Competência é, assim, uma expressão funcional”.
Curso de direito administrativo,
p. 138.
160
Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumen
Iuris, 2006, p. 98.
161
Curso de direito administrativo, op. cit., p. 46.
162
FGV DIREITO RIO
62
atividades e atos administrativos
ato; serão complexos quando se apresentar necessário o concurso de vontades de duas ou
mais autoridades para a existência do ato.163
Na análise dos casos abaixo, busque destacar os elementos do ato administrativo que
se encontram presentes e se eventualmente algum se encontra ausente. Procure observar se,
nas condutas da Administração descritas nos casos apresentados, são observadas as características acima elencadas.
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 85 a 116.
Caso gerador 1:
O governo do Estado do Piauí celebrou acordo de comodato de bens móveis com uma
das prefeituras do Estado. Embora, nos termos do art. 102, XVIII, da Constituição Estadual, trate-se de matéria de competência exclusiva do governador do Estado, ad referendum da
Assembléia Legislativa, o convênio foi celebrado pelo secretário de Estado de Saúde, para o
qual, ao que consta, o governador não havia delegado poderes específicos para a prática do
ato. Ademais, não houve anuência do Poder Legislativo para a sua celebração.
Por ter sido alertado sobre as irregularidades cometidas, o secretário de Saúde pretende
revogar o ato administrativo praticado, reavendo os bens oferecidos em comodato. A prefeitura beneficiada, entretanto, resiste a essa pretensão, alegando que assinou o convênio com
quem aparentava ser legítimo representante do governo do Estado e que os aparelhos são
essenciais para o funcionamento do sistema de saúde da prefeitura, sendo que sua devolução
acarretará graves prejuízos à população local.
Com base nos elementos do ato administrativo e no disposto na súmula 473 do Supremo Tribunal Federal, como deve ser solucionada a controvérsia?
S. 473. A administração pública pode anular seus próprios atos, quando eivados de
vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo
de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos
os casos, a apreciação judicial.
Caso gerador 2:
O diretor presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária expediu norma regulamentar excluindo o cloreto de etila (“lança perfume”) da lista de substâncias de uso
proibido.
Levada o tema à decisão do Superior Tribunal de Justiça, esse decidiu que o ato havia
sido exarado por autoridade incompetente, pois as resoluções normativas da ANVISA, por
força da lei federal que a instituiu, são de competência da Diretoria Colegiada. Apenas os
atos urgentes podem ser praticados pelo diretor presidente e, ainda assim, ad referendum do
órgão colegiado.
Themítocles Brandão Cavalcanti, Curso de Direito Administrativo, op. cit., p. 53.
163
FGV DIREITO RIO
63
atividades e atos administrativos
Baseado em seus estudos sobre os elementos do ato administrativo, responda:
qual(is) elemento(s) encontra(m)-se ausente(s) no mencionado ato? Qual o efeito
da(s) irregularidade(s) apontada(s) sobre o ato praticado?
Leitura complementar:
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, pp. 135 a 159.
FGV DIREITO RIO
64
atividades e atos administrativos
Aula 13: Extinção do ato administrativo
Objetivo:
Apresentar e examinar as principais formas de extinção do ato administrativo.
Introdução:
Em seguimento à análise quanto à formação e aos efeitos dos atos administrativos,
nesta aula procuraremos aplicar os conceitos já desenvolvidos em outras matérias quanto ao
momento de formação (existência), validade e eficácia do ato administrativo. Nesse sentido,
buscar-se-á discutir se existem requisitos adicionais àqueles previstos na doutrina civilista
para que os atos administrativos sejam validamente celebrados e, portanto, sejam aptos a
produzir efeitos no mundo jurídico.
Tem-se também a oportunidade de discutir as distintas espécies de atos administrativos, por meio do estudo de suas semelhanças e diferenciações. Dentre elas, possivelmente
teremos um olhar mais atento ao analisar a diferenciação entre atos de império e atos de
gestão. Isso se justifica porque essa divisão apresenta profundas conseqüências práticas na
disciplina jurídica dos atos emanados da Administração Pública.
Um outro tema que enseja profundos debates doutrinários reside nas formas de extinção dos atos administrativos, havendo diversas espécies de atos extintivos, desde a extinção
natural, decorrente do exaurimento dos efeitos do ato; extinção subjetiva (por desaparecimento do sujeito beneficiário) e objetiva (quando o desaparecimento é do objeto); caducidade; e desfazimento volitivo.164
Além disso, os atos administrativos são passíveis de invalidação, em caso de “desconformidade do ato com as normas reguladoras”.165 Também podem atos jurídicos perfeitos
serem alvo de revogação pela Administração Pública, por motivo de conveniência e oportunidade, tendo em vista o interesse público protegido.
Os atos administrativos devem ser anulados pela Administração Pública quando ficar
constatado vício relativo a sua legitimidade ou legalidade e, ainda, quando o ato torna-se
ilegal em sua fase de execução, por culpa do contratado, mesmo havendo sido formalizado
legalmente.
Com efeito, a anulação de um ato administrativo consiste na declaração de sua invalidação, diferentemente da revogação, esta baseada em fatores de conveniência e oportunidade. Nesse sentido, vale colacionar o entendimento predominante sobre o assunto,
representado pelas irretocáveis palavras da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
As hipóteses são citadas
por CARVALHO FILHO, José dos
Santos. Manual de direito administrativo, pp. 128 a 130.
164
E a anulação pode também ser feita pelo Poder Judiciário, mediante provocação dos interessados, que poderão utilizar, para esse fim, quer as ações ordinárias e especiais previstas na
legislação processual, quer os remédios constitucionais de controle judicial da Administração
Pública. A anulação feita pela própria Administração independe de provocação do interessado
uma vez que, estando vinculada ao princípio da legalidade, ela tem o poder-dever de zelar
pela sua observância.166
CARVALHO FILHO, José dos
Santos. Manual de direito administrativo, pp. 130 e 131.
165
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo.
19. ed. São Paulo: Editora Atas,
2006, pp. 226-227.
166
FGV DIREITO RIO
65
atividades e atos administrativos
Nas palavras do saudoso professor VALMIR PONTES, “o que se tem como certo é
que os atos administrativos viciados ou defeituosos, isto é, os atos administrativos em cuja
realização se tenha deixado de observar qualquer requisito essencial, são atos inválidos”.167
Destaque-se, nessa senda, a Súmula 346, do Supremo Tribunal Federal, que reza essa prerrogativa da Administração Pública de anular seus próprios atos ou de revogá-los:
Súmula 346 do STF: “A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.”
No direito pátrio, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal também é pródiga
em arestos que consagram tal entendimento, como o acórdão do Recurso Extraordinário nº
247399/SC, cuja Relatora foi a ministra Ellen Gracie, ementado da seguinte maneira:
Servidor Público. Proveitos de aposentadoria. Ato administrativo eivado de nulidade.
Poder de autotutela da Administração Pública. Possibilidade. Precedente. Pode a Administração Pública, segundo o poder de autotutela a ela conferido, retificar ato eivado de vício que o
torne ilegal, prescindindo, portanto, de instauração de processo administrativo (Súmula 473,
1ª parte - STF). RE 185.255, DJ 19/09/1997. RE conhecido e provido.168
No mesmo sentido tem se manifestado o Superior Tribunal de Justiça, como, por
exemplo, no Recurso Especial nº 300116/SP, cujo relator foi o min. Humberto Gomes de
Barros, garantindo ao administrado o amplo direito de defesa:
I – ‘Se não se nega à Administração a faculdade de anular seus próprios atos, não se
há de fazer disso, o reino do arbítrio.’ (STF – RE 108.182/Min. Oscar Corrêa). II - “A regra
enunciada no verbete nº 473 da Súmula do STF deve ser entendida com algum temperamento: no atual estágio do direito brasileiro, a Administração pode declarar a nulidade de
seus próprios atos, desde que, além de ilegais, eles tenham causado lesão ao Estado, sejam
insuscetíveis de convalidação e não tenham servido de fundamento a ato posterior praticado
em outro plano de competência. (STJ – RMS 407/Humberto). III - A desconstituição de
licitação pressupõe a instauração de contraditório, em que se assegure ampla defesa aos interessados. Esta é a regra proclamada pelo Art. 49, § 3º da Lei 8.666/93. IV – A declaração
unilateral de licitação, sem assegurar ampla defesa aos interessados ofende o Art. 49, § 3º da
Lei 8.666/93.169
É oportuno assinalar, entretanto, que há um aspecto que não se mostra de todo uníssono
na doutrina, relativo à indagação de ter a Administração um dever de anular seus atos ou, ao
reverso, a mera faculdade de fazê-lo. Para aqueles que defendem o dever de anular, o fundamento encontra-se no princípio da estrita legalidade, enquanto que os que advogam em favor
da faculdade de anular apegam-se ao princípio da predominância do interesse público sobre o
particular. Eis, por seu turno, a manifestação doutrinária de Celso Antônio Bandeira de Mello,
que acrescenta: “Para a Administração o que fundamenta o ato invalidador é o dever de obediência à legalidade, o que implica obrigação de restaurá-la quando violada. Para o judiciário é o
exercício mesmo de sua função de determinar o Direito aplicável no caso concreto”170.
Por outro lado, vale transcrever, por oportuno, o trecho do magistério da professora
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que, em que pese ser adepta da corrente que se fundamenta
Programa de Direito Administrativo. 2.ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p.95.
167
BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Recurso Extraordinário
n. 2457399/SC da 1ª Turma,
Relatora Min. Ellen Gracie, Brasília, 23 de abril de 2002. 
168
BRASIL. Superior Tribunal
de Justiça. Recurso Especial n.
300116/SP da 1ª Turma, Relator Min. HUMBERTO GOMES
DE BARROS, Brasília, 06 de
novembro de 2001. 
169
BANDEIRA DE MELLO, Celso
Antonio. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 425.
170
FGV DIREITO RIO
66
atividades e atos administrativos
no principio da legalidade, encontra exceções à referida obrigatoriedade de anulação por
parte da Administração Pública, in fine: “Para nós, a Administração tem, em regra, o dever
de anular os atos ilegais, sob pena de cair por terra o princípio da legalidade. No entanto,
poderá deixar de fazê-lo, em circunstâncias determinadas, quando o prejuízo resultante da
anulação puder ser maior do que o decorrente da manutenção do ato ilegal; nesse caso, é o
interesse público que norteará a decisão.”171
No que concerne ao conceito de ilegalidade ou ilegitimidade, para fins de anulação
dos atos administrativos, é correta a assertiva de que este não se resume apenas à transgressão
da lei, incluindo também o abuso, por desvio ou excesso de poder, ou por inobservância
dos princípios gerais do Direito, em especial do regime jurídico de direito público. Com
efeito, os vícios de finalidade ou do fim dos atos administrativos “escondem a intenção do
administrador sob a capa da legalidade”.172 Esse tema já foi objeto de nossa aula. Assim é
que demonstrado, mediante prova irrefutável, acarreta a anulação do ato, eivado desse defeito ou vício”.
Do ponto de vista do direito posto, a Lei do Processo Administrativo Federal (Lei nº
9.784/1999) também regula o tema da invalidade e revogação dos atos administrativos, nos
seguintes termos:
Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de
legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os
direitos adquiridos.
Por outro lado, existem vícios dos atos administrativos que se apresentam sanáveis.
Nesses casos, a Administração pode convalidá-los, procedendo aos elementos que se façam
necessários a suprir a ilegalidade que vicia o ato, conformando-o às exigências da lei.
A partir dos elementos acima e da leitura obrigatória, como você solucionaria o caso
abaixo?
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 117 a 150.
Caso gerador:
A Prefeitura da Cidade de ABC concedeu à associação dos artesãos locais autorização
para instalar, na praça principal da cidade, feira de antiguidades e artesanato, visando à promoção da cultura local e atração turística. A feira funciona há cerca de 10 anos.
Entretanto, sendo o prefeito eleito nas últimas eleições da oposição, pretende revogar
o ato que concedera a autorização para realização da feira, alegando critérios de conveniência e oportunidade. Na visão do prefeito, a feira não gera a movimentação esperada para
o restante do comércio local, não contribui para a arrecadação de tributos, e atrapalha a
preservação da praça, pois são constantes as degradações observadas, especialmente aos domingos, quando é maior o número de pessoas que transitam na praça.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella
Di. Direito Administrativo. 19.
ed. São Paulo: Editora Atas,
2006, p. 227.
171
CRETELLA JÚNIOR José. Controle jurisdicional do ato administrativo. 4.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2001, p. 271.
172
FGV DIREITO RIO
67
atividades e atos administrativos
De acordo com o estabelecido sobre os meios de extinção do ato administrativo, pergunta-se:
a) pode o prefeito extinguir a autorização concedida?
b) deve revogar ou anular o ato administrativo consubstanciado na autorização?
Inconformada, a associação dos artesãos impetra mandado de segurança em que alega
ter direito líquido e certo à sua permanência na praça, sustentando que o ato se apresenta
arbitrário, pois a feira representa uma manifestação cultural importante da população local.
Como magistrado, você concederia a segurança pleiteada?
Leitura complementar:
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, pp.
249 a 275.
REALE, Miguel. Revogação e anulamento do ato administrativo. Rio de Janeiro: Forense.
ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 2ª ed. São
Paulo: Malheiros, 1996, p.56, ss.
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atividades e atos administrativos
Bloco V: Licitações e contratos administrativos
Objetivo:
O objetivo deste bloco é debater a contratação da Administração Pública com particulares, cuja regra geral exige que seja precedida de licitação. Assim, nas aulas que se seguem
serão apresentados os princípios da licitação, suas modalidades e sua procedimentalização,
para que ao final se possa examinar as características próprias ao contrato administrativo.
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atividades e atos administrativos
Aula 14: Princípios da licitação
Objetivo:
Discutir o conteúdo dos princípios que regem a licitação.
Introdução:
A licitação se traduz no procedimento constitucionalmente positivado173 com vistas à
garantia da competição isonômica entre aqueles que podem oferecer determinados serviços
à Administração Pública, bem como para a aquisição e alienação de bens. Nas palavras de
Marçal Justen Filho, a licitação constitui o:
procedimento administrativo disciplinado por lei e por um ato administrativo prévio, que
determina critérios objetivos de seleção da proposta de contratação mais vantajosa, com observância do princípio da isonomia, conduzido por um órgão dotado de competência específica.174
Trata-se, assim, de procedimento administrativo conduzido por um órgão específico,
geralmente uma comissão permanente de licitação.
O dever de licitar constitui uma exigência constitucional, conforme se observa do art.
37, XXI, da Constituição Federal:
Art. 37. (...)
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências
de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Igualmente, a Constituição exige a realização de licitação para a outorga de concessão
ou permissão de serviços públicos, nos termos do art. 175, caput:
Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob o regime de
concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Também não se pode deixar de mencionar, conforme já visto, que o regime licitatório
é aplicável também às empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art.
173, §1º, III, da Constituição.
A lei federal sobre licitações e contratos administrativos é a Lei nº 8.666/1993. Estados e municípios também costumam ter normas próprias de licitação, as quais devem
guardar coerência com os princípios gerais da lei federal.
Além da Lei nº 8.666/1993, cumpre fazer referência à Lei nº 10.520/2002, que disciplina o pregão, modalidade de licitação pensada a partir da necessidade de acelerar o
processo de escolha dos futuros contratados da Administração.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...) XXVII – normas gerais
de licitação e contratação em
todas as modalidades,para
as administrações diretas,
autárquicas e fundacionais da
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o
disposto no art. 37, XXI, e para
as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos
termos do art. 173, § 1o, III.
173
Curso de direito administrativo, p. 309.
174
FGV DIREITO RIO
70
atividades e atos administrativos
No art. 3º da Lei nº 8.666/1993 encontram-se elencados os princípios da licitação:
Art. 3º. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da
isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e
julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade,
da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao
instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos.
O art. 3º da Lei nº 8.666/1993 prevê o desdobramento, em sede licitatória, dos principais princípios que regem o agir da Administração Pública, e cujo conteúdo já foi discutido no Bloco I deste curso.
Além dos princípios expressos, Marçal Justen Filho ressalta a importância da proporcionalidade como princípio norteador das licitações, destacando sua primazia:
O primeiro [princípio] a ser considerado é o da proporcionalidade, que se traduz, antes
de tudo, na necessidade de equilíbrio na busca de dois fins igualmente relevantes. A realização
do princípio da isonomia deve dar-se simultânea e conjuntamente com a seleção da proposta
mais vantajosa. Não é possível privilegiar um desses dois fins como absoluto em si mesmo.175
Adiante, complementa:
A Administração Pública está constrangida a adotar alternativa que melhor prestigie a
racionalidade do procedimento e de seus fins. Os princípios da proporcionalidade e razoabilidade acarretam a impossibilidade de impor conseqüências de severidade incompatível com
a irrelevância de defeitos. Sob esse ângulo, as exigências da lei ou do ato convocatório devem
ser interpretadas como instrumentais.176
Na análise de questões envolvendo temas relacionados a licitações, destacam-se os
princípios da competição e da igualdade entre os competidores. O primeiro, nas palavras
de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “orienta todo o processo”, traduzindo-se na “busca
de uma justificada desigualação dos licitantes, o que se obtém pela identificação final da
vantagem pretendida pela Administração, oferecida por um dos licitantes”.177
Essa “desigualação”, entretanto, tem de ser realizada por critérios objetivos, que não
permitam considerações de natureza subjetiva na determinação da proposta que melhor
atenda aos interesses da Administração. Essa é a proteção conferida pelo princípio da igualdade, de matriz constitucional, conforme se observa do acima citado art. 37, XXI, da Constituição Federal.
Ademais desses dois princípios, Diogo de Figueiredo Moreira Neto alude aos princípios da legalidade, legitimidade, publicidade178 e moralidade como constituindo princípios
gerais de aplicabilidade direta em questões envolvendo licitações públicas.179
O regime jurídico das licitações possui, ainda, um rol de princípios setoriais, dentre os
quais se sobressai o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, também conhecido como princípio da vinculação ao edital. Esse princípio exige que:
todo o processo licitatório se submeta, em todos os seus atos, às regras que forem especificamente baixadas para a licitação anunciada, sob a forma de edital ou de convite, inclusive
Curso de direito administrativo, p. 312.
175
Curso de direito administrativo, p. 314.
176
Curso de direito administrativo, p. 179.
177
A publicidade exigida na
licitação refere-se às decisões
de julgamento e motivação
dos critérios utilizados pela
Administração no momento
de classificar as propostas
recebidas. Não se pode deixar
de mencionar, entretanto, que
algumas etapas da licitação
são regidas pelo princípio do
sigilo, em benefício do próprio procedimento, conforme
destaca Diogo de Figueiredo
Moreira Neto: “Informa, instrumentalmente, certas fases do
processo licitatório, de modo
a garantir sua impessoalidade
e, assim, em última análise,
resguarda a igualdade das partes licitantes. Por outro lado, o
sigilo é fundamental na modalidade concorrencial, uma vez
que o julgamento da habilitação dos licitantes deve ser feito
sem o prévio conhecimento das
propostas. Determina, ainda, a
vedação de acesso ao conteúdo
das peças licitatórias apresentadas pelos concorrentes (documentação de habilitação e
proposta) antes das aberturas
públicas previstas no ato convocatório. E, por fim, poderá,
ocasionalmente, ser invocado
para afastar a licitação, quando
sua divulgação puder comprometer a segurança do País”.
Curso de direito administrativo,
pp. 180 e 181.
178
Curso de direito administrativo, p. 179. Maria Sylvia
Zanella di Pietro aduz, ainda,
ao princípio da impessoalidade, o qual, juntamente aos
princípios da isonomia e do
julgamento objetivo, exige da
Administração o dever de “em
suas decisões, pautar-se por
critérios objetivos, sem levar
em consideração as condições
pessoais do licitante ou as vantagens por ele oferecidas, salvo
as expressamente previstas em
lei ou no instrumento convocatório”. Direito administrativo.
12a ed. São Paulo: Atlas, 2000,
p. 297.
179
FGV DIREITO RIO
71
atividades e atos administrativos
e notadamente as que definam os critérios para julgamento. Nenhuma decisão, interlocutória
ou final, poderá ser tomada pela Administração se não estiver tríplice e rigorosamente vinculada à lei, ao regulamento e aos termos desse ato convocatório.180
Um dos desdobramentos desse princípio é encontrado no princípio do julgamento
objetivo, que reside justamente no dever, imposto à Administração, de escolher a proposta
mais vantajosa com base única e exclusivamente nos critérios quantitativos e qualitativos
expressamente dispostos no edital, sendo vedada a introdução de novos critérios, bem como
a interpretação extensiva de exigências não expressamente requeridas no edital ou convite.
Em respaldo ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório, bem como ao
princípio do julgamento objetivo, a Lei nº 8.666/1993 previu os tipos de licitação: 1) menor preço; 2) melhor técnica; 3) técnica e preço; 4) maior lance (para os casos de alienação
ou concessão de direito real de uso). Os tipos de licitação encontram-se elencados no art.
45, §1º, da Lei nº 8.666/93:
Art. 45. O julgamento das propostas será objetivo, devendo a Comissão de licitação ou
o responsável pelo convite realizá-lo em conformidade com os tipos de licitação, os critérios
previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele
referidos, de maneira a possibilitar sua aferição pelos licitantes e pelos órgãos de controle.
§ 1º Para os efeitos deste artigo, constituem tipos de licitação, exceto na modalidade
concurso: (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)
I - a de menor preço - quando o critério de seleção da proposta mais vantajosa para a
Administração determinar que será vencedor o licitante que apresentar a proposta de acordo
com as especificações do edital ou convite e ofertar o menor preço;
II - a de melhor técnica;
III - a de técnica e preço.
IV - a de maior lance ou oferta - nos casos de alienação de bens ou concessão de direito
real de uso.
Adicionalmente, Maria Sylvia Zanella Di Pietro refere-se ao princípio da adjudicação compulsória, segundo o qual “a Administração não pode, concluído o procedimento,
atribuir o objeto da licitação a outrem que não o vencedor”, salvo a existência de justo
motivo.181
Com base nos princípios acima elencados, busque analisar o caso gerador.
Curso de direito administrativo, p. 180.
180
Leitura obrigatória:
Nas palavras de Hely Lopes
Meirelles: “A compulsoriedade
veda também que se abra nova
licitação enquanto válida a adjudicação anterior”. Apud Maria
Sylvia Zanella Di Pietro, Direito
Administrativo, p. 301. Veja-se
que esse princípio não impede
que a administração decida
revogar ou anular a licitação,
mas impede que a Administração deixe de contratar com
o vencedor do certame para
contratar com outrem.
181
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 199 a 209.
Caso gerador:
A Sociedade XLZ Comunicação Ltda impetrou mandado de segurança contra ato do
presidente da Comissão Especial de Licitação da Secretaria de Serviços de Radiodifusão do
FGV DIREITO RIO
72
atividades e atos administrativos
Ministério das Comunicações, por ter sido excluída da fase de habilitação do procedimento
licitatório, em razão de ter entregado a documentação exigida com dez minutos de atraso
para o encerramento do prazo de recebimento disposto no edital de licitação.
A Sociedade alega que a atitude da Comissão reflete exacerbado formalismo por parte
da autoridade licitante, incompatível com os princípios da competição e da razoabilidade
que norteiam o procedimento licitatório. Haveria, ainda, desvio de finalidade, pois se o
objetivo da licitação é a busca da oferta mais vantajosa, afastar-se-ia desse ideal a desclassificação da proponente por míseros dez minutos.
Em suas informações, a Comissão destaca que agiu no estrito cumprimento do dever
legal, tendo em vista que o art. 41 da Lei nº 8.666/93 dispõe:
Art. 41. A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual
se acha estritamente vinculada.
O supracitado artigo reflete um dos princípios basilares da licitação, consistente na
vinculação da Administração ao instrumento convocatório.
Com base em seus estudos sobre os princípios constitucionais que regem a atuação da
Administração Pública e, especialmente, os princípios da licitação, pergunta-se: Em sua opinião a segurança deveria ser concedida? Sob quais fundamentos? Em sua análise, considere
a aplicação dos já estudados princípios da finalidade e da eficiência.
Leitura complementar:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, item 9.3;
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, capítulo IX, itens I a IV.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São
Paulo: Dialética.
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen
Iuris, 2005, pp. 201 a 208.
FGV DIREITO RIO
73
atividades e atos administrativos
Aula 15: Modalidades da licitação, dispensa e inexigibilidade
Objetivo:
Apresentar as modalidades de procedimento licitatório e discutir as principais hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação
Introdução:
Modalidades de licitação
O art. 22 da Lei n º 8.666/1993 elenca as modalidades de licitação, assim dispondo:
Art. 22. São modalidades de licitação:
I – concorrência;
II – tomada de preços;
III – convite;
IV – concurso;
V – leilão.
A despeito de o subseqüente § 8o afirmar ser “vedada a criação de outras modalidades
de licitação ou a combinação das referidas neste artigo”, há ainda uma outra modalidade de
licitação, qual seja, o pregão, instituída pela Lei nº 10.520/2002.
De modo geral, em razão de possuírem o mesmo objetivo – contratação de obras,
serviços e fornecimento -, a concorrência, a tomada de preços e o convite podem ser comparativamente visualizados a seguinte maneira:
Porte do contrato
Interessados
Habilitação
Concorrência
Grande porte
Quaisquer
interessados
Realizada após a
publicação do edital
Tomada de preços
Médio porte
Interessados cadastrados
Realizada no momento
do cadastro (antecede a
publicação do edital)
Convite
Pequeno porte
Convidados pela
Administração Pública
Habilitação presumida
De seu turno, o concurso tem por objetivo a escolha de trabalho técnico, artístico ou científico, prestigiando tal seleção o aspecto intelectual, o que traduz a necessidade de a comissão
que dirige a licitação ser bastante criteriosa, a fim de se evitar qualquer desvio de finalidade.
No leilão, por sua vez, a Administração pode ter em vista três objetivos, os quais se
acham expressamente previstos no art. 22, § 5o, da Lei nº 8.666/1993, que assim dispõe:
§ 5º Leilão é modalidade de licitação entre quaisquer interessados para a venda de bens
móveis inservíveis para a administração ou de produtos legalmente apreendidos ou penhorados, ou para a alienação de bens imóveis prevista no art. 19, a quem oferecer maior lance,
igual ou superior ao valor da avaliação.
FGV DIREITO RIO
74
atividades e atos administrativos
Diferentemente das modalidades gerais, dotadas de maior amplitude, no pregão temse por objetivo a aquisição de bens e a contratação de serviços comuns, assim entendidos
como “aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado”.*
Dispensa e inexigibilidade
Como visto na última aula, a licitação se traduz no procedimento que é constitucionalmente positivado com vistas à garantia da competição isonômica entre aqueles que
podem oferecer determinados serviços à Administração Pública, bem como para a aquisição
e alienação de bens, nos termos do art. 37, XXI.
Porém, em determinadas situações, a competição não se realiza. São os casos de dispensa e inexigibilidade do certame licitatório. Veja-se o que dispõe o art. 24 da Lei n. 8666/93:
Art. 24. É dispensável a licitação:
I - para obras e serviços de engenharia de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto
na alínea “a”, do inciso I do artigo anterior, desde que não se refiram a parcelas de uma mesma
obra ou serviço ou ainda para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam
ser realizadas conjunta e concomitantemente; (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 27.5.98)
II - para outros serviços e compras de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto
na alínea “a”, do inciso II do artigo anterior e para alienações, nos casos previstos nesta Lei,
desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior
vulto que possa ser realizada de uma só vez; (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 27.5.98)
III - nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem;
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência
de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de
pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para
os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas
de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias
consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a
prorrogação dos respectivos contratos;
V - quando não acudirem interessados à licitação anterior e esta, justificadamente, não
puder ser repetida sem prejuízo para a Administração, mantidas, neste caso, todas as condições preestabelecidas;
VI - quando a União tiver que intervir no domínio econômico para regular preços ou
normalizar o abastecimento;
VII - quando as propostas apresentadas consignarem preços manifestamente superiores
aos praticados no mercado nacional, ou forem incompatíveis com os fixados pelos órgãos
oficiais competentes, casos em que, observado o parágrafo único do art. 48 desta Lei e, persistindo a situação, será admitida a adjudicação direta dos bens ou serviços, por valor não
superior ao constante do registro de preços, ou dos serviços;
VIII - para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que
tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência desta Lei, desde que
o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado; (Redação dada pela Lei nº
8.883, de 8.6.94)
* art. 1º, parágrafo único.
FGV DIREITO RIO
75
atividades e atos administrativos
IX - quando houver possibilidade de comprometimento da segurança nacional, nos
casos estabelecidos em decreto do Presidente da República, ouvido o Conselho de Defesa
Nacional;
X - para a compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades
precípuas da administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua
escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia;
(Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)
XI - na contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento, em conseqüência de rescisão contratual, desde que atendida a ordem de classificação da licitação anterior
e aceitas as mesmas condições oferecidas pelo licitante vencedor, inclusive quanto ao preço,
devidamente corrigido;
XII - nas compras de hortifrutigranjeiros, pão e outros gêneros perecíveis, no tempo
necessário para a realização dos processos licitatórios correspondentes, realizadas diretamente
com base no preço do dia; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)
XIII - na contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à
recuperação social do preso, desde que a contratada detenha inquestionável reputação éticoprofissional e não tenha fins lucrativos; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)
XIV - para a aquisição de bens ou serviços nos termos de acordo internacional específico aprovado pelo Congresso Nacional, quando as condições ofertadas forem manifestamente
vantajosas para o Poder Público; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)
XV - para a aquisição ou restauração de obras de arte e objetos históricos, de autenticidade certificada, desde que compatíveis ou inerentes às finalidades do órgão ou entidade.
XVI - para a impressão dos diários oficiais, de formulários padronizados de uso da administração, e de edições técnicas oficiais, bem como para prestação de serviços de informática a
pessoa jurídica de direito público interno, por órgãos ou entidades que integrem a Administração Pública, criados para esse fim específico; (Inciso incluído pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)
XVII - para a aquisição de componentes ou peças de origem nacional ou estrangeira,
necessários à manutenção de equipamentos durante o período de garantia técnica, junto ao
fornecedor original desses equipamentos, quando tal condição de exclusividade for indispensável para a vigência da garantia; (Inciso incluído pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)
XVIII - nas compras ou contratações de serviços para o abastecimento de navios, embarcações, unidades aéreas ou tropas e seus meios de deslocamento quando em estada eventual de curta duração em portos, aeroportos ou localidades diferentes de suas sedes, por motivo
de movimentação operacional ou de adestramento, quando a exiguidade dos prazos legais
puder comprometer a normalidade e os propósitos das operações e desde que seu valor não
exceda ao limite previsto na alínea “a” do inciso II do art. 23 desta Lei: (Inciso incluído pela
Lei nº 8.883, de 8.6.94)
XIX - para as compras de material de uso pelas Forças Armadas, com exceção de materiais de uso pessoal e administrativo, quando houver necessidade de manter a padronização
requerida pela estrutura de apoio logístico dos meios navais, aéreos e terrestres, mediante
parecer de comissão instituída por decreto; (Inciso incluído pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)
XX - na contratação de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgãos ou entidades da Administração Pública, para
a prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja
compatível com o praticado no mercado. (Inciso incluído pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
XXI - Para a aquisição de bens destinados exclusivamente a pesquisa científica e tecnológica com recursos concedidos pela CAPES, FINEP, CNPq ou outras instituições de
fomento a pesquisa credenciadas pelo CNPq para esse fim específico. (Inciso incluído pela Lei
nº 9.648, de 27.5.98)
XXII - na contratação de fornecimento ou suprimento de energia elétrica e gás natural
com concessionário, permissionário ou autorizado, segundo as normas da legislação específica; (Redação dada pela Lei nº 10.438, de 26.4.2002)
XXIII - na contratação realizada por empresa pública ou sociedade de economia mista
com suas subsidiárias e controladas, para a aquisição ou alienação de bens, prestação ou obtenção de serviços, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado. (Inciso incluído pela Lei nº 9.648, de 27.5.98)
XXIV - para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas
no contrato de gestão.(Inciso incluído pela Lei nº 9.648, de 27.5.98)
Parágrafo único. Os percentuais referidos nos incisos I e II deste artigo, serão 20%
(vinte por cento) para compras, obras e serviços contratados por sociedade de economia mista
e empresa pública, bem assim por autarquia e fundação qualificadas, na forma da lei, como
Agências Executivas. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 27.5.98)
De igual modo, vale trazer o que dispõe o art. 25 da Lei n. 8666/1993:
Art. 25 - É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
I - para aquisição de materiais, equipamento ou gêneros que só possam ser fornecidos
por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca,
devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo órgão
de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo
Sindicato, Federação, Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes;
II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza
singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade
para serviços de publicidade e divulgação.
§ 1º - Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito
no campo de sua especialidade decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados
com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais
adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
Especialmente sobre a inexigibilidade da licitação há que se examinar o que dispõe o
art. 13 da Lei nº 8.666/1993:
Art. 13 - Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:
I - estudos técnicos, planejamento e projetos básicos ou executivos;
III - assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;
IV - fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços;
V - patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
VI - treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;
(...)
§ 3º - A empresa de prestação de serviços técnicos especializados que apresente relação
de integrantes de seu corpo técnico em procedimento licitatório ou como elemento de justificação de dispensa ou inexigibilidade de licitação, ficará obrigada a garantir que os referidos
integrantes realizem pessoal e diretamente os serviços objeto do contrato.
A norma geral da licitação pública disciplina os casos em que se apresenta dispensável
ou inexigível o certame, abrindo ensejo à contratação direta com profissionais ou instituições idôneas e em condições de bem prestar o serviço almejado, a fim de que as necessidades
do serviço público possam ser prontamente atendidas em regime de terceirização.
Mas, qual é a diferença capital entre os institutos da inexibilidade e da dispensa de licitação? Se ambos estão vocacionados a justificar a contratação direta, em que bases radicam
suas diferenças?
Na dispensa de licitação, consubstanciam-se situações em que, muito embora realizável a disputa concorrencial, esta se apresenta suprimível para o melhor atendimento das
necessidades do serviço público. Nos casos identificados no art. 24 da Lei nº 8.666/1993, o
administrador público poderá avaliar e decidir sobre realizar, ou não, a licitação, conforme
melhor convier aos interesses públicos em espécie.
Quanto à inexigibilidade licitatória, a teor do art. 25, a contratação direta se faz sempre
imperiosa em virtude da inviabilidade da competição. Conforme lição do ministro Eros
Roberto Grau, é a exclusão do critério competitivo, por irrealizável, que constitui a essência
do permissivo legal da inexigibilidade:
Ademais, cumpre ainda observarmos que da ‘inexigibilidade’ se distingue a hipótese
de ‘dispensa’ de licitação. Na dispensa, a lei autoriza a Administração a, excepcionalmente,
contratar sem licitação. Atua, aí, a conveniência administrativa, em nome da qual dá-se a
dispensa do dever de licitar. O dever de licitar incide, mas é afastado pelo preceito legal. A
enunciação legal das hipóteses de dispensa é exaustiva. Não está a Administração autorizada a
dispensar a licitação senão, e exclusivamente, nas hipóteses expressamente indicadas pela lei.
Já no que concerne aos casos de inexigibilidade de licitação, ao contrário, não incide o dever
de licitar. A não realização da licitação decorre, não de razão de conveniência administrativa,
mas da inviabilidade de competição.182
Também leciona sobre o tema o jurista Adilson Abreu Dallari: “o fato de que um trabalho técnico profissional especializado pode ser contratado sem licitação mesmo que haja
‘uma pluralidade de notórios especializados’, exatamente porque o trabalho produzido se
torna singular em razão da singularidade subjetiva do executante. Essa singularidade resultante das características pessoais do executante é que torna inviável a comparação, ou a competição, tornando inexigível a licitação, conforme dispõe a legislação vigente. O trabalho
pode ser considerado singular quando depender das características do executante. Haverá
singularidade quando diferentes executantes notoriamente especializados produzirem diferentes trabalhos. Não haverá singularidade quando diferentes executantes puderem realizar
a mesma coisa, produzir o mesmo resultado.”183
O instituto da inexigibilidade da licitação se concentra na inviabilidade material da
adoção do certame licitatório, calcado em três requisitos justificadores: tratar-se de serviço
Licitação e Contrato Administrativo - estudos sobre a interpretação da lei. São Paulo: Ed.
Malheiros, 1995, p 70.
182
Aspectos Jurídicos da Licitação. São Paulo: Saraiva, 2003,
p. 51/52
183
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
técnico; ser o prestador do serviço entidade de notória especialização profissional; e tratar-se
de serviço de natureza singular.
Para Hely Lopes Meirelles “serviços técnicos profissionais são todos aqueles que exigem habilitação legal para a sua execução. Essa habilitação varia desde o simples registro
do profissional ou firma na repartição administrativa competente, até o diploma de curso
superior oficialmente reconhecido. O que caracteriza o serviço técnico é a privatividade de
sua execução por profissional habilitado, seja ele um mero artífice, um técnico de grau médio ou um diplomado em escola superior. Já os serviços técnicos profissionais especializados
são aqueles que, além da habilitação técnica e profissional normal, são realizados por quem
se aprofundou nos estudos, no exercício da profissão, na pesquisa científica, ou através de
cursos de pós-graduação ou de estágios de aperfeiçoamento”.184
Esses são os aspectos relevantes sobre o tema. Vamos refletir sobre o mesmo e enfrentar
o caso gerador abaixo.
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 210 a 230.
Caso gerador:
Trata-se de ação civil pública contra ato praticado por prefeito de uma cidade do interior paulista, que contratou serviços de escritório de advocacia para acompanhamento de diversas ações judiciais e prestação de consultoria jurídica sem a realização de prévia licitação.
A situação foi enquadrada pela Prefeitura como hipótese de inexigibilidade de licitação, com base no art. 13, V, da lei 8.666/93, que ao dispor sobre os serviços técnicos
profissionais especializados, neles incluiu “o patrocínio ou defesa de causas judiciais e administrativas”, bem como no art. 25, II e §1º, do mesmo diploma legal, que determina a
inexigibilidade de licitação para os serviços de caráter singular listados no art. 13.
A seu ver, os serviços de advocacia mencionados enquadram-se na previsão do citado
art. 13 c/c art. 25, II, da Lei nº 8.666/93? Por quê?
Leitura complementar:
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, pp. 334 a
351;
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São
Paulo: Dialética.
Licitação e Contrato Administrativo. 7.ed. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 1987,
p. 36.
184
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
Aula 16: As fases da licitação
Objetivo:
Discutir como ocorrem as licitações, as suas etapas, as impugnações e recursos em
geral.
Introdução:
A licitação constitui um procedimento uno, o qual se apresenta dividido em fases, para
fins de organização.
O procedimento licitatório apresenta maior ou menor complexidade dependendo da modalidade adotada, devendo ser iniciado na forma prevista no art. 38 da Lei nº
8.666/1993:
Art. 38. O procedimento da licitação será iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva, a
indicação sucinta de seu objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão juntados
oportunamente:
I - edital ou convite e respectivos anexos, quando for o caso;
II - comprovante das publicações do edital resumido, na forma do art. 21 desta Lei, ou
da entrega do convite;
III - ato de designação da comissão de licitação, do leiloeiro administrativo ou oficial,
ou do responsável pelo convite;
IV - original das propostas e dos documentos que as instruírem;
V - atas, relatórios e deliberações da Comissão Julgadora;
VI - pareceres técnicos ou jurídicos emitidos sobre a licitação, dispensa ou inexigibilidade;
VII - atos de adjudicação do objeto da licitação e da sua homologação;
VIII - recursos eventualmente apresentados pelos licitantes e respectivas manifestações
e decisões;
X - despacho de anulação ou de revogação da licitação, quando for o caso, fundamentado circunstanciadamente;
X - termo de contrato ou instrumento equivalente, conforme o caso;
XI - outros comprovantes de publicações;
XII - demais documentos relativos à licitação.
Parágrafo único. As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração.
A concorrência, considerada a modalidade mais complexa de licitação, apresenta as
seguintes etapas:
(i) divulgação e publicidade do ato convocatório (edital);
FGV DIREITO RIO
80
atividades e atos administrativos
(ii) entrega dos envelopes e julgamento da habilitação;
(iii) divulgação das licitantes habilitadas e julgamento de impugnações e recursos;
(iv) julgamento e classificação das propostas dos licitantes habilitados;
(v) publicidade quanto ao julgamento, classificação das propostas e exaurimento dos
possíveis recursos;
(vi) providências complementares;
(vii) adjudicação.185
Conforme se depreende das fases acima, o procedimento licitatório inicia-se com a
divulgação do edital, o qual deve conter as etapas do processo, as exigências a serem atendidas pelo interessado em participar, os critérios de seleção da proposta mais vantajosa para a
administração, além de uma minuta do contrato a ser celebrado.
Em seguida, ocorre a fase de habilitação, a qual tem por finalidade apurar a capacidade do licitante para contratar com a Administração Pública. O procedimento inclui
(i) a habilitação jurídica, (ii) regularidade fiscal, (iii) qualificação técnica; (iv) qualificação
econômico-financeira e (v) comprovação de cumprimento do disposto no art. 7º, XXXIII,
da Constituição Federal, o qual proíbe trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores
de dezoito, bem como qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de
aprendiz, a partir de quatorze anos.
Uma vez entregues os envelopes de habilitação, cabe à comissão de licitação analisar se
os requisitos constantes do edital foram obedecidos. Encerrada essa análise a comissão profere decisão, mencionando as pessoas habilitadas e as inabilitadas. Contra a referida decisão
as partes interessadas podem interpor recurso, com efeito suspensivo, no prazo de cinco dias
úteis contados da data da divulgação da decisão (art. 109, Lei nº 8.666/1993).
Em seguida, passa-se à fase de apresentação das propostas, cujos envelopes devem ser
abertos em sessão pública. Compete à comissão de licitação decidir sobre a obediência da
proposta aos requisitos formais e materiais exigidos pelo edital, promovendo, em seguida, a
classificação das propostas conformes ao edital.
Divulgado o resultado da análise das propostas, a comissão de licitação deve conferir
publicidade ao julgamento, para que as partes interessadas possam, se julgarem devido,
interpor recurso, o qual segue os mesmos critérios exigidos nos recursos interpostos na fase
de habilitação.
Sendo o recurso julgado procedente, a licitação será invalidada ou, se possível sanar
o vício, a administração procederá à revisão devida, promovendo a reclassificação dos licitantes.186 Quanto à possibilidade de revogação do certame, por critério de conveniência e
oportunidade da Administração, cumpre ressaltar que a lei somente consagra essa possibilidade no caso de o fato ensejador da licitação dar-se em momento superveniente à data da
instauração da licitação.
Em seguida deve ser o resultado homologado. Nas palavras de Maria Sylvia Zanella
Di Pietro:
a homologação equivale à aprovação do procedimento: ela é precedida do exame dos
atos que o integraram pela autoridade competente (indicada nas leis de cada unidade da federação), a qual, se verificar algum vício de ilegalidade, anulará o procedimento ou determinará
seu saneamento, se cabível. Se o procedimento estiver em ordem, ela o homologará.187
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso
de direito administrativo. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 338.
185
JUSTEN FILHO, Marçal.Op.
cit., p. 342.
186
Direito administrativo, op.
cit., p. 331. Sobre a sucessão
entre as etapas de homologação e adjudicação, a autora
ressalta que, em decorrência
do art. 43, VI, da Lei nº 8.666,
“houve uma inversão nos
atos finais do procedimento.
Anteriormente a essa lei, a
adjudicação era o ato final praticado pela própria Comissão
de licitação, após o que vinha a
homologação pela autoridade
competente”. Agora, os dois
atos ficam fora da atuação da
Comissão e passam a ser de
competência da autoridade
competente”. (ob. cit., loc. cit.)
187
FGV DIREITO RIO
81
atividades e atos administrativos
Homologado o resultado da licitação, a etapa superveniente é a adjudicação do objeto
licitado ao licitante vencedor, com a celebração do correspondente contrato administrativo.
Tendo por base a breve descrição acima sobre as etapas da licitação, e com o embasamento de suas leituras de preparação para a aula, busque analisar as possibilidades de
revisão, pelo Poder Judiciário, das decisões proferidas pela comissão de licitação, bem como
a possibilidade de o licitante que deixou de recorrer na esfera administrativa ingressar em
juízo requerendo a invalidação da decisão final quanto à habilitação ou classificação das
propostas.
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 232 a 264.
Caso gerador:
O Banco do Estado do Rio Grande do Sul lançou processo licitatório para a contratação de empresa de prestação de serviços de vigilância.
O início do procedimento se deu com a publicação do edital, o qual deixou de prever
o índice de atualização monetária do valor do contrato, a incidir sobre o preço a partir do
seu 13º mês de vigência.
A empresa XYZ Ltda., tendo sido inabilitada na fase de pré-qualificação, impetra
mandado de segurança alegando a existência de falha no edital, consistente na ausência da
previsão do referido índice de reajuste.
Com base nos seus estudos sobre as fases da licitação, reflita:
a) A via do mandado de segurança é adequada para a formulação do pleito de nulidade
da licitação, por vício do edital?
b) Deve a segurança ser concedida? Por quê?
Leitura complementar:
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, pp. 305 a
333;
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São
Paulo: Dialética.
FGV DIREITO RIO
82
atividades e atos administrativos
Aula 17: Regime jurídico dos contratos administrativos
Objetivo:
Discutir quais as características que distinguem os contratos administrativos dos contratos de direito civil, conferindo especial ênfase ao estudo das cláusulas exorbitantes.
Introdução:
O contrato administrativo é definido, nas palavras de Marçal Justen Filho, como:
Acordo de vontades destinado a criar, modificar ou extinguir direitos e obrigações, tal
como facultado legislativamente e em que pelo menos uma das partes atua no exercício da
função administrativa.188
Da conceituação acima se extrai que, em sede de direito administrativo, a celebração
válida de um contrato administrativo requer que a vontade administrativa declarada encontre supedâneo em lei e que uma das partes contratantes – a Administração – esteja atuando
em uma função-fim da Administração. Nos termos do art. 6º da Lei nº 8.666/1993, o contrato administrativo pode ter por objeto obras, serviços, compras ou alienações.
O conceito apresentado por Marçal Justen Filho também permite observar que nem
todo contrato celebrado com a administração pública se caracteriza como contrato administrativo propriamente dito.189 A participação da Administração Pública em um contrato bilateral, sinalagmático, não importa na necessária classificação desse contrato como sendo um
contrato administrativo. Há, portanto, contratos firmados pela Administração considerados
“contratos da administração”. São contratos firmados à luz das regras de direito privado.
Nesse sentido, o autor sugere a classificação dos contratos da administração em três
distintas espécies, quais sejam:
• Contratos de direito privado praticados no exercício da atividade administrativa:
regidos preponderantemente pelo direito privado, como os previstos no art. 62, §3º, da Lei
nº 8.666/1993, o qual dispõe:
§ 3o Aplica-se o disposto nos arts. 55 e 58 a 61 desta Lei e demais normas gerais, no
que couber:
I - aos contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o Poder Público seja
locatário, e aos demais cujo conteúdo seja regido, predominantemente, por norma de direito
privado;
II - aos contratos em que a Administração for parte como usuária de serviço público.
• Contratos administrativos de delegação: envolvem contratos cujo objeto consiste na
delegação a particulares do exercício de competências administrativas, cujos exemplos são
os contratos de concessão e de permissão de serviços públicos, que possuem regime jurídico
próprio, estatuído, em âmbito federal, na Lei nº 8.987, de 13/02/1995.
Curso de direito administrativo, p. 277.
188
Curso de direito administrativo, pp. 282 e 283.
189
FGV DIREITO RIO
83
atividades e atos administrativos
• Contratos administrativos propriamente ditos: disciplinados pela Lei nº 8.666/1993,
são os acordos de vontade destinados:
a criar, modificar, ou extinguir direitos e obrigações, tal como facultado legislativamente e em que uma das partes, atuando no exercício da função administrativa, é investida de
competências para inovar unilateralmente as condições contratuais e em que se assegura a
intangibilidade da equação econômico-financeira original.190
Ou, nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
manifestações de vontades recíprocas, sendo uma delas da Administração Pública, que,
integradas pelo consenso, têm por objeto a constituição de uma relação jurídica obrigacional, visando a atender, com prestações comutativas, a interesses distintos, um dos quais é
público.191
Procure comparar essas definições com aquela apresentada no início desta aula. Quais
as semelhanças e quais as especificidades? Você seria capaz de, a partir de ambas, separar os
elementos que efetivamente caracterizam o contrato administrativo?
Em auxílio à sua reflexão, observe o art. 55 da lei nº 8.666/1993, o qual elenca as
cláusulas essenciais aos contratos administrativos:
Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam:
I - o objeto e seus elementos característicos;
II - o regime de execução ou a forma de fornecimento;
III - o preço e as condições de pagamento, os critérios, data-base e periodicidade do
reajustamento de preços, os critérios de atualização monetária entre a data do adimplemento
das obrigações e a do efetivo pagamento;
IV - os prazos de início de etapas de execução, de conclusão, de entrega, de observação
e de recebimento definitivo, conforme o caso;
V - o crédito pelo qual correrá a despesa, com a indicação da classificação funcional
programática e da categoria econômica;
VI - as garantias oferecidas para assegurar sua plena execução, quando exigidas;
VII - os direitos e as responsabilidades das partes, as penalidades cabíveis e os valores
das multas;
VIII - os casos de rescisão;
IX - o reconhecimento dos direitos da Administração, em caso de rescisão administrativa prevista no art. 77 desta Lei;
X - as condições de importação, a data e a taxa de câmbio para conversão, quando for
o caso;
XI - a vinculação ao edital de licitação ou ao termo que a dispensou ou a inexigiu, ao
convite e à proposta do licitante vencedor;
XII - a legislação aplicável à execução do contrato e especialmente aos casos omissos;
XIII - a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em
compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e
qualificação exigidas na licitação.
Marçal Justen Filho, Curso de
direito administrativo, p. 289.
190
Curso de direito administrativo, p. 163.
191
FGV DIREITO RIO
84
atividades e atos administrativos
Além disso, a Lei nº 8.666/1993 consagra prerrogativas inerentes à Administração
Pública na celebração de contratos administrativos, as quais se encontram previstas no art.
58 da referida Lei:
Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere
à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de:
I - modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado;
II - rescindi-los, unilateralmente, nos casos especificados no inciso I do art. 79 desta
Lei;
III - fiscalizar-lhes a execução;
IV - aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste;
V - nos casos de serviços essenciais, ocupar provisoriamente bens móveis, imóveis, pessoal e serviços vinculados ao objeto do contrato, na hipótese da necessidade de acautelar apuração administrativa de faltas contratuais pelo contratado, bem como na hipótese de rescisão
do contrato administrativo.
Os dispositivos elencados no art. 58, caput, da Lei nº 8.666/93 são conhecidas como
“competências anômalas”, “prerrogativas extraordinárias” ou, ainda, “cláusulas exorbitantes” dos contratos administrativos. Todas essas terminologias aludem a um poder unilateral
que permanece com a Administração ao contratar com o particular, ao qual esse não poderá
se opor. Nesse sentido, Digo de Figueiredo Moreira Neto observa ser necessário distinguir,
no bojo dos contratos administrativos, “as cláusulas atinentes à finalidade pública, que são
indisponíveis, das cláusulas que negociam interesses patrimoniais, que são disponíveis”192.
Por outro lado, se a Administração tem poderes para modificar e mesmo rescindir
o contrato celebrado após o devido processo licitatório, o art. 58, §§1º e 2º, da Lei nº
8.666/93 confere ao particular contratante importante garantia individual, consistente no
direito ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato, que não poderá ser atingido por
alterações unilaterais promovidas pela Administração:
Art. 58. (...)
§ 1o As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos administrativos não
poderão ser alteradas sem prévia concordância do contratado.
§ 2o Na hipótese do inciso I deste artigo, as cláusulas econômico-financeiras do contrato deverão ser revistas para que se mantenha o equilíbrio contratual.
Aliás, não se pode deixar de mencionar que o princípio da intangibilidade do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo apresenta uma matriz constitucional, conforme se depreende da redação do art. 37, XXI, da Constituição Federal:
Art. 37.
(...)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de
condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento,
mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as
Curso de direito administrativo, p. 162.
192
FGV DIREITO RIO
85
atividades e atos administrativos
exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das
obrigações.
A doutrina tende a exigir determinados requisitos para que a Administração possa
exercer o direito de alterar unilateralmente o contrato administrativo, pois, embora à Administração Pública seja classicamente reconhecida discricionariedade, ou seja, o direito
de realizar juízo de conveniência e oportunidade, esse é exercido no momento em que a
Administração decide contratar, vinculando-se através da celebração do instrumento contratual.193 Assim, em princípio, a modificação do contrato pressuporia eventos somente
ocorridos ou conhecidos após a celebração do contrato, a partir de uma interpretação do
art. 49, caput, da Lei nº 8.666/93:
Art. 49. A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente
comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade,
de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado.
Dessa forma, a motivação constitui requisito inerente à modificação unilateral do
contrato, sendo a mesma nula se desmotivada, quando o motivo invocado seja anterior
à contratação, bem como quando a modificação se apresente desproporcional ao motivo
invocado.194
Merece ainda menção a exigência, em regra, de que os acordos com a Administração
Pública sejam reduzidos à forma escrita. Como regra, apresentam-se limitadas as possibilidades de acordos tácitos ou implícitos.195 Essa limitação decorre, por exemplo, de ser a
forma um elemento caracterizador do ato administrativo, sendo necessário que a Administração a obedeça ao expressar sua manifestação de vontade. Seria inclusive, uma exigência
do princípio da publicidade dos atos administrativos, também já estudado.
Por outro lado, às vezes, é possível ou mesmo necessário inferir-se, de um determinado
comportamento da Administração, uma declaração de vontade implícita. Assim, a doutrina
não nega a possibilidade de existência de declarações tácitas de vontade pela Administração. De
toda forma, faz-se necessário que, em algum momento, tenha a referida vontade se exteriorizado,196 a não ser quando a própria lei já previr o silêncio como manifestação do consentimento
tácito (por exemplo, uma lei que determina que, caso a Administração não se manifeste formalmente no prazo de 30 dias, o requerimento será considerado automaticamente aprovado).
Por fim, cumpre abordar a temática da duração do contrato, merecendo transcrição o
seguinte ensinamento de José dos Santos Carvalho Filho:
Os contratos administrativos devem ser celebrados por prazo determinado (art. 57, §
3o), sua duração é adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários (art. 57), forma
encontrada pelo legislador para impedir que o dispêndio oriundo de contratos venha repercutir em orçamentos futuros, sem que tenham sido ordenadamente planejados os ajustes.197
Como se pode perceber, ao vedar a contratação com prazo de vigência indeterminado, o
que inspira o legislador é a necessidade de obrigar o contratante a fazer a previsão de recursos
orçamentários, de modo a ficar garantido o efetivo cumprimento das obrigações assumidas pela
Administração Pública, bem como resguardar o princípio da competição.
Curso de direito administrativo, p. 291.
193
Curso de direito administrativo, p. 291.
194
Conforme ALESSI, Renato.
Instituciones de derecho administrativo, tomo I, p. 255.
195
Nesse sentido, por exemplo,
dissertando sobre o tema os
efeitos jurídicos da omissão da
Administração Pública, Renato
Alessi observa: “A questão surge propriamente no caso da
mera omissão, ou seja, no caso
da omissão, naturalmente voluntária, relativamente à qual
falte toda exteriorização formal
da determinação volitiva a que
ela se refira. Em tal caso, não
se pode de nenhuma forma
reconhecer a existência de um
ato, dado que falta o elemento
da manifestação da atividade
volitiva em forma suficiente
para ter um reconhecimento
exterior suficiente. A omissão,
portanto, será em tal caso um
mero fato da Administração,
com possibilidade de produção
de conseqüências jurídicas,
como, por exemplo, uma responsabilidade da Administração”. Instituciones de derecho
administrativo, p. 257.
196
Manual de Direito Administrativo, p. 173.
197
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atividades e atos administrativos
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 151 a 175.
Caso gerador:
O Município de Morretes/PR celebrou com uma prestadora de serviço de transporte
coletivo de passageiros, um contrato verbal sem a realização de prévio procedimento licitatório
e empenho.
Embora o serviço tenha sido prestado, a empresa não recebeu os valores devidos pelo
município. Como razão para o não-pagamento, o município alega que a Administração
Pública encontra-se impedida de realizar contrato verbal, nos termos do art. 60, parágrafo
único, da Lei nº 8.666/93, o qual dispõe:
Art. 60. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de
pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a
5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea a desta Lei, feitas em
regime de adiantamento.
Portanto, o referido contrato seria nulo, aplicando-se a declaração de nulidade retroativamente, nos termos do art. 59, caput, da Lei nº 8.666/93. Ademais, a ausência de licitação feriria o art. 37, XXI, da Constituição Federal e o princípio da finalidade que, conforme
já estudado, constitui imanência do princípio da legalidade.
Por fim, o contrato não atenderia ao disposto na Lei nº 4.320/64, que exige prévio empenho para a realização de despesa pública (art. 60)198, bem como a emissão de nota de empenho indicando credor, importância devida e dedução desta do saldo da dotação própria (art.
61). A inobservância dessa forma legal gera igualmente a nulidade do ato (art. 59, § 4º).
Em síntese, o relator do caso no Superior Tribunal de Justiça destacou que “o contrato
administrativo verbal de prestação de serviços de transporte não-precedido de licitação e
prévio empenho é nulo, pois vai de encontro às regras e princípios constitucionais, notadamente a legalidade, a moralidade, a impessoalidade, a publicidade, além de macular a
finalidade da licitação, deixando de concretizar, em última análise, o interesse público”.
Entretanto, a realidade é que os serviços foram prestados, com o arrendamento de três
ônibus ao município durante certo período de tempo. Nesse sentido, há de se considerar o
princípio da vedação ao enriquecimento sem causa e o disposto no art. 59, parágrafo único,
da Lei nº 8.666/93, segundo o qual:
Art. 59. (...)
Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o
contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros
prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a
responsabilidade de quem lhe deu causa”.
Em vista dos fatos acima aduzidos, a empresa de transporte público promoveu ação de
cobrança contra o município.
Dispõe o art. 60 da Lei nº
4.320/64: “É vedada a realização de despesa sem prévio empenho. § 1º Em casos especiais
previstos na legislação específica será dispensada a emissão
da nota de empenho. § 2º Será
feito por estimativa o empenho
da despesa cujo montante não
se possa determinar. §3º É permitido o empenho global de
despesas contratuais e outras,
sujeitas a parcelamento”.
198
FGV DIREITO RIO
87
atividades e atos administrativos
À luz das disposições da Lei de Licitações e dos princípios que regem a Administração
Pública, é válido o contrato celebrado?
Caso seja declarada a sua nulidade, devem ser efetuados os pagamentos à transportadora? É relevante o conceito de boa-fé para o deslinde da controvérsia?
Ref.: Resp 54.5471
Leitura complementar:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, capítulo 8.
FGV DIREITO RIO
88
atividades e atos administrativos
Aula 18: Extinção do contrato administrativo
Objetivo:
Analisar as formas de extinção do ato administrativo e seus efeitos.
Introdução:
O encerramento dos contratos administrativos pode se dar tanto pelo exaurimento do seu
objeto, pelo advento do termo, como por razão anômala, como nos casos de inadimplemento.
A rescisão decorrente de inadimplemento encontra-se disciplinada na Seção V da Lei
nº 8.666/1993, cujos arts. 77 e 78 dispõem:
Seção V
Da Inexecução e da Rescisão dos Contratos
Art. 77. A inexecução total ou parcial do contrato enseja a sua rescisão, com as conseqüências contratuais e as previstas em lei ou regulamento.
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
I - o não cumprimento de cláusulas contratuais, especificações, projetos ou prazos;
II - o cumprimento irregular de cláusulas contratuais, especificações, projetos e prazos;
III - a lentidão do seu cumprimento, levando a Administração a comprovar a impossibilidade da conclusão da obra, do serviço ou do fornecimento, nos prazos estipulados;
IV - o atraso injustificado no início da obra, serviço ou fornecimento;
V - a paralisação da obra, do serviço ou do fornecimento, sem justa causa e prévia comunicação à Administração;
VI - a subcontratação total ou parcial do seu objeto, a associação do contratado com
outrem, a cessão ou transferência, total ou parcial, bem como a fusão, cisão ou incorporação,
não admitidas no edital e no contrato;
VII - o desatendimento das determinações regulares da autoridade designada para
acompanhar e fiscalizar a sua execução, assim como as de seus superiores;
VIII - o cometimento reiterado de faltas na sua execução, anotadas na forma do § 1o
do art. 67 desta Lei;
IX - a decretação de falência ou a instauração de insolvência civil;
X - a dissolução da sociedade ou o falecimento do contratado;
XI - a alteração social ou a modificação da finalidade ou da estrutura da empresa, que
prejudique a execução do contrato;
XII - razões de interesse público, de alta relevância e amplo conhecimento, justificadas
e determinadas pela máxima autoridade da esfera administrativa a que está subordinado o
contratante e exaradas no processo administrativo a que se refere o contrato;
XIII - a supressão, por parte da Administração, de obras, serviços ou compras, acarretando modificação do valor inicial do contrato além do limite permitido no § 1o do art. 65
desta Lei;
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
XIV - a suspensão de sua execução, por ordem escrita da Administração, por prazo
superior a 120 (cento e vinte) dias, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação
da ordem interna ou guerra, ou ainda por repetidas suspensões que totalizem o mesmo prazo,
independentemente do pagamento obrigatório de indenizações pelas sucessivas e contratualmente imprevistas desmobilizações e mobilizações e outras previstas, assegurado ao contratado, nesses casos, o direito de optar pela suspensão do cumprimento das obrigações assumidas
até que seja normalizada a situação;
XV - o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração
decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações
até que seja normalizada a situação;
XVI - a não liberação, por parte da Administração, de área, local ou objeto para execução de obra, serviço ou fornecimento, nos prazos contratuais, bem como das fontes de
materiais naturais especificadas no projeto;
XVII - a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, regularmente comprovada, impeditiva da execução do contrato.
XVIII – descumprimento do disposto no inciso V do art. 27, sem prejuízo das sanções
penais cabíveis.199
Parágrafo único. Os casos de rescisão contratual serão formalmente motivados nos autos do processo, assegurado o contraditório e a ampla defesa.
Conforme se pode observar da extensa lista acima, muitas são as causas que podem
ensejar a rescisão unilateral do contrato pela Administração, nem todas imputáveis ao particular, como nas hipóteses previstas nos incisos XIII a XVI supracitados. Além disso, a
rescisão pode dar-se tanto por ato unilateral da administração, como por acordo amigável
ou decisão judicial, a depender do evento ensejador da rescisão. Conforme expõe o art. 79
da Lei nº 8.666/1993:
Art. 79. A rescisão do contrato poderá ser:
I - determinada por ato unilateral e escrito da Administração, nos casos enumerados
nos incisos I a XII e XVII do artigo anterior;
II - amigável, por acordo entre as partes, reduzida a termo no processo da licitação,
desde que haja conveniência para a Administração;
III - judicial, nos termos da legislação;
IV – vetado.
§ 1o A rescisão administrativa ou amigável deverá ser precedida de autorização escrita e
fundamentada da autoridade competente.
§ 2o Quando a rescisão ocorrer com base nos incisos XII a XVII do artigo anterior, sem
que haja culpa do contratado, será este ressarcido dos prejuízos regularmente comprovados
que houver sofrido, tendo ainda direito a:
I - devolução de garantia;
II - pagamentos devidos pela execução do contrato até a data da rescisão;
III - pagamento do custo da desmobilização.
§ 3º. Vetado.
§ 4º. Vetado.
Inciso incluído pela Lei nº
9.854/99.
199
FGV DIREITO RIO
90
atividades e atos administrativos
§ 5o.Ocorrendo impedimento, paralisação ou sustação do contrato, o cronograma de
execução será prorrogado automaticamente por igual tempo.
Entretanto, o Administrador Público não pode rescindir o contrato por puro capricho,
sem motivação. Nesse sentido, é oportuno trazer lição de Marçal Justen Filho:
A Lei buscou reduzir o âmbito de liberdade da Administração Pública para extinguir
o contrato mediante invocação do interesse público. (...) Antes de tudo, o Estado de Direito
não se compadece com que o agente administrativo adote a conduta que melhor lhe aprouver
mediante a rasa invocação de “interesse público”. A eliminação do arbítrio equivale à necessidade das decisões administrativas serem relacionadas e proporcionadas a um interesse público
definido e concreto. Já por isso, seria inviável a Administração desfazer, mediante a simples
invocação ao interesse público, o vínculo jurídico mantido com um terceiro. Mas o Direito foi mais longe. Reconhece-se que a conveniência administrativa apenas pode autorizar o
desfazimento de atos administrativos desde que respeitados os eventuais direitos adquiridos
de terceiros (Súmula 473 do STF). A revogação do ato administrativo encontra obstáculo
no direito adquirido. O contrato administrativo produz direitos adquiridos, que devem ser
respeitados inclusive pela lei nova (CF, art. 5º, inc. XXXVI). Logo, não se admite revogação
imotivada do contrato administrativo. (...) A Lei expressamente reconheceu a insuficiência
da simples alegação do interesse público na rescisão. Primeiramente, condicionou a rescisão
à existência de razões de interesse público de alta relevância e amplo conhecimento. A adjetivação não pode ser ignorada. A eventual dificuldade em definir, de antemão, o sentido de
“alta relevância” não autoriza ignorar a exigência legal. A Administração estará obrigada a
demonstrar que a manutenção do contrato acarretará lesões sérias a interesses cuja relevância
não é a usual. A “alta” relevância indica uma importância superior aos casos ordinários. Isso
envolve danos irreparáveis, tendo em vista a natureza da prestação ou do objeto executado.
O risco da lesão ao interesse público afasta a invocação de “conveniência”. Há necessidade de
extinguir-se o contrato porque sua manutenção será causa de conseqüências lesivas. Ademais,
essa situação deverá ser de amplo conhecimento, o que indica a ausência de dúvida acerca do
risco existente. O contratado tem direito de ser ouvido e manifestar-se acerca da questão. Não
estará presente o requisito legal se nem o contratado tiver conhecimento da situação e do risco
invocado pela Administração.200
A devida fundamentação é imperiosa nos casos de rescisão dos contratos administrativos, ainda que se trate de revogação do contrato. É o que se depreende do artigo 49 da Lei
de Licitações:
Art. 49. A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá
revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por
ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente
fundamentado.
(...)
§ 3o No caso de desfazimento do processo licitatório, fica assegurado o contraditório e
a ampla defesa.
(...)
Comentários à Lei de Licitações e Contrato Administrativos.
8.ed., São Paulo: Dialética, SP,
2001.
200
FGV DIREITO RIO
91
atividades e atos administrativos
§ 4o O disposto neste artigo e seus parágrafos aplica-se aos atos do procedimento de
dispensa e de inexigibilidade de licitação. (grifamos)
Pouco importa que se esteja a tratar de rescisão contratual unilateral ou mesmo de
revogação do contrato, pois tanto numa quanto noutra hipótese é indispensável a objetiva
demonstração dos motivos que justificassem tais medidas. Com efeito, é de exigir-se da Administração Pública a indicação precisa dos motivos que ensejam o ato revocatório, sendo
certo que o juízo de conveniência para tanto somente pode se basear em fato superveniente,
devidamente comprovado, pertinente e suficiente a justificar tão extremada iniciativa.
Por essa razão a discricionariedade administrativa sofreu séria e profunda restrição
legal, sendo certo afirmar-se que a doutrina sustenta que o ato rescisório ou revocatório tenha necessariamente fundamento em fatos novos suficientes, não mais se admitindo a mudança do critério de mera oportunidade. Veja-se, a esse respeito, a manifestação de Toshio
Mukai:
Antes do Decreto-lei nº 2.300/86, a doutrina, em uníssono, afirmava que o vencedor
de uma licitação não podia pretender ter direito a ser contratado. E isso porque a licitação
poderia ser revogada (discricionariamente) por simples motivo de inconveniência e inoportunidade da contratação, a qualquer momento. Com o Decreto-lei nº 2.300/86, essa situação
começa a se alterar, uma vez que ele obrigou que a revogação se fundasse sempre no interesse
público, ou seja, a revogação de uma licitação somente se justificava perante a existência de
um interesse público devidamente demonstrado. Ocorre que nem todos os órgãos seguiram
esses condicionantes. Agora, na redação atual, o art. 49 da Lei nº 8.666/93 tornou a revogação de uma licitação um fato excepcional e praticamente vinculado. Isso porque, em primeiro
lugar, emprega a expressão “somente poderá revogar”, a demonstrar que a revogação é ato
excepcional; ao depois condiciona-a à ocorrência de um “fato superveniente devidamente
comprovado” e que seja pertinente e suficiente para justificar a revogação, em razão de interesse público que deve decorrer desse fato, portanto, a revogação da licitação, atualmente,
é ato vinculado à ocorrência de tais fatos, e não depende mais da vontade discricionária do
administrador público. Em inexistindo tais condições, a contratação será obrigatória, salvo
se houver ilegalidade capaz de fundar a anulação da licitação. Portanto, agora, mais do que
nunca, descabe a afirmativa de parte da doutrina no sentido de que, em princípio, o vencedor
de uma licitação não tem direito ao contrato. De acordo com a nova disposição, a questão se
inverte: em princípio, o vencedor de uma licitação tem direito ao contrato, salvo se ocorrerem
realmente as hipóteses que fundamentam legalmente, e puderem elas ser demonstradas, tanto
a revogação como a anulação, hipóteses essas que retiram do licitante o direito ao contrato.“O
que a Administração não pode é invalidar licitação sem justa causa, para favorecer ou prejudicar licitante. Se assim agir, praticará ato nulo por excesso ou abuso de poder, com todos
os consectários desse desvio de finalidade”. “A justa causa para anular ou revogar a licitação
deve ficar evidenciada em procedimento regular, com oportunidade de defesa. Não basta a
simples alegação de vício ou de interesse público para invalidar a licitação; necessário é que a
Administração demonstre o motivo invalidatório (Hely Lopes Meirelles, Licitação e contrato
administrativo, cit., p. 163-4).201
Portanto, nos termos da lei, em caso de rescisão do contrato administrativo sem culpa
do Administrado, este tem direito à devolução da garantia entregue à Administração no
Licitações e Contratos Públicos. 4.ed. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 76-77.
201
FGV DIREITO RIO
92
atividades e atos administrativos
momento da celebração, ao pagamento pelo montante do objeto que tenha sido executado
até o momento da rescisão, bem como de ser ressarcido do custo pela desmobilização de
equipamentos e pessoal, tendo em vista que o encerramento do contrato está ocorrendo
antes do término do prazo contratual, que era aquele que havia sido utilizado pelo licitante,
no momento da apresentação de sua oferta, para calculo de amortização de custos dessa
natureza.
Por outro lado, caso o administrado dê ensejo à rescisão, a lei prevê severa punição,
como se observa da redação do art. 80 da Lei nº 8.666/1993:
Art. 80. A rescisão de que trata o inciso I do artigo anterior acarreta as seguintes conseqüências, sem prejuízo das sanções previstas nesta Lei:
I - assunção imediata do objeto do contrato, no estado e local em que se encontrar, por
ato próprio da Administração;
II - ocupação e utilização do local, instalações, equipamentos, material e pessoal empregados na execução do contrato, necessários à sua continuidade, na forma do inciso V do
art. 58 desta Lei;
III - execução da garantia contratual, para ressarcimento da Administração, e dos valores das multas e indenizações a ela devidos;
IV - retenção dos créditos decorrentes do contrato até o limite dos prejuízos causados
à Administração.
§ 1o A aplicação das medidas previstas nos incisos I e II deste artigo fica a critério da
Administração, que poderá dar continuidade à obra ou ao serviço por execução direta ou
indireta.
§ 2o É permitido à Administração, no caso de concordata do contratado, manter o contrato, podendo assumir o controle de determinadas atividades de serviços essenciais.
§ 3o Na hipótese do inciso II deste artigo, o ato deverá ser precedido de autorização
expressa do Ministro de Estado competente, ou Secretário Estadual ou Municipal, conforme
o caso.
§ 4o A rescisão de que trata o inciso IV do artigo anterior permite à Administração, a
seu critério, aplicar a medida prevista no inciso I deste artigo.
Para refletir sobre o tema, analise o acórdão proferido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança nº 24268/MG, em que foi relatora a ministra
Ellen Gracie e relator para acórdão o ministro Gilmar Mendes, publicado em 17/09/04:
“Mandado de Segurança. 2. Cancelamento de pensão especial pelo Tribunal de Contas
da União. Ausência de comprovação da adoção por instrumento jurídico adequado. Pensão
concedida há vinte anos. 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito
de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume
a um simples direito de manifestação no processo. 4. Direito constitucional comparado. Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de manifestação e de informação, mas
também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. 5. Os princípios
do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição, aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. 6. O exercício pleno do contraditório não se limita à garantia
de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido
também em matéria jurídica. 7. Aplicação do princípio da segurança jurídica, enquanto subFGV DIREITO RIO
93
atividades e atos administrativos
princípio do Estado de Direito. Possibilidade de revogação de atos administrativos que não
se pode estender indefinidamente. Poder anulatório sujeito a prazo razoável. Necessidade de
estabilidade das situações criadas administrativamente. 8. Distinção entre atuação administrativa que independe da audiência do interessado e decisão que, unilateralmente, cancela decisão
anterior. Incidência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ao
processo administrativo. 9. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança
jurídica. Presença de um componente de ética jurídica. Aplicação nas relações jurídicas de
direito público. 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio
do contraditório e da ampla defesa (CF art. 5º LV).
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 176 a 198.
Caso gerador:
Contrato firmado entre a empresa pública ABC-BRÁS e a NEWCO, sob o regime de
inexigibilidade de licitação para a prestação de serviços caracterizados como desenvolvimento e implantação de sistema de controle da produção de compact disc, com a utilização de
equipamentos e softwares específicos.
Tal contrato se baseia no fato de que ao longo dos últimos anos, em decorrência de numerosos e crescentes casos de fabricação clandestina de CDs, tem havido imensa sonegação
fiscal, e a Secretaria da Receita Federal vem intensificando suas ações fiscais nessa área, com o
propósito de evitar maiores prejuízos não apenas ao erário, mas também à indústria de CDs.
Obviamente, o aprimoramento da tecnologia utilizada na confecção dos prefalados selos de
controle é primordial para o combate eficaz à comercialização ilegal desse produto.
Por esse motivo a ABC-BRÁS iniciou com a NEWCO, detentora de direitos exclusivos de distribuição, no Brasil, da indigitada tecnologia, o desenvolvimento de projeto
piloto para a adaptação e implantação desse sistema no país. Após os contatos de praxe,
seguido da exposição do modo de funcionamento do sistema pelo qual a NEWCO é detentora, a ABC-BRÁS, por meio de correspondência, apresentou Carta de Intenção, pela
qual se comprometeu a acompanhar o desenvolvimento e o teste piloto do sistema, para
fins de utilização dessa tecnologia no caso de comprovada eficiência e conformidade legal
de contratação. Em resumo, o sistema de controle em apreço baseia-se na instalação, pela
NEWCO, de equipamentos que só permitem o funcionamento das respectivas linhas de
produção se estiverem em uso dispositivos produzidos de acordo com a tecnologia exclusiva
da NEWCO.
O desenvolvimento do projeto levou dois anos, suscitando nesse tempo diversas reuniões, diligências, testes e auditorias de sistema em campo (ou seja, junto a unidades de
fabricação e empacotamento dos CDs, em caráter experimental), sempre realizadas conjuntamente por técnicos da ABC-BRÁS e da ACPIS, até que finalmente o projeto piloto
foi aprovado pela ABC-BRÁS. Em seqüência, as partes firmaram o referido contrato de
prestação de serviços.
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
O contrato foi celebrado sob o regime de inexigibilidade de licitação, nos termos do
artigo 25 da Lei n.º 8.666/1993, e conforme extrato de inexigibilidade de licitação publicado no Diário Oficial da União, tendo-se em vista que a NEWCO é a única detentora, no
Brasil, do referido programa.
Diante do exíguo prazo avençado entre a Secretaria da Receita Federal e a ABC-BRÁS
para o início do funcionamento do sistema de controle em cogitação, a NEWCO, desde a
celebração do contrato de prestação de serviços, vinha adotando todas as medidas necessárias ao seu bom e fiel cumprimento, tais como, e. g., a contratação de diversos profissionais,
a aquisição e encomenda de equipamentos, dentre outras. Sucede que, na data de 10/03/06,
a NEWCO foi surpreendida pelos vagos e sucintos termos do Ofício ABC123, por meio do
qual a ABC-BRÁS, representada por seu presidente, “considerando o artigo 78, XII, da Lei
n.º 8.666/1993”, dava notícia da “rescisão unilateral do aludido contrato”.
Considerando seus estudos sobre as formas de encerramento do contrato administrativo, como deve ser resolvida a questão?
Leitura complementar:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, capítulo 8;
FIGUEIREDO, Lucia Valle. Extinção dos contratos administrativos. São Paulo: Malheiros,
2002.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, pp.
361 a 384.
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
Bloco VI: Bens públicos
Objetivo:
O objetivo deste bloco é analisar as principais características que compõem os bens de
titularidade pública
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
Aulas 19 e 20: Regime jurídico dos bens públicos
Objetivo:
Apresentar o conceito de bens públicos, sua classificação e seu regime jurídico.
Introdução:
A definição de bens públicos é encontrada no Código Civil, cujo art. 98 dispõe:
São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito
público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.
A partir da definição acima, José dos Santos Carvalho Filho observa que são bens
públicos tanto aqueles pertencentes à União Federal, Estados e municípios, como aqueles
pertencentes a autarquias, fundações de direito público e associações públicas.202 Já os bens
pertencentes às empresas públicas e sociedades de economia mista são compreendidos como
privados, inclusive em decorrência da previsão constitucional de que as atividades dessas
entidades regem-se, quanto ao direito civil e comercial, pelas mesmas regras aplicáveis às
empresas privadas.
Quanto à destinação, apresenta-se clássica a divisão dos bens públicos quanto a (i)
bens de uso comum do povo; (ii) bens de uso especial; e (iii) bens dominicais, expressamente prevista no art. 99 do Código Civil:
Art. 99. São bens públicos:
I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas
autarquias;
III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens
pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito
privado.
Relativamente à classificação tripartite que o referido dispositivo do Código Civil atribuiu aos bens públicos, Maria Sylvia Zanella Di Pietro203 assim se manifestou doutrinariamente:
O critério dessa classificação é o da destinação ou afetação dos bens: os da primeira
categoria são destinados, por natureza ou por lei, ao uso coletivo; os da segunda ao uso da
Administração, para consecução de seus objetivos, como os imóveis onde estão instaladas
as repartições públicas, os bens móveis utilizados na realização dos serviços públicos (...); os
da terceira não têm destinação pública definida, razão pela qual podem ser aplicados pelo
Manual de direito administrativo, pp. 923 e 924.
202
Direito Administrativo, Ed.
Atlas, 10ª ed., São Paulo, 1998,
pp. 433/4.
203
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
poder público, para obtenção de renda; (...) Já se nota, por essas características, um ponto
comum – a destinação pública – nas duas primeiras modalidades, e que as diferencia da
terceira, sem destinação pública. Por essa razão, sob o aspecto jurídico, pode-se dizer que há
duas modalidades de bens públicos: 1. os do domínio público do Estado, abrangendo os de
uso comum do povo e os de uso especial; 2. os do domínio privado do Estado, abrangendo
os bens dominicais.
Caracterizam-se os bens de uso comum do povo pela sua indisponibilidade e inalienabilidade, que decorre da finalidade não-patrimonial de que se revestem.204 Os bens de uso
especial, em que pese serem passíveis de avaliação pecuniária, são também indisponíveis
enquanto destinados a uma atividade pública; poderão deixar de sê-lo, entretanto, em caso
de desafetação205. Nesse sentido, dispõe o art. 100 do Código Civil:
Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis,
enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.
Por fim, os bens dominicais caracterizam-se por serem alienáveis, na forma e nos limites previstos pela legislação, conforme expressa redação do art. 101 do Código Civil:
Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências
da lei.
Os bens públicos caracterizam-se igualmente por sua impenhorabilidade. Nesse sentido, cumpre aludir ao regime geral dos precatórios que rege as execuções contra a Fazenda
Pública, previsto no art. 100 da Constituição Federal (distinto, portanto, das regras comuns
do processo civil de execução):
Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela
Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos
adicionais abertos para este fim.
A impenhorabilidade dos bens públicos pode ser constatada também nos arts. 730 e
731 do Código de Processo Civil, que disciplinam o regime de execução de créditos contra
a Fazenda Pública.
Outra característica clássica dos bens públicos é a sua imprescritibilidade, atributo
que determina não poderem os bens públicos ser adquiridos por usucapião. Nesse sentido,
vejam-se arts. 183, §3º, e 191, parágrafo único, da Constituição Federal:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros
quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia
ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel
urbano ou rural.
(...)
§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Manual de direito administrativo, p. 930
204
Sobre a desafetação de bens
públicos, exemplifica José dos
Santos Carvalho Filho: “uma
área pertencente ao Município
na qual não haja qualquer serviço administrativo é um bem
desafetado de fim público.
Uma viatura policial alocada ao
depósito público como inservível igualmente se caracteriza
como bem desafetado, já que
não utilizado para a atividade
administrativa normal”. Manual de direito administrativo,
p. 931.
205
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como
seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a
cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua
moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
No mesmo sentido, dispõe o art. 102 do Código Civil:
Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.
Por fim, os bens públicos são não-oneráveis, ou seja, sobre os mesmos não pode recair
penhor, hipoteca ou anticrese.
Entre os entes públicos, os bens podem ser objeto de cessão de uso. Nas palavras de
José dos Santos Carvalho Filho:
Cessão de uso é aquela em que o Poder Público consente o uso gratuito de bem público
por órgãos da mesma pessoa ou de pessoa diversa, incumbida de desenvolver atividade que,
de algum modo, traduza interesse da coletividade.206
Embora a finalidade clássica do instituto seja a cessão de bem público a pessoa jurídica
de direito público, a doutrina admite que, excepcionalmente, possa haver cessão gratuita de
bem pública a pessoa jurídica de direito privado, que desempenhe atividade não lucrativa,
e tenha por objeto beneficiar a coletividade.207
Confira-se, por oportuno, o que dispõe a Constituição Federal acerca dos bens públicos:
Art. 20. São bens da União:
I – os que atualmente lhe pertencem e os que vierem a ser atribuídos;
II – as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei;
III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que
banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território
estranegiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;
IV – as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental e as referidas
no art. 26, II;
V – os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva;
VI – o mar territorial;
VII – os terrenos de marinha e seus acrescidos;
VIII – os potenciais de energia hidráulica;
IX – os recursos minerais, inclusive os do subsolo;
X – as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos;
XI – as terás tradicionalmente ocupadas pelos índios.
§ 1º É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios,
bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da explora-
CARVALHO FILHO, José dos
Santos. Manual de direito administrativo, p. 959.
206
Nesse sentido, CARVALHO
FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo,
p. 960.
207
FGV DIREITO RIO
99
atividades e atos administrativos
ção de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e
de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial
ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração.
§ 2º A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras
terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei.
Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:
I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;
II – as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas
aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros;
III – as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União;
IV – as terras devolutas não compreendidas entre as da União.
O uso dos bens públicos
A regra geral é que os bens públicos devem ser utilizados para a finalidade a que se destinam. Assim, a rua, bem de uso comum do povo, é utilizada para tráfego de automóveis, a praça
para o lazer etc. Também os bens de uso especial são geralmente utilizados pela pessoa jurídica
de direito público para desenvolver a finalidade para a qual se destinam: a escola, à prestação de
serviço de educação; o hospital, para cuidados com a saúde da população, e assim por diante.
Sendo as atividades desenvolvidas nesses bens próprias à finalidade para as quais existem, e atendendo assim à população, não existe necessidade de autorização para a utilização
desses bens pelos particulares.
Todavia, a legislação também admite hipóteses em que particulares devam pagar determinada remuneração para que possam utilizar referidos bens públicos. Nesse sentido, o
particular pode ter de pagar pedágio pela utilização da rodovia, ou ingresso para ter acesso
a salas de museus.286 Esse uso é chamado especial.
Nos casos dos museus e das rodovias, o acesso é amplamente franqueado à população
em geral, desde que pague a retribuição acordada. No entanto, em algumas situações, pode
o particular desejar utilizar o bem público de forma individualizada, para fins privados,
excluindo o uso concomitante pelos demais particulares.
A utilização do bem público pelo particular deve necessariamente ser reduzida a instrumento por escrito e caracteriza-se por ser, em regra, precária, uma vez que o interesse
público exige que haja algumas prerrogativas em favor da Administração, como o direito de
revogar uma autorização anteriormente concedida. O instituto clássico para a utilização de
bem público para objetivos estritamente privados é a “autorização de uso de bem público”,
cujo elemento marcante se apresenta indubitavelmente a precariedade.
Já a permissão de uso de bem público tem lugar quando a finalidade visada é concomitantemente pública e privada. Também se caracteriza por ser ato unilateral, discricionário e
precário, sendo a diferenciação para a autorização meramente uma questão quanto à finalidade predominante no ato. Exemplo clássico é a permissão para montagem de feira em praça
ou rua.287
De forma distinta à autorização e à permissão, a concessão de uso apresenta natureza
contratual, também discricionária, porém não mais precária, tendo em vista que geralmente
Os exemplos são de José dos
Santos Carvalho Filho, Manual
de direito administrativo, p.
945.
286
CARVALHO FILHO, José dos
Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, p. 952.
287
FGV DIREITO RIO
100
atividades e atos administrativos
encontra-se associada a projetos que requerem investimentos de maior vulto por parte dos
particulares. Sendo contratos administrativos, submetem-se à legislação de licitações e às
cláusulas exorbitantes que caracterizam a contratação com o poder público.
Cumpre mencionar, ainda, a concessão real de uso, instituto regulado expressamente
pelo Decreto-Lei nº 271, de 28/02/1967 (disponível o anexo I). A diferença básica entre
ambas reside na natureza jurídica de direito real, de uma delas, ou meramente pessoal, para
a outra. Consoante José dos Santos Carvalho Filho, esse instituto é utilizado principalmente
para fins de urbanização, industrialização e edificação.
Não se pode deixar, por fim, de aludir ao novel instrumento da concessão de uso
especial para fins de moradia, disciplinado pela Medida Provisória nº 2.220/2001 (disponível no anexo I). Nos termos do art. 7º dessa norma, trata-se de instituto com natureza de direito real de uso, vinculado (pois o ocupante que satisfizer às condições
exigidas pela medida provisória terá direito subjetivo à concessão de uso), destinado à
finalidade única e exclusiva de moradia.208 Deve-se atentar para as diferenças entre essa
forma de concessão e o usucapião urbano especial previsto no art. 183 da Constituição
Federal, considerando-se a vedação de aquisição do domínio de terras públicas por meio
da usucapião.
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15a ed. Rio de
Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 921 a 964.
Casos geradores:
1. Os terrenos de marinha constituem bens da União Federal, nos termos do art. 20,
VII, da Constituição Federal, de uso comum do povo.
Em determinada praia, a microempresa XYZ Ltda. vinha exercendo atividade econômica, consistente no aluguel da área para prática da atividade de camping, conforme
autorizada por alvará de funcionamento expedido pela prefeitura da localidade em nome da
empresa, e pagando os tributos pertinentes.
No entanto, em decorrência de fortes chuvas, a área foi profundamente afetada por
uma ressaca, o que fez a Secretaria do Patrimônio da União exigir a imediata desocupação
da área pela empresa, em razão da probabilidade de novos alagamentos e outras intempéries
da natureza, que poriam em rico a vida dos usuários do local.
A Secretaria alega, ainda, ser precária e de má-fé a ocupação em questão, pois as praias
constituem bens de titularidade da União – e não do município – de forma que somente
aquela poderia ter expedido autorização para sua utilização. Além disso, destinam-se ao uso
comum do povo e não à exploração privada.
Por outro lado, a empresa alega ter a posse mansa e pacífica da área há mais de cinco anos e ter realizado diversas benfeitorias no local, razão pela qual sustenta ter direito
à permanência no referido bem, ao menos até que seja devidamente indenizada por tais
investimentos. Alega que sua posse é de boa-fé, pois a atividade encontra-se licenciada pela
Prefeitura local.
CARVALHO FILHO, José dos
Santos. Manual de direito administrativo, op. cit., p. 957.
208
FGV DIREITO RIO
101
atividades e atos administrativos
A seu ver, como deve ser decidida a contenda? Deve ser reconhecido à empresa direito
à manutenção da posse do imóvel? Por quê? Em sua resposta, considere tanto a titularidade
do bem em questão e a finalidade a que se destina.
2. Conforme visto, as vias públicas constituem bens de domínio público, de uso comum do povo.
Nesse sentido, o Município de São Paulo, titular de referidos bens, pretendeu iniciar
cobrança, das concessionárias de serviços públicos de energia elétrica, pela utilização de
referidos bens para instalação de postes, linhas, torres e subestações de energia elétrica.
Para além da discussão sobre se tal cobrança teria natureza de taxa ou de preço público
– pois que a rigor não haveria nem poder de polícia nem prestação de serviço público pelo
município – perquire-se sobre a possibilidade de realização de referida cobrança, tendo em
vista que as concessionárias de distribuição de energia elétrica prestam serviço público, de
titularidade estatal, por delegação do poder público. Ou seja, a seu ver, deveria o município
ser remunerado pela disponibilização para uso, pela concessionária, do bem público de uso
comum do povo, consistente nas suas ruas e avenidas? Que princípios de direito administrativo você invocaria a favor ou contra a referida cobrança?
Leitura complementar:
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, pp. 339 a 365;
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, pp.
700 a 720 e 722 a 731.
FGV DIREITO RIO
102
atividades e atos administrativos
Bloco VII: Limitações à propriedade privada
Objetivo:
Em seqüência aos estudos dos princípios que regem a atividade administrativa, as
funções e os limites do poder de polícia, bem como a disciplina jurídica dos bens públicos,
passa-se agora a analisar, com base nos conhecimentos já adquiridos, quais as formas de
interferência do Estado sobre a propriedade privada, desde as simples ocupações temporárias até as formas mais drásticas dessa restrição, como as servidões administrativas e as
desapropriações.
FGV DIREITO RIO
103
atividades e atos administrativos
Aula 21: Tombamento, requisição e ocupação temporária.
Limitações administrativas.
Objetivo:
Discutir os institutos do tombamento, requisição e ocupação temporária, bem como
os limites da constitucionalidade das limitações administrativas.
Introdução:
A propriedade, como todos os direitos, sofre limitações no seu exercício. Nas palavras
de Themístocles Brandão Cavalcanti, essas restrições decorrem do poder de polícia do Estado, o qual:
atinge o direito de propriedade como função de equilíbrio, de harmonia social, em seu
sentido mais amplo de proteção das exigências econômicas, sociais, estéticas, vitais de todos
os indivíduos que não podem sofrer as conseqüências do uso, mesmo aparentemente legítimo, da propriedade.209
As diversas formas de intervenção do Estado sobre a propriedade privada encontram
sua sustentação constitucional especialmente no princípio da função social da propriedade,
previsto nos arts. 5º, XXIII e 170, III, da Constituição de 1988.
Há também referências à privação da propriedade no Código Civil, que, em seu art.
1.228, § 3º, assim dispõe:
§ 3º. O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo
público iminente.
No bloco de aulas que se seguirá, abordaremos a interferência do Estado sobre o uso e
fruição da propriedade privada, incluindo as ocasiões em que a Administração pode requisitar
um imóvel para uso temporário, tombar um prédio por seu valor histórico ou arquitetônico,
impor uma servidão administrativa para que se realize uma finalidade pública, ou mesmo
venha a desapropriar um terreno por motivo de utilidade pública ou por interesse social.
Nesta primeira aula, abordaremos os institutos da requisição, da ocupação temporária
e do tombamento.
Requisição
Nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho, a requisição consiste na:
Modalidade de intervenção estatal através da qual o Estado utiliza bens móveis, imóveis
e serviços particulares em situação de perigo público iminente.210
CAVALCANTI, Themistocles
Brandão. Princípios gerais de
direito público. Rio de Janeiro:
Borsoi, 1960, p. 302. Também
o autor observa que a legitimidade a que se refere “também varia porque evolui com
a época, com os hábitos, com
as condições econômicas”. (ob.
cit., loc. cit.)
209
CARVALHO FILHO, José dos
Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, p. 640.
210
FGV DIREITO RIO
104
atividades e atos administrativos
Portanto, existem dois tipos principais de requisição, a civil e a militar. Nas requisições
há de estar sempre presente o requisito do “perigo público iminente”, conforme exigência
específica do art. 5º, XXV, da Constituição:
Art. 5º ...
XXV – No caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar a propriedade particular, assegurada ao proprietário direito de indenização ulterior, se houver dano.
O art. 22, III da Constituição, por sua vez, prevê competir privativamente à União legislar sobre “requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra”.
Sendo instituto a incidir em momentos de iminente perigo público ou risco de guerra, justifica-se que a decisão de requisitar um bem seja de competência da Administração
Pública, e não do Poder Judiciário (como no caso das desapropriações), bem como que a
indenização ocorra posteriormente ao ato.
Podem ser objeto de requisição tanto bens móveis como imóveis, e mesmo prestação
de serviços, desde que exista uma situação de eminente perigo público a justificar o ato de
requisição.
Ocupação temporária
A ocupação temporária constitui instituto aplicável eminentemente aos bens imóveis,
uma vez que seu objetivo consiste em “permitir que o poder público deixe alocados, em
algum terreno desocupado, máquinas, equipamentos, barracões de operários, por pequeno
espaço de tempo”.211
O autor chama a atenção para o fato de que, às vezes, a terminologia ocupação temporária é utilizada de maneira equívoca, para fazer alusão a situações que, em verdade, caracterizam hipótese de requisição. Esse seria o caso do art. 136, §1º, II, da Constituição, o
qual, ao regular o estado de defesa, prevê que o decreto que o instituir determinará, dentre
as medidas coercitivas a vigorarem:
II – ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade
pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.
Em que pese o uso da expressão “ocupação e uso temporário”, tem-se na calamidade
uma situação de iminente perigo público, razão pela qual essa hipótese sugere a utilização
do instituto da requisição que, ademais, por também poder ser utilizado para bens móveis e
serviços, melhor se enquadra na situação regulada pelo art. 136 da Constituição.212
Tombamento
Tombamento é a declaração, pelo poder público, do valor histórico, artístico, paisagístico, turístico, cultural ou científico de determinado bem, que deve ser preservado de
acordo com a inscrição no livro próprio. Trata-se de ato, em princípio, gratuito, mas o direito do proprietário prejudicado à indenização é inegável sempre que ocorra esvaziamento
econômico da propriedade ou se reduza brutalmente o valor do bem tombado.213 Não se
detalhará aqui o instituto, uma vez que esse já foi objeto de estudo em outra disciplina.
CARVALHO FILHO, José dos
Santos. Op. cit.,p. 643.
211
212
Op. cit, p. 643.
MEIRELLES, Hely Lopes.
“Tombamento e indenização”.
Revista de Direito Administrativo, nº 161, p. 1 e ss.
213
FGV DIREITO RIO
105
atividades e atos administrativos
A despeito disso, faz-se relevante transcrever o disposto no art. 216 da Constituição
Federal, que disciplina a temática do patrimônio cultural do país:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e
desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua conulta a quantos dela necessitem.
§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores
culturais.
§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências
históricas dos antigos quilombos.
§ 6º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento
à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento
de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursosno pagamento de:
I – despesas com pessoal e encargos sociais;
II – serviço da dívida;
III – qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou
ações apoiados.
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 627 a 666.
Caso gerador:
O Estado do Rio de Janeiro impetrou mandado de segurança contra ato do prefeito de Niterói, que determinara o tombamento provisório do Conjunto Arquitetônico do
Palácio São Domingos, de propriedade do Estado. O Estado reclama a aplicação, ao caso,
do princípio constante do art. 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941 (que dispõe sobre
desapropriações), sustentando ser incabível o “tombamento inverso”, ou seja, um município
não poderia tombar um bem pertencente a Estado da Federação. Além disso, o imóvel já
FGV DIREITO RIO
106
atividades e atos administrativos
teria sido tombado pelo próprio Estado, o que tornaria o ato do município desnecessário e
inócuo. À luz das competências constitucionais sobre a preservação do patrimônio histórico
e a diferença entre limitações administrativas e desapropriação, deve ser concedida a segurança pleiteada pelo Estado do Rio de Janeiro?
Leitura complementar:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, pp. 130 a
140.
MEIRELLES, Hely Lopes. “Tombamento e indenização”. Revista de direito administrativo.
Rio de Janeiro: Renovar/FGV, jul/set 1985, v. 161, pp. 1 a 6.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Tombamento e dever de indenizar”. Revista de direito público, nº 81, p. 65 a 73;
REALE, Miguel. “Tombamento de bens culturais”. Revista de direito público, v. 86, pp. 62
a 66;
TÁCITO, Caio. “Tombamento. Concessão real de uso”. In Temas de direito público: estudos
e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, v. 2.
FGV DIREITO RIO
107
atividades e atos administrativos
Aula 22: Servidões administrativas
Objetivo:
A finalidade desta aula é discutir o instituto da servidão administrativa, cuja importância se apresenta inegável no contexto maior das formas de intervenção do Estado sobre
a propriedade privada. Cumpre mencionar que, com o processo de desestatização experimentado ao longo da década de 90, o instituto da servidão administrativa foi revigorado,
discutindo-se, na atualidade, por exemplo, a oportunidade de sua utilização para regular
temas complexos de direito administrativo, tais como acesso a redes e compartilhamento de
infra-estrutura.214
Introdução:
A servidão administrativa é hoje reconhecida como um instituto próprio de direito
público, dotado de autonomia, e não mais apenas um instituto de direito civil aplicado com
algumas derrogações. A sua previsão legal se encontra no art. 40 do Decreto Lei nº 3365/41.
A diferença das servidões administrativas, comparativamente à generalidade das limitações
administrativas impostas pelo Estado sobre a propriedade privada, segundo Rafael Bielsa,
reside em que, nas servidões, ocorre um desdobramento do direito de propriedade, ao passo
que, nas limitações, ocorrem meras restrições, fundadas no poder de polícia do Estado e
cuja justificativa reside nos princípios da solidariedade de interesses e no conceito de função
social da propriedade.215 No caso das limitações, está-se diante de direitos e obrigações de
natureza pessoal e que, a princípio, pelo seu caráter de abstração, generalidade e amplitude,
não são indenizáveis. Assim, o elemento a distinguir as servidões das meras limitações administrativas consiste em que as primeiras afetam o atributo da exclusividade da propriedade,
uma vez que impõem ao proprietário um desmembramento do seu direito.
É nesse sentido que Celso Antônio Bandeira de Mello destaca como característica central das servidões administrativas o dever de suportar ou “pati”, ausente das meras limitações administrativas, que decorrem do poder de polícia da Administração. Assim, segundo
o autor, enquanto as limitações conformam o direito de propriedade, nas servidões administrativas, o “bem é colocado sob parcial senhoria da coletividade”, ou seja, “na servidão, o
bem é contemplado como já sendo portador de uma utilidade que o Poder Público deseja
captar em proveito da coletividade”. Ainda segundo o autor, distinguem-se as servidões
administrativas das meras limitações pelo fato de que, nas primeiras, ou o gravame deriva
de um ato específico ou a utilidade oferecida por um bem gravado fica em condição de ser
singularmente fruível pela coletividade.216
A Professora Maria Sylvia Zanella di Pietro conceitua a servidão administrativa
como:
direito real, de natureza pública, instituído sobre imóvel de propriedade alheia, com
base em lei, por entidade pública, ou por seus delegados, em favor de coisa afetada a fins de
utilidade pública.217
Para um estudo sobre as
vantagens e desvantagens
da utilização do instituto da
servidão administrativa para
regular questões jurídicas atinentes ao compartilhamento
de infra-estrutura, veja-se
ARAGÃO, Alexandre Santos de;
STRINGHINI, Adriano Cândido; SAMPAIO; Patrícia Regina
Pinheiro. Servidão administrativa e compartilhamento de
infra-estruturas: regulação e
concorrência. Rio de Janeiro:
Forense, 2005.
214
215
BIELSA, Rafael. Derecho
Administrativo. Buenos Aires:
El Ateneo, 1947, tomo III, pp.
405 e 406.
Nas exatas palavras do
autor: “Nas servidões administrativas o Poder Público coloca
determinado bem em uma
especial sujeição ao interesse
público, o que não ocorre com
as limitações administrativas à
propriedade privada, próprias
do Poder de Polícia, nas quais,
pela simples delimitação do
âmbito de exercício do direito
de propriedade obtém uma
genérica e indiscriminada
utilidade social; isto é, não se
trata de gravame instituído
de modo especial sobre certos bens onerados com uma
peculiar sujeição ao interesse
público. Enquanto através do
poder de polícia – nas chamadas limitações administrativas
– o dano social é evitado (ou
reversamente, o interesse coletivo é obtido) pelo simples
ajustamento do exercício da
propriedade ao bem comum,
nas servidões administrativas o
bem particular é colocado sob
parcial senhoria da coletividade.” BANDEIRA DE MELLO, Celso
Antônio. Apontamentos sobre o
poder de polícia. In Revista de
Direito Público, nº 09, p. 59.
216
ZANELLA DI PIETRO, Maria
Sylvia. Servidão administrativa.
São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1978, p. 56.
217
FGV DIREITO RIO
108
atividades e atos administrativos
De acordo com o conceito acima exposto, as principais características da servidão
administrativa traduzem-se em:(i) direito real; (ii) público; (iii) incidente sobre imóvel de
terceiros (havendo doutrina que defende poder incidir sobre serviços, conforme abaixo);
(iv) imposto em razão de lei; (vi) por entidade pública ou seus delegados; (vii) para que se
cumpra uma finalidade de interesse público.
Cumpre esclarecer que, contrariamente ao direito civil, na servidão administrativa a coisa dominante não necessita ser um prédio, sendo, em muitas ocasiões, um serviço público.218
Um dos elementos essenciais à caracterização de uma servidão como sendo de natureza
administrativa, reside na finalidade para a qual é instituída. De fato, não existe óbice a que
a Administração Pública contrate uma servidão de natureza civil. Com efeito, por razões de
comodidade, é possível que um ente público pretenda instituir sobre prédio contíguo uma
servidão de passagem. Nesse caso, todavia, estar-se-á diante de uma servidão civil, apenas
de titularidade de pessoa jurídica de direito público. Para que haja servidão administrativa
faz-se necessário que a coisa serviente seja afetada a fins de utilidade pública, conforme se
depreende da doutrina de Marcelo Caetano:
As servidões administrativas são de utilidade pública. As servidões civis aumentam o
valor econômico do prédio dominante. As servidões administrativas tendem, unicamente, a
facilitar a produção da utilidade pública dos bens do domínio que, estando fora do comércio
privado, não têm valor venal, ou de coisas particulares afetadas a um fim público de grande
interesse social e que porventura por virtude dessa afetação ficam com o seu valor econômico
diminuído.219
A instituição de uma servidão administrativa é indenizável, dependendo a referida
reparação, todavia, da comprovação da ocorrência de dano ao cidadão. Essa característica
auxilia na diferenciação entre esse instituto e a desapropriação: nessa, indeniza-se a perda do
domínio; naquela, indenizam-se somente os prejuízos sofridos pelas delimitações impostas
no exercício de alguns dos atributos inerentes à propriedade220 e, assim mesmo, somente na
medida em que forem comprovados, tendo-se em vista que a propriedade permanece de
titularidade privada, donde o poder público somente tem de ressarcir os efetivos danos dela
decorrentes.221
De fato, para Ruy Cirne Lima,
a coisa dominante na servidão
administrativa é “o serviço público, ou seja, a organização
de pessoas e bens constituída
para executá-la”, sendo que “a
noção de serviço público não
implica necessariamente a da
propriedade de um imóvel, no
qual a organização assente o
seu funcionamento, e em favor
do qual a servidão administrativa se constitua”. O professor
cita como exemplo a servidão
administrativa de apoio de fios
condutores de eletricidade, na
qual a “res dominans” seria
o serviço público de subministração de energia elétrica.
LIMA, Ruy Cirne. Das servidões
administrativas. In Revista de
Direito Público, nº 5, jul/set
1968, p. 26.
218
CAETANO, Marcelo. Manual
de direito administrativo. Rio de
Janeiro: Forense, 1977, tomo
II, p. 975.
219
Esse entendimento encontra
respaldo, inclusive, em acórdão
do Supremo Tribunal Federal
anterior à Constituição de
1988, no qual o Tribunal decidiu nos seguintes termos: “Servidão para passagem de linha
de transmissão de eletricidade.
Devem ser indenizados os prejuízos sofridos pelos proprietários, causados pelo uso público
e pelas restrições estabelecidas
ao uso da propriedade, não porém o domínio, que continua
com os proprietários.” Recurso
Extraordinário no. 97.199-MA,
j. em 09.11.1962, v.u.
220
Essa concepção acarreta a
crítica de Hely Lopes Meirelles
quanto à jurisprudência tentar
definir aprioristicamente o valor da indenização, como, por
exemplo, fixando-a com base
em uma porcentagem do valor
do imóvel. “A indenização da
servidão faz-se em correspondência com o prejuízo causado
ao imóvel. Não há fundamento
algum para o estabelecimento
de um percentual fixo sobre o
valor do bem serviente, como
querem alguns julgados. A indenização há que corresponder
ao efetivo prejuízo causado ao
imóvel, segundo sua normal
destinação”. Direito administrativo brasileiro. 24a edição. São
Paulo: Malheiros, 1999, p. 564.
221
Caso gerador:
A Petróleo Brasileiro S.A. – PETROBRAS, sociedade de economia mista federal, pretende instituir servidão sobre imóvel privado para a passagem de gasoduto. Para esse fim,
ingressou com ação perante o Poder Judiciário, requerendo imissão provisória na posse da
parte do imóvel por onde deverá passar o duto.
Nesse sentido, pergunta-se:
1) A servidão a ser instituída tem natureza jurídica de servidão administrativa?
2) Pode o Juízo deferir a imissão provisória na posse, como solicitado pela PETROBRAS? Em caso positivo, quais os requisitos que devem ser preenchidos pela PETROBRAS
para ser-lhe deferida a imissão provisória na posse?222
Ref.: TJRJ, Agravo de instrumento nº 23.604/05.
222
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atividades e atos administrativos
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de
Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 627 a 639.
Leitura complementar:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Servidão administrativa. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1978;
LIMA, Ruy Cirne. “Das servidões administrativas”. Revista de Direito Público, nº 5, jul/set
1968;
SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. Breves considerações acerca das servidões administrativas”. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; STRINGHINI, Adriano Cândido; SAMPAIO; Patrícia Regina Pinheiro. Servidão administrativa e compartilhamento de infraestruturas: regulação e concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
Aula 23: Desapropriação
Objetivo:
Apresentar o instituto da desapropriação e discutir seus principais pontos polêmicos
Introdução:
A desapropriação constitui a perda da propriedade privada de um bem em favor do
Estado, mediante justa indenização, exceto nos casos de expropriação taxativamente previstos em lei e na Constituição.
Marçal Justen Filho conceitua o instituto da desapropriação como:
Ato estatal unilateral que produz a extinção da propriedade sobre um bem ou direito e
a aquisição do domínio sobre a entidade expropriante, mediante indenização justa.223
A desapropriação é sempre um ato estatal, ou seja, somente o Estado tem poder de
determinar a perda do domínio de um bem particular, decorrente do seu poder de império e
que se justifica pela necessidade de atendimento a relevante interesse coletivo, podendo, ainda,
constituir sanção pela violação do dever de cumprimento da função social da propriedade.
O requisito da justa indenização diferencia a desapropriação da expropriação ou do
confisco, uma vez que nesses últimos não há contraprestação pela perda do bem, pois que
conseqüência da prática de ato ilícito.
Em regra, o pagamento da indenização deve ser prévio e em dinheiro, exceção feita à
desapropriação de propriedade urbana que não cumpre sua função social e da desapropriação para fins de reforma agrária. É nesse sentido que dispõem o art. 182, §4º, III e o art.
184, caput, ambos da Constituição Federal:
Art. 182. (...)
§4º. É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída
no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena,
sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão
previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas
anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no
prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida
em lei.
Curso de direito administrativo, p. 422.
223
FGV DIREITO RIO
111
atividades e atos administrativos
A desapropriação pode ser administrativa ou judicial. Pode se iniciar como um procedimento administrativo, porém, caso a Administração e o particular não cheguem a um
acordo quanto ao montante indenizatório, será necessário submeter a controvérsia ao Poder
Judiciário.
Embora seja mais comumente aplicável aos bens imóveis, são passíveis de desapropriação todos os bens suscetíveis de avaliação econômica, inclusive propriedade intelectual
e participações societárias.224
Modalidades de desapropriação
O art. 5º, XXIV, da Constituição, estabelece as duas modalidades principais de desapropriação, embora existam outras previstas na própria Constituição, como as supracitadas.
Dispõe o art. 5º, XXIV
Art. 5º
...
XXIV.A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro,
ressalvados os casos previstos nesta Constituição.
A desapropriação por necessidade ou utilidade pública
A desapropriação por utilidade pública encontra-se disciplinada no Decreto-Lei nº
3365/1941, a qual elenca tais casos em seu art. 5º:
Art. 5o Consideram-se casos de utilidade pública:
a) a segurança nacional;
b) a defesa do Estado;
c) o socorro público em caso de calamidade;
d) a salubridade pública;
e) a criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de
meios de subsistência;
f ) o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia
hidráulica;
g) a assistência pública, as obras de higiene e decoração, casas de saúde, clínicas, estações
de clima e fontes medicinais;
h) a exploração ou a conservação dos serviços públicos;
i) a abertura, conservação e melhoramento de vias ou logradouros públicos; a execução
de planos de urbanização; o parcelamento do solo, com ou sem edificação, para sua melhor
utilização econômica, higiênica ou estética; a construção ou ampliação de distritos industriais; (Redação dada pela Lei nº 9.785, de 1999)
j) o funcionamento dos meios de transporte coletivo;
k) a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou
integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes
e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e
locais particularmente dotados pela natureza;
Conforme JUSTEN FILHO,
Marçal. Curso de direito administrativo, p. 428.
224
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
l) a preservação e a conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens moveis de valor histórico ou artístico;
m) a construção de edifícios públicos, monumentos comemorativos e cemitérios;
n) a criação de estádios, aeródromos ou campos de pouso para aeronaves;
o) a reedição ou divulgação de obra ou invento de natureza científica, artística ou literária;
p) os demais casos previstos por leis especiais.
A desapropriação deve ser precedida de decreto do presidente, governador ou prefeito
declarando o bem como de utilidade pública, devendo-se, ainda, observar quanto ao prazo
para a propositura da ação de desapropriação, caso não haja acordo com o particular quanto
à indenização, de acordo com o disposto no art. 10 do Decreto-Lei nº 3.365/1941:
Art. 10. A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente dentro de 5 (cinco) anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos
os quais este caducará. Neste caso, somente decorrido 1 um ano poderá ser o mesmo bem
objeto de nova declaração.
Parágrafo único. Extingue-se em 5 cinco anos o direito de propor ação que vise a indenização por restrições decorrentes de ato do Poder Público.
A desapropriação por interesse social
A desapropriação por interesse social encontra-se disciplinada pelas Leis nº 4.132/1962,
nº 8.629/1993 e Lei Complementar nº 76/1993. Corresponde à desapropriação para fins
de reforma agrária do imóvel rural que não cumpre sua função social. Por se tratar de desapropriação-sanção, o pagamento da indenização ocorre a posteriori e em títulos da dívida
agrária (exceto no que tange às benfeitorias necessárias e úteis, que devem ser indenizadas
em dinheiro, conforme prevê o art. 184, §1º, da Constituição Federal.225
A ação de desapropriação por interesse social deve ser exercida no prazo de dois anos,
nos termos do art. 3º da Lei Complementar nº 76/1993.
Desapropriação indireta
Um dos temas mais relevantes atinentes à desapropriação reside nas desapropriações indiretas, que se apresentam como aquelas situações nas quais o poder público, sem respeitar o
devido processo de desapropriação já acima explanado, apossa-se de bem particular, ou impõelhe tantas condicionantes que termina retirando o conteúdo e conseqüente interesse do administrado em permanecer na titularidade do bem. Sobre isso, assevera Marçal Justen Filho:
Para Marçal Justen Filho,
também a desapropriação
prevista no art. 182, §4º, III, da
CRFB/88, relativa ao imóvel urbano que deixa de cumprir sua
função social, também pode
ser considerada uma desapropriação por interesse social.
Curso de direito administrativo,
p. 425.
225
A desapropriação indireta consiste no apossamento fático pelo Poder Público, sem autorização legal nem judicial, de bens privados. Trata-se, em última análise, de prática inconstitucional, cuja solução haveria de ser a restituição do bem ao particular, acompanhada de indenização por perdas e danos, e a punição draconiana para os responsáveis pela ilicitude.226
Entretanto, na prática, na maior parte das vezes, a jurisprudência termina reconhecendo ter havido desapropriação indireta, mas, ainda à luz do já tão discutido princípio
Curso de direito administrativo, p. 444.
226
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113
atividades e atos administrativos
da supremacia do interesse público, não devolve o bem ao administrado, ao qual é então
conferido direito à indenização por perdas e danos.
O caso gerador, trazido para discussão, consiste justamente em uma decisão que abordou o tema da desapropriação indireta que, se de um lado, constitui prática da Administração Pública violadora de diversos princípios constitucionais, por outro, deve ser utilizado
com reservas, pois nem toda limitação ou restrição à propriedade particular implica em
desapropriação indireta, podendo haver, na maioria das vezes, mera limitação ou servidão
administrativa.
Quais os princípios regedores da atuação da Administração Pública que são violados
quando um agente administrativo pratica um ato que corresponde, na prática, a uma desapropriação indireta?
Retrocessão
Antes de prosseguir no estudo, partindo para a análise do caso gerador a seguir delineado, são necessárias algumas breves palavras em torno da retrocessão, instituto jurídico
previsto no art. 519 do Código Civil de 2002, que assim dispõe:
Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse
social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços
públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa.
O dispositivo legal antes mencionado versa sobre o direito de preempção ou preferência, titularizado pelo ex-proprietário da coisa. Trata-se, pois, de um direito pessoal,
decorrente da ausência de interesse superveniente por parte do Poder Público, que não dá
ao bem a destinação referida no decreto expropriatório, nem confere ao mesmo qualquer
finalidade pública.
Caso o bem desapropriado venha a ser utilizado para fim outro que não aquele declarado no ato expropriatório, ocorrerá o fenômeno da tredestinação, ou seja, desvio de
finalidade do ato, ensejando, assim a retrocessão. Há de se ter claro, entretanto, que, em
princípio, não se poderá falar em tredestinação caso o bem desapropriado venha a ser utilizado para finalidade pública diversa daquela que baseou a desapropriação. Nesse sentido,
veja-se Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
Tredestinação vem a ser a não aplicação do bem à finalidade para que foi desapropriado.
Deve-se ter em conta que a tredestinação não chegará a se caracterizar se o bem for aplicado
a outra finalidade pública que não aquela mencionada no ato expropriatório, uma vez que a
Constituição só se refere às espécies (necessidade pública, utilidade pública e interesse social,
sem descer às subespécies, bastando atender, assim, aos pressupostos amplos da espécie para
que se tenha justificado constitucionalmente o ato.227
Portanto, desde que o bem seja destinado a uma finalidade pública, ainda que diversa,
não se haverá de falar em tredestinação.
Ainda de acordo com o autor, mesmo no caso de desvio de finalidade (tredestinação),
se o bem jurídico houver se incorporado à Fazenda Pública, não poderá ser objeto de reivindicação e, portanto, não se operará a retrocessão. Já se o bem houver se incorporado ao pa-
MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Curso de direito
administrativo. 14a ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 385.
227
FGV DIREITO RIO
114
atividades e atos administrativos
trimônio de sociedade de economia mista ou empresa pública (pessoas de direito privado),
poderá então ser objeto de reivindicação, incidindo o direito de retrocessão, nos termos do
art. 519 do Código Civil.228
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 667 a 746.
Caso gerador:
Trata-se de ação ajuizada por dono de fazenda em face do Estado de São Paulo, alegando que sua propriedade foi profundamente afetada por decreto estadual que criou área
de proteção ambiental, gerando graves limitações no seu direito de uso, fruição e disposição
do terreno, afetando inclusive o seu valor no mercado. Alega, assim, que o referido decreto
teve por efeito verdadeira desapropriação indireta, e reclama a conseqüente indenização.
Com base no material que você leu para se preparar para a aula, discuta os elementos que
caracterizam a desapropriação indireta, criação eminentemente jurisprudencial, e quais os
princípios constitucionais que embasam o seu reconhecimento.
Leitura complementar:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, pp. 139 a
173.
228
Op. cit., loc. cit.
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115
atividades e atos administrativos
Bloco VIII – Serviços públicos
Objetivo:
A teoria dos serviços públicos mostra-se um dos temas mais fascinantes e complexos
na seara do Direito Administrativo. Nas duas últimas aulas que compõem esse curso, o
objetivo é introduzir o tema dos serviços públicos, a fim de que esse possa ser aprofundado
em Direito Administrativo II, que se iniciará com a discussão sobre o processo de reforma
do Estado experimentado ao longo da década de 90, com ênfase no processo de desestatização.
FGV DIREITO RIO
116
atividades e atos administrativos
Aula 24: Regime jurídico dos serviços públicos
Objetivo:
Discutir o conceito de serviços públicos
Introdução:
A prestação de serviços públicos à população constitui uma das principais finalidades
da Administração Pública. Conforme relata Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a expressão
“serviços públicos” pode ser tomada tanto em concepção ampla como estrita; na primeira,
insere-se toda a atividade que o Estado exerce para cumprir suas finalidades, abrangendo,
assim, não apenas a atividade administrativa, mas também a legislativa e a judiciária. Já a
disciplina jurídica dos serviços públicos administrativos, em sentido estrito, requer que se
os diferencie não apenas das atividades legislativa e jurisdicional, mas também da própria
atividade de polícia da Administração Pública. Nosso objeto de análise nas aulas que se
seguem se restringirá à concepção de serviço público em sentido estrito.227
De acordo com Renato Alessi, os serviços públicos, em sentido estrito, compreendem
as atividades da Administração voltadas a buscar uma utilidade para os particulares, tanto
de natureza jurídica, como de ordem econômico-social. Dividem-se em serviços prestados
uti universi, como o caso da iluminação pública, e uti singuli, como no caso dos transportes
públicos.228
Os serviços públicos caracterizam-se por serem estatais e indelegáveis, ou seja, a sua
titularidade não pode ser delegada à iniciativa privada, embora a sua execução, em determinadas hipóteses, possa sê-lo, conforme se terá oportunidade de discutir no próximo semestre, ao tratarmos do tema da concessão de serviços públicos.
A conceituação dos serviços públicos se apresenta como um dos temas mais controvertidos em Direito Administrativo. De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, existem
três correntes distintas para a conceituação dos serviços públicos, que privilegiam três critérios distintos de análise229:
• Critério orgânico: serviço público é aquele prestado por órgãos públicos;
• Critério formal: serviço público é aquele disciplinado por regime de direito público; e
• Critério material: serviço público é aquele que atende direta e essencialmente a interesses da coletividade.
No decorrer desta aula teremos a oportunidade de discutir os critérios supracitados,
levantando seus pontos positivos e suas limitações.
A fim de se preparar para a aula, procure refletir sobre os seguintes conceitos de serviços públicos, apresentados por alguns dos principais doutrinadores de Direito Administrativo brasileiros, procurando visualizar elementos de aproximação e dissociação entre si.
O intuito desse exercício é que o entendimento do significado de “serviços públicos” seja
construído pela turma em sala de aula, quando também se poderá debater os limites da
utilidade da referida controvérsia doutrinária:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo.
São Paulo: Atlas, 2000, p. 95.
227
Instituciones de derecho administrativo, tomo II, p. 364.
Como utilidade de natureza
jurídica, o autor exemplifica a
inscrição de uma hipoteca sobre um imóvel pela autoridade
competente; dentre os serviços
de natureza econômico-social,
incluem-se os transportes públicos e a iluminação pública.
228
CARVALHO FILHO, José
dos Santos. Manual de Direito
Administrativo. 15a ed. Rio de
Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp.
265 e 266.
229
FGV DIREITO RIO
117
atividades e atos administrativos
Celso Antonio Bandeira de Mello:
Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material
fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes,
sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacias e
restrições especiais -, instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como
próprios no sistema normativo.
José dos Santos Carvalho Filho:
Serviço público [é] toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e
secundárias da coletividade.230
Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
Serviço público [é] toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça
diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às
necessidades coletivas, sob regime total ou parcialmente público.231
Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
Serviço público é a atividade administrativa, assegurada ou assumida pelo Estado, que
se dirige à satisfação de interesses coletivos secundários, de fruição individual, e considerados,
por lei, como de interesse público.232
Marçal Justen Filho:
Serviço público é uma atividade pública administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um
direito fundamental, destinada a pessoas indeterminadas e executada sob regime de direito
público.233
A dificuldade na definição exata das características essenciais à classificação de uma
determinada atividade estatal como serviço público teve por conseqüência a chamada “crise
do serviço público”, quando se percebeu que pelo menos dois elementos que durante longo
tempo fizeram parte essencial do núcleo desse conceito, esvaíram-se com o passar dos anos.
Conforme ressalta Agustín Gordillo, “dois elementos desta noção – a da pessoa que presta
o serviço e o regime que o regula – entraram em crise há muito tempo”.234 Questionando a
necessidade de uma conceituação doutrinária de serviço público, o autor observa:
A determinação de aplicar um regime de direito público a certa atividade, estatal ou
não, é uma decisão que a doutrina não pode estipular livremente, a partir da afirmação que
resolva fazer no sentido de chamá-la “serviço público”; essa determinação vem dada pelo ordenamento jurídico, na medida em que efetivamente submeta ou não, em maior ou menor
grau, alguma atividade humana ao direito público. Que alguém a chame “serviço público”
antes de existir a regulação legal de direito público, expressa somente uma opinião pessoal de
que conviria que essa atividade fora objeto de regulação pelo direito público. Que denomine “serviço público” a uma atividade qualquer, depois que o direito público a regulou, não
apenas é intranscendente, como também enseja confusões, pois muitos poderão crer, seguindo a tradição conceitual, que se rege pelo direito público porque “é” um serviço público,
CARVALHO FILHO, José
dos Santos. Manual de Direito
Administrativo. 15a ed. Rio de
Janeiro: Lumen Iuris, 2006,
p. 267.
230
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo.
12a ed. São Paulo: Atlas, 98.
231
MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Curso de direito
administrativo. 14a ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 425.
232
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso
de direito administrativo. São
Paulo: Malheiros, 2005, p. 478.
233
234
GORDILLO, Agustín. Tratado
de derecho administrativo. 5ª
ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, tomo 2, cap. VI, p. 37.
FGV DIREITO RIO
118
atividades e atos administrativos
esquecendo-se de que é chamado convencionalmente de serviço público porque está regido
expressamente pelo direito público. Se o jurista encontra determinada atividade regida pelo
direito privado, não pode chamá-la de serviço público sem induzir a equívocos. Tampouco
efetua com isso alguma classificação juridicamente relevante ou útil. (...) Somente o regime
jurídico positivo pode justificar a denominação (...).235
Tendo em vista as leituras realizadas para a aula, procure refletir sobre a utilidade de
uma noção unívoca de serviços públicos face às distintas formas de participação do Estado
na Ordem Econômica e as diversas formas e graus de normatização das atividades econômicas pelo Estado. Estaria o serviço público na atualidade adstrito à sua dimensão formal,
isto é, de direito positivo?
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 265 a 277.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005, pp.
478 a 500.
Caso gerador:
O Ministério Público de Minas Gerais ajuizou ação civil pública exigindo que a Administração Pública de determinado município passasse a efetuar coleta de lixo domiciliar diária.
Como se sabe, é dever das autoridades públicas, em suas três esferas (federal, estadual e municipal), promover a saúde pública da população e prestar os serviços públicos de forma contínua.
Em primeira instância, o juiz monocrático deu provimento ao pleito do Ministério
Público. Inconformado, o município interpôs recurso de apelação, baseando-se na ausência
de lei específica que o obrigasse a efetuar referida coleta diária e no poder discricionário da
Administração Pública, sustentando que seria competência do prefeito decidir sobre a forma e periodicidade da coleta de lixo domiciliar.
O Tribunal deu provimento ao recurso, entendendo que as normas constitucionais invocadas pelo Ministério Público teriam natureza programática, e que o Poder Judiciário não
poderia se imiscuir na esfera de competência discricionária da Administração, sob pena de
ofensa ao princípio da separação dos poderes. Inconformado, o Ministério Público interpõe
recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça.
Analisando o caso acima, procure verificar os princípios constitucionais invocados
na demanda proposta pelo Ministério Público e no recurso apresentado pelo município. A
coleta de lixo domiciliar constitui um serviço público? Justifique.
Leitura complementar:
DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, capítulo 4 (“serviços
públicos”).
GORDILLO, Agustín. Tratado
de derecho administrativo. 5ª
ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, tomo 2, cap. VI, pp.
40-41.
235
FGV DIREITO RIO
119
atividades e atos administrativos
Aula 25: Prestação dos serviços públicos
Objetivo:
O objetivo da aula é discutir o conteúdo da prestação de serviço público e os princípios da sua execução
Introdução:
Em que pese uma tendência hoje observada em se privilegiar a dimensão formal da
definição de serviços públicos, o regime de direito público que informa a prestação dos
serviços públicos apresenta um conjunto de princípios que, quando presentes, permitem ao
intérprete caracterizar a atividade estatal como serviço público.
Nesse sentido, ainda que a lei não o defina expressamente como “serviço público”,
no caso de se exigir que o mesmo seja prestado à generalidade da população, de forma
contínua, regularmente, de forma eficiente e atual, com segurança, cortesia e preocupação
com a modicidade da tarifa cobrada como contraprestação, estar-se-á diante de um serviço
público.236
Esses princípios encontram fundamento no art. 175, IV, da Constituição Federal, que
exige que os serviços públicos sejam prestados de forma “adequada”, a qual é então detalhada na Lei nº 8.987, de 13/02/1995, a Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos,
cujo art. 6º, §1º, dispõe
§21. Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade,
eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das
tarifas.
O requisito de atualidade é detalhado no §2º desse mesmo artigo, ao dispor:
Nesse sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto observa
que “o regime dos serviços públicos apresenta características
funcionais próprias, que o estremam do regime comum dos
serviços privados, sintetizada
em oito princípios informativos dos serviços públicos: a
generalidade, a continuidade,
a regularidade, a eficiência, a
atualidade, a segurança, a cortesia e a modicidade, que, em
conjunto, atendem ao conceito
jurídico indeterminado constitucional de serviço adequado
(art. 175, parágrafo único, IV,
CF), tal como constante da Lei
8.987, de 15 de fevereiro de
1995 (art. 6º, §1º) e também
expresso como direito do consumidor, na Lei nº 8.078, de 11
de setembro de 1990 (art. 6º,
X).” Curso de direito administrativo, pp. 426 e 427.
236
§2º. A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e a expansão do serviço.
Atenta à realidade das atividades, a lei preocupou-se também em determinar hipóteses
nas quais, embora seja interrompido o serviço, não resta caracterizada ofensa ao princípio
da continuidade:
§3º. Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação
de emergência ou após prévio aviso, quando:
I – motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e
II – por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade.”
O serviço público pode ser remunerado por taxa ou tarifa. Nos termos do art. 145,
II, da Constituição Federal, a taxa remunera serviços públicos obrigatórios, impostos ao
administrado, específicos e indivisíveis, sendo um exemplo clássico a taxa de prevenção de
FGV DIREITO RIO
120
atividades e atos administrativos
incêndio. Os serviços públicos facultativos são remunerados por tarifa, que constitui um
preço público, podendo o usuário optar por usufruir ou não do serviço que a Administração, de forma direta ou indireta, põe à sua disposição.
Conforme visto, a titularidade do serviço público é sempre do Estado; todavia, a sua
execução, em certas ocasiões, pode ser delegada a particulares, através dos institutos da concessão e da permissão de serviços públicos. O regime jurídico das concessões e permissões
de serviços públicos, assim como os direitos de seus usuários serão temas discutidos no curso
de Direito Administrativo II.
Leitura obrigatória:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2006, pp. 277 a 298.
Caso gerador:
Encontra-se em julgamento no Supremo Tribunal Federal a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que objetiva pôr termo à discussão que vem sendo travada
nos tribunais, sobre se empresas privadas podem prestar serviço de entrega de correspondência comercial.
A controvérsia tem origem no fato de que a Constituição Federal determina, em seu
art. 21, X, ser dever da União a prestação do serviço postal.
Art. 21. Compete à União:
(...)
X – manter o serviço postal e o correio aéreo nacional
Além disso, a Lei nº 6.538/1978, que dispõe sobre os serviços postais, conferiu-lhe
monopólio para o desempenho dos serviços postais, nos seguintes termos:
Art. 9º - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades
postais:
I - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;
II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o
exterior, de correspondência agrupada:
III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal.
§1º - Dependem de prévia e expressa autorização da empresa exploradora do serviço
postal;
a) venda de selos e outras fórmulas de franqueamento postal;
b) fabricação, importação e utilização de máquinas de franquear correspondência, bem
como de matrizes para estampagem de selo ou carimbo postal.
§ 2º - Não se incluem no regime de monopólio:
 a) transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa
jurídica, em negócios de sua economia, por meios próprios, sem intermediação comercial;
FGV DIREITO RIO
121
atividades e atos administrativos
b) transporte e entrega de carta e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins
lucrativos, na forma definida em regulamento.
Para Floriano de Azevedo Marques Neto, “não se nega que a atividade postal seja de
enorme relevância para a integração do país e para a preservação da identidade nacional.
Mas isto remete muito mais à necessidade de existir um serviço postal universal (dever de
manutenção do mesmo) do que à contingência de ser ele monopolizado pelo Estado”.237
Adiante, o autor complementa:
Igualmente no que toca ao ‘monopólio’ público – que, como vimos, exclui a possibilidade do exercício de uma atividade por outrem que não o Poder Público – no próprio art. 21
vamos encontrar competências determinadas pelo verbo ‘manter’ e que nem de longe podem
ser tidas como excludentes do exercício do exercício da atividade por entidades privadas. É
o caso da obrigação de manter serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia no âmbito nacional (inciso XV). Ora, é irrefutável que à União corresponde o encargo
de sustentar e prover a coletividade nacional de tais serviços. Porém, a ninguém socorreria
defender que tal atividade seria ‘monopólio’ da União, vedando às universidades, às organizações não-governamentais ou mesmo às entidades o exercício das atividades de levantamento
estatístico, geográfico ou, o que é mais comum, a realização de serviços de pesquisa geológica
ou cartográfica de âmbito nacional.”238
Nesse sentido, pergunta-se:
1) A atividade de entrega domiciliar de correspondências constitui serviço público?
Em sua análise, considere ambas as dimensões formal e material da definição de
serviços públicos. Para esse fim, analise o dispositivo constitucional acima transcrito
bem como a Lei nº 6.538/1978, constante do anexo I a este material didático.
2) Sendo serviço público, deve necessariamente ser prestado por meio de monopólio
estatal? Por quê?
Leitura complementar:
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros,
Capítulo XI (“Serviço público e intervenção no domínio econômico”)
MARQUES NETO, Floriano
Peixoto de Azevedo. “Reestruturação do setor postal brasileiro”. In Revista Trimestral de
Direito público, nº 19, p. 149.
237
MARQUES NETO, Floriano
Peixoto de Azevedo. “Reestruturação do setor postal brasileiro”. In Revista Trimestral de
Direito público, nº 19, p. 161
238
FGV DIREITO RIO
122
atividades e atos administrativos
Anexo 1 – Legislação complementar
Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967.
Dispõe sobre loteamento urbano, responsabilidade do loteador concessão de uso e espaço aéreo e dá outras
providências.
O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o art. 9º, § 2º, do Ato Institucional nº
4, de 7 de dezembro de 1966,
DECRETA:
Art 1º O loteamento urbano rege-se por este decreto-lei.
§ 1º Considera-se loteamento urbano a subdivisão de área em lotes destinados à edificação de qualquer
natureza que não se enquadre no disposto no § 2º deste artigo.
§ 2º Considera-se desmembramento a subdivisão de área urbana em lotes para edificação na qual seja
aproveitado o sistema viário oficial da cidade ou vila sem que se abram novas vias ou logradouros públicos e sem
que se prolonguem ou se modifiquem os existentes.
§ 3º Considera-se zona urbana, para os fins deste decreto-lei, a da edificação contínua das povoações, as
partes adjacentes e as áreas que, a critério dos Municípios, possivelmente venham a ser ocupadas por edificações
contínuas dentro dos seguintes 10 (dez) anos.
Art 2º Obedecidas as normas gerais de diretrizes, apresentação de projeto, especificações técnicas e dimensionais e aprovação a serem baixadas pelo Banco Nacional de Habitação dentro do prazo de 90 (noventa) dias,
os Municípios poderão, quanto aos loteamentos:
I - obrigar a sua subordinação às necessidades locais, inclusive quanto à destinação e utilização das áreas,
de modo a permitir o desenvolvimento local adequado;
II - recusar a sua aprovação ainda que seja apenas para evitar excessivo número de lotes com o conseqüente
aumento de investimento subtilizado em obras de infra-estrutura e custeio de serviços.
Art 3º Aplica-se aos loteamentos a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o loteador ao
incorporador, os compradores de lote aos condôminos e as obras de infra-estrutura à construção da edificação.
§ 1º O Poder Executivo, dentro de 180 dias regulamentará este decreto-lei, especialmente quanto à aplicação da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, aos loteamentos, fazendo inclusive as necessárias adaptações.
§ 2º O loteamento poderá ser dividido em etapas discriminadas, a critério do loteador, cada uma das quais
constituirá um condomínio que poderá ser dissolvido quando da aceitação do loteamento pela Prefeitura.
Art 4º Desde a data da inscrição do loteamento passam a integrar o domínio público de Município as vias
e praças e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do
memorial descritivo.
Parágrafo único. O proprietário ou loteador poderá requerer ao Juiz competente a reintegração em seu
domínio das partes mencionados no corpo deste artigo quando não se efetuarem vendas de lotes.
Art 5º Nas desapropriações, não se indenizarão as benfeitorias ou construções realizadas em lotes ou loteamentos irregulares, nem se considerarão como terrenos loteados ou loteáveis, para fins de indenização, as glebas
não inscritas ou irregularmente inscritas como loteamentos urbanos ou para fins urbanos.
Art 6º O loteador ainda que já tenha vendido todos os lotes, ou os vizinhos são partes legítimas para
promover ação destinada a impedir construção em desacordo com as restrições urbanísticas do loteamento ou
contrárias a quaisquer outras normas de edificação ou de urbanização referentes aos lotes.
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
Art 7º É instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por
tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social.
§ 1º A concessão de uso poderá ser contratada, por instrumento público ou particular, ou por simples
termo administrativo, e será inscrita e cancelada em livro especial.
§ 2º Desde a inscrição da concessão de uso, o concessionário fruirá plenamente do terreno para os fins
estabelecidos no contrato e responderá por todos os encargos civis, administrativos e tributários que venham a
incidir sobre o imóvel e suas rendas.
§ 3º Resolve-se a concessão antes de seu termo, desde que o concessionário dê ao imóvel destinação diversa
da estabelecida no contrato ou termo, ou descumpra cláusula resolutória do ajuste, perdendo, neste caso, as
benfeitorias de qualquer natureza.
§ 4º A concessão de uso, salvo disposição contratual em contrário, transfere-se por ato inter vivos, ou por
sucessão legítima ou testamentária, como os demais direitos reais sobre coisas alheias, registrando-se a transferência.
Art 8º É permitida a concessão de uso do espaço aéreo sobre a superfície de terrenos públicos ou particulares, tomada em projeção vertical, nos termos e para os fins do artigo anterior e na forma que for regulamentada.
Art 9º Este decreto-lei não se aplica aos loteamentos que na data da publicação deste decreto-lei já estiverem protocolados ou aprovados nas prefeituras municipais para os quais continua prevalecendo a legislação em
vigor até essa data.
Parágrafo único. As alterações de loteamentos enquadrados no “ caput “ deste artigo estão, porém, sujeitas
ao disposto neste decreto-lei.
Art 10. Este decreto-lei entrará em vigor na data de sua publicação, mantidos o Decreto-lei nº 58, de 10
de dezembro de 1937 e o Decreto número 3.079, de 15 de setembro de 1938, no que couber e não for revogado
por dispositivo expresso deste decreto-lei, da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 e dos atos normativos
mencionados no art. 2º deste decreto-lei.
Brasília, 28 de fevereiro de 1967; 146º da Independência e 79º da República.
H. CASTELLO BRANCO
João Gonçalves de Souza
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 28.2.1967
Fonte: www.planalto.gov.br, acesso em 11.06.2006
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
LEI Nº 6.538, DE 22 DE JUNHO DE 1978.
Dispõe sobre os Serviços Postais.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
DISPOSIÇÃO PRELIMINAR
Art. 1º - Esta Lei regula os direitos e obrigações concernentes ao serviço postal e ao serviço de telegrama
em todo o território do País, incluídos as águas territoriais e o espaço aéreo, assim como nos lugares em que
princípios e convenções internacionais lhes reconheçam extraterritorialidade.
Parágrafo único - O serviço postal e o serviço de telegrama internacionais são regidos também pelas convenções e acordos internacionais ratificados ou aprovados pelo Brasil.
TÍTULO I
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 2º - O serviço postal e o serviço de telegrama são explorados pela União, através de empresa pública
vinculada ao Ministério das Comunicações.
§ 1º - Compreende-se no objeto da empresa exploradora dos serviços:
a) planejar, implantar e explorar o serviço postal e o serviço de telegrama;
b) explorar atividades correlatas;
c) promover a formação e o treinamento de pessoal sério ao desempenho de suas atribuições;
d) exercer outras atividades afins, autorizadas pelo Ministério das Comunicações.
§ 2º - A empresa exploradora dos serviços, mediante autorização do Poder Executivo, pode constituir subsidiárias para a prestação de serviços compreendidos no seu objeto.
§ 3º - A empresa exploradora dos serviços, atendendo a conveniências técnicas e econômicas, e sem prejuízo de suas atribuições e responsabilidades, pode celebrar contratos e convênios objetivando assegurar a prestação
dos serviços, mediante autorização do Ministério das Comunicações.
§ 4º - Os recursos da empresa exploradora dos serviços são constituídos:
a) da receita proveniente da prestação dos serviços;
b) da venda de bens compreendidos no seu objeto;
c) dos rendimentos decorrentes da participação societária em outras empresas;
d) do produto de operações de créditos;
e) de dotações orçamentárias;
f ) de valores provenientes de outras fontes.
§ 5º - A empresa exploradora dos serviços tem sede no Distrito Federal.
§ 6º - A empresa exploradora dos serviços pode promover desapropriações de bens ou direitos, mediante
ato declamatório de sua utilidade pública, pela autoridade federal.
§ 7º - O Poder Executivo regulamentará a exploração de outros serviços compreendidos no objeto da empresa exploradora que vierem a ser criados.
Art. 3º - A empresa exploradora é obrigada a assegurar a continuidade dos serviços, observados os índices
de confiabilidade, qualidade, eficiência e outros requisitos fixados pelo Ministério das Comunicações .
Art. 4º - É reconhecido a todos o direito de haver a prestação do serviço postal e do serviço de telegrama,
observadas as disposições legais e regulamentares.
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
Art. 5º - O sigilo da correspondência é inviolável.
Parágrafo único - A ninguém é permitido intervir no serviço postal ou no serviço de telegrama, salvo nos
casos e na forma previstos em lei.
Art. 6º - As pessoas encarregadas do serviço postal ou do serviço de telegrama são obrigadas a manter segredo profissional sobre a existência de correspondência e do conteúdo de mensagem de que tenham conhecimento
em razão de suas funções.
Parágrafo único - Não se considera violação do segredo profissional, indispensável à manutenção do sigilo de
correspondência a divulgação do nome do destinatário de objeto postal ou de telegrama que não tenha podido ser
entregue por erro ou insuficiência de endereço.
TÍTULO II
DO SERVIÇO POSTAL
Art. 7º - Constitui serviço postal o recebimento, expedição, transporte e entrega de objetos de correspondência, valores e encomendas, conforme definido em regulamento.
§ 1º - São objetos de correspondência:
a) carta;
b) cartão-postal;
c) impresso;
d) cecograma;
e) pequena - encomenda.
§ 2º - Constitui serviço postal relativo a valores:
a) remessa de dinheiro através de carta com valor declarado;
b) remessa de ordem de pagamento por meio de vale-postal;
c) recebimento de tributos, prestações, contribuições e obrigações pagáveis à vista, por via postal.
§ 3º - Constitui serviço postal relativo a encomendas a remessa e entrega de objetos, com ou sem valor
mercantil, por via postal.
Art. 8º - São atividades correlatas ao serviço postal:
I - venda de selos, peças filatélicas, cupões resposta internacionais, impressos e papéis para correspondência;
II - venda de publicações divulgando regulamentos, normas, tarifas, listas de código de endereçamento e
outros assuntos referentes ao serviço postal.
III - exploração de publicidade comercial em objetos correspondência.
Parágrafo único - A inserção de propaganda e a comercialização de publicidade nos formulários de uso no
serviço postal, bem como nas listas de código de endereçamento postal, e privativa da empresa exploradora do
serviço postal.
Art. 9º - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais:
I - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;
II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada:
III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal.
§ 1º - Dependem de prévia e expressa autorização da empresa exploradora do serviço postal;
a) venda de selos e outras fórmulas de franqueamento postal;
b) fabricação, importação e utilização de máquinas de franquear correspondência, bem como de matrizes
para estampagem de selo ou carimbo postal.
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atividades e atos administrativos
§ 2º - Não se incluem no regime de monopólio:
a) transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa jurídica, em negócios de sua economia, por meios próprios, sem intermediação comercial;
b) transporte e entrega de carta e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins lucrativos, na forma
definida em regulamento.
Art. 10º - Não constitui violação de sigilo da correspondência postal a abertura de carta:
I - endereçada a homônimo, no mesmo endereço;
II - que apresente indícios de conter objeto sujeito a pagamento de tributos;
III - que apresente indícios de conter valor não declarado, objeto ou substância de expedição, uso ou entrega proibidos;
IV - que deva ser inutilizada, na forma prevista em regulamento, em virtude de impossibilidade de sua
entrega e restituição.
Parágrafo único - Nos casos dos incisos II e III a abertura será feita obrigatoriamente na presença do remetente ou do destinatário.
Art. 11º - Os objetos postais pertencem ao remetente até a sua entrega a quem de direito.
§ 1° - Quando a entrega não tenha sido possível em virtude de erro ou insuficiência de endereço, o objeto
permanecerá à disposição do destinatário, na forma definida em regulamento.
§ 2º - Quando nem a entrega, nem a restituição tenham sido possíveis, o objeto será inutilizado, conforme
disposto em regulamento.
§ 3º - Os impressos sem registro, cuja entrega não tenha sido possível, serão inutilizados, na forma prevista
em regulamento.
Art. 12º - O regulamento disporá sobre as condições de aceitação, encaminhamento e entrega dos objetos
postais, compreendendo, entre outras, código de endereçamento, formato, limites de peso, valor e dimensões,
acondicionamento, franqueamento e registro.
§ lº - Todo objeto postal deve conter, em caracteres latinos e algarismos arábicos e no sentido de sua maior
dimensão, o nome do destinatário e seu endereço completo.
§ 2º - Sem prejuízo do disposto neste artigo, podem ser usados caracteres e algarismos do idioma do país
de destino.
Art. 13º - Não é aceito nem entregue:
I - objeto com peso, dimensões, volume, formato, endereçamento, franqueamento ou acondicionamento
em desacordo com as normas regulamentares ou com as previstas em convenções e acordos internacionais aprovados pelo Brasil;
II - substância explosiva, deteriorável, fétida, corrosiva ou facilmente inflamável, cujo transporte constitua
perigo ou possa danificar outro objeto;
III - cocaína, ópio, morfina, demais estupefacientes e outras substâncias de uso proibido;
IV - objeto com endereço, dizeres ou desenho injuriosos, Ameaçadores, ofensivos a moral ou ainda contrários a ordem pública ou aos interesses do País;
V - animal vivo, exceto os admitidos em convenção internacional ratificada pelo Brasil;
VI - planta viva;
VII - animal morto;
VIII - objeto cujas indicações de endereçamento não permitam assegurar a correta entrega ao destinatário;
IX - objeto cuja circulação no País, exportação ou importação, estejam proibidos por ato de autoridade
competente.
§ 1º - A infringência a qualquer dos dispositivos de que trata este artigo acarretará a apreensão ou retenção
do objeto, conforme disposto em regulamento, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.
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atividades e atos administrativos
§ 2º - O remetente de qualquer objeto postal é responsável, perante a empresa exploradora do serviço
postal, pela danificação produzida em outro objeto em virtude de inobservância de dispositivos legais e regulamentares, desde que não tenha havido erro ou negligência da empresa exploradora do serviço postal ou do
transporte.
Art. 14º - O objeto postal, além de outras distinções que venham a ser estabelecidas em regulamento, se
classifica:
I - quanto ao âmbito:
a) nacional - postado no território brasileiro e a ele destinado.
b) internacional - quando em seu curso intervier unidade postal fora da jurisdição nacional.
II - quanto à postagem:
a) simples - quando postado em condições ordinárias,
b) qualificado - quando sujeito a condição especial de tratamento, quer por solicitação do remetente, quer
por exigência de dispositivo regulamentar.
III - quanto ao local de entrega:
a) de entrega interna - quando deva ser procurado e entregue em unidade de atendimento da empresa
exploradora.
b) de entrega externa - quando deva ser entregue no endereço indicado pelo remetente.
Art. 15º - A empresa exploradora do serviço postal é obrigada a manter, em suas unidades de atendimento,
à disposição dos usuários, a lista dos códigos de endereçamento postal.
§ 1º - A edição de listas dos códigos de endereçamento postal é da competência exclusiva da empresa exploradora do serviço postal, que pode contratá-la com terceiros, bem como autorizar sua reprodução total ou
parcial.
§ 2º - A edição ou reprodução total ou parcial da lista de endereçamento postal fora das condições regulamentares, sem expressa autorização da empresa exploradora do serviço postal, sujeita quem a efetue à busca
e apreensão, dos exemplares e documentos a eles pertinentes, além da indenização correspondente ao valor da
publicidade neles inserta.
§ 3º - É facultada a edição de lista de endereçamento postal sem finalidade comercial e de distribuição
gratuita, conforme disposto em regulamento.
Art. 16º - Compete à empresa exploradora do serviço postal definir o tema ou motivo dos selos postais, e
programar sua emissão, conservadas as disposições do regulamento.
Art. 17º - A empresa exploradora ao serviço postal responde, na forma prevista em regulamento, pela perda
ou danificação de objeto postal, devidamente registrado, salvo nos casos de:
I - força maior;
II - confisco ou destruição por autoridade competente;
III - não reclamação nos prazos previstos em regulamento.
Art. 18º - A condução de malas postais é obrigatória em veículos, embarcações e aeronaves em todas as
empresas de transporte, ressalvados os motivos de segurança, sempre que solicitada por autoridade competente,
mediante justa remuneração, na forma da lei.
§ 1º - O transporte de mala postal tem prioridade logo após o passageiro e respectiva bagagem.
§ 2º - No transporte de malas postais e malotes de correspondência agrupada, não incide o imposto sobre
Transporte Rodoviário.
Art. 19º - Para embarque e desembarque de malas postais, coleta e entrega de objetos postais, é permitido
o estacionamento de viatura próximo às unidades postais e caixas de coleta, bem como nas plataformas de embarque e desembarque e terminais de carga, nas condições estabelecidas em regulamento.
Art. 20º - Nos edifícios residenciais, com mais de um pavimento e que não disponham de portaria, é obrigatória a instalação de caixas individuais para depósito de objetos de correspondência.
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atividades e atos administrativos
Art. 21º - Nos estabelecimentos bancários, hospitalares e de ensino, empresas industriais e comerciais,
escritórios, repartições públicas, associações e outros edifícios não residenciais de ocupação coletivo, deve ser
instalado, obrigatoriamente, no recinto de entrada, em pavimento térreo, local destinado ao recebimento de
objetos de correspondência.
Art. 22º - Os responsáveis pelos edifícios, sejam os administradores, os gerentes, os porteiros, zeladores ou
empregados são credenciados a receber objetos de correspondência endereçados a qualquer de suas unidades,
respondendo pelo seu extravio ou violação.
Art. 23º - As autoridades competentes farão constar dos códigos de obras disposições referentes às condições previstas nos artigos 20 e 21 para entrega de objetos de correspondência, como condição de “habite-se”.
Art. 24º - Na construção de terminais rodoviários, ferroviários, marítimos e aéreos, a empresa exploradora
do serviço postal deve ser consultada quanto à reserva de área para embarque, desembarque e triagem de malas
postais.
TÍTULO III
DO SERVIÇO DE TELEGRAMA
Art. 25º - Constitui serviço de telegrama o recebimento, transmissão e entrega de mensagens escritas,
conforme definido em regulamento.
Art. 26º - São atividades correlatas ao serviço de telegrama:
I - venda de publicações divulgando regulamentos, normas, tarifas, e outros assuntos referentes ao serviço
de telegrama;
II - exploração de publicidade comercial em formulários de telegrama.
Parágrafo único - A inserção de propaganda e a comercialização de publicidade nos formulários de uso no
serviço de telegrama é privativa da empresa exploradora do serviço de telegrama.
Art. 27º - O serviço público de telegrama é explorado pela União em regime de monopólio.
Art. 28º - Não constitui violação do sigilo de correspondência o conhecimento do texto de telegrama endereçado a homônimo, no mesmo endereço.
Art. 29º - Não é aceito nem entregue telegrama que:
I - seja anônimo;
II - contenha dizeres injuriosos, ameaçadores, ofensivos à moral, ou ainda, contrários à ordem pública e
aos interesses do País;
III - possa contribuir para a perpetração de crime ou contravenção ou embaraçar ação da justiça ou da
administração;
IV - contenha notícia alarmante, reconhecidamente falsa;
V - Esteja em desacordo com disposições legais ou convenções e acordos internacionais ratificados ou
aprovados pelo Brasil.
§ 1º - Não se considera anônimo o telegrama transmitido sem assinatura, por permissão regulamentar.
§ 2º - Podem ser exigidas identificação e assinatura do expedidor do telegrama, não se responsabilizando,
em qualquer caso, a empresa expedidora pelo conteúdo da mensagem.
§ 3º - O telegrama que, por infração de dispositivo legal, não deva ser transmitido ou entregue será considerado apreendido.
§ 4º - O telegrama que, por indício de infração de dispositivo legal, ou por mandado judicial, deva ser entregue depois de satisfeitos formalidades exigíveis será considerado retido.
§ 5º - Quando o telegrama não puder ser entregue, o ato será comunicado ao expedidor.
Art. 30º - O telegrama, além de outras categorias que venham a ser estabelecidas em regulamento, se classifica:
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atividades e atos administrativos
I - Quanto ao âmbito:
a) nacional - expedido no território brasileiro e a ele destinado;
b) internacional - quando, em seu curso, intervier estação fora da jurisdição nacional
II - Quanto a linguagem:
a) corrente - texto compreensível pelo sentido que apresenta;
b) cifrada - texto redigido em linguagem codificada, com chave previamente registrada.
III - Quanto à apresentação:
a) simples - que deva ter curso e entrega sem condições especiais de tratamento;
b) urgente - que deva ter prioridade de transmissão e entrega, quer a pedido do expedidor, quer por exigência de dispositivo regulamentar.
IV - Quanto à entrega:
a) de entrega interna - quando deve ser procurado e entregue em unidade de atendimento da empresa
exploradora do serviço;
b) de entrega externa - quando deva ser entregue no endereço indicado pelo expedidor.
§ 1º - Na redação de telegrama em linguagem corrente podem ser utilizados, além do português, os idiomas especificados quando deva ser procurado e entregue em unidade de atendimento da empresa exploradora
do serviço;
§ 2º - Para expedição de telegrama em linguagem cifrada, salvo nos casos previstos em regulamento, e
obrigatória a indicação do código, previamente registrado, utilizado na sua redação, podendo seu trafego ser
suspenso pelo Ministro das Comunicações, quando o interesse público o exigir.
§ 3º - A empresa exploradora do serviço de telegrama responde pelos atrasos ocorridos na transmissão ou
entrega de telegrama, nas condições definidas em regulamento.
Art. 31º - Para a constituição da rede de transmissão de telegrama, é assegurada à empresa exploradora do
serviço de telegrama, a utilização dos meios de telecomunicações das empresas exploradoras de serviços públicos
de telecomunicações, bem como suas conexões internacionais, mediante justa remuneração.
TÍTULO IV
DA REMUNERAÇÃO DOS SERVIÇOS
Art. 32º - O serviço postal e o serviço de telegrama são remunerados através de tarifas, de preços, além de
prêmios “ad valorem” com relação ao primeiro, aprovados pelo Ministério das Comunicações.
Art. 33º - Na fixação das tarifas, preços e prêmios “ad valorem”, são levados em consideração natureza,
âmbito, tratamento e demais condições de prestação dos serviços.
§ 1º - As tarifas e os preços devem proporcionar:
a) cobertura dos custos operacionais;
b) expansão e melhoramento dos serviços.
§ 2º - Os prêmios “ad valorem” são fixados em função do valor declarado nos objetos postais.
Art. 34º - É vedada a concessão de isenção ou redução subjetiva das tarifas, preços e prêmios “ad valorem”,
ressalvados os casos de calamidade pública e os previstos nos atos internacionais devidamente ratificados, na
forma do disposto em regulamento .
Art. 35º - A empresa exploradora do serviço postal aplicará a pena de multa, em valor não superior a 2
(dois) valores padrão de referência, na forma prevista em regulamento, a quem omitir a declaração de valor de
objeto postal sujeito a esta exigência.
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atividades e atos administrativos
TÍTULO V
DOS CRIMES CONTRA O SERVIÇO POSTAL E O SERVIÇO DE TELEGRAMA
FALSIFICAÇÃO DE SELO, FÓRMULA DE FRANQUEAMENTO OU VALEPOSTAL.
Art. 36º - Falsificar, fabricando ou adulterando, selo, outra fórmula de franqueamento ou vale-postal:
Pena: reclusão, até oito anos, e pagamento de cinco a quinze dias-multa.
USO DE SELO, FÓRMULA DE FRANQUEAMENTO OU VALE-POSTAL FALSIFICADOS.
Parágrafo único - Incorre nas mesmas penas quem importa ou exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda, fornece, utiliza ou restitui à circulação, selo, outra fórmula de franqueamento ou vale-postal
falsificados.
SUPRESSÃO DE SINAIS DE UTILIZAÇÃO
Art. 37º - Suprimir, em selo, outra fórmula de franqueamento ou vale- postal, quando legítimos, com o
fim de torná-los novamente utilizáveis; carimbo ou sinal indicativo de sua utilização:
Pena: reclusão, até quatro anos, e pagamento de cinco a quinze dias-multa.
FORMA ASSIMILADA
§ 1º - Incorre nas mesmas penas quem usa, vende, fornece ou guarda, depois de alterado, selo, outra fórmula de franqueamento ou vale-postal.
§ 2º - Quem usa ou restitui a circulação, embora recebido de boa fé, selo, outra fórmula de franqueamento
ou vale-postal, depois de conhecer a falsidade ou alteração, incorre na pena de detenção, de três meses a um ano,
ou pagamento de três a dez dias-multa.
PETRECHOS DE FALSIFICAÇAO DE SELO, FÓRMULA DE FRANQUEAMENTO OU VALEPOSTAL
Art. 38º - Fabricar, adquirir, fornecer, ainda que gratuitamente, possuir, guardar, ou colocar em circulação
objeto especialmente destinado à falsificação de selo, outra fórmula de franqueamento ou vale-postal.
Pena: reclusão, até três anos, e pagamento de cinco a quinze dias-multa.
REPRODUÇÃO E ADULTERAÇÃO DE PEÇA FILATÉLICA
Art. 39º - Reproduzir ou alterar selo ou peça filatélica de valor para coleção, salvo quando a reprodução ou
a alteração estiver visivelmente anotada na face ou no verso do selo ou peça:
Pena: detenção, até dois anos, e pagamento de três a dez dias-multa.
FORMA ASSIMILADA
Parágrafo único - Incorre nas mesmas penas, quem, para fins de comércio, faz uso de selo ou peça filatélica
de valor para coleção, ilegalmente reproduzidos ou alterados.
VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA
Art. 40º - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada dirigida a outrem:
Pena: detenção, até seis meses, ou pagamento não excedente a vinte dias-multa.
SONEGAÇÃO OU DESTRUIÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA.
§ 1º - Incorre nas mesmas penas quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não
fechada, para sonegá-la ou destruí-la, no todo ou em parte.
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
AUMENTO DE PENA
§ 2º - As penas aumentam-se da metade se há dano para outrem.
QUEBRA DO SEGREDO PROFISSIONAL
Art. 41º - Violar segredo profissional, indispensável à manutenção do sigilo da correspondência mediante:
I - divulgação de nomes de pessoas que mantenham, entre si, correspondência;
II - divulgação, no todo ou em parte, de assunto ou texto de correspondência de que, em razão ao oficio,
se tenha conhecimento;
III - revelação do nome de assinante de caixa postal ou o número desta, quando houver pedido em contrario do usuário;
IV - revelação do modo pelo qual ou do local especial em que qualquer pessoa recebe correspondência ;
Pena: detenção de três meses a um ano, ou pagamento não excedente a cinqüenta dias-multa.
VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL DA UNIÃO
Art. 42º - Coletar, transportar, transmitir ou distribuir, sem observância das condições legais, objetos de
qualquer natureza sujeitos ao monopólio da União, ainda que pagas as tarifas postais ou de telegramas.
Pena: detenção, até dois meses, ou pagamento não excedente a dez dias-multa.
FORMA ASSIMILADA
Parágrafo único - Incorre nas mesmas penas quem promova ou facilite o contra bando postal ou pratique qualquer ato que importe em violação do monopólio exercido pela União sobre os serviços postais e de
telegramas.
AGRAVAÇÃO DE PENA
Art. 43º - Os crimes contra o serviço postal, ou serviço de telegrama quando praticados por pessoa prevalecendo-se do cargo, ou em abuso da função, terão pena agravada.
PESSOA JURÍDICA
Art. 44º - Sempre que ficar caracterizada a vinculação de pessoa jurídica em crimes contra o serviço postal
ou serviço de telegrama, a responsabilidade penal incidirá também sobre o dirigente da empresa que, de qualquer
modo tenha contribuído para a pratica do crime.
REPRESENTAÇÃO
Art. 45º - A autoridade administrativa, a partir da data em que tiver ciência da prática de crime relacionado com o serviço postal ou com o serviço de telegrama, é obrigada a representar, no prazo de 10 (dez) dias, ao
Ministério Público Federal contra o autor ou autores do ilícito penal, sob pena de responsabilidade.
PROVAS DOCUMENTAIS E PERICIAIS
Art. 46º - O Ministério das Comunicações colaborará com a entidade policial, fornecendo provas que
forem colhidas em inquéritos ou processos administrativos e, quando possível, indicando servidor para efetuar
perícias e acompanhar os agentes policiais em suas diligências.
TÍTULO VI
DAS DEFINIÇÕES
Art. 47º - Para os efeitos desta Lei, são adotadas as seguintes definições:
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
CARTA - objeto de correspondência, com ou sem envoltório, sob a forma de comunicação escrita, de
natureza administrativa, social, comercial, ou qualquer outra, que contenha informação de interesse específico
do destinatário.
CARTÃO-POSTAL - objeto de correspondência, de material consistente, sem envoltório, contendo mensagem e endereço.
CECOGRAMA - objeto de correspondência impresso em relevo, para uso dos cegos. Considera-se também cecograma o material impresso para uso dos cegos.
CÓDIGO DE ENDEREÇAMENTO POSTAL - conjunto de números, ou letras e números, gerados
segundo determinada lógica, que identifiquem um local.
CORRESPONDÊNCIA - toda comunicação de pessoa a pessoa, por meio de carta, através da via postal,
ou por telegrama.
CORRESPONDÊNCIA AGRUPADA - reunião, em volume, de objetos da mesma ou de diversas naturezas, quando, pelo menos um deles, for sujeito ao monopólio postal, remetidos a pessoas jurídicas de direito
público ou privado e/ou suas agências, filiais ou representantes.
CUPÃO-RESPOSTA INTERNACIONAL - título ou documento de valor postal permutável em todo
país membro da União Postal Universal por um ou mais selos postais, destinados a permitir ao expedidor pagar
para seu correspondente no estrangeiro o franqueamento de uma carta para resposta.
ENCOMENDA - objeto com ou sem valor mercantil, para encaminhamento por via postal.
ESTAÇÃO - um ou vários transmissores ou receptores, ou um conjunto de transmissores e receptores, incluindo os equipamentos acessórios necessários, para assegurar um serviço de telecomunicação em determinado
local.
FÓRMULA DE FRANQUEAMENTO - representação material de pagamento de prestação de um serviço postal.
FRANQUEAMENTO POSTAL - pagamento de tarifa e, quando for o caso, do prêmio, relativos a objeto
postal. diz-se também da representação da tarifa.
IMPRESSO - reprodução obtida sobre material de uso corrente na imprensa, editado em vários exemplares idênticos.
OBJETO POSTAL - qualquer objeto de correspondência, valor ou encomenda encaminhado por via
postal.
PEQUENA ENCOMENDA - objeto de correspondência, com ou sem valor mercantil, com peso limitado, remetido sem fins comerciais.
PREÇO - remuneração das atividades conotadas ao serviço postal ou ao serviço de telegrama.
PRÊMIO - importância fixada percentualmente sobre o valor declarado dos objetos postais, a ser paga
pelos usuários de determinados serviços para cobertura de riscos.
REGISTRO - forma de postagem qualificada, na qual o objeto é confiado ao serviço postal contra emissão
de certificado.
SELO - estampilha postal, adesiva ou fixa, bem com a estampa produzida por meio de máquina de franquear correspondência, destinadas a comprovar o pagamento da prestação de um serviço postal.
TARIFA - valor, fixado em base unitária, pelo qual se determina a importância a ser paga pelo usuário do
serviço postal ou do serviço de telegramas.
TELEGRAMA - mensagem transmitida por sinalização elétrica ou radioelétrica, ou qualquer outra forma
equivalente, a ser convertida em comunicação escrita, para entrega ao destinatário.
VALE-POSTAL - título emitido por uma unidade postal à vista de um depósito de quantia para pagamento na mesma ou em outra unidade postal.
Parágrafo único - São adotadas, no que couber, para os efeitos desta Lei, as definições estabelecidas em
convenções e acordos internacionais.
FGV DIREITO RIO
133
atividades e atos administrativos
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 48º - O Poder Executivo baixará os decretos regulamentares decorrentes desta Lei em prazo não superior a 1 (um) ano, a contar da data de sua publicação, permanecendo em vigor as disposições constantes dos
atuais e que não tenham sido, explícita ou implicitamente, revogados ou derrogados.
Art. 49º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Brasília, 22 de junho de 1978; 157º da Independência e 90º da República.
Ernesto Geisel
Armando Falcão
Euclides Quandt de Oliveira
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 23.6.1978
FGV DIREITO RIO
134
atividades e atos administrativos
Medida Provisória no 2.220, de 4 de setembro de 2001.
Dispõe sobre a concessão de uso especial de que trata o § 1o do art. 183 da Constituição, cria o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Urbano - CNDU e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 62 da Constituição,
adota a seguinte Medida Provisória, com força de lei:
CAPÍTULO I
DA CONCESSÃO DE USO ESPECIAL
Art. 1o Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem
oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o
para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação
ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel
urbano ou rural.
§ 1o A concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma gratuita ao homem ou à
mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2o O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo concessionário mais de uma vez.
§ 3o Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, na posse de seu antecessor,
desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.
Art. 2o Nos imóveis de que trata o art. 1o, com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, que, até
30 de junho de 2001, estavam ocupados por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por possuidor, a concessão
de uso especial para fins de moradia será conferida de forma coletiva, desde que os possuidores não sejam proprietários ou concessionários, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu
antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2o Na concessão de uso especial de que trata este artigo, será atribuída igual fração ideal de terreno a cada
possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito
entre os ocupantes, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 3o A fração ideal atribuída a cada possuidor não poderá ser superior a duzentos e cinqüenta metros quadrados.
Art. 3o Será garantida a opção de exercer os direitos de que tratam os arts. 1o e 2o também aos ocupantes,
regularmente inscritos, de imóveis públicos, com até duzentos e cinqüenta metros quadrados, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que estejam situados em área urbana, na forma do regulamento.
Art. 4o No caso de a ocupação acarretar risco à vida ou à saúde dos ocupantes, o Poder Público garantirá
ao possuidor o exercício do direito de que tratam os arts. 1o e 2o em outro local.
Art. 5o É facultado ao Poder Público assegurar o exercício do direito de que tratam os arts. 1o e 2o em outro
local na hipótese de ocupação de imóvel:
I - de uso comum do povo;
II - destinado a projeto de urbanização;
III - de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais;
IV- reservado à construção de represas e obras congêneres; ou
V - situado em via de comunicação.
FGV DIREITO RIO
135
atividades e atos administrativos
Art. 6o O título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela via administrativa perante o órgão competente da Administração Pública ou, em caso de recusa ou omissão deste, pela via judicial.
§ 1o A Administração Pública terá o prazo máximo de doze meses para decidir o pedido, contado da data
de seu protocolo.
§ 2o Na hipótese de bem imóvel da União ou dos Estados, o interessado deverá instruir o requerimento de
concessão de uso especial para fins de moradia com certidão expedida pelo Poder Público municipal, que ateste
a localização do imóvel em área urbana e a sua destinação para moradia do ocupante ou de sua família.
§ 3o Em caso de ação judicial, a concessão de uso especial para fins de moradia será declarada pelo juiz,
mediante sentença.
§ 4o O título conferido por via administrativa ou por sentença judicial servirá para efeito de registro no
cartório de registro de imóveis.
Art. 7o O direito de concessão de uso especial para fins de moradia é transferível por ato inter vivos ou causa
mortis.
Art. 8o O direito à concessão de uso especial para fins de moradia extingue-se no caso de:
I - o concessionário dar ao imóvel destinação diversa da moradia para si ou para sua família; ou
II - o concessionário adquirir a propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural.
Parágrafo único. A extinção de que trata este artigo será averbada no cartório de registro de imóveis, por
meio de declaração do Poder Público concedente.
Art. 9o É facultado ao Poder Público competente dar autorização de uso àquele que, até 30 de junho de
2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros
quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para fins comerciais.
§ 1o A autorização de uso de que trata este artigo será conferida de forma gratuita.
§ 2o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu
antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 3o Aplica-se à autorização de uso prevista no caput deste artigo, no que couber, o disposto nos arts. 4o e
5o desta Medida Provisória.
CAPÍTULO II
DO CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO
Art. 10. Fica criado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano - CNDU, órgão deliberativo e
consultivo, integrante da estrutura da Presidência da República, com as seguintes competências:
I - propor diretrizes, instrumentos, normas e prioridades da política nacional de desenvolvimento urbano;
II - acompanhar e avaliar a implementação da política nacional de desenvolvimento urbano, em especial as
políticas de habitação, de saneamento básico e de transportes urbanos, e recomendar as providências necessárias
ao cumprimento de seus objetivos;
III - propor a edição de normas gerais de direito urbanístico e manifestar-se sobre propostas de alteração
da legislação pertinente ao desenvolvimento urbano;
IV - emitir orientações e recomendações sobre a aplicação da Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, e dos
demais atos normativos relacionados ao desenvolvimento urbano;
V - promover a cooperação entre os governos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
e a sociedade civil na formulação e execução da política nacional de desenvolvimento urbano; e
VI - elaborar o regimento interno.
Art. 11. O CNDU é composto por seu Presidente, pelo Plenário e por uma Secretaria-Executiva, cujas
atribuições serão definidas em decreto.
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
Parágrafo único. O CNDU poderá instituir comitês técnicos de assessoramento, na forma do regimento
interno.
Art. 12. O Presidente da República disporá sobre a estrutura do CNDU, a composição do seu Plenário e
a designação dos membros e suplentes do Conselho e dos seus comitês técnicos.
Art. 13. A participação no CNDU e nos comitês técnicos não será remunerada.
Art. 14. As funções de membro do CNDU e dos comitês técnicos serão consideradas prestação de relevante interesse público e a ausência ao trabalho delas decorrente será abonada e computada como jornada efetiva de
trabalho, para todos os efeitos legais.
CAPÍTULO III
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 15. O inciso I do art. 167 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“I - ...........................................................
...........................................................
28) das sentenças declaratórias de usucapião;
...........................................................
37) dos termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia;
...........................................................
40) do contrato de concessão de direito real de uso de imóvel público.” (NR)
Art. 16. Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 4 de setembro de 2001; 180o da Independência e 113o da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Pedro Parente
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 5.9.2001 (Edição extra)
Fonte: www.planalto.gov.br, acesso em 18.06.2006
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
Anexo 2 – Jurisprudência
Supremo Tribunal Federal – PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES
13/04/2005
TRIBUNAL PLENO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.367-1 DISTRITO FEDERAL
RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO
EMENTAS:
1. AÇÃO. Condição. Interesse processual, ou de agir. Caracterização. Ação direta de inconstitucionalidade. Propositura antes da publicação oficial da Emenda Constitucional nº 45/2004. Publicação superveniente,
antes do julgamento da causa. Suficiência. Carência da ação não configurada. Preliminar repelida. Inteligência
do art. 267, VI, do CPC. Devendo as condições da ação coexistir à data da sentença, considera-se presente o
interesse processual, ou de agir, em ação direta de inconstitucionalidade de Emenda Constitucional que só foi
publicada, oficialmente, no curso do processo, mas antes da sentença.
2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Emenda Constitucional nº 45/2004. Poder Judiciário.
Conselho Nacional de Justiça. Instituição e disciplina. Natureza meramente administrativa. Órgão interno de
controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura. Constitucionalidade reconhecida. Separação e
independência dos Poderes. História, significado e alcance concreto do princípio. Ofensa a cláusula constitucional imutável (cláusula pétrea). Inexistência. Subsistência do núcleo político do princípio, mediante preservação
da função jurisdicional, típica do Judiciário, e das condições materiais do seu exercício imparcial e independente. Precedentes e súmula 649. Inaplicabilidade ao caso. Interpretação dos arts. 2º e 60, § 4º, III, da CF. Ação
julgada improcedente. Votos vencidos. São constitucionais as normas que, introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, instituem e disciplinam o Conselho Nacional de Justiça, como órgão
administrativo do Poder Judiciário nacional.
3. PODER JUDICIÁRIO. Caráter nacional. Regime orgânico unitário. Controle administrativo, financeiro e disciplinar. Órgão interno ou externo. Conselho de Justiça. Criação por Estado membro. Inadmissibilidade. Falta de competência constitucional. Os Estados membros carecem de competência constitucional para
instituir, como órgão interno ou externo do Judiciário, conselho destinado ao controle da atividade administrativa, financeira ou disciplinar da respectiva Justiça. Supremo Tribunal Federal Diário da Justiça de 17/03/2006
ADI 3.367/DF
4. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Órgão de natureza exclusivamente administrativa. Atribuições de controle da atividade administrativa, financeira e disciplinar da magistratura. Competência
relativa apenas aos órgãos e juízes situados, hierarquicamente, abaixo do Supremo Tribunal Federal. Preeminência deste, como órgão máximo do Poder Judiciário, sobre o Conselho, cujos atos e decisões estão sujeitos a seu
controle jurisdicional. Inteligência dos art. 102, caput, inc. I, letra “r”, e § 4º, da CF. O Conselho Nacional de
Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão
máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito.
5. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Competência. Magistratura. Magistrado vitalício. Cargo. Perda mediante decisão administrativa. Previsão em texto aprovado pela Câmara dos Deputados
e constante do Projeto que resultou na Emenda Constitucional nº 45/2004. Supressão pelo Senado Federal.
Reapreciação pela Câmara. Desnecessidade. Subsistência do sentido normativo do texto residual aprovado e
promulgado (art. 103-B, § 4º, III). Expressão que, ademais, ofenderia o disposto no art. 95, I, parte final, da
CF. Ofensa ao art. 60, § 2º, da CF. Não ocorrência. Argüição repelida. Precedentes. Não precisa ser reapreciada
FGV DIREITO RIO
138
atividades e atos administrativos
pela Câmara dos Deputados expressão suprimida pelo Senado Federal em texto de projeto que, na redação remanescente, aprovada de ambas as Casas do Congresso, não perdeu sentido normativo.
6. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Membro. Advogados e cidadãos. Exercício do
mandato. Atividades incompatíveis com tal exercício. Proibição não constante das normas da Emenda Constitucional nº 45/2004. Pendência de projeto tendente a torná-la expressa, mediante acréscimo de § 8º ao art. 103-B
da CF. Irrelevância. Ofensa ao princípio da isonomia. Não ocorrência. Impedimentos já previstos à conjugação
dos arts. 95, § único, e 127, § 5º, II, da CF. Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido aditado. Improcedência. Nenhum dos advogados ou cidadãos membros do Conselho Nacional de Justiça pode, durante o exercício
do mandato, exercer atividades incompatíveis com essa condição, tais como exercer outro cargo ou função, salvo
uma de magistério, dedicar-se a atividade político-partidária e exercer a advocacia no território nacional.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão
Plenária, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade, em afastar o vício
formal de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 45/2004, como também não conhecer da ação
quanto ao § 8º do artigo 125. E, no mérito, por maioria, em julgar totalmente improcedente a ação, vencidos
o Senhor Ministro MARCO AURÉLIO, que a julgava integralmente procedente; a Senhora Ministra ELLEN
GRACIE e o Senhor Ministro CARLOS VELLOSO, que julgavam parcialmente procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade dos incisos X, XI, XII e XIII do artigo 103-B, acrescentado pela emenda constitucional; e o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, que a julgava procedente, em menor extensão, dando pela
inconstitucionalidade somente do inciso XIII do caput do artigo 103-B. Votou o Presidente, Ministro NELSON JOBIM. Falaram, pela requerente, o Dr. ALBERTO PAVIE RIBEIRO, pela Advocacia-Geral da União,
o Dr. ÁLVARO AUGUSTO RIBEIRO COSTA e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. CLÁUDIO LEMOS
FONTELES, Procurador-Geral da República.
Brasília, 13 de abril de 2005.
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - (Relator): Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de liminar, movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e voltada contra os arts.
1º e 2º da Emenda Constitucional nº 45/2004, nos textos que, exteriorizando normas relativas ao Conselho
Nacional de Justiça, são os seguintes: “art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de quinze membros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato de dois anos, admitida
uma recondução, sendo:
I – um Ministro do Supremo Tribunal Federal, indicado pelo respectivo tribunal;
II – um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal;
III – um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal;
IV – um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;
V – um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;
VI – um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;
VII – um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;
VIII – um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;
IX – um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;
X – um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República;
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
XI – um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre
os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual; XII – dois advogados, indicados pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
XIII – dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.
§ 1º O conselho será presidido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, que votará em caso de empate,
ficando excluído da distribuição de processos naquele tribunal.
§ 2º Os membros do Conselho serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha
pela maioria absoluta do Senado Federal.
§ 3º Não efetuadas, no prazo legal, as indicações previstas neste artigo, caberá a escolha ao Supremo Tribunal Federal.
§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas
pelo Estatuto da Magistratura:
I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo
expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos
administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou
fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;
III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus
serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar
processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou
proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;
IV – representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de
autoridade;
V – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais
julgados há menos de um ano;
VI – elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da
Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário;
VII – elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder
Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.
§ 5º O Ministro do Superior Tribunal de Justiça exercerá a função de Ministro-Corregedor e ficará excluído da distribuição de processos no Tribunal, competindo-lhe, além das atribuições que lhe forem conferidas pelo
Estatuto da Magistratura, as seguintes:
I – receber as reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos magistrados e aos serviços
judiciários;
II – exercer funções executivas do Conselho, de inspeção e de correição geral;
III – requisitar e designar magistrados, delegando-lhes atribuições, e requisitar servidores de juízos ou tribunais, inclusive nos Estados, Distrito Federal e Territórios.
§ 6º Junto ao Conselho oficiarão o Procurador-Geral da República e o Presidente do Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil.
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atividades e atos administrativos
§ 7º A União, inclusive no Distrito Federal e nos Territórios, criará ouvidorias de justiça, competentes para
receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ou
contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça.”
“Art. 52 (...)
II – processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de
Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral
da união nos crimes de responsabilidade;” (grifo nosso)
“Art. 92 (...)
1-A – o Conselho Nacional de Justiça;
§ 1º O Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça e os Tribunais Superiores têm sede na
Capital Federal.” (grifos nossos)
“Art. 93 (...)
VIII – o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, fundar-se-á
em decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa;” (grifo nosso)
“Art. 102 (...)
r) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público.”
(grifo nosso)
“Art. 125 (...)
§ 8º - Os Tribunais de Justiça criarão ouvidorias de justiça, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgão do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares,
representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça”. (grifos nossos) Os fundamentos jurídicos do
pedido podem reduzidos a dois argumentos substanciais: a instituição do Conselho Nacional de Justiça implicaria “(a) tanto inegável violação ao princípio da separação e da independência dos poderes (art. 2º da Constituição
Federal), de que são corolários o auto-governo dos Tribunais e a sua autonomia administrativa, financeira e orçamentária (artigos 96, 99 e parágrafos, e 168 da Constituição Federal, (b) como ainda a ofensa ao pacto federativo (artigos
18, 25 e 125), na medida em que submeteu os órgãos do Poder Judiciário dos Estados a uma supervisão administrativa, orçamentária, financeira e disciplinar por órgão da União Federal” (fls. 05). Mas consta outro, tendente agora
à decretação conjunta de inconstitucionalidade específica do art. 103-B,
§ 4º, inc. III, objeto da mesma Emenda: sua redação final não teria sido submetida “à discussão e votação
nas duas casas do Congresso Nacional, mas apenas do Senado Federal, daí resultando a ofensa ao § 2º, do art. 60,
da CF” (fls. 06). Em caráter liminar, aduzindo serem sólidos tais fundamentos e estar-se diante da “excepcional
urgência” de que fala o art. 10,
§ 3º, da Lei nº 9.868/99, a autora pediu a imediata suspensão da “vigência dos dispositivos impugnados
nesta ação, especialmente o art. 103-B”, até o julgamento definitivo da causa (fls. 43-46). Entendendo tratar-se
de matéria relevante e de “especial significado para a ordem social e a segurança jurídica”, o Exmo. Sr. Presidente
do Tribunal, a quem o feito foi remetido durante as férias (art. 13, inc. VIII, do RISTF), determinou o processamento da ação nos termos do art. 12 da Lei nº 9.868/99 (fls. 125). Sobrevieram, então, as informações
prestadas pelo Congresso (fls. 145-159), que respondeu a cada um dos argumentos da inicial e opinou pela total
improcedência dos pedidos. De igual modo manifestaram-se a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República (fls. 161-187 e 189-195). A primeira argüiu, em caráter preliminar, impossibilidade jurídica do
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
pedido, uma vez que, à data da propositura da ação, a Emenda Constitucional impugnada
não havia sido ainda publicada no Diário Oficial (fls. 164-167).
É o relatório.
VOTO
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - (Relator):
1. Examino a preliminar. Argúi a Advocacia-Geral da União que os pedidos seriam
“juridicamente impossíveis”, porque deduzidos antes da publicação oficial da Emenda, coisa
proibida no sistema de controle de constitucionalidade. Pede, em conseqüência, a extinção
do processo, sem julgamento do mérito. Não obstante tenha razão o Advogado-Geral quanto à inadmissibilidade de controle de constitucionalidade em caráter preventivo, ao caso
não quadra a conseqüência. Posto que, à data de propositura da ação, a Emenda Constitucional nº 45/2004 não houvesse sido deveras publicada, foi-o pouco tempo depois, o que
torna agora cognoscíveis os pedidos. A publicação superveniente da Emenda remediou a
carência original da ação. A rigor, o vício processual imputado pela Advocacia-Geral ligavase a suposta falta de interesse de agir, e não, a impossibilidade jurídica dos pedidos. É que
não se estava diante de inviabilidade teórica absoluta dos pedidos, nem doutra espécie de
improcedência prima facie, que são as explicações últimas da falta de possibilidade jurídica
como uma das causas da chamada carência da ação. Tratar-se-ia, quando muito, de caso de
desnecessidade da tutela jurisdicional, já que os textos impugnados ainda não tinham obtido existência jurídica. Mas, com a publicação subseqüente da Emenda, despontou pleno
e nítido o interesse processual. Tem razão, ainda, o Advogado-Geral, quando afirma não
serem, as regras processuais, meras formalidades, mas, sim, garantias do Estado democrático
de direito (fls. 166). Equivoca-se, no entanto, ao tirar daí necessidade de extinção anômala
do processo. Repugnaria ao sistema processual o decreto de carência. A falta de interesse
de agir é posta como causa de trancamento do processo, porque a solução evita dispêndio
inútil de tempo e energias na condução de uma causa insuscetível de produzir resultado
prático ao autor. Não é este o caso, entretanto, pois a publicação da Emenda extirpou qualquer dúvida sobre a necessidade e a adequação dos pedidos. Fosse agora extinto o processo,
a AMB retornaria de imediato a este juízo, com demanda idêntica, e ter-se-iam, então,
perdido tempo e esforços, em dano da parte e do ofício jurisdicional, em contraste aberto
com os propósitos que norteiam a construção dogmática das condições da ação. A respeito,
merece lembrada a advertência de LIEBMAN: “as formas são necessárias, mas o formalismo
é uma deformação”.239
E é bom não esquecer que as condições da ação devem coexistir ao tempo da decisão
da causa.240
Rejeito a preliminar.
2. O tema nuclear da causa, a criação do Conselho Nacional de Justiça, órgão supostamente destinado a controle externo do Poder Judiciário, foi e continua sendo objeto
de amplos debates nas mais diversas instâncias da sociedade brasileira.241 Dada a natureza
mesma do assunto, em cujas entranhas situam-se matrizes fundamentais da nossa ordem
jurídico-constitucional, que, com graves reflexos nas ações cotidianas, vão desde a divisão
e o equilíbrio entre os Poderes até a estrutura e a independência do Poder Judiciário, não
1 Manual de direito processual civil. Trad. Cândido Rangel
Dinamarco. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, v. 1, p. 258.
239
Cf., por todos, DINAMARCO,
CÃNDIDO RANGEL. Instituições de direito processual civil.
São Paulo: Malheiros, 2001, v.
3, p. 143.
240
Veja-se SADEK, MARIA
TEREZA. Controle externo do
poder judiciário. In: Reforma
do judiciário. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001,
passim.
241
FGV DIREITO RIO
142
atividades e atos administrativos
admira haja despertado e ainda desperte discussões fervorosas no ambiente político, no
domínio acadêmico e, sobretudo, no seio da magistratura, da advocacia e, até, do Ministério Público. Eu próprio jamais escondi oposição viva, menos à necessidade da ressurreição
ou criação de um órgão incumbido do controle nacional da magistratura, do que ao perfil
que se projetava ao Conselho e às prioridades de uma reforma que, a meu sentir, andava ao
largo das duas mais candentes frustrações do sistema, a marginalização histórica das classes
desfavorecidas no acesso à Jurisdição e a morosidade atávica dos processos. Não renuncio às
minhas reservas cívicas, nem me retrato das críticas pré-jurídicas à extensão e à heterogeneidade da composição do Conselho. Mas isso não podia impedir-me, como meus sentimentos
e predileções pessoais não me impediram nunca, em quatro lustros de ofício jurisdicional,
de, atento à velha observação de CARDOZO, ter “aberto os ouvidos sacerdotais ao apelo de
outras vozes”, ciente de que “as palavras mágicas e as encantações são tão fatais à nossa ciência
quanto a quaisquer outras”.242 Julgo a causa perante a Constituição da República.
3. O argumento radical da autora vem da regra da separação, com os corolários da
independência e harmonia entre os três Poderes da República (art. 2° da Constituição Federal). Segundo a AMB, a instituição de órgão funcionalmente voltado ao “controle da
atuação administrativa e financeira” do Judiciário e do “cumprimento dos deveres funcionais”
dos magistrados, mas composto por membros na origem alheios ao mesmo Poder – dois dos
quais indicados pelo Legislativo –, violaria a dita cláusula pétrea da separação dos Poderes,
em cujo ventre reside a garantia da independência do Judiciário. Essa postura da autora
já desvela toda a preocupação – muito legítima, diga-se – de que o advento do Conselho
Nacional de Justiça traduza sério risco à independência do Poder Judiciário, no exercício
de sua função típica, a jurisdicional. É que, apenas para adiantar o que me parece o ponto
nevrálgico da causa, ninguém tem dúvida de que não pode a independência do Judiciário,
seja a externa, assim considerada a da instituição perante os demais Poderes e órgãos de pressão, seja a interna, a dos magistrados entre si, estar sob nenhum risco próximo nem remoto,
porque, em resguardo da ordem jurídica e, ao cabo, da liberdade do povo, tal predicado
constitui a fonte, o substrato e o suporte de todas as condições indispensáveis a que a atividade judicante seja exercida com a imparcialidade do tertius, sem a qual já se não concebe a
jurisdição em nenhum Estado civilizado e, muito menos, no Estado democrático de direito.
Retomarei logo mais o tema, bastando-me por ora reavivar esta inconcussa verdade políticojurídica: é na exata medida em que aparece como nítida e absolutamente necessária a garantir a imparcialidade jurisdicional, que a independência do Judiciário e da magistratura
guarda singular relevo no quadro da separação dos Poderes e, nesses limites, é posta a salvo
pela Constituição da República. De modo que todo ato, ainda quando de cunho normativo
de qualquer escalão, que tenda a romper o equilíbrio constitucional em que se apóia esse
atributo elementar da função típica do Poder Judiciário, tem de ser prontamente repelido
pelo Supremo Tribunal Federal, como guardião de sua inteireza e efetividade. A independência suporta, na sua feição constitucional, teores diversos de autonomia administrativa,
financeira e disciplinar. Na verdade, ela só pode considerada invulnerável, como predicado
essencial do sistema da separação, quando concreta redução de seu âmbito primitivo importe, em dano do equilíbrio e estabilidade entre os Poderes, transferência de prerrogativas
a outro deles, ainda que não chegue a caracterizar submissão política. Ou, no que concerne
ao Judiciário, quando outra forma de supressão de atribuições degrade ou estreite a imparcialidade jurisdicional. Fora dessas hipóteses, nada obsta a que o constituinte reformador
CARDOZO, BENJAMIN
N.. A Natureza do processo e a
evolução do Direito. Trad. Lêda
Boechat Rodrigues. São Paulo:
Nacional de Direito, 1956, p.
144.
242
FGV DIREITO RIO
143
atividades e atos administrativos
lhe redesenhe a configuração histórica, mediante reorganização orgânica e redistribuição de
competências no âmbito da estrutura interna do Judiciário, sem perda nem deterioração das
condições materiais de isenção e imparcialidade dos juízes.
4. À luz permanente dessa idéia, analiso a alegação de que a criação do Conselho Nacional de Justiça, com a estrutura e as competências outorgadas pela Emenda nº 45/2004,
atentaria, mais que contra a norma do art. 2º da Carta, contra o autêntico sistema constitucional da separação dos Poderes. Nisso convém remontar, embora brevemente, às raízes
históricas e à evolução da doutrina política que o inspira e explica.243
Apesar de ter adquirido consagração com a obra clássica de MONTESQUIEU, a
teoria da separação dos poderes tem antecedentes antigos. Já ARISTÓTELES, na Política,
defendia a idéia de que a concentração do poder político nas mãos de um só homem, “sujeito a todas as possíveis desordens e afeições da mente humana”, era inconveniente,244 e, com tal
aviso, distinguia as funções do Estado em deliberante, executiva e judiciária.245
Foi na Era Moderna, entretanto, que a divisão do exercício do poder principiou a tomar corpo, sobretudo no sulco da evolução política por que passou a Inglaterra até a edição
do Bill of Rights, em 1689. Baseado na realidade inglesa do tempo, LOCKE formulou a
primeira construção sistemática de uma teoria da separação de poderes, dividindo-os em
Legislativo, Executivo e Federativo.246
Ao primeiro competiria elaborar as leis que disciplinariam o uso da força na comunidade civil; ao segundo, aplicar as leis aos membros da comunidade; e ao terceiro, o desempenho da função de relacionamento com outros Estados. Não aparece, na obra do autor, o
Poder Judiciário como corpo independente dos demais.247
Apesar de reputar diversas em si as funções representadas de cada um desses poderes,
LOCKE entendia que o Executivo e o Federativo deveriam ser exercidos pela mesma pessoa. E subordinava-os ambos ao poder Legislativo, considerado supremo, sujeito apenas
ao poder do próprio povo. Essencial, para ele, seria a separação entre os componentes do
Legislativo e do Executivo:
CELSO FERNANDES CAMPILONGO afirma cuidar-se de
um dos conceitos mais complexos da teoria constitucional
(Política, sistema jurídico e
decisão judicial. São Paulo: Max
Limonad, 2002, p. 30).
243
“(...) como pode ser muito grande para a fragilidade humana a tentação de ascender ao
poder, não convém que as mesmas pessoas que detêm o poder de legislar tenham também em
suas mãos o poder de executar as leis, pois elas poderiam se (sic) isentar da obediência às leis
que fizeram, e adequar a lei a sua vontade (...)”.248
Livro III, Capítulo XI. In:
Aristóteles. São Paulo: Nova
Cultural, 1999, p. 230-234.
244
Conquanto ainda estivessem algo distantes da fórmula clássica da tripartição dos poderes, cunhada depois por MONTESQUIEU, essas teorizações já continham in nuce a idéia
da necessária divisão funcional do poder político, porque não ficasse depositado em mãos
únicas. Partiam da percepção empírica, mas sábia, de que o poder tende a desvios - a qual
foi mais tarde sintetizada na máxima de LORD ACTON (“todo poder corrompe”) -, e tinham
em vista ideal político muito claro: evitar, em nome da preservação da liberdade, os excessos,
abusos e inconvenientes do poder ilimitado; a arbitrariedade estatal, enfim. Foi o que norteou
MONTESQUIEU. Ao propor a divisão das funções do Estado em legislativa, administrativa
e jurisdicional, assim justificou a atribuição de cada uma a órgãos diferentes:
“La liberté politique, dans un citoyen, est cette tranquillite d’esprit qui provient de l’
opinion que chacun a de sa sùreté; et, pour qu’on ait cette liberté, il faut que le gouvernement
LOEWENSTEIN, KARL.
Teoría de la constitución. Trad.
Alfredo Gallego Anabitarte.
Barcelona: Editorial Ariel,
1976, p. 57.
245
Segundo tratado sobre o governo civil, XII, XIII e XIV. In Segundo tratado sobre o governo
civil e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 170-186.
246
GOUGH, J. W.. Introdução
ao Segundo tratado sobre o
governo civil e outros escritos.
cit., p. 30.
247
248
Ob. cit., p. 170.
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144
atividades e atos administrativos
soit tel qu’un citoyen ne puisse pas craindre un autre citoyen. Lorsque dans la même personne
ou dans le même corps de magistrature la puissance législative est réunie à la puissance exécutrice, il n’y a point de liberté, parce qu’on peut craindre que le même monarque ou le même
sénat ne fasse des lois tyranniques pour les exécuter tyranniquement. Il n’y a point encore de
liberté si la puissance de juger n’est pas séparée de la puissance législative et de l’exécutrice. Si
elle étoit jointe à la puissance législative, le pouvoir sur la vie et la liberté des citoyens seroit
arbitraire; car le juge seroit législateur. Si elle étoit jointe à la puissance exécutrice, le juge
pourroit avoir la force d’un oppresseur. Tout seroit perdu si le même homme, ou le même
corps des principaux, ou des nobles, ou du peuple, exerçoient ces trois pouvoirs: celui de faire
des lois, celui d’exécuter les résolutions publiques, et celui de juger les crimes ou les différends
des particuliers”.249
(“A liberdade política em um cidadão é aquela tranqüilidade de espírito que provém da
convicção que cada um tem da sua segurança. Para ter-se essa liberdade, precisa que o Governo
seja tal que cada cidadão não possa temer outro. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo
de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode
temer-se que o mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e
do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos
seria arbitrário: pois o Juiz seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a
força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais (sic) ou de nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar
as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares”).250
Dessa velha lição vê-se que, ao arquitetar sua clássica teoria, MONTESQUIEU era
movido de um só ânimo: repartir o exercício do poder entre pessoas distintas, a fim de impedir que sua concentração comprometesse a liberdade dos cidadãos. Contra os intuitivos
abusos a que leva o poder incondicionado, sustentou a fórmula da tripartição das funções
públicas, como mecanismo de limitação do poder e, conseqüentemente, garantia da liberdade individual. Nas palavras de LOEWENSTEIN: “la libertad es el telos ideológico de la
teoría de la separación de poderes”.251
A síntese de MONTESQUIEU é mais bem compreendida quando vista como proposição elementar, que era, de uma teoria política, antes que de teoria propriamente jurídica.
O autor tinha os olhos postos na realidade política francesa, dentro da qual era ardoroso
defensor do liberalismo na luta contra o absolutismo monárquico do Ancien Régime252, segundo a moldura do conflito clássico entre liberdade e autoridade. Seu propósito original
estava, assim, em combater o poder absoluto, menos que em preconizar uma técnica de
organização racional das funções públicas. A idéia da tripartição dos poderes foi, portanto,
o método lucubrado para a consecução de um fim maior: limitar o poder político. Com a
aparentemente exclusiva exceção de PASSERIN D’ ENTRÈVES,253 é o que sempre professaram os estudiosos. Como afirma OTTO BACHOF: “el sentido de la división de poderes es
impedir la concentración de poder y, con ello, un posible abuso del mismo”.254
No mesmo sentido, ouça-se CARRÉ DE MALBERG:
“Et d’ailleurs, toute la démonstration de Montesquieu tourne autour de cette idée principale: assurer la liberte des citoyens, em leus fournissant par la séparation des pouvoirs la
De l’esprit des lois. Paris: Garnier Freres, s. d., p. 143.
249
O espírito das leis. Trad. Pedro
Vieira Mota, 5ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1998, p. 167-168.
250
Teoría de la constitución, cit.,
p. 55.
251
252
RIBEIRO, HÉLCIO. Justiça
e democracia – judicialização
da política e controle externo
da magistratura. Porto Alegre:
Síntese, 2001, p. 65.
The notion of the state – an
introduction to political theory.
Oxford: Oxford University,
1967, p. 121.
253
254
Jueces y constitución. Trad.
Rodrigo Bercovitz RodríguezCano. Madrid: Civitas, 1985,
p. 58.
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145
atividades e atos administrativos
garantie que chacun de ceux-ci sera exercé légalement. (...) Seule, en effet, la séparation des
pouvoirs peut fournir aux gouvernés une garantie sérieuse et une protection efficace”.255
(“Aliás, toda a argumentação de Montesquieu gira em torno desta idéia principal: assegurar a liberdade dos cidadãos, dispensando-lhes, por meio da separação dos poderes, a
garantia de que cada um deles será exercido legalmente.
(...) Portanto, somente a separação dos poderes pode dar aos governados uma garantia
séria e uma proteção eficaz”).
Também, a HANS KELSEN:
“A significação histórica do princípio chamado ‘separação de poderes’ encontra-se precisamente no fato de que ele opera antes contra uma concentração que a favor de uma separação de poderes”.256
Mais enfáticos são ZAFFARONI e TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR.
O primeiro acentua:
(...) as palavras de Montesquieu são muito mais claras se forem consideradas como
provindas de um sociólogo e não como texto dogmático, porque parte ele do reconhecimento
de um fenômeno humano que não pode ser esquecido na medida em que se conserve um
mínimo de contacto com a realidade: todo poder induz ao abuso.
(...) Entendendo Montesquieu sociológica e politicamente – e não jurídica ou formalmente – não resta dúvida de que ele quer significar que o poder deve estar distribuído entre
órgãos ou corpos, com capacidade de regerem-se de forma autônoma com relação a outros
órgãos ou corpos, de modo que se elida a tendência ‘natural’ ao abuso”.257
Remata o segundo: “Montesquieu, na verdade, via na divisão dos poderes muito mais
um preceito de arte política do que um princípio jurídico. Ou seja, não se tratava de um
princípio para a organização do sistema estatal e de distribuição de competências, mas um
meio de se evitar o despotismo real.
(...) Nesse sentido, o princípio não era de separação de poderes, mas de inibição de um
pelo outro de forma recíproca”.258
A matriz histórica da separação dos Poderes há de ser, pois, reconduzida, no contexto da causa, ao alcance de instrumento político que lhe emprestava o autor que a consagrou como teoria: conter o poder, para garantir a liberdade. E esta a razão por que, em
coerência com seus pressupostos teóricos e objetivos práticos, MONTESQUIEU jamais
defendeu a idéia de uma separação absoluta e rígida entre os órgãos incumbidos de cada
uma das funções estatais. Antes, chegou a fazer referência a mecanismos de relacionamento mútuo entre os poderes, a fim, precisamente, de lhes prevenir abusos no exercício.
Contra a natural tendência de expansão do poder, era mister a criação de instrumentos
que garantissem a subsistência do esquema tripartite de funções, impedindo que os representantes de uma delas se sobrepusessem aos demais. Doutro modo, o poder incontido
sacrificaria a liberdade. E exemplo significativo de relações dessa espécie, colhido à obra
Contribution a la théorie
générale de l’état. Paris: Sirey,
1922, t. II, p. 7.
255
Teoria geral do direito e do
estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes/Universidade de Brasília,
1990, p. 274.
256
Poder judiciário – crises,
acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1995, p. 81-83.
257
O judiciário frente à divisão
dos poderes: um princípio em
decadência? In: Revista trimestral de direito
258
FGV DIREITO RIO
146
atividades e atos administrativos
do grande pensador francês, é a intervenção do Executivo no processo legislativo mediante o veto.259
Discorrendo sobre o pensamento de MONTESQUIEU, CARRÉ DE MALBERG
realça-lhe essa idéia:
“La doctrine de Montesquieu se rattache donc essentiellement au système de l’‘État
de droit’. Cependant, par la force des choses, cette doctrine, bien que visant principalement
à sauvegarder la liberté civile, implique aussi certaines dispositions à prendre, em vue d’
assurer la liberté des autorités publiques elles-mêmes, dans leurs rapports les unes avec les
autres, en tant qu’il s’agit, pour chacune d’elles, de l’exercice du pouvoir qui lui est spécialement attribué. C’est là un nouvel aspect, fort important, du sujet. En effet, la division des
compétences et la spécialisation des fonctions ne saurient, à elles seules, suffire à réaliser la
limtation des pouvoirs: pour que cette limitation se trouve assurée, il faut, en outre, qu’aucun
des trois ordres de titulaires des pouvoirs ne possède ou ne puisse acquérir de supériorité, qui
lui permettrait de dominer les deux autres et qui, par lá même, pourrait peu à peu dégénérer
en omnipotence. Et pour cela, il est indispensable que les titulaires des trois pouvoirs soient,
non seulement investis de compétences distinctes et séparées, mais encore rendus, par leur
constitution organique, indépendants et comme égaux les uns vis-à-vis des autres. Ce n’est
qu’à cette condition qu’ils pourront effectivement se limiter et s’arrêter entre eux”.260
“A doutrina de Montesquieu liga-se, portanto, essencialmente ao sistema do ‘Estado
de direito’. Entretanto, pela força das coisas, essa doutrina, embora vise principalmente a
salvaguardar a liberdade civil, implica também certas disposições por tomar, no intuito de
assegurar a liberdade das autoridades públicas elas mesmas, nas relações umas com as outras,
quanto se trate, para cada qual, do exercício do poder que lhe é especialmente atribuído.
Aí está novo aspecto, extremamente importante, do tema. A divisão das competências e a
especialização das funções não seriam deveras, sozinhas, suficientes para realizar a limitação
dos poderes: para que tal limitação seja garantida, é preciso, além disso, que nenhuma das
três ordens de titulares dos poderes possua ou possa adquirir superioridade que lhe permita
dominar os outros dois e que, conseqüentemente, poderia pouco a pouco degenerar em onipotência. E, para isso, é indispensável que os titulares dos três poderes sejam, não somente
investidos de competências distintas e separadas, mas também feitos, por sua constituição
orgânica, independentes e iguais uns frente aos outros. É somente nessa condição que eles
poderão efetivamente limitar-se e deter-se entre si”). Recuperada a ratio que orientou MONTESQUIEU, qual seja, garantir a liberdade civil por meio da contenção do poder político,
não admira nem surpreende não tenha ele proposto separação absoluta entre as funções
públicas, até porque relações recíprocas entre os Poderes são, do ponto de vista funcional, imprescindíveis à economia do próprio sistema, pois também tendem a prevenir que as necessidades concretas de seu exercício sirvam de pretexto a que um se avantaje aos outros. Observa
ZAFFARONI: “Não há em Montesquieu qualquer expressão que exclua a possibilidade dos
controles recíprocos, nem que afirme uma absurda compartimentalização que acabe em algo
parecido com ‘três governos’ e, menos ainda, que não reconheça que no exercício de suas
funções próprias esses órgãos não devam assumir funções de outra natureza.”261
Nada disto é novidade. Mas há, aqui, toda a pertinência em relembrá-lo, porque tal
pensamento, não apenas seduziu, mas guiou, na talvez mais bem sucedida simplificação
orgânico-funcional e aplicação histórica da teoria, seus mais agudos comentadores e res-
Cf. FERREIRA FILHO, MANOEL GONÇALVES. Curso de
direito constitucional. 24ª ed.
São Paulo: Saraiva, 1997, p.
133.
259
260
Ob. cit., p. 8.
261
Ob. cit., p. 82-83.
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147
atividades e atos administrativos
ponsáveis pela difusão do sistema nas modernas constituições ocidentais: ALEXANDER
HAMILTON, JAMES MADISON e JOHN JAY. Vale a pena rever como se pronunciaram
os “Founders”, nos panfletários artigos federalistas: “Portanto, visto que estes fatos foram o
norte de Montesquieu para estabelecer o princípio de que se trata, podemos concluir que,
quando ele estabeleceu ‘que não há liberdade todas as vezes que a mesma pessoa ou a mesma
corporação legisla e executa ao mesmo tempo, ou por outras palavras, quando o poder de
julgar não está bem distinto e separado do Legislativo e Executivo’, não quis proscrever toda a
ação parcial, ou toda a influência dos diferentes poderes uns sobre os outros; o que quis dizer,
segundo se colige das suas expressões, e ainda melhor dos exemplos que lhe serviram de regra,
foi que, quando dois poderes, em toda a sua plenitude, se acham concentrados numa só mão,
todos os princípios de um governo livre ficam subvertidos”.262 E, mais adiante, concluem:
“Fica provado no capítulo antecedente que o axioma político que se examina não exige a
separação absoluta dos três poderes; demonstrar-se-á agora que sem uma tal ligação que dê a
cada um deles o direito constitucional de fiscalizar os outros, o grau de separação, essencial
à existência de um governo livre, não pode na prática ser eficazmente mantido”.263 Esse conjunto de idéias foi o substrato teórico que governou os federalistas na engenharia do esquema
de contenções e compensações que, figuradas nos “checks an balances”, concretizaram a mais
curial resposta política à necessidade da existência de expedientes de controle mútuo entre os
poderes, para que nenhum transpusesse seus limites institucionais. Sem descurar o dogma da
separação entre as funções, que as quer independentes e bem definidas, sublinharam toda a
importância dos instrumentos de fiscalização recíproca, como peças essenciais na engrenagem
da divisão e do equilíbrio entre elas, a serviço da resistência à intrusão e à tirania. A respeito
dessa configuração prática, notava COOLEY, ainda no século XIX: “This arrangement gives
each department a certain independence, which operates as a restraint upon such action of
the others as might encroach on the rights and liberties of the people, and makes it possible
to establish and enforce guaranties against attempts at tyranny. We thus have the checks and
balances of government, which are supposed to be essential to free institutions”.264
(“Esse arranjo confere a cada poder certa independência, que opera como um freio à
ação dos outros que possa interferir nos direitos e liberdades das pessoas, e torna possível o
estabelecimento e implementação de garantias contra tentativas de tirania. Temos, assim,
freios e contrapesos de governo, que se reputam essenciais a instituições livres”). Com tal
roupagem, a receita política de MONTESQUIEU, acolhida já na Declaração de Direitos
da Virgínia, em 1776, incorporou-se em boa parte das Constituições ocidentais, a principiar pela americana. E sua menção na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, contribuiu decisivamente para a transformar em dogma da teoria constitucional.265
Isso, é óbvio, não significa que se lhe tenham manifestado de modo homogêneo as
configurações históricas nos textos constitucionais, como se fossem adaptações mecânicas
de um modelo de contornos acabados. Ajustando-se às tradições culturais, à realidade política e ao próprio arcabouço institucional de cada país, o grau de autonomia dos poderes e os
mecanismos possíveis de controle recíproco variam muito em cada um dos sistemas jurídico-constitucionais que adotam o postulado político da separação, oscilando, especialmente,
entre os modelos integrados à tradição do constitucionalismo francês e do norte-americano.
E é natural que assim seja. Afinal, como diz OTTO BACHOF, “no existe ningún esquema
patenteado de división de poderes que pueda funcionar en todas las épocas y bajo los más diversos
supuestos sociales”.266
O federalista. Trad. Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 299-300.
Grifos nossos.
262
Ob.
�����������������������������
cit., p. 305. Grifos
�����������
nossos.
263
COOLEY,
THOMAS
M..General principles of constitutional law. 2ª ed. Boston: Little, Brown and Company, 1891,
p. 41 (reimpressão de 1998).
264
SILVA, JOSÉ AFONSO DA.
Curso de direito constitucional
positivo. 18ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2000, p. 113.
265
266
Ob. cit., p. 58.
FGV DIREITO RIO
148
atividades e atos administrativos
Mas a afirmação do princípio como ingrediente axiomático da definição e estrutura dos Estados democráticos, essa sobrevive às diferenças sociais e aos rumos da evolução
política, a despeito das variações que lhe determinam tais vicissitudes históricas. 4. Diante
dessas premissas, é preciso, então, apurar as feições particulares que tomou o princípio em
nossa Constituição Federal. Como pontua HESSE267, a identificação do conteúdo desse
postulado histórico não pode prescindir da análise da configuração e dos contornos que lhe
dá a ordem jurídica concreta de certo Estado. De modo que só o exame da sua concreta
disposição na ordem jurídica vigente permitirá aferir se a instituição do Conselho Nacional
de Justiça insulta, ou não, o sistema positivo da separação e independência dos Poderes. Já o
tinha advertido o Min. GILMAR MENDES, quando ainda ocupava o cargo de AdvogadoGeral da União: “(...) o contraste entre a norma questionada e o parâmetro constitucional
da divisão de poderes é uma operação de índole normativa e valorativa, que, por isso, deve
levar em conta não uma concepção abstrata do princípio de divisão de poderes, mas seu
conteúdo efetivo na ordem constitucional positiva” (apud ADI nº 135, voto do Rel. Min.
OCTÁVIO GALLOTTI, DJ de 15.08.97). Ninguém
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tampouco tem dúvidas acerca da superior importância atribuída pela Constituição Federal às normas da separação dos Poderes,
em conformidade, aliás, com nossa tradição republicana. Já no art. 2º, estatui: “são Poderes
da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. E logo
o sublima a cláusula irremovível, vedando, no art. 60, § 4º, inc. III, seja “objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) III – a separação dos Poderes”. Donde se tem
logo por indiscutível que o princípio da separação e independência dos Poderes integra a
ordem constitucional positiva, em plano sobranceiro. E, nessa perspectiva, cada um deles
tem sua organização regulada em capítulo distinto no Título IV: arts. 44 a 75 (Legislativo),
arts. 76 a 91 (Executivo) e arts. 92 a 135 (Judiciário). Ora, é o confronto analítico dos
preceitos relativos à organização e ao funcionamento de cada uma dessas funções públicas
que permite extrair o conteúdo e a extensão de que se reveste a teoria da separação em nosso
sistema jurídico-constitucional. Noutras palavras, é seu tratamento normativo, através de
todo o corpo constitucional, que nos dá o sentido e os limites dos predicados da independência e da harmonia, previstos no art. 2º. E o que se lhe vê é que o constituinte desenhou
a estrutura institucional dos Poderes de modo a garantir-lhes a independência no exercício
das funções típicas, mediante previsão de alto grau de autonomia orgânica, administrativa e financeira. Mas tempera-o com a prescrição doutras atribuições, muitas das quais de
controle recíproco, e cujo conjunto forma, com as regras primárias, verdadeiro sistema de
integração e cooperação, preordenado a assegurar equilíbrio dinâmico entre os órgãos, em
benefício do escopo último, que é a garantia da liberdade. Esse quadro normativo constitui
expressão natural do princípio na arquitetura política dos freios e contrapesos. À Constituição repugna-lhe toda exegese que reduza a independência dos Poderes a termos absolutos,
os quais, aliás de todo estranhos aos teóricos de sua fórmula, seriam contraditórios com a
idéia que a concebeu como instrumento político-liberal. Confirma-o rápido percurso pelo
texto constitucional. Não são poucos os institutos cuja disciplina revela ostensiva existência
de mecanismos predispostos ao controle mútuo entre os Poderes e, até, ao desempenho anômalo, por um deles, de função típica de outro. Basta mencionar o veto (art. 66, § 1º, e 84,
inc. V), o impeachment (arts. 52, 85 e 86), o controle de constitucionalidade das leis (arts.
102, I, letra a, e 103), as medidas provisórias (art. 62), as leis delegadas (art. 68), o poder
conferido ao Legislativo de sustar atos normativos do Executivo (art. 49, inc. V), bem como
de lhe fiscalizar e controlar os atos (inc. X), o controle das contas públicas pelo Congresso
HESSE, KONRAD. Elementos de direito constitucional
da Republica Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck.
Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 1998, 9.368.
267
FGV DIREITO RIO
149
atividades e atos administrativos
Nacional e pelo Tribunal de Contas (arts. 70, 71, cc. 49, inc. IX), o Conselho da República
(art. 89), o poder do Presidente da República de conceder indulto e comutar penas (art. 84,
inc. XII), etc. Não menos significativa é a previsão do procedimento de elaboração conjunta
do orçamento de cada Poder, por meio da lei de diretrizes orçamentárias e da própria lei orçamentária (arts. 48, inc. II, 99, 165 a 168). No que concerne à vida orgânica do Judiciário,
merece atenção especial a competência do Executivo para nomear parte dos membros do
Poder, como se dá com integrantes da Justiça Eleitoral (arts. 119, inc. II, e 120, inc. III), dos
Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais estaduais e do Distrito Federal, por via do chamado quinto constitucional (art. 94), e dos próprios Ministros desta Casa, cuja investidura
depende ainda de aprovação do Senado (art. 101, § único). Todos esses exemplos provam,
ad rem, que a incorporação privilegiada do princípio da separação na ordem constitucional
não significa de modo algum que a distribuição primária das funções típicas e a independência formal dos Poderes excluam regras doutro teor, que, suposto excepcionais na aparência, tendem, no fundo, a reafirmar a natureza unitária das funções estatais, a cuja repartição
orgânica é imanente a vocação conjunta de instrumentos da liberdade e da cidadania. Tal
arrumação normativa está longe de fraturar ou empobrecer o núcleo político e jurídico do
sistema, que só estará mortalmente ferido lá onde se caracterizar, à luz de sua inspiração
primordial, usurpação de funções típicas ou aniquilamento prático da autonomia de cada
Poder. É essa, de certo modo, a opinião comum dos constitucionalistas pátrios.268
E, ao propósito, nossa experiência constitucional em nada destoa do que se verifica
alhures. Reconhece, em caráter geral, WILLIAM PRILLAMAN que: “(...) no branch or
agent of government in a separation of powers system is completely ‘independent’ from the
other branches. Courts rely on other branches of government for their budgets and enforcement of their rulings; the judicial nomination process often depends on executive nomination and legislative approval; and appointees may be subject to legislative impeachment.
Thus, no judiciary is completely removed from the affairs of the more political departments
of government”.269
“[(...) nenhum ramo ou agente de governo, em um sistema de separação de poderes, é
completamente ‘independente’ dos outros. As cortes dependem de outros setores do governo tanto para aprovação de seus orçamentos, como para o cumprimento de suas decisões;
o processo de nomeação judicial freqüentemente depende de nomeação do Executivo e
aprovação do Legislativo; e os indicados podem ainda ser submetidos ao impeachment legislativo. Assim, nenhum Judiciário está completamente afastado dos assuntos dos ramos
mais políticos do governo”]. Sob o prisma constitucional brasileiro do sistema da separação
dos Poderes, não se vê a priori como possa ofendê-lo a criação do Conselho Nacional de
Justiça. À luz da estrutura que lhe deu a Emenda Constitucional nº 45/2004, trata-se de
órgão próprio do Poder Judiciário (art. 92, I-A), composto, na maioria, por membros desse
mesmo Poder (art. 103-B), nomeados sem interferência direta dos outros Poderes, dos quais
o Legislativo apenas indica, fora de seus quadros e, pois, sem laivos de representação orgânica, dois dos quinze membros. Brandida como argumento exemplar e capital da pretensa
inconstitucionalidade do Conselho, tal indicação em si, em que qualquer crítico desapaixonado enxergaria, quando muito, mera representação simbólica da instância legislativa, não
pode equiparar-se a nenhuma forma de intromissão incompatível com a idéia política e o
perfil constitucional da separação e independência dos Poderes. O preceito que a estabelece
não inova coisa alguma na ordem constitucional, em cujo contexto guarda, com ruidosa
SILVA, JOSÉ AFONSO DA.
Ob. cit., p. 113-115. FERREIRA
FILHO, MANOEL GONÇALVES. Ob. cit., p. 133. BASTOS,
CELSO RIBEIRO. Curso de direito constitucional. 22ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2001, p. 166.
268
The judiciary and democratic decay in Latin America:
declining confidence in the
rule of law. Westport: Praeger,
2000, p. 16.
269
FGV DIREITO RIO
150
atividades e atos administrativos
clareza, menor extensão lógica e índice muito mais modesto de participação doutro Poder
no processo de escolha de membros do Poder Judiciário, do que, por exemplo, o velhíssimo
modelo do art. 101, § único, da Constituição da República, o qual defere ao Chefe do Executivo competência exclusiva para nomear todos os integrantes desta Casa! Têm, nesse claro sentido, sabor apenas didático, as observações de ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO
CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO,
de que “ (...) prevalece entre nós, quanto ao Supremo Tribunal Federal e aos tribunais superiores federais, o sistema de nomeação dos magistrados pelo Executivo, com aprovação do
Senado Federal. É por isso que a independência do Judiciário, absoluta quanto ao exercício
de suas funções, não o é no que respeita à constituição dos tribunais.”270
Seria, deveras, fraqueza de espírito insistir na demonstração do absurdo lógico-jurídico que estaria em dar, sob pretexto de usurpação de poderes, pela inconstitucionalidade
da criação do Conselho, sem antes reconhecê-la, com maiores e mais conspícuas razões,
ao processo de nomeação de todos os ministros do Supremo Tribunal Federal. A fortiori,
esta conclusão óbvia, não apenas decepa a objeção de inconstitucionalidade específica a
título de injúria ao sistema da separação e independência dos Poderes, mas, sobretudo, é
prova suficiente de que a não há nenhuma, ainda quando genérica, por conta dessa mesma
causa material, nas regras de composição, escolha e nomeação dos membros do Conselho.
Donde vem, logo, o erro de o tomar por órgão de controle externo. Talvez ocorra a alguém
que, na prática, essa composição híbrida poderia comprometer a independência interna e
externa do Judiciário. A objeção não é forte, porque os naturais desvios que, imputáveis à
falibilidade humana, já alimentavam, durante os trabalhos preparatórios da Constituição
americana, o ceticismo calvinista em relação aos riscos de facciosidade do parlamento, são
inerentes a todas as instituições, por acabadas e perfeitas que se considerem. Mas, se escusa
reforço à resposta, é sobremodo importante notar que o Conselho não julga causa alguma,
nem dispõe de nenhuma atribuição, de nenhuma competência, cujo exercício fosse capaz
de interferir no desempenho da função típica do Judiciário, a jurisdicional. Pesa-lhe, antes,
abrangente dever constitucional de “zelar pela autonomia” do Poder (art. 103-B, § 4º, inc.
I). E não seria lógico nem sensato levantar suspeitas de que, sem atribuição jurisdicional,
possa comprometer independência que jamais se negou a órgãos jurisdicionais integrados
por juízes cuja nomeação compete ao Poder Executivo, com ou sem colaboração do Legislativo. Será caso, no entanto, de indagar se tal risco não adviria da própria natureza das
competências destinadas ao Conselho, enquanto órgão nacional de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos
magistrados. Aqui, a dúvida é de menor tomo. Com auxílio dos tribunais de contas, o Legislativo sempre deteve o poder superior de fiscalização dos órgãos jurisdicionais quanto às
atividades de ordem orçamentária, financeira e contábil (arts. 70 e 71 da Constituição da
República), sem que esse, sim, autêntico controle externo do Judiciário fosse tido, alguma
feita e com seriedade, por incompatível com o sistema da separação e independência dos
Poderes, senão como peça da mecânica dos freios e contrapesos. E esse quadro propõe ainda um dilema: ou o poder de controle intermediário da atuação administrativa e financeira
do Judiciário, atribuído ao Conselho Nacional de Justiça, não afronta a independência do
Poder, ou será forçoso admitir que o Judiciário nunca foi, entre nós, Poder independente!
Igual coisa pode dizer-se de imediato sobre a competência de controle do cumprimento
dos deveres funcionais dos juízes. Ou a atribuição em si, a este ou àquele órgão, não trinca
nem devora a independência do Poder, ou se há de confessar que este nunca tenha sido
Teoria geral do processo.
21ª ed. São Paulo: Malheiros,
p. 172.
270
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151
atividades e atos administrativos
verdadeiramente autônomo ou independente. A outorga dessa particular competência ao
Conselho não instaura, como novíssima das novidades, o regime censório interno, a que,
sob a ação das corregedorias, sempre estiveram sujeitos, em especial, os magistrados dos
graus inferiores, senão que, suprindo uma das mais notórias deficiências orgânicas do Poder, capacita a entidade a exercer essa mesma competência disciplinar, agora no plano
nacional, sobre todos os juízes hierarquicamente situados abaixo desta Suprema Corte.271
Como se percebe sem grandes ginásticas de dialética, deu-se apenas dimensão nacional
a um poder funcional necessário a todos os ramos do governo, e cujo exercício atém-se,
como não podia deixar de ser, às prescrições constitucionais e às normas subalternas da Lei
Orgânica da Magistratura e do futuro Estatuto, emanadas todas do Poder Legislativo, segundo os princípios e as regras fundamentais da independência e harmonia dos Poderes.
5. E é o momento de recobrar a questão crucial da causa e que está em saber se, de
qualquer outro modo, direto ou indireto, em maior ou menor grau, a criação, a composição e as atribuições do Conselho põem em risco, mínimo que seja, o exercício das funções
jurisdicionais, enquanto razão mesma da existência do Poder Judiciário. É que, como o sabe
toda a gente, as exigências e as preocupações de tutela cabal da sua autonomia se radicam na
necessidade de preservação das garantias indispensáveis ao desempenho imparcial daquelas
funções. No dizer de MAURO CAPPELLETTI: “a independência dos juízes frente ao executivo, longe de representar um valor fim em si mesmo, não é ela própria senão um valor
instrumental. É difícil não compartilhar da opinião de Giovani Pugliese – que é, aliás, também a da nossa Corte Constitucional – quando afirma, exatamente, que a independência
não é senão o meio dirigido a salvaguardar outro valor – conexo certamente, mas diverso e
bem mais importante do que o primeiro – ou seja, a imparcialidade do juiz. O valor ‘final’
– a ‘essência’ ou a ‘natureza’, por assim dizer – da função judiciária é, portanto, que a decisão
seja tomada por um terceiro imparcial, tertius super partes, depois que as partes tenham tido
a possibilidade de apresentar e defender o seu caso (...).”272
É o que reconhece o ex-magistrado LUIS FLÁVIO GOMES, em referência à obra
de IBAÑEZ: “concebemos a independência judicial desse modo, ‘não como um fim em si
mesmo, senão como um meio, um conceito instrumental em relação à imparcialidade, a
serviço da idéia de que o juiz deve sempre atuar como terceiro na composição dos interesses
em conflito, com a lei como ponto de referência indiscutível”.273
Está nisto, no valor político supremo da imparcialidade dos juízes e tribunais, o critério decisivo da estima da compatibilidade do Conselho Nacional de Justiça com todas as
provisões constitucionais de um Judiciário independente. E, de tal ângulo, não vejo em que
este sofra com aquele. Como já referi, são duas, em suma, as ordens de atribuições conferidas ao Conselho pela Emenda Constitucional nº 45/2004: (a) o controle da atividade administrativa e financeira do Judiciário, e (b) o controle ético-disciplinar de seus membros. A
primeira não atinge o autogoverno do Judiciário. Da totalidade das competências privativas
dos tribunais, objeto do disposto no art. 96 da Constituição da República, nenhuma lhes
foi castrada a esses órgãos, que continuarão a exercê-las todas com plenitude e exclusividade,
elaborando os regimentos internos, elegendo os corpos diretivos, organizando as secretarias
e serviços auxiliares, concedendo licenças, férias e outros afastamentos a seus membros,
provendo os cargos de juiz de carreira, assim como os necessários à administração da justiça,
etc, sem terem perdido o poder de elaborar e encaminhar as respectivas propostas orçamentárias. O que tampouco deve esquecido é que também nesse campo se manifesta o caráter
Os ministros do Supremo,
órgão máximo do Judiciário
brasileiro e guardião último
da Constituição Federal, não
estão, nem poderiam estar,
como é óbvio, sujeitos ao poder disciplinar do Conselho,
cujos atos e decisões, sempre
de natureza administrativa, é
que são passíveis de controle
jurisdicional desta Corte (art.
102, inciso I, letra “r”, introduzido pela Emenda). O que
dispõe a Emenda, no art. 103B, § 4º, não os apanha, como
se percebe sem muito esforço.
SÉRGIO BERMUDES achou
necessário dissipar dúvidas a
respeito, as quais, aliás, nem
seriam razoáveis: “Excluem-se
da incidência desse § 4º apenas
os ministros do Supremo Tribunal Federal... A submissão dos
ministros do Supremo Tribunal
Federal ao Conselho Nacional
de Justiça perturbaria a ordem
constitucional, inclusive pela
possibilidade de repercutir, de
algum modo, nos julgamentos
do órgão supremo do Poder
Judiciário” (A reforma do poder
judiciário pela emenda constitucional nº 45. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 137). Sobre o
ponto, cf. ainda infra, nº 12.
271
Juízes irresponsáveis?.
Trad. Carlos Alberto Àlvaro de
Oliveira. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1989, p.32.
272
A dimensão da magistratura no estado constitucional
e democrático de direito. São
Paulo: Revista dos Tribunais,
1997, p. 42.
273
FGV DIREITO RIO
152
atividades e atos administrativos
não absoluto da independência constitucional do Poder. Afora as limitações concernentes
à elaboração dos orçamentos, a criação ou extinção dos tribunais, a alteração do número
de seus membros, a modificação da organização e da divisão judiciárias, bem como a criação de cargos e a remuneração dos serviços auxiliares e dos juízos vinculados ao Supremo
Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça também dependem da
aprovação do Poder Legislativo (art. 96, inc. II), o que demonstra, mais uma vez, que: “as
garantias do art. 96 da Constituição visam essencialmente a estabelecer a independência
do Poder Judiciário em relação aos demais Poderes. Mas se é absoluta essa independência
no que respeita ao desempenho de suas funções, não se pode dizer o mesmo no tocante à
organização do Poder Judiciário, a qual depende freqüentemente do Poder Executivo ou do
Legislativo, quando não de ambos”274.
De modo que, sem profanar os limites constitucionais da independência do Judiciário,
agiu dentro de sua competência reformadora o poder constituinte derivado, ao outorgar ao
Conselho Nacional de Justiça o proeminente papel de fiscal das atividades administrativa
e financeira daquele Poder. A bem da verdade, mais que encargo de controle, o Conselho
recebeu aí uma alta função política de aprimoramento do autogoverno do Judiciário, cujas
estruturas burocráticas dispersas inviabilizam o esboço de uma estratégia político-institucional de âmbito nacional. São antigos os anseios da sociedade pela instituição de um órgão superior, capaz de formular diagnósticos, tecer críticas construtivas e elaborar programas que,
nos limites de suas responsabilidades constitucionais, dêem respostas dinâmicas e eficazes
aos múltiplos problemas comuns em que se desdobra a crise do Poder. Como bem acentuou
JOSÉ EDUARDO FARIA: “(...) como o Judiciário tem diferentes braços especializados
organizados em diferentes instâncias, é natural que cada um deles e cada uma delas sinta-se
tentado a definir seu próprio programa de ação, o que, obviamente, torna de fundamental
importância a criação de um órgão representativo de todos esses braços e instâncias capazes
de atuar numa dimensão de política-domínio, responsabilizando-se pela uniformização dos
diferentes programas ‘parcialmente contraditórios’ e ‘parcialmente compatíveis’ sob a forma
de uma estratégia global da instituição”.275
Ao Conselho atribuiu-se esse reclamado papel de órgão formulador de uma indeclinável política judiciária nacional.
6. A segunda modalidade de atribuições do Conselho diz respeito ao controle “do
cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” (art. 103-B, § 4º). E tampouco parece-me
hostil à imparcialidade jurisdicional. Representa expressiva conquista do Estado democrático de direito, a consciência de que mecanismos de responsabilização dos juízes por inobservância das obrigações funcionais são também imprescindíveis à boa prestação jurisdicional.
Na síntese feliz de JUAN MONTERO AROCA,276 a responsabilidade judicial é a outra face
da moeda da independência, a sua contrapartida. E a necessidade, que o Programa de Desenvolvimento da ONU (PNUD) já enfatizou277, de se coordenarem ambas essas exigências,
põe-nos, como bem o percebeu o saudoso MAURO CAPPELLETTI, diante de “um problema de equilíbrio entre o valor de garantia e instrumental da independência, externa e interna,
dos juízes, e o outro valor moderno (mas também antigo, como se viu) do dever democrático de
prestar contas”.278 E uma enorme dificuldade para se atingir tão sutil equilíbrio é fenômeno
observado em toda a América Latina, como mostra WILLIAM PRILLAMAN.279
Entre nós, é coisa notória que os atuais instrumentos orgânicos de controle ético-disciplinar dos juízes, porque praticamente circunscritos às corregedorias, não são de todo eficientes,
ARAÚJO CINTRA, ANTÔNIO
CARLOS DE, GRINOVER, ADA
PELLEGRINI e DINAMARCO,
CÂNDIDO RANGEL. Ob. e loc.
cit..
274
O poder judiciário no Brasil:
paradoxos, desafios e alternativas. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 1995, p. 71.
275
Independencia y responsabilidad del juez. Madrid: Civitas,
1990, p. 91.
276
Judicial independence in
transitional country. United
Nations Development Programme. Oslo: Governance.
Centre, 2003, p. 27.
277
278
Ob. cit., p. 33.
279
Ob. cit., p. 19.
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atividades e atos administrativos
sobretudo nos graus superiores de jurisdição, como já o admitiram com louvável sinceridade
os próprios magistrados, em conhecido estudo de MARIA TEREZA SADEK.280
Realidade algo semelhante encontra-se nos demais países latino-americanos.281
Perante esse quadro de relativa inoperância dos órgãos internos a que se confinava
o controle dos deveres funcionais dos magistrados, não havia nem há por onde deixar de
curvar-se ao cautério de NICOLÓ TROCKER: “o privilégio da substancial irresponsabilidade do magistrado não pode constituir o preço que a coletividade é chamada a pagar, em troca da
independência dos seus juízes”.282
Nem ao aviso de LIMA LOPES: “o Poder Judiciário não pode ser independente, no
sentido de irresponsável, ou não prestar contas à sociedade, aos cidadãos, no que diz respeito à máquina judicial. Se quisermos livrar os juízes do controle dos cartórios, dos lobbies, das
pressões corporativas, é preciso colocá-los ombreados com a cidadania”.283 Tem-se, portanto, de reconhecer, como imperativo do regime republicano e da própria inteireza e serventia
da função, a necessidade de convívio permanente entre a independência jurisdicional e
instrumentos de responsabilização dos juízes que não sejam apenas formais, mas que cumpram, com efetividade, o elevado papel que se lhes predica. Para isso, é preciso, com reta
consciência e grandeza de espírito, desvestirem-se os juízes de preconceitos corporativos e
outras posturas irracionais, como a que vê na imunidade absoluta e no máximo isolamento
do Poder Judiciário condições sine qua non para a subsistência de sua imparcialidade. Como
pondera o jurista norte-americano OWEN FISS: “It is simply not true that the more insularity the better, for a judiciary that is insulated from the popularly controlled institutions
of government – the legislative and the executive branches – has the power to interfere with
the actions or decisions of those institutions, and thus has the power to frustrate the will
of the people. (…) We are thereby confronted with a dilemma. Independence is assumed
to be one of the cardinal virtues of the judiciary, but it must be acknowledged that too
much independence may be a bad thing. We want to insulate the judiciary from the more
popularly controlled institutions, but should recognize at the same time some elements of
political control should remain”.284
(“Simplesmente não é verdade que, quanto maior o isolamento, melhor, porque um
Judiciário que está isolado das instituições governamentais sujeitas a controle popular - o
Legislativo e o Executivo - tem o poder de interferir nas ações ou decisões dessas instituições e, assim, o poder de frustrar a vontade popular. (...) Estamos, portanto, diante de um
dilema. A independência é tida como uma das virtudes cardinais do Judiciário, mas deve-se
reconhecer que muita independência pode ser uma coisa negativa. Nós queremos isolar o
Judiciário das instituições sujeitas a maior controle popular, mas deveríamos admitir, ao
mesmo tempo, que alguns elementos de controle político deveriam remanescer”). Longe,
pois, de conspirar contra a independência judicial, a criação de um órgão com poderes de
controle nacional dos deveres funcionais dos magistrados responde a uma imperfeição contingente do Poder, no contexto do sistema republicano de governo. Afinal, “regime republicano é regime de responsabilidade. Os agentes públicos respondem por seus atos”.285
E os mesmos riscos teóricos de desvios pontuais, que se invocam em nome de justas
preocupações, esses já existiam no estado precedente de coisas, onde podiam errar, e decerto
em alguns casos erraram, os órgãos corregedores. Nem embaraça a conclusão, o fato de que
tenham assento e voz, no Conselho, membros alheios ao corpo da magistratura. Bem pode
ser que tal presença seja capaz de erradicar um dos mais evidentes males dos velhos organismos de controle, em qualquer país do mundo: o corporativismo, essa moléstia institucional
280
Ob. cit., esp. p. 118 e 126.
281
Ob. cit., p. 21.
La responsabilità del giudice.
Rivista trimestrale di diritto
e procedura civile. 1982, p.
1.285, apud.CAPPELLETTI,
MAURO. Ob. cit., p. 33.
282
283
LIMA LOPES, JOSÉ REINALDO DE. Crise da norma
jurídica e reforma do judiciário.
In: FARIA, JOSÉ EDUARDO
(org). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 76.
The right degree of independence. In: Transitions to democracy in Latin America: the role
of judiciary, 1993, p. 56, apud
PRILLAMAN, WILLIAM. Ob.
cit., p. 17. Há recente tradução
desse ensaio de OWEN FISS
no Brasil, na obra Um novo
processo civil – estudos norteamericanos sobre jurisdição,
constituição e sociedade. São
Paulo: Revista dos Tribunais,
2004.
284
285
ATALIBA, GERALDO. República e constituição. 2ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2001, p. 65.
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
que obscurece os procedimentos investigativos, debilita as medidas sancionatórias e desprestigia o Poder. Uma das mais graves degenerações suscetíveis de acometer os modernos
aparatos judiciários é, segundo a observação incontestável de MAURO CAPPELLETTI,
a “monopolização da responsabilidade disciplinar em mãos da própria magistratura e, conseqüentemente, na sua degeneração em instrumento de controle puramente corporativo, isolado da
sociedade”. O perigo com que se defronta é o “‘isolamento’ da magistratura, a sua transformação num corps séparé, destacado do resto do sistema estatal e da sociedade em geral”.286 Igual
opinião sustenta WILLIAM PRILLAMAN: “(...) an independent judiciary can degenerate
not only into a politicized bureaucracy but also into an insular, unaccountableone”.287
E desse perigo não se isenta nem desvencilha o país. Do exame comparativo de diversos sistemas judiciários, conclui LIMA LOPES que “o Brasil é, nesta série de exemplos, um
caso único, como se vê, em que independência e autonomia estão mais próximas do sistema
do antigo regime de patrimonialidade dos cargos, de exclusivismo corporativo até, do que
de democracia propriamente dita. Aqui talvez se esteja confundindo, no debate atual, autonomia do Poder Judiciário com capacidade de isolamento. É da maior importância, hoje,
não confundir autonomia e independência do Judiciário com seu isolamento social”.288 A
presença, aliás minoritária e com mandatos pessoais de duração limitada, de membros não
pertencentes aos quadros da magistratura, aparece como um dos remédios contra o mal. A
respeito, é bom ouvir de novo a MAURO CAPPELLETTI: “a arma talvez mais freqüentemente utilizada para combater essa degeneração consiste em incluir membros ‘laicos’ nos
órgãos investidos do poder disciplinar, mais uma vez na tentativa de encontrar razoável
equilíbrio entre o valor da independência e o de certo grau de união, que em verdade nunca
deveria faltar completamente, do judiciário com o resto do body politic”.289 Uma persistente
conexão entre o Judiciário e o corpo político é, ademais, importante fator de legitimação
social e democrática – não falo aqui do mito do déficit de legitimação democrática, mas de
outra coisa - que não deve subestimado por arrogância da magistratura, pois, como nota
BOAVENTURA SOUSA SANTOS, “a democratização da administração da justiça é uma
dimensão fundamental da democratização da vida social, económica e política”, cuja abertura
deve, como ideal, incluir “o maior envolvimento e participação dos cidadãos, individualmente
ou em grupos organizados, na administração da justiça”.290
De modo que, num juízo objetivo e sereno, como convém à matéria e ao interesse
público, a composição do Conselho – cujo modelo não pode deixar de ser “pluralístico e
democrático”291 - estende uma ponte entre o Judiciário e a sociedade, de um lado permitindo
oxigenação da estrutura burocrática do Poder e, de outro, respondendo às críticas severas,
posto nem sempre de todo justas para com a instituição, que lhe vinham de fora e de dentro, como ecos da opinião pública. De fora, DALMO DE ABREU DALLARI pregava:
“(...) é necessário estabelecer um sistema de controle. É oportuno lembrar aqui a atitude de
Thomas Jefferson, que defendeu com firmeza a independência dos juízes e tribunais, mas
admitiu que tinha medo do corporativismo dos magistrados, o que pode significar não só
uma comunhão de interesses, mas também um relacionamento afetivo. Daí a conveniência
de um órgão controlador, integrado, em sua maioria, por magistrados, mas também
por profissionais de outras áreas jurídicas, como se tem feito para compor bancas examinadoras de concursos de ingresso na magistratura. Não se pode esquecer que o Poder
Judiciário exerce poder público, age em nome do povo, embora seus membros não sejam
escolhidos por meio de eleição popular. Por isso é necessário um controle democrático de
seu desempenho, que assegure a obediência às regras legais e a prevalência do interesse
Ob cit., p. 73 e 75. Mesma
opinião foi expressa pelo autor
no ensaio Who watches the watchmen?. In: American journal
of comparative law, v. 31, 1983,
p. 48 e 50.
286
287
Ob. cit., p. 16.
LIMA LOPES, JOSÉ REINALDO DE. Ob. cit., p. 80.
288
289
Ob. cit., pp. 75-76.
Pela mão de Alice – o social e
o político na pós-modernidade.
9ª ed. São Paulo: Cortez, 1995,
p. 177.
290
ZAFFARONI, EUGENIO
RAÚL. Ob. cit., p. 130.
291
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atividades e atos administrativos
público, mantendo o requisito fundamental, que é a garantia da independência dos
juízes”.292
De dentro, o ilustre Min. CELSO DE MELLO era só mais sutil: “Estou cada vez
mais convencido da necessidade de controle externo sobre o Poder Judiciário. Fiscalização
e responsabilidade são princípios do modelo republicano. A fiscalização externa não compromete o princípio da separação dos Poderes. Ela não quer dizer que se vá exercer censura
sobre o pensamento dos magistrados. A independência dos juízes deve ser preservada. Mas
ela não é uma finalidade em si própria. É preciso ter juízes independentes para se poder ter
cidadãos livres”.293 “O Judiciário só pode enfraquecer se seus membros falharem gravemente
no desempenho das suas funções. Os magistrados devem se expor democraticamente à crítica social. Nenhum Poder da República está acima da Constituição, nem pode pretender que
sua fisionomia institucional não possa ser redesenhada”.294 “(...) entendo que a discussão
em torno da fiscalização externa torna-se essencial até mesmo para conferir legitimidade
político-social à atividade do magistrado e evitar que abusos funcionais, que situações de
ilicitude que ocorrem lamentavelmente na intimidade dos corpos judiciários continuem a
ocorrer. É preciso fiscalizar”.295
O real temor gerado pela presença de não-magistrados no Conselho Nacional de Justiça está em que sua fiscalização ético-disciplinar, num plano de superposição, transponha
os horizontes constitucionais e legais, transformando-se em instrumento de dominação política da magistratura. Não se deve baratear tão válida preocupação de que um controle
arbitrário corrompa as condições e garantias de imparcialidade dos juízes e, como tal, desnature a Jurisdição. Mas não se deve tampouco sobreestimá-la, nem ceder a puras fantasias,
como se não dispusesse o sistema de mecanismos aptos de defesa, com força bastante para
neutralizar riscos teóricos. Neste passo, vale a pena chamar a atenção para o fato de que a
própria Emenda Constitucional nº 45/2004 contém provisões adequadas a garantir que o
exercício do poder disciplinar se paute por critérios de rigorosa legalidade. Relembre-se, ainda uma vez, que a maioria qualificada de membros do Conselho é formada de juízes e, pois,
de pessoas insuspeitas à magistratura, aprovadas e experimentadas no ofício de aplicar a lei.
Donde é lícito crer que tal maioria constitua o primeiro elemento regulador da retidão e
legitimidade do uso do poder de controle atribuído ao órgão. Acresça-se-lhe a circunstância,
não menos significativa, de que a função de Ministro-Corregedor é destinada ao Ministro
representante do Superior Tribunal de Justiça (art. 103-B, § 5º). Mas até a minoria, composta por não-magistrados, é tida, sob vigorosa presunção hominis, por afeita às atividades
jurisdicionais, não só no caso manifesto dos representantes do Ministério Público e da
advocacia, senão também no dos dois cidadãos que, indicados pelo Legislativo, devam, à
moda dos candidatos a esta Corte (art. 101 da Constituição da República), possuir “notável
saber jurídico e reputação ilibada”. Que outros requisitos se poderiam pedir aos membros
não-magistrados, como garantia de vivência jurídica, de compromisso com a autonomia
do Poder e de fidelidade à lei? Ao depois, a participação de juízes de hierarquia inferior
em decisões disciplinares sobre atos de juízes de categoria superior não rompe nenhum
princípio nem regra constitucional imutável, porque não encerra nem supõe atribuição de
competência monocrática cujo exercício subverta relações hierárquicas. É que o caso retrata
apenas competência destinada a formar a vontade coletiva de órgão colegiado, ao qual é
adjudicado o poder de decidir. A argüição da autora, aqui, nasce de erro de perspectiva,
porque não atina com o fato de que a relação hierárquica, pressuposta ao poder de decidir,
se estrutura entre o órgão superior, o Conselho, e o juiz subordinado, cuja conduta é objeto
Juízes independentes, judiciário sob controle social.
In: Revista da associação dos
magistrados do Estado do Rio
de Janeiro, ano 2, n. 8, p. 33.
Grifos nossos.
292
Entrevista concedida ao
jornal Folha de São Paulo, em
11.04.99.
293
Entrevista concedida ao
jornal Folha de São Paulo, em
19.03.99.
294
Apud SADEK, MARIA TEREZA. Ob. cit., p. 132.
295
FGV DIREITO RIO
156
atividades e atos administrativos
do julgamento, não entre este e o juiz ou juízes integrantes do Conselho, os quais só podem
ser considerados de hierarquia inferior sob outro ponto de vista. A competência de decidir
e o conteúdo da decisão são juridicamente imputados ao órgão, não a cada uma das pessoas
que o compõem. A relação hierárquica correspondente forma-se no nível decisório (eficácia
da decisão), entre órgão superior e magistrado que lhe está sujeito, o que nada tem a ver com
o tipo de subordinação que se dá noutro plano, o dos degraus da carreira.
7. Entre os membros laicos, cuja previsão dá caráter heterogêneo à composição do Conselho Nacional de Justiça, constam dois representantes do Ministério Público e dois advogados,
todos indicados pelos pares (art. 103-B, incs. XI e XII). Por mais que forcejasse, não encontrei
nenhuma razão de índole constitucional que lhes pudera vetar a participação no Conselho.
Pressuposto agora que a instituição do Conselho, não apenas simboliza, mas também opera
ligeira abertura das portas do Judiciário para que representantes da sociedade tomem parte no
controle administrativo-financeiro e ético-disciplinar da atuação do Poder, robustecendo-lhe o
caráter republicano e democrático, nada mais natural que os dois setores sociais, cujos misteres
estão mais próximos das atividades profissionais da magistratura, a advocacia e o Ministério
Público, integrem o Conselho responsável por esse mesmo controle. Não é à toa que ambas
as profissões são objeto de normas da Constituição da República, no âmbito do capítulo reservado à disciplina das “funções essenciais à Justiça”. De acordo com o art. 127, “o Ministério
Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado”. E o art. 133 reputa
o advogado “indispensável à administração da justiça”. Esses cânones não se limitam a refletir
ou reafirmar, no mais alto escalão nomológico, certos truísmos ligados aos papéis da advocacia
e do Ministério Público, como, v. g., que suas iniciativas técnicas desencadeiam o exercício
da função jurisdicional, cuja inércia é garantia da imparcialidade que a caracteriza como monopólio e obrigação do Estado. Ou que, como órgãos dotados de capacidade postulatória,
legitimem esse mesmo exercício, dando concreção a todos os princípios inerentes à cláusula
do justo processo da lei (due process of law). Aqueles preceitos vão além, porque concebem
e proclamam, como ingredientes da própria ordem jurídico-constitucional, a dignidade e a
relevância da advocacia e do Ministério Público enquanto funções essenciais da Justiça, e cujos
titulares são, como tais, merecedores de garantias, como a inviolabilidade relativa dos atos
emanifestações emanados no exercício da profissão de advogado (art. 133), e asprerrogativas e
vedações análogas às dos juízes, relativamente aos membros do MinistérioPúblico (art. 128, §
5º). Eis o fundamento da previsão de participação da Ordem dosAdvogados em todas as fases
do concurso de ingresso na carreira da magistratura (art. 93,I).
Tudo isso comprova a decisiva responsabilidade que, ao lado da magistratura, pesa, já
no plano constitucional originário, à advocacia e ao Ministério Público, quanto ao correto
desenvolvimento da atividade estatal que, atribuída como função típica ao Poder Judiciário
no quadro da separação dos poderes, constitui a própria razão de ser das três categorias profissionais. De modo que, pelo menos no nível teórico, e é esse o que sobreleva na causa, os
rumos dos interesses institucionais não podem deixar de convergir para o mesmo propósito
político: o aprimoramento da atividade jurisdicional.
É, pois, compreensível e conforme, não contrário, aos princípios que, presumindo-se
ambas as instituições aptas e interessadas em oferecer contribuições valiosas ao aperfeiçoamento da função jurisdicional, a advocacia e o Ministério Público ganhem posto e dever de
cooperação no seio do órgão agora predestinado ao controle nacional da atuação administrativo-financeira e ético-funcional do Judiciário.
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atividades e atos administrativos
Por fim, se o instituto que atende pelo nome de quinto constitucional, enquanto integração de membros não pertencentes à carreira da magistratura em órgãos jurisdicionais,
encarregados do exercício da função típica do Judiciário, não ofende o princípio da separação e independência dos Poderes, então não pode ofendê-la a fortiori a mera incorporação
de terceiros em órgão judiciário carente de competência jurisdicional.
8. Terão sido estas, desconfio, algumas das razões que levaram o Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE, no bojo dos votos proferidos no julgamento das ADI nº 98 e nº 183, a
sustentar que eventual presença de representante da Ordem dos Advogados do Brasil, em
conselho dotado de atribuições similares às do órgão criado pela Emenda Constitucional nº
45/2004, poderia amparar-se na “definição constitucional da advocacia como função essencial
à Justiça”. E, em entrevista à imprensa, a deixar clara sua posição favorável à “abertura para
integrantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do Ministério Público”, de conselho
destinado a ‘formular políticas e uniformizar critérios administrativos para o setor”.296
E por coincidência, mais ou menos na mesma época, também o Min. CARLOS
VELLOSO se pronunciou publicamente pela criação de um Conselho Nacional da Magistratura que contasse com a participação de representantes “do Ministério Público, além de
membros da OAB e outras instituições idôneas”.297
Não fora impróprio, eu até diria que já não devem agora sentir-se lá confortáveis os
advogados e os membros do Ministério Público, porque, com o assento dos seus representantes no Conselho, se despem da cômoda posição de observadores críticos, para se converterem em co-responsáveis formais pelos rumos do Judiciário.
9. A autora deduz ainda outro argumento que se prestaria a demonstrar a inconstitucionalidade do Conselho, cuja instituição violaria o pacto federativo, “ao submeter o poder
judiciário dos estados membros à supervisão administrativa e disciplinar do conselho nacional
de justiça” (fls. 30).
Também aqui não lhe dou razão. O pacto federativo não se desenha nem expressa, em
relação ao Poder Judiciário, de forma normativa idêntica à que atua sobre os demais Poderes
da República. Porque a Jurisdição, enquanto manifestação da unidade do poder soberano
do Estado,
tampouco pode deixar de ser una e indivisível, é doutrina assente que o Poder Judiciário tem caráter nacional, não existindo, senão por metáforas e metonímias, “Judiciários
estaduais” ao lado de um “Judiciário federal”. A divisão da estrutura judiciária brasileira,
sob tradicional, mas equívoca denominação, em Justiças, é só o resultado da repartição
racional do trabalho da mesma natureza entre distintos órgãos jurisdicionais. O fenômeno
é corriqueiro, de distribuição de competências pela malha de órgãos especializados, que,
não obstante portadores de esferas próprias de atribuições jurisdicionais e administrativas,
integram um único e mesmo Poder.
Nesse sentido fala-se em Justiça Federal e Estadual, tal como se fala em Justiça Comum,
Militar, Trabalhista, Eleitoral, etc., sem que com essa nomenclatura ambígua se enganem
hoje os operadores jurídicos.
Na verdade, desde JOÃO MENDES JÚNIOR, cuja opinião foi recordada por CASTRO NUNES,298 sabe-se que: “O Poder Judiciário, delegação da soberania nacional, implica a idéia de unidade e totalidade da fôrça, que são as notas características da idéia de
soberania. O Poder Judiciário, em suma, quer pelos juízes da União, quer pelos juízes dos
Entrevista concedida ao Jornal de Brasília, em 22.09.1995.
296
Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em 26.12.1994.
297
Teoria e prática do poder
judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1943, p. 77.
298
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Estados, aplica leis nacionais para garantir os direitos individuais; o Poder Judiciário não é
federal, nem estadual, é eminentemente nacional, quer se manifestando nas jurisdições estaduais, quer se aplicando ao cível, quer se aplicando ao crime, quer decidindo em superior,
quer decidindo em inferior instância.299
Desenvolvendo a idéia, asseveram ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA,
ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO:
“O Poder Judiciário é uno, assim como una é a sua função precípua – a jurisdição – por
apresentar sempre o mesmo conteúdo e a mesma finalidade. Por outro lado, a eficácia espacial
da lei a ser aplicada pelo Judiciário deve coincidir em princípio com os limites espaciais da
competência deste, em obediência ao princípio una lex, una jurisdictio. Daí decorre a unidade
funcional do Poder Judiciário. É tradicional a assertiva, na doutrina pátria, de que o Poder Judiciário não é federal nem estadual, mas nacional. É um único e mesmo poder que se positiva
através de vários órgãos estatais – estes, sim, federais e estaduais.
(...)
(...) fala a Constituição das diversas Justiças, através das quais se exercerá a função jurisdicional. A jurisdição é uma só, ela não é nem federal nem estadual: como expressão do poder
estatal, que é uno, ela é eminentemente nacional e não comporta divisões. No entanto, para a
divisão racional do trabalho é conveniente que se instituam organismos distintos, outorgando-se a cada um deles um setor da grande ‘massa de causas’ que precisam ser processadas no
país. Atende-se, para essa distribuição de competência, a critérios de diversas ordens: às vezes,
é a natureza da relação jurídica material controvertida que irá determinar a atribuição de dados processos a dada Justiça; outras, é a qualidade das pessoas figurantes como partes; mas é
invariavelmente o interesse público que inspira tudo isso (o Estado faz a divisão das Justiças,
com vistas à melhor atuação da função jurisdicional)”.300
Negar a unicidade do Poder Judiciário importaria desconhecer o unitário tratamento
orgânico que, em termos gerais, lhe dá a Constituição da República. Uma única lei nacional, um único estatuto, rege todos os membros da magistratura, independentemente da
qualidade e denominação da Justiça em que exerçam a função (Lei Complementar nº 35,
de 14.03.1979; art. 93, caput, da CF). A todos aplicam-se as mesmas garantias e restrições,
concebidas em defesa da independência e da imparcialidade. Códigos nacionais disciplinam
o método de exercício da atividade jurisdicional, em substituição aos códigos de processo
estaduais. Por força do sistema recursal, uma mesma causa pode tramitar da mais longínqua
comarca do interior do país, até os tribunais de superposição, passando por órgãos judiciários das várias unidades federadas. E, para não alargar a enumeração de coisas tão conhecidas, relembre-se que a União retém a competência privativa para legislar sobre direito
processual (art. 22, inc. I).
Nesse diagrama constitucional, nunca se ouviu sustentar que as particularidades concretas da organização da estrutura judiciária violassem o pacto federativo. E não se ouviu,
porque perceptível sua natureza nacional e unitária, embora decomposta e ramificada, por
exigências de racionalização, em múltiplos órgãos dotados de sedes e de âmbitos distintos
de competência. Não se descobre, pois, sob esse ângulo, porque a instituição do Conselho
Nacional de Justiça não se ajustaria à organização constitucional do Poder.
Não se quer com isso afirmar que o princípio federativo não tenha repercussão na
fisionomia constitucional do Judiciário. Sua consideração mais evidente parece estar à raiz
ALMEIDA JÚNIOR, JOÃO
MENDES DE. Direito judiciário
brasileiro. 5ª ed. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1960, p. 47. Grifos do original.
299
300
Ob. cit., p. 166 e 184.
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da norma que delega aos Estados-membros competência exclusiva para organizar sua Justiça, responsável pelo julgamento das causas respeitantes a cada unidade federada (art. 125).
Toca-lhes, assim, definir a competência residual de seus tribunais, distribuí-la entre os vários
órgãos de grau inferior, bem como administrá-la na forma prevista no art. 96, coisa que
revela que a estrutura judiciária tem um dos braços situados nas Justiças estaduais. Mas a
criação do Conselho Nacional de Justiça em nada altera esse quadro, nem desfigura doutro
modo o pacto federativo.
Ademais, o Conselho reúne as características palpáveis de órgão federal, enquanto representativo do Estado unitário, formado pela associação das unidades federadas, mas não,
de órgão da União.
O Conselho não é concebido nem estruturado como órgão da União, e, sim, do Poder
Judiciário nacional, donde ser irrelevante que seu orçamento seja federal, pois a origem da
fonte de custeio não transmuda a natureza nem a relação de pertinência do órgão no plano
da separação dos Poderes, que é o plano onde se situa o critério de sua taxinomia, que nada
tem com outro plano classificatório, o das unidades da federação. A inicial, aqui, incide
noutro erro de ótica, pois não vê o plano lógico em que está o critério de divisão dos órgãos
do mesmo Poder, só enxergando o que discerne entre as entidades elementares da Grifos
do original. federação. E é tão impróprio quanto supor que o Supremo Tribunal Federal e
o Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, não pudessem julgar recursos interpostos em
causas da competência de órgãos jurisdicionais estaduais, ou de interesse de municípios,
porque o custeio de ambos corre à conta do orçamento da União.
Daí, não ser lícito estabelecer comparações do Conselho com os Executivos e Legislativos estaduais e municipais, porque estes não constituem Poderes nacionais, senão que
se situam, definem e qualificam dentro das respectivas camadas da federação. E tampouco
se pode imaginar, como pretende a inicial, que haveria supervisão administrativa, orçamentária, financeira e disciplinar dos órgãos judiciários estaduais por órgão da União. O
Conselho, repita-se, não é órgão da União. Sua composição reverencia e contempla as duas
esferas federativas dotadas de Justiças, a União e os Estados-membros, os quais contam ali
com representantes das respectivas magistraturas (art.103-B, incs. I a IX). Além disso, a
indicação de um cidadão pelo Senado Federal exprime de certa maneira, senão a vontade,
pelo menos forma indireta de participação dos Estados (art. 103-B, inc. XIII). Não vejo,
pois, como cogitar de violação ao princípio federativo. Não é, como tentei demonstrar,
imutável o conteúdo concreto da forma federativa. As relações de subordinação vigentes
na estrutura do Judiciário, dado seu caráter nacional, como o reconhece a autora (item 51
da inicial), podem ser ampliadas e desdobradas pelo constituinte reformador, desde que tal
reconfiguração não rompa o núcleo essencial das atribuições do Poder em favor de outro. E
foram redefinidas pela Emenda nº 45, sem usurpação de atribuições por outro Poder, nem
sacrifício da independência. A redução das autonomias internas, atribuídas a cada tribunal,
não contradiz, sob nenhum aspecto, o sistema de separação e independência dos Poderes. A
Corte cansou-se de proclamar que não são absolutas nem plenas as autonomias estaduais,
circunscritas pela Constituição (art. 25), porque, se o fossem, seriam soberanias. E o Conselho não tem competência para organizar nem reorganizar as Justiças estaduais.
E é só órgão que ocupa, na estrutura do Poder Judiciário, posição hierárquica superior
à do Conselho da Justiça Federal e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, no sentido
de que tem competência para rever-lhes os atos deste e daquele. Ora, está nisso o princípio
capaz de resolver, em concreto, os conflitos aparentes de competência.
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atividades e atos administrativos
Por outro lado, a competência do Conselho para expedir atos regulamentares destinase, por definição mesma de regulamento heterônomo, a fixar diretrizes para execução dos
seus próprios atos, praticados nos limites de seus poderes constitucionais, como consta,
aliás, do art. 103-B, § 4º, I, onde se lê: “no âmbito de sua competência”. A mesma coisa é de
dizer-se a respeito do poder de iniciativa de propostas ao Congresso Nacional (art. 103-B,
§ 4º, inc. VII).
Como consectário do princípio da unidade do Judiciário como Poder nacional, o
Conselho recebeu ainda competência de reexame dos atos administrativos dos órgão judiciais inferiores, ou seja, o poder de controle interno da constitucionalidade e legitimidade
desses atos. Ora, tal competência em nada conflita com as competências de controle exterior
e posterior, atribuídas ao Legislativo e aos tribunais de contas. E o argumento vale para todos os atos de autogoverno, cujo poder não é subtraído, mas cujo exercício é submetido a
processo de aperfeiçoamento mediante revisão eventual de órgão superior.
E, por fechar, neste tópico, o conjunto de respostas aos argumentos pontuais da demandante, nada mais insuspeito e apropriado do que transcrever opinião do então juiz
LUIS FLÁVIO GOMES, em monografia de cerrada crítica a propostas de composição
semelhante à do Conselho: “O que está faltando na estrutura do Poder Judiciário brasileiro
é a criação de um Conselho Nacional de Magistratura, que deve encarregar-se, precipuamente, de duas tarefas: do controle disciplinar de todos os juízes do país (esse controle seria
originário em relação aos juízes de tribunais e em grau de recurso em relação aos juízes de
primeiro grau), bem como da qualidade do juiz e do serviço prestado por todos os órgãos
jurisdicionais. Seria ainda da sua competência a supervisão dos atos administrativos praticados pelos Tribunais bem como os de gestão orçamentária. Por ser um órgão idealizado
para unificar a política judicial em todo país, é evidente que ainda lhe caberia encarregar-se
da atividade correicional (fiscalização), sem prejuízo da exercida pelos Órgãos censórios já
existentes nos vários setores da Justiça; (...) O Judiciário necessita de um órgão nacional
de controle, que receba as reclamações contra as atividades administrativas dos juízes e tribunais, assim como contra a qualidade do serviço judicial prestado, excluindo-se a estrita
atividade jurisdicional que já está sujeita ao controle recursal. Os Tribunais devem controlar
os juízes e o Conselho Nacional deve controlar diretamente os Tribunais e indiretamente
todos os juízes, mas sempre no que diz respeito ao âmbito administrativo e disciplinar. (...)
O que desejamos é um eficiente, criterioso e sobretudo transparente controle interno, de
responsabilidade das corregedorias e tribunais assim como do Conselho Nacional. Se uma
questão disciplinar de um juiz não encontra um justo equacionamento nos tribunais, que
continuarão normalmente com sua atividade censória, será possível corrigir eventualmente
falha perante o Conselho Nacional da Magistratura”.301
É antiga, aliás, em nosso sistema político-constitucional, a existência de órgãos federais a que se comete o papel de representar, arbitrar ou proteger os mais insignes interesses
das unidades federadas, como é o caso do Senado (art. 46) e, até, desta Suprema Corte, com
competência para o julgamento de conflitos que envolvam a “União e os Estados, a União e
o Distrito Federal, ou entre uns e outros” (art. 102, inc. I, “f ”).
A esse paradigma pode também reconduzir-se a instituição do Conselho, que, sob a
rubrica das atribuições inerentes ao poder de controle da atuação administrativa e financeira
do Judiciário (art. 103-B, § 4º), assume o dever jurídico de diagnosticar problemas, planejar políticas e formular projetos, com vistas ao aprimoramento da organização judiciária e
da prestação jurisdicional, em todos os níveis, como exigência da própria feição difusa da
A questão do controle externo
do poder judiciário. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1993, p.
36, 37 e 38, nº
301
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atividades e atos administrativos
estrutura do Poder nas teias do pacto federativo. Como já acentuamos, somente um órgão
de dimensão nacional e de competências centralizadas pode, sob tais aspectos, responder
aos desafios da modernidade e às deficiências oriundas de visões e práticas fragmentárias na
administração do Poder. O Conselho não anula, antes reafirma o princípio federativo.
10. A autora invoca ainda, em socorro de sua pretensão, algumas decisões da Corte em
ações diretas de inconstitucionalidade dirigidas à criação de conselhos estaduais de “controle
externo” dos órgãos judiciários. De fato, chamado a avaliar a legitimidade constitucional de
órgãos desse tipo, rejeitou-a sempre o Supremo Tribunal Federal, cuja invariável jurisprudência ao propósito consolidou-se na súmula 649 (“é inconstitucional a criação, por Constituição Estadual, de órgão de controle administrativo do Poder Judiciário do qual participem
representantes de outros Poderes ou entidades”).
Análise cuidadosa e, sobretudo, desinteressada mostra, todavia, que os precedentes se
não ajustam nem aplicam ao caso. Em todos eles, era substancialmente diversa a situação
posta ao julgamento da Corte. Em primeiro lugar, os conselhos criados por leis dos Estados
da Paraíba, do Mato Grosso, de Sergipe, do Ceará e do Pará, objetos daqueles precedentes,
figuravam autênticos órgãos externos ao Poder Judiciário, concebidos e disciplinados em
posições marginais à sua estrutura orgânico-burocrática.
Aliás, no caso decidido na ADI nº 197, o art. 115 da Constituição do Estado de
Sergipe preceituava, literalmente, que o conselho era “órgão de controle externo”, e era-o em
substância. Nenhuma das composições desses colegiados contava tampouco com presença
majoritária de membros pertencentes às magistraturas estaduais. A representação dos
juízes era ali, em todos os conselhos, apenas equiparada, quando não inferior ao número de membros advindos doutros setores sociais (cf. ADI nº 197, Rel. Min. OCTAVIO
GALLOTTI, DJ de 25.05.90; ADI nº 251, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO, DJ de
02.04.93; ADI nº 135, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, DJ de 15.08.97; ADI nº 98,
Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 31.10.97, ADI nº 137, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ de 03.10.97).
Ora, não é esse o caso do Conselho Nacional de Justiça, que se define como órgão interno do Judiciário e, em sua formação, apresenta maioria qualificada (três quintos) de membros
da magistratura (arts. 92, 1-A e 103-B). Desses caracteres vem-lhe a natureza de órgão de controle interno, conduzido pelo próprio Judiciário, conquanto democratizado na composição
por meio da participação minoritária de representantes das áreas profissionais afins.
Os conselhos criados pelos Estados da Paraíba, Mato Grosso e Pará, compunham-nos,
ainda, membros originais do Legislativo estadual (deputados), cuja presença não deixava
nenhuma dúvida quanto à forma de interferência direta doutro Poder.
No Conselho Nacional de Justiça, dois dos quinze membros são apenas indicados pelo
Poder Legislativo, mas escolhidos fora de seus quadros de agentes e políticos, dentre os cidadãos, sem nenhum vestígio de representação nem de interferência orgânica. É, pois, notável
a distância que medeia entre uma coisa e outra.
Ao depois, e está aqui verdade jurídica que se deve antecipar e proclamar com toda a
clareza, os Estados-membros carecem de competência constitucional para instituir conselhos, internos ou externos, destinados a controle de atividade administrativa, financeira ou
disciplinar das respectivas Justiças, porque a autonomia necessária para o fazer seria incompatível com o regime jurídico-constitucional do Poder Judiciário, cuja unidade reflete a da
soberania nacional.
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
O Poder Judiciário é nacional e, nessa condição, rege-se por princípios unitários enunciados pela Constituição, a qual lhe predefine ainda toda a estrutura orgânica, sem prejuízo
das competências que delega a cada um dos grandes ramos nela previstos. Seu funcionamento obedece, em todos os níveis, a leis processuais uniformes, editadas exclusivamente
da União (art. 22, inc. I), e seus membros, os magistrados, assujeitam-se a um único regime
jurídico-funcional (art. 93, caput).
De modo que eventual poder de criação de conselho estadual, ordenado ao controle
administrativo-financeiro e disciplinar da divisão orgânica do Poder, atribuída com fisionomia uniforme às unidades federadas, violentaria a Constituição da República, porque lhe
desfiguraria o regime unitário, ao supor competência de controles díspares da instituição,
mediante órgãos estaduais, cuja diversidade e proliferação, isto, sim, meteriam em risco o
pacto federativo.
Ora, tal vício de inconstitucionalidade, que já mareava a criação daqueles esdrúxulos
órgãos estaduais, não guarda nenhuma pertinência com a hipótese. O Conselho Nacional
de Justiça é órgão judiciário de âmbito nacional, com atribuições para atuar de maneira
unitária e estratégica sobre todas as estruturas orgânicas do Poder.
E colhe-se outro dado fundamental, que remarca e exaspera a profunda diferença entre
aqueles precedentes e este caso. O juízo de constitucionalidade das normas instituidoras
dos conselhos fez-se, é óbvio, à luz da arquitetura que assumia o princípio da separação dos
Poderes, à época, na Constituição da República, cujas regras, escusaria dizê-lo, não podiam
ceder a leis subalternas. No mais profundo daqueles julgamentos, realizado na ADI nº 98,
relatada pelo Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, foi reconhecido o fato, aqui já sobrelevado,
de que:
“o princípio da separação e independência dos Poderes, malgrado constitua um dos signos distintivos fundamentais do Estado de Direito, não possui fórmula universal apriorística:
a tripartição das funções estatais, entre três órgãos ou conjuntos diferenciados de órgãos, de
um lado, e, tão importante quanto essa divisão funcional básica, o equilíbrio entre os poderes,
mediante o jogo recíproco dos freios e contrapesos, presentes ambos em todas elas, apresentam-se em cada formulação positiva do princípio com distintos caracteres e proporções”.
Sob tal luz, reputou-se que a criação do conselho estadual feria o postulado da tripartição dos Poderes, tal como desenhado pelo conjunto das normas constitucionais então
vigentes.
Ora, a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, como produto do exercício de competência de que não dispunham nem dispõem os legisladores estaduais, operou, em resposta a
uma singular necessidade sociopolítica de aperfeiçoamento do Judiciário, mais uma adaptação histórica na formulação positiva do princípio da separação, sem vulnerar-lhe a cláusula
constitucional que proíbe a espoliação do cerne das atribuições de um Poder em benefício
de outro. De modo que, por muitas e boas razões, não faz senso chamar este caso singular a
contas com jurisprudência fundada noutros pressupostos constitucionais.
12. Ao cabo desta já longa argumentação sobre o objeto central da demanda, não
tenho a mais tênue dúvida acerca da constitucionalidade das normas impugnadas. Devo
confessar, porém, que, durante as esforçadas meditações em que, sobre o tema, pus à prova
a minha consciência, foi outra a razão decisiva que, em remate, me seduziu e convenceu. E
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essa poderosa razão diz com a regra do art. 102, inc. l, letra “r”, que, introduzida, na Constituição da República, pela Emenda Constitucional nº 45, comete ao Supremo Tribunal
Federal competência para, julgando ações, rever os atos praticados pelo Conselho Nacional
de Justiça. Entre parênteses, noto que, ao tempo dos conselhos estaduais fulminados, não
havia, aliás, no sistema, nem se justificava então que houvesse, nenhuma regra análoga, o
que só reforça e agrava a radical impertinência dos precedentes invocados.
Toda a estrutura lógico-jurídica do raciocínio do meu voto reduz-se à tentativa de,
submetendo as normas da Emenda a estreito confronto com os princípios e regras que
disciplinam e formam nosso sistema constitucional de separação de poderes, entendido
nas perspectivas históricas e políticas de garantia da liberdade dos cidadãos contra os riscos
institucionais do arbítrio e da prepotência, estimar se de algum modo não comprometiam,
em última instância, a independência e a imparcialidade dos juízes, sem as quais ninguém
pode realizar seu projeto histórico de convivência ética, nem se concebe Estado Democrático de Direito. Afinal, na sabatina obrigatória perante o Senado da República, já havia eu
professado, não apenas a título de opinião de cidadão, senão também como firme convicção
jurídica, que me opunha a toda proposta que pusesse em risco, direto ou indireto, próximo
ou remoto, a garantia constitucional da independência e imparcialidade dos juízes, parecendo-me discutíveis todas as demais.
Dissiparam-se-me as hesitações, quando, não podendo deixar de reconhecer, na ratio
iuris da criação do Conselho, a necessidade sociopolítica de um órgão nacional de controle
das atividades judiciárias, visto como um de muitos instrumentos hábeis de reforma, já
não experimentei nenhum receio racional de que sua estruturação, nos termos da Emenda,
pudesse descambar, sem reparo nem remédio, para excessos esporádicos, mas passíveis de
alimentar um clima de insuportável intimidação.
E já não experimentei, porque, para além de todos os mecanismos intrínsecos de resguardo da autonomia do Poder Judiciário, pressupostos alguns na Emenda e previstos outros na precedente ordem constitucional, a cujo respeito terá sido longo o discurso do meu
voto, dei com a competência, atribuída a esta Corte, de revisão da constitucionalidade e da
legitimidade dos atos do Conselho Nacional de Justiça. Está aí, nessa nobre responsabilidade que o constituinte derivado depositou nos ombros desta Casa, a garantia última e específica que a obriga, como órgão supremo do Poder Judiciário e guardião da Constituição
da República, a velar pela independência e imparcialidade dos juízes, aos quais já não sobra
pretexto para se arrecearem de coisa alguma. Ninguém pode, aliás, alimentar nenhuma dúvida a respeito da posição constitucional de superioridade absoluta desta Corte, como órgão
supremo do Judiciário e, como tal, armado de preeminência hierárquica sobre o Conselho,
cujos atos e decisões, todos de natureza só administrativa, estão sujeitos a seu incontrastável
controle jurisdicional. É o que logo notou a doutrina:
“Não bastasse a natureza do STF que, na estrutura do estado brasileiro, se põe acima
de qualquer outro órgão administrativo ou judiciário, incumbido da guarda da Constituição
(art. 102, caput), a Emenda entregou a ele o controle jurisdicional das decisões do Conselho
Nacional de Justiça, conferindo-lhe competência para as ações contra o órgão, mediante a
adoção da alínea r do inciso I do art. 102 da Constituição.
Controlador do CNJ, não pode o Supremo ser, de nenhum modo, controlado por
ele”.302
BERMUDES, SÉRGIO. A
reforma do Judiciário pela
emenda constitucional nº 45.
Ob. cit., p. 137.
302
FGV DIREITO RIO
164
atividades e atos administrativos
E essa tranqüilidade final do meu convencimento mostrou ainda quão inútil era o alvitre de recorrer ao expediente técnico-jurídico de redução teleológica do alcance da Emenda,
para, contornando dificuldades observadas alhures,303 sugerir interpretação que privasse os
membros laicos do Conselho Nacional de Justiça de votar em matéria ético disciplinar dos
magistrados.
O Supremo Tribunal Federal é o fiador da independência e imparcialidade dos juízes,
em defesa da ordem jurídica e da liberdade dos cidadãos.
13. O último tópico da inicial impugna o disposto no art. 103-B, § 4º, inc. III, que,
também introduzido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, se ressentiria de inconstitucionalidade formal, uma vez que a expressão “perda do cargo”, contida no texto vindo da
Câmara dos Deputados, foi suprimida ao texto aprovado no Senado Federal. O argumento
é de que a norma decotada deveria submetida à reapreciação da Câmara, em atenção ao art.
60, § 2º, da Constituição da República. A Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral
da República invocaram, com muita propriedade, precedentes da Corte que demonstram
não padecer de inconstitucionalidade o dispositivo. Este tribunal, deveras, já assentou:
“Proposta de emenda que, votada e aprovada na Câmara dos Deputados, sofreu alteração no Senado Federal, tendo sido promulgada sem que tivesse retornado à Casa iniciadora
para nova votação quanto à parte objeto de modificação. Inexistência de ofensa ao art. 60, §
2º da Constituição Federal no tocante à supressão, no Senado Federal, da expressão “observado o disposto no § 6º do art. 195 da Constituição Federal”, que constava do texto aprovado
pela Câmara dos Deputados em 2 (dois) turnos de votação, tendo em vista que essa alteração não importou em mudança substancial do sentido do texto (Precedente: ADC nº 3, rel.
Min. Nelson Jobim)” (ADI nº 2.666, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ de 06.12.2002).
“Quanto à alteração ocorrida na Câmara dos Deputados, relativa à supressão das palavras ‘ou restabelecê-la’, em seguida ao verbo ‘reduzir’, no § 1º do novo art. 75, sem que a
proposta tivesse retornado ao Senado para nova apreciação, tenho que esse aspecto não importou ofensa ao art. 60, § 2º da Carta Magna. Como amplamente debatido no julgamento
liminar, a possibilidade de restabelecimento da alíquota original tinha caráter autônomo em
relação à possibilidade da sua redução, não tendo a supressão daquela importado em modificação substancial do sentido da norma aprovada e promulgada. O que importa, no caso, é
que o texto promulgado foi devidamente aprovado por ambas as Casas, nos termos exigidos
pelo § 2º do art. 60 da Constituição” (ADI nº 2.031, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ de
17.10.03. Grifos nossos).
Na Itália, onde a competência disciplinar do Consiglio
Superiore della Magistratura é
reservada a uma das suas Seções, foi preciso conferir a esse
órgão, investido do poder censório, natureza jurisdicional,
para viabilizar aos magistrados
recurso às sessões reunidas da
Cassação, contra as decisões
tomadas em tal matéria (cf.
TORRENTE, ANDREA. Verbete
Consiglio Superiore della magistratura. In: Enciclopedia del
diritto. Milano: Giuffrè, 1961, v.
IX, p. 337, nº 9).
303
Dos mesmos autos consta decisão do então Relator, Min. OCTÁVIO GALLOTTI, à
apreciação do pedido liminar, nestes termos:
“Aprovada a proposta pelo Senado Federal, foi ela, na Câmara, objeto, entre outros, de
dois destaques de votação em separado (DVS´s), de cuja aprovação redundaram as alterações
mencionadas no relatório que precede este voto, a saber: a supressão do verbo ‘restabelecer’ no
§ 2º, e a eliminação da oração final do § 3º do novo art. 75 do ADCT (...).
Foram, porém, destaques meramente supressivos, que não comprometem a aprovação
do remanescente, solenemente promulgado em sessão conjunta das duas casas do Congresso.
Essa a tradição do processo legislativo, que remonta à própria gênese do regime político em
FGV DIREITO RIO
165
atividades e atos administrativos
vigor, como se depreende do texto do art. 29 do Regimento Interno da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/8, que vedou a apresentação de emendas, em segundo turno de
votação, ‘salvo as supressivas’, claramente a indicar que não invalida, a aprovação destas, a
subsistência do texto aprovado em primeiro turno” (ADI nº 2.031, Rel. Min. OCTAVIO
GALLOTTI, DJ de 28.06.02. Grifos nossos).
No caso, a norma tachada de inconstitucional estabelece uma série de competências
do Conselho Nacional de Justiça, cada uma das quais dotada de independência semasiológica e normativa. Amputada, no Senado, a expressão “perda do cargo”, o texto residual,
aprovado em ambas as Casas do Congresso, manteve intacto o sentido nomológico, dada
sua perceptível autonomia semântica. É o que basta por repelir a argüição de ofensa ao art.
60, § 2º, da Constituição Federal.
De todo modo, como reconhece a própria autora, a inclusão do poder de ordenar perda do cargo de magistrado vitalício, dentre as atribuições do Conselho Nacional de Justiça,
essa é que poderia encher-se de vistosa inconstitucionalidade, perante o art. 95, inc. I, da
Constituição da República, que restringe, taxativamente, as hipóteses em que pode dar-se
a perda. Nada valeria tornar a submeter a locução suprimida ao escrutínio da Câmara dos
Deputados, se eventual norma resultante da aprovação estaria fadada a ser tida por inconstitucional, como bem alvitrou o parecer da PGR:
“(...) a supressão da expressão ‘perda do cargo’ não comprometeu a aprovação do remanescente, vale dizer, do conteúdo temático do texto normativo, posto que (sic), reconheceu-o
a própria inicial, a expressão até então existente era ‘flagrantemente inconstitucional’, por
indispor-se até mesmo ante a literalidade do artigo 95, I parte final, da Constituição Federal,
daí porque a supressão preserva o conjunto remanescente, para trilharmos o correto pensamento do Min. Octávio Gallotti” (fls. 194).
14. A autora formulou, ainda, aditamento à petição inicial, para acrescer fundamento
à pretensão. Encontra-se pendente de apreciação, na Câmara dos Deputados, proposta de
acréscimo de mais um § ao art. 103-B da Constituição, com o seguinte teor:
“§ 8º É vedado ao membro do Conselho, referido nos incisos XII e XIII, durante o
exercício do mandato:
a) exercer outro cargo ou função, salvo uma de magistério;
b) dedicar-se a atividade político-partidária;
c) exercer, em todo o território nacional, a advocacia”
Segundo a AMB, a falta de norma semelhante no corpo da Emenda Constitucional nº
45/2004 significaria que as vedações propostas não se aplicariam aos advogados e cidadãos
integrantes do Conselho Nacional de Justiça, daí resultando tratamento desigual entre seus
membros, o que seria inconciliável com a Constituição da República (fls. 130-132).
O raciocínio da autora, mais uma vez, não conduz a declaração de inconstitucionalidade do Conselho Nacional de Justiça. A pendência da proposta voltada a incorporar
aqueles impedimentos à ordem constitucional não implica que lhes não estejam sujeitos os
advogados e cidadãos integrantes do Conselho. Basta juízo analógico baseado nos arts. 95, §
único, e 127, § 5º, inc. II, da Constituição Federal, para tirar-se a limpo que ninguém pode
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
desempenhar atividades incompatíveis com a função de membro do Conselho, tais como
as previstas naquele projeto e independentemente de sua conversão em regra constitucional
específica. Da ausência desta não se infere inconstitucionalidade daquele, por insulto ao
princípio isonômico.
15. Diante de todo o exposto, não conheço do pedido declaratório de inconstitucionalidade do art. 125, § 8º, haja vista a inexistência de tal dispositivo no texto da Emenda
Constitucional nº 45/2004 afinal promulgado, e, em relação aos demais, julgo improcedente a ação.
Superior Tribunal de Justiça
AgRg na Suspensão de Liminar Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)
EMENTA
 
AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE LIMINAR. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LESÃO À ORDEM PÚBLICA E ECONÔMICA CONFIGURADA. INSEGURANÇA JURÍDICA E RISCO BRASIL AGRAVADO.
1.No âmbito especial da suspensão liminar, cujos limites cognitivos prendem-se à verificação das hipóteses expressas na Lei nº 8.437⁄92, art. 4º, descabem alegações relativas às
questões de fundo.
2.Caracterizado o risco inverso, refletido no cenário de insegurança jurídica que pode
se instalar com a manutenção da liminar, que, em princípio, admite a quebra do equilíbrio
dos contratos firmados com o Poder Público, lesando a ordem pública administrativa e
econômica e agravando o risco Brasil, defere-se o pedido de suspensão.
3.Agravo regimental provido.
 
ACÓRDÃO
 
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Corte Especial, do
Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir,
prosseguindo no julgamento, após o voto do Sr. Ministro Humberto Gomes de Barros, acompanhando o voto do Sr. Ministro Relator, e os votos dos Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Ari
Pargendler, José Arnaldo da Fonseca, Fernando Gonçalves, Carlos Alberto Menezes Direito,
Felix Fischer, Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon, Paulo Gallotti e Luiz Fux, no mesmo sentido, a Corte Especial, por maioria, vencidos os Srs. Ministros Nilson Naves, Barros Monteiro e
Franciulli Netto, dar provimento ao agravo regimental, no sentido de manter o ato da Agência
Nacional de Telecomunicações - ANATEL, que fixou o índice de correção para reajuste das
tarifas telefônicas pela aplicação do IGPDI, sendo que esse reajuste não terá efeito retroativo, só
será aplicado após a proclamação desta decisão, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Humberto Gomes de Barros, Cesar Asfor Rocha, Ari Pargendler,
José Arnaldo da Fonseca, Fernando Gonçalves, Carlos Alberto Menezes Direito, Felix Fischer, Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon, Paulo Gallotti e Luiz Fux votaram com o Sr.
Ministro Relator.
FGV DIREITO RIO
167
atividades e atos administrativos
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Sálvio de Figueiredo Teixeira, José Delgado, Gilson Dipp e Francisco Falcão, sendo os três últimos substituídos, respectivamente,
pelos Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Hélio Quaglia Barbosa e Castro Meira.
Afirmou suspeição o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins.
Não participaram do julgamento os Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Castro Meira e Hélio Quaglia Barbosa.
Brasília (DF), 1 de julho de 2004(Data do Julgamento)
 
 
MINISTRO ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO
Presidente
 
 
MINISTRO EDSON VIDIGAL
Relator
 
 
FGV DIREITO RIO
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atividades e atos administrativos
AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)
RELATÓRIO
 
O EXMO. SR. MINISTRO EDSON VIDIGAL (Relator): O Ministério Público Federal intentou Ação
Civil Pública com vistas à sustação dos atos da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, que permitiam os reajustes das tarifas dos serviços de telefonia fixa, em percentuais correspondentes aos índices de correção
apurados pelo IGP-DI (Índice Geral de Preços), contratualmente estabelecido pelo Governo Federal em todos
os contratos com as concessionárias de telefonia fixa. Pleiteou a substituição do IGP-DI pelo INPC ou, sucessivamente, pelo IPCA, para balizar os reajustes da telefonia fixa.
Deferida a liminar pelo MM Juízo da 2ª Vara Federal da Seção Judiciária de Brasília⁄DF, para o fim de:
“suspender os efeitos dos Atos 37.166 e 37.167, de 26.06.2003, 37.211 e 37.212, de 27.06.2003, da ANATEL e
para assegurar a aplicação da variação do índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPC-A) para reajuste máximo das
tarifas dos serviços de telefonia de assinatura residencial e pulsos; assinatura e habilitação não residenciais e tronco;
crédito de cartão telefônico; serviços de longa distância nacional; serviço de longa distância internacional e tarifas de
interconexão” (fl. 195), Telemar Norte Leste S⁄A, Brasil Telecom S⁄A, Sercomtel S⁄A – Telecomunicações, Cia
Telecomunicações do Brasil Central – CTBC, concessionárias de serviço público, acionaram perante o TRF
– 1ª Região, Agravo de Instrumento e pedido de Suspensão de Liminar, nos termos da Lei nº, 8.437⁄92, art.
4º, esse indeferido por decisão da Presidência da Casa, e mantida pela Corte Especial com o desprovimento do
Agravo Interno.
Com base em lesão à ordem pública e à econômica, decorrente da quebra do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, Lei nº 8.437⁄92, art. 4º, as concessionárias autoras apresentaram novo pedido
de Suspensão de Liminar aqui no Superior Tribunal de Justiça, indeferido pelo então Presidente, Ministro Nilson Naves, assim:
 
“Não obstante os relevantes argumentos esposados pelos requerentes – entre os quais a ruptura dos contratos firmados
–, não vislumbro presentes os pressupostos autorizadores do deferimento da drástica medida de suspensão de liminar.
A uma, porque a decisão a ser suspensa foi proferida no dia 11.9.03, ou seja, há mais de quatro meses, o que retira o
caráter de urgência inerente ao pedido de suspensão, certo que há muito estava aberta a competência do Superior Tribunal
para apreciar eventual pleito suspensivo.
A duas, porque, diante dos elementos acostados aos autos, verifico que a solução da controvérsia, que acredito há de
ser rápida, deverá ser buscada nas vias ordinárias e não nesta excepcional sede.
A propósito, assim se pronunciou o Relator Antônio Ezequiel, quando indeferiu o pedido de efeito suspensivo: “... até
deliberação da Turma no julgamento deste agravo, ao qual se dará prioridade, tão logo contraminutado, face à necessidade
de abreviar a solução do impasse criado sobre a matéria em discussão” (fl. 199).
Isso posto, indefiro o pedido” (fls. 365⁄367).
 
Tornam as Concessionárias, via Agravo Interno, refutando pontualmente tais argumentos, alegando plenamente satisfeito o requisito da urgência, porque:
- o acesso à jurisdição do Superior Tribunal de Justiça, ao contrário do que ali afirmado, não estava aberto
há muito tempo, porquanto o novo pedido de suspensão (ajuizado em janeiro⁄04) somente foi possível após o
julgamento do Agravo Interno disparado contra o indeferimento, em novembro⁄03, do pedido pela Presidência
do TRF – 1ª Região, ocorrido em dezembro⁄03 pela Corte Especial daquela Casa (certidão de fl. 257);
- sequer havia sido publicado referido Acórdão, tendo as peticionarias diligenciado para obter a certidão do
resultado do julgamento e instruírem o pedido aqui ingressado;
FGV DIREITO RIO
169
atividades e atos administrativos
- “o caráter de urgência, sob a perspectiva do usuário, é diuturno, haja vista a persistência da indevida cobrança
das tarifas residenciais majoradas pela decisão a ser suspensa” (fl. 507);
- “os prejuízos de altíssima monta sofridos pelas concessionárias aumentaram de forma mais contundente após
90 (noventa) dias de vigência da decisão” (fl. 507);
- em razão desse lapso, os valores residuais (valores autorizados pela ANATEL menos valores determinados
pela decisão), passam, em princípio, a ser insuscetíveis de cobrança, a teor do disposto na Resolução ANATEL
nº 85⁄98, art. 61.
O segundo fundamento adotado pela decisão impugnada - que o impasse sobre as tarifas seria solucionado
de forma célere nas vias ordinárias -, cai por terra, afirmam, porquanto se passaram meses e não se vislumbra
ainda a decantada celeridade. Não se está dando prioridade aos feitos, os agravos de instrumentos interpostos,
que se somam em razão da não unificação dos processos, apesar da determinação desta Corte nesse sentido (CC
39.590-RJ), ainda não forma incluídos em pauta para julgamento, apesar dos requerimentos formais feitos por
algumas das peticionarias para o seu pronto julgamento.
Reclamam ausência de pronunciamento sobre a alegação de vício da liminar a ser suspensa, consistente
na falta de oitiva da ANATEL, antes do deferimento da liminar proferida na Ação Civil Pública, fundamento
hábil ao deferimento do pedido de suspensão. O desrespeito a essa prescrição legal prejudicou a ANATEL e as
requerentes, que se viram privadas de seus direitos fundamentais à organização e ao procedimento, na medida
em que se esperava, em uma esfera mínima de previsibilidade, que não houvesse decisão sem a prévia oitiva da
pessoa jurídica de direito público (fl. 510).
Imiscuindo-se no mérito, comparam o IGP-DI (índice contratado) e o IPCA estabelecido na decisão a
ser suspensa, tendo por incorreta a adoção desse segundo, eis que cada índice reflete uma realidade econômica
distinta, sobre atividades produtivas diferentes, afirmando temerária a utilização de um índice como mero sucedâneo de outro.
Sustentam que os principais componentes do cálculo do IPCA são: alimentação e bebidas (31,75%), com
especificação de cada um dos gêneros (frutas, hortaliças, carnes, panificados); habitação (16,94%), artigos de
residência (8,93%); vestiário (7,52%); transportes (14,37%), saúde e cuidados pessoais (8,86%). Parâmetro
equivocado que reflete custos próprios de pessoas físicas, conforme definição do IBGE.
Em contrapartida, argumentam, o índice IGP-DI, previsto no Edital de Privatização, norteando os investimentos no setor, bem como contratualmente ajustado entre as partes desde a privatização do sistema Telebrás, há mais de cinco anos, considera as atividades produtivas em atacado e enfoca custos com a importação,
mostrando-se mais afinado para a atualização de custos inerentes à apresentação de um serviço de massa e em
que a importação de insumos é um dado relevante. Portanto, acrescentam, não refletindo as necessidades das
requerentes, o IPCA gera o desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, afrontando a ordem econômica,
notadamente quando expõe as concessionárias de telefonia a uma situação deficitária.
Têm por indevida a ingerência do Judiciário no caso, em que o índice ajustado nada tem de ilegal, nem se
mostra abusivo, não se estando a coibir eventuais abusos, mas ditando nova política setorial.
A Lei Geral das Telecomunicações (Lei nº 9.472⁄97) atribui à ANATEL a competência para executar essa
política, traduzindo-se a pretensão do Ministério Público, chancelada pela liminar que se quer suspender, verdadeira usurpação dessa função (art. 19, I e VII c⁄c art. 103, § § 1º e 3º), e, não declarada a ilegalidade do IGP-DI,
não se pode promover sua substituição.
Admitir tal postura, argumentam, “significaria atribuir uma ilegalidade transitória ao maior índice inflacionário da ocasião” (fl. 512); absurdo que mais se evidencia, quando se sabe que “para o próximo reajuste
a ser concedido em junho de 2004, referente ao ano de 2003, a variação do IPCA tende a ser maior do que a
do IGP-DI, em razão da notória queda do dólar no ano de 2003” (fl. 513). E aí, o Judiciário vai novamente determinar a aplicação do índice mais baixo, qualquer que seja ele? Retoma-se o IGP-DI, tornando o
IPCA ilegal para o reajuste? É um contra-senso que gera “manifesto abalo à ordem econômica, caracterizado,
FGV DIREITO RIO
170
atividades e atos administrativos
sobretudo, pela escolha circunstancial e casuística do índice adequado para o reajuste de uma relação contratual
presumivelmente estável” (fl. 513).
Arrematam reiterando os fundamentos trazidos na inicial, no sentido de que a decisão:
- potencializa a responsabilização civil do Estado por quebra do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão;
- ofende a ordem econômica, pela insegurança jurídica a que induz;
- a ANATEL, ao editar os atos de autorização dos reajustes pelo IGP-DI, o fez no exercício das prerrogativas legais que lhe atribuem o poder-dever de executar a política tarifária pré-fixada pelo Executivo;
 
“a decisão dá um suposto benefício tarifário ao usuário com uma mão e o retira com a outra, trazendo comprometimentos futuros, na medida em que se afeta a qualidade e a continuidade do serviço, bem como as possíveis reduções
tarifárias, com os ganhos de produtividade” (fl. 515).
 
E, finalmente, afronta o devido processo legal e a plenitude do direito de defesa, ao proferir a decisão sem
ouvir a ANATEL, repetem, ocasionando injustificado estado de insegurança jurídica, haja vista não se saber qual
o índice a ser ocasionalmente escolhido quando do próximo reajuste.
Relatei.
VOTO
 
O EXMO. SR. MINISTRO EDSON VIDIGAL (Relator): Ressalto, de início, que na excepcional medida de suspensão de liminar ou da sentença, onde se faz necessário sopesar os efetivos danos aos valores escudados
pela Lei nº 8.437⁄92, art. 4º, não se permite ao Presidente do Tribunal o exame da presença dos requisitos ensejadores da concessão da liminar, operação reservada para o julgamento do recurso cabível, sendo-lhe vedado,
igualmente, o reexame das razões de decidir do provimento judicial que deferiu a liminar que se quer ver suspensa. A ilegalidade, injustiça, error in procedendo e error in judicando têm sede própria para desate.
Não cabe, igualmente, examinar as questões de fundo envolvidas na lide, devendo a análise ater-se, somente, aos aspectos concernentes à potencialidade lesiva do ato decisório, em face das premissas estabelecidas
na Lei 8.437⁄92 (v. g. STJ - SS 815-DF, SS 821-RJ, e RTJ 143⁄23). Essa orientação, contudo, não deixa de
admitir um exercício mínimo de deliberação do mérito, sobretudo por ser medida de contracautela, vinculada
aos pressupostos da plausibilidade jurídica e do perigo da demora, que devem estar presentes para a concessão
das liminares.
 
“A aferição da tese conducente à suspensão quer de liminar, de tutela antecipada ou de segurança não prescinde do
exame do fundamento jurídico do pedido ... “ (STF - SS 2172, DJU 01.06.03).
 
Feito o registro, e atento a tal orientação, tenho que assiste razão às agravantes quando, impugnando o fundamento da decisão agravada, afirmaram o seu equívoco, eis que não havia sido inaugurado “há muito” o acesso
à jurisdição do Superior Tribunal de Justiça, retirando seu caráter de urgência, porquanto o julgamento do
Agravo Interno que interpuseram contra a decisão da Presidência do TRF – 1ª Região, se dera em dezembro⁄03
e acionado o novo pedido de suspensão, aqui no STJ, logo após, em janeiro⁄04. Era, pois, recente a abertura da
jurisdição do Superior Tribunal ao tempo da propositura do pedido.
É que, uma vez indeferido o primeiro pedido de suspensão pelo Vice-Presidente do TRF – 1ª Região, em
novembro⁄03, para a admissão do novo ou do segundo pedido de suspensão, fazia-se realmente necessário o
prévio julgamento do agravo interno acionado contra tal indeferimento, ou seja, a manifestação do colegiado
da Corte de origem sobre o ato presidencial, para viabilizar o ajuizamento do pedido de suspensão perante este
FGV DIREITO RIO
171
atividades e atos administrativos
Superior Tribunal de Justiça, ex vi Leis nºs 8.437⁄92, art. 4º, § 4º e 8.038⁄90, art. 25, como decidido aqui pela
Corte Especial nos AGR na SL 31-SP e AGR na SL 50-SC, j. em 19.04.04 e no STF, Pleno, AgRgSTA 10⁄PE,
Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ em 02⁄04⁄04.
Quanto ao fundamento de que a solução da demanda se avizinhava com a rapidez que o caso requeria,
também não se confirmou. A Ação Civil Pública foi ajuizada em junho⁄03, concedida a liminar em setembro⁄03,
mantida no TRF- 1ª com o indeferimento do pedido de suspensão em novembro⁄03, e em janeiro⁄04 aqui no
Superior Tribunal, com este Agravo Interno apresentado em fevereiro⁄04. Já se passaram mais de nove meses, até
agora, junho⁄04, e não se tem notícia do julgamento do Agravo oposto pelas Concessionárias, que por sua vez
teve o efeito suspensivo ativo negado em outubro⁄03 pelo Relator (fl. 199).
Também antevejo, em princípio, que o efeito da concessão da liminar com a determinação para “suspender
os efeitos dos Atos 37.166 e 37.167, de 26.06.2003, 37.211 e 37.212, de 27.06.2003, da ANATEL e para assegurar
a aplicação da variação do índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPC-A) para reajuste máximo das tarifas dos serviços de telefonia de assinatura residencial e pulsos; assinatura e habilitação não residenciais e tronco; crédito de cartão
telefônico; serviços de longa distância nacional; serviço de longa distância internacional e tarifas de interconexão” (fl.
195), exibe potencial suficiente a provocar lesão à economia pública, indo de encontro ao interesse público,
gerando, portanto, lesão à ordem pública administrativa.
Isto porque, em um primeiro e superficial exame, próprio dessa fase procedimental, vejo caracterizado o
risco inverso, refletido no cenário de insegurança jurídica que se instala, na medida em que a manutenção da
liminar, que, em princípio, admite a quebra do equilíbrio dos contratos e despreza os vultosos investimentos
feitos, pode sim causar perplexidade nos investidores, afastando-os, caos no sistema tarifário, a par de expor o
país aumentando o risco Brasil e prejudicando o usuário que se buscou proteger, lesando a ordem pública administrativa.
Sério e relevante o argumento trazido pelas agravantes, de que se fez opção pelo IPCA, sem o reconhecimento da ilegalidade do IGP-DI, o que justificaria, em tese, sua substituição, e a ANATEL, a quem cabe executar a política tarifária pré-fixada pelo Executivo, não poderia agir de forma diversa e adotar um índice diferente
do estipulado em contrato (fl. 517). Portanto, o “abalo à segurança jurídica decorre do fato, já mencionado, de
que a opção pelo IPCA foi simplesmente porque se entendeu que a variação do IGP-DI foi excessiva, em uma análise
comparativa, tal como assinalado ... não há dúvida que a decisão que se pretende suspender ocasiona inegável estado
de insegurança jurídica, haja vista que não se sabe qual o índice a ser ocasionalmente escolhido quando de um próximo
reajuste” (fl. 519).
Assim, reconsiderando, dou provimento ao Agravo para suspender a decisão liminar exarada nos autos da Ação Civil Pública nº 2003.34.00.031115-0 e confirmada nos autos da Suspensão de Liminar nº
200301000349887, restabelecendo, via de conseqüência, os Atos nºs 37.166⁄2003, 37.167⁄2003, 37.211⁄2003
e 37.212⁄2003 da ANATEL, até o trânsito em julgado da decisão de mérito proferida na Ação Civil Pública (Lei
nº 8437⁄92, art. 4º, § 9º).
É o voto.
 
 
 
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atividades e atos administrativos
AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)
 
VOTO
 
 
O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES: Sr. Presidente, neste caso, há um dramático argumento,
qual seja, o da ruptura dos contratos firmados. Quando, no ano passado, no mês de julho, decidi pela primeira
vez essa questão, como Presidente do Superior Tribunal, tal circunstância, ou seja, a da ruptura, não deixou de
me atormentar. Ocorre que, naquela oportunidade, o que estava diante dos meus olhos era um conflito entre alguns juízes, devendo eu, dessa maneira, definir, naquele momento, apenas a competência; foi, então, o que fiz.
Mas o Juiz de Brasília, eleito para a causa, acabou decidindo da mesma forma como decidira o Juiz de
Fortaleza. Daí o agravo, no qual depositei a minha esperança, porque o relator, no Tribunal Regional Federal,
havia dito que lhe daria toda prioridade. Conquanto isso não tenha acontecido, porque o agravo ainda não foi
julgado, a mim me parece, data venia, que a decisão que tomei, indeferindo esse segundo pedido de suspensão,
há de prevalecer, porque também me parece que a questão há de ter solução pronta e acabada no juízo competente, ou seja, no juízo ordinário, e não aqui na via excepcional.
Data venia do Ministro Edson Vidigal, meu voto é no sentido de negar provimento ao agravo regimental.
 
 
AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)
  
VOTO – VENCIDO
  
O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO: Sr. Presidente, rogo vênia ao Sr. Ministro Relator para
acompanhar a divergência. Primeiro, porque penso que não se acham presentes, no caso, os pressupostos estabelecidos no art. 4º da Lei n° 8.437⁄92, ou seja, não se vê, de plano, grave lesão à ordem, saúde, segurança e
economia pública.
Por outro lado, a questão referente a prevalecer o IGPI de um lado ou o IPCA de outro é matéria, como
acabou de mencionar o Sr. Ministro Nilson Naves, a ser dirimida na via própria, no recurso próprio, que é o
agravo de instrumento interposto pelas concessionárias contra a decisão do magistrado singular que concedeu
a medida liminar.
Nessa linha, nego provimento ao agravo regimental.
  
CERTIDÃO
 
Certifico que a egrégia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta
data, proferiu a seguinte decisão:
Após o voto do Sr. Ministro Relator, dando provimento ao agravo regimental, e os votos dos Srs. Ministros Nilson Naves e Barros Monteiro, negando-lhe provimento, pediu vista o Sr. Ministro Francisco Peçanha
Martins.
Aguardam os Srs. Ministros Humberto Gomes de Barros, Cesar Asfor Rocha, Ari Pargendler, José Delgado, José Arnaldo da Fonseca, Fernando Gonçalves, Carlos Alberto Menezes Direito, Felix Fischer, Gilson Dipp,
Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon, Paulo Gallotti, Franciulli Netto e Luiz Fux.
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atividades e atos administrativos
Ausentes, justificadamente, o Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira e, ocasionalmente, o Sr. Ministro
Francisco Falcão.
O referido é verdade. Dou fé.
 Brasília, 16 de junho de 2004
 
VANIA MARIA SOARES ROCHA
Secretária
 
AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)
VOTO-VOGAL
 
MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS: Sr. Presidente, o Sr. Ministro-Relator fez largo relatório e, se me recordo, terminou por dar provimento ao agravo regimental, prevendo-se uma solução rápida no
Tribunal a quo, o que não ocorreu. Parece-me que, realmente, é difícil assumirmos a posição de Banco Central
e optar entre três moedas possíveis, dentre ela, o IPCA.
Portanto, acompanho o voto de V. Exa., dando provimento ao agravo regimental.
 
 
AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)
VOTO
 
O EXMO. SR. MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO:
Senhor Presidente, acompanho o voto do Senhor Ministro Relator, sublinhando a fundamentação a respeito do cabimento da matéria em pedido de suspensão. Na realidade, trata-se de serviço de telefonia, de violentação do contrato estabelecido, e isso, evidentemente, está incorporado à competência desta Corte quando
examina o pedido de suspensão da segurança.
Ademais, gostaria de salientar – assim como fez o Senhor Ministro Edson Vidigal, se bem me lembro - que
essa decisão da Corte, parece-nos, diante da intervenção das próprias concessionárias, não terá nenhum efeito
retroativo, ou seja, em uma palavra, valerá para o futuro sem qualquer repercussão para o passado.
Com essas anotações, dou provimento ao agravo regimental.
 
 
AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)
 
VOTO-VENCIDO
 
EXMO. SR. MINISTRO FRANCIULLI NETTO: Sr. Presidente, pedindo vênia ao Sr. Ministro-Relator,
acompanho a divergência.
Nego provimento ao agravo regimental.
 
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AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)
 
VOTO-VOGAL
 
O EXMO. SR. MINISTRO LUIZ FUX: Sr. Presidente, quero deixar um destaque ao que foi suscitado
pelo Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito.
Recordo-me de que essa matéria foi decidida na última sessão da Corte Especial, e versa sobre direitos
disponíveis. Por isso, subiu à tribuna um ilustre advogado que se manifestou no sentido de que essa decisão não
atingiria efeitos retro-operantes. O Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito bem destacou esse aspecto. Na
Turma de Direito Público, há pouco tempo decidimos uma questão, não sei se de energia, em que havia várias
liminares, e, depois de decidido o conflito, gerou-se uma perplexidade em saber qual a liminar que prevaleceria, se seria IPCA, IGPC, enfim, as moedas várias referidas pelo Sr. Ministro Humberto Gomes de Barros; até
porque está no Código de Processo Civil, e, por se tratar de incompetência absoluta, declaramos a nulidade
daqueles atos decisórios.
Entendo que seria muito interessante não só seguir esse respeito aos contratos, como disse o Sr. Ministro
Ari Pargendler, e porque isso privilegia o nosso País como um país sério de cumprimento das avenças que pactuou, mas também porque essas decisões, que atingem interesses individuais homogêneos e transindividuais,
têm que ser claras, na medida em que dissipem eventuais perplexidades. É muito importante que conste da
decisão da Corte Especial que essa decisão vale daqui para frente, não atinge efeitos retro-operantes como bem
salientou o Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito.
Voto nesse sentido, fazendo essa ressalva derivada de uma preocupação que vivemos na própria pele quando decidimos essa questão na Seção de Direito Público.
Dou provimento ao agravo regimental.
 
PRESIDENTE O SR. MINISTRO ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO
RELATOR O SR. MINISTRO EDSON VIDIGAL
SESSÃO DA CORTE ESPECIAL EM 01⁄07⁄2004
Nota Taquigráfica
 
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
CERTIDÃO
 
Certifico que a egrégia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta
data, proferiu a seguinte decisão:
 Prosseguindo no julgamento, após o voto do Sr. Ministro Humberto Gomes de Barros, acompanhando
o voto do Sr. Ministro Relator, e os votos dos Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Ari Pargendler, José Arnaldo
da Fonseca, Fernando Gonçalves, Carlos Alberto Menezes Direito, Felix Fischer, Hamilton Carvalhido, Eliana
Calmon, Paulo Gallotti e Luiz Fux, no mesmo sentido, a Corte Especial, por maioria, vencidos os Srs. Ministros
Nilson Naves, Barros Monteiro e Franciulli Netto, deu provimento ao agravo regimental, no sentido de manter
o ato da Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL, que fixou o índice de correção para reajuste das
tarifas telefônicas pela aplicação do IGPDI, sendo que esse reajuste não terá efeito retroativo, só será aplicado
após a proclamação desta decisão, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Humberto Gomes de Barros, Cesar Asfor Rocha, Ari Pargendler, José Arnaldo da Fonseca, Fernando Gonçalves, Carlos Alberto Menezes Direito, Felix Fischer, Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon,
Paulo Gallotti e Luiz Fux votaram com o Sr. Ministro Relator.
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atividades e atos administrativos
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Sálvio de Figueiredo Teixeira, José Delgado, Gilson Dipp e
Francisco Falcão, sendo os três últimos substituídos, respectivamente, pelos Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Hélio Quaglia Barbosa e Castro Meira.
Afirmou suspeição o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins.
Não participaram do julgamento os Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Castro Meira e Hélio Quaglia
Barbosa.
O referido é verdade. Dou fé.
 
Brasília, 01 de julho de 2004
 
VANIA MARIA SOARES ROCHA
Secretária
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Patrícia Regina Pinheiro Sampaio
Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora do
Programa de Educação Continuada da FGV Direito Rio. Advogada.
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FICHA TÉCNICA
Fundação Getulio Vargas
Carlos Ivan Simonsen Leal
PRESIDENTE
FGV DIREITO RIO
Joaquim Falcão
DIRETOR
Fernando Penteado
VICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO
Luís Fernando Schuartz
VICE-DIRETOR ACADÊMICO
Sérgio Guerra
VICE-DIRETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO
Luiz Roberto Ayoub
PROFESSOR COORDENADOR DO PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO EM PODER JUDICIÁRIO
Ronaldo Lemos
Coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade
Evandro Menezes de Carvalho
COORDENADOR ACADÊMICO DA GRADUAÇÃO
Rogério Barcelos
COORDENADOR DE ENSINO DA GRADUAÇÃO
Tânia Rangel
COORDENADORA DE MATERIAL DIDÁTICO
Ana Maria Barros
COORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES
Vivian Barros Martins
COORDENADORA DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Lígia Fabris e Thiago Bottino do Amaral
COORDENADORes DO NÚCLEO DE PRÁTICAS JURÍDICAS
Wania Torres
COORDENADORA DE SECRETARIA DE GRADUAÇÃO
Diogo Pinheiro
COORDENADOR DE FINANÇAS
Milena Brant
COORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO
FGV DIREITO RIO
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13:38, 7 Agosto 2008 - Acadêmico de Direito da FGV