atividades e atos administrativos Autor: Sérgio Guerra COLABORAÇÃO: Patrícia Sampaio Professor: Ricardo Couto de Castro 2ª edição ROTEIRO De CURSO 2008.2 Sumário Atividades e atos administrativos INTRODUÇÃO .................................................................................................................................................................................4 Conteúdo da disciplina................................................................................................................... 4 Metodologia................................................................................................................................... 5 Desafios/Dificuldades do Curso...................................................................................................... 5 Método de avaliação....................................................................................................................... 5 Atividades complementares............................................................................................................. 5 Plano de aula...............................................................................................................................................................................6 Bloco 1: Princípios da Administração Pública.................................................. 6 Aula 1: O princípio da supremacia do interesse público e sua releitura na pós-modernidade........... 7 Aula 2: Princípio da legalidade e poder regulamentar.................................................................... 11 Aula 3: Princípio da legalidade, vinculação e discricionariedade administrativa............................. 18 Aula 4: Princípio da legalidade e a densificação de conceitos jurídicos indeterminados pela Administração Pública...................................................................................................... 22 Aula 5: Os princípios da finalidade, da impessoalidade e da motivação.......................................... 29 Aula 6: Os princípios da segurança jurídica, boa-fé e proibição do venire contra factum proprium da Administração............................................................................................................. 34 Aula 7: Os princípios da moralidade, da eficiência e da publicidade dos atos administrativos........ 38 Bloco II – Poder de Polícia.......................................................................................... 45 Aula 8: Poder de polícia: significado e conteúdo............................................................................ 46 Aula 9: Poder de polícia II: limites da intervenção do Estado sobre a atividade econômica. Licenciamento e autorizações........................................................................................... 49 Bloco III – Administração Pública Direta e Indireta................................... 52 Aula 10: Administração pública direta e indireta: o regime jurídico das autarquias e das universidades................................................................................................................... 53 Aula 11: Administração pública direta e indireta: o regime jurídico das empresas públicas e das sociedades de economia mista.......................................................................................... 56 Bloco IV: Ato administrativo.................................................................................... 61 Aula 12: Elementos e características do ato administrativo............................................................ 62 Aula 13: Extinção do ato administrativo....................................................................................... 65 Bloco V: Licitações e contratos administrativos....................................... 69 Aula 14: Princípios da licitação..................................................................................................... 70 Aula 15: Modalidades da licitação, dispensa e inexigibilidade........................................................ 74 Aula 16: As fases da licitação......................................................................................................... 80 Aula 17: Regime jurídico dos contratos administrativos................................................................ 83 Aula 18: Extinção do contrato administrativo............................................................................... 89 Bloco VI: Bens públicos................................................................................................. 96 Aulas 19 e 20: Regime jurídico dos bens públicos......................................................................... 97 Bloco VII: Limitações à propriedade privada.................................................. 103 Aula 21: Tombamento, requisição e ocupação temporária. Limitações administrativas................ 104 Aula 22: Servidões administrativas.............................................................................................. 108 Aula 23: Desapropriação............................................................................................................. 111 Bloco VIII – Serviços públicos.................................................................................. 116 Aula 24: Regime jurídico dos serviços públicos........................................................................... 117 Aula 25: Prestação dos serviços públicos . ................................................................................... 120 Anexo 1 – Legislação complementar...................................................................................................................................... 123 Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967.......................................................................... 123 Medida Provisória no 2.220, de 4 de setembro de 2001.............................................................. 135 Anexo 2 – Jurisprudência........................................................................................................................................................ 138 Supremo Tribunal Federal – PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES............................ 138 AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)...................................... 169 AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)...................................... 173 AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1)...................................... 175 atividades e atos administrativos INTRODUÇÃO O objetivo do Curso de Atividades e Atos Administrativos é apresentar aos alunos uma visão sistêmica de alguns dos principais temas afetos ao direito que regem a atividade da Administração Pública, por meio de uma abordagem principiológica e crítica dos principais institutos de Direito Administrativo. Conteúdo da disciplina O curso inicia-se com a discussão das mutações observadas na relação poder público – cidadão ao longo do tempo e, conseqüentemente, do conteúdo do princípio da supremacia do interesse público desde a consolidação dos Estados modernos. Em seguida serão apresentados os princípios constitucionais que regem a Administração Pública, problematizando o seu conteúdo e a sua abrangência. Na seqüência, explana-se sobre a disciplina do poder de polícia e, posteriormente, a formação da estrutura administrativa do Estado, quando se terá oportunidade de observar as distintas configurações jurídicas das entidades que participam da Administração Pública, distinguindo-se entre Administração Direta e Indireta, assim como entre pessoas jurídicas de direito público e privado afetas à atividade estatal. Passa-se, então, à atividade administrativa, discutindo-se os principais temas atinentes ao ato administrativo prosseguindo com ao estudo da disciplina jurídica das licitações públicas – a forma ordinária de contratação pela Administração Pública – e dos contratos administrativos. O Curso abordará ainda o tema dos bens públicos e as formas de intervenção do Estado sobre a propriedade privada, dentre elas, a desapropriação, a servidão administrativa, a requisição e o tombamento. O semestre terminará com a introdução do tema dos serviços públicos, abordando-se a evolução histórica do conceito e suas principais características. Esse conteúdo será essencial para o Curso de Serviços Públicos e Controle da Administração Pública, o qual será iniciado com a discussão da reforma do Estado vivenciada pelo país ao longo da década de 90 do século XX e a conseqüente reafirmação do instituto da delegação da prestação de serviços públicos à iniciativa privada como elemento central nesse processo. Em síntese, o Curso será composto dos seguintes blocos: • Bloco I: Princípios da Administração Pública • Bloco II: Poder de polícia • Bloco III: Administração pública direta e indireta • Bloco IV: Ato administrativo • Bloco V: Licitações e contratos administrativos • Bloco VI: Bens públicos • Bloco VII: Intervenção do Estado sobre a propriedade privada • Bloco VIII: Serviços públicos FGV DIREITO RIO 4 atividades e atos administrativos Metodologia A metodologia do curso é eminentemente participativa, requerendo intensa interação dos alunos nos debates em sala e preparo prévio para as aulas, mediante a leitura das indicações bibliográficas obrigatórias e, sempre que possível, das leituras complementares. Também serão produtivas as iniciativas dos alunos que trouxerem assuntos ligados aos temas tratados, e que estejam nas pautas dos principais veículos da imprensa. Em razão desta natureza eminentemente dialética, a presente apostila foi estruturada em 25 aulas para um total de 28 encontros, já antevendo que algumas matérias poderão se prolongar por mais de uma aula. Desafios/Dificuldades do Curso O Curso exigirá do aluno uma visão reflexiva do Direito Administrativo e capacidade de relacionar a teoria exposta na bibliografia e na sala de aula com outras disciplinas, especialmente o Direito Constitucional. O desafio é construir uma visão contemporânea e pósmoderna do Direito Administrativo, centrado na proteção da dignidade da pessoa humana e no respeito aos direitos dos cidadãos, buscando sempre cotejar o conteúdo da disciplina com a realidade do país. Método de avaliação A avaliação será composta por duas provas de igual peso. A média final será a média aritmética entre as duas notas obtidas pelo aluno, notas por conceito e eventuais atividades complementares que venham a ser oportunamente solicitadas aos alunos. Atividades complementares Poderão ser definidas atividades complementares, de acordo com a evolução das discussões sobre os temas. FGV DIREITO RIO 5 atividades e atos administrativos Plano de aula Bloco 1: Princípios da Administração Pública Objetivo: Há que se considerar no Direito Administrativo um conjunto de condições que envolvem apenas a estrutura burocrática do Governo e que integram a organização administrativa necessária para manter o funcionamento dos serviços essenciais do Estado e superintender ou controlar o funcionamento daqueles sujeitos à iniciativa privada ou criados com autonomia.1 Direito Administrativo é o conjunto de princípios que regem a atividade administrativa não contenciosa do Estado, e a instituição dos meios e órgãos da sua ação em geral.2 Não. Este não é mais o objeto do Direito Administrativo vivenciado na denominada pós-modernidade. Há, por certo, um enriquecimento do direito administrativo no século XXI com o intercâmbio de questões com o direito privado e com o direito administrativo alienígena, este num ambiente de internacionalização do próprio direito. Nesse sentido, o direito administrativo atual deve observar as normas principiológicas e o novo rol de temas que permeia a sociedade de riscos, notadamente a eloqüente tecnicidade que impõe uma análise sistêmica do campo jurídico para se alcançar a justiça. O objetivo deste bloco é debater, em profundidade, os princípios que regem a atuação da Administração Pública na pós-modernidade, tendo em vista a sua importância como intérprete de toda a disciplina do Direito Administrativo constitucionalizado ou legalizado. O bloco é composto pelas Aulas 1 a 7. CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Curso de Direito Administrativo. 7.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1954. 1 Mazagão, Mario. Preleções de Direito Administrativo. São Paulo: LINOTECHNICA, 1937, p. 61. 2 FGV DIREITO RIO 6 atividades e atos administrativos Aula 1: O princípio da supremacia do interesse público e sua releitura na pós-modernidade Objetivo: O objetivo desta primeira aula é apresentar um breve panorama histórico do desenvolvimento do princípio da supremacia do interesse público, buscando demonstrar a necessidade de sua releitura na pós-modernidade, a partir de um ordenamento jurídico centrado na proteção da dignidade da pessoa humana. Introdução: Para abordamos o tema da releitura da supremacia do interesse público sobre o interesse de cada um dos cidadãos, deve-se marcar, como ponto fundamental, o debate surgido no constitucionalismo do século XX a partir da sua segunda metade. Nessa fase histórica, verificou-se, em diversos Estados, a experimentação de uma forte aspiração por democracia, podendo-se destacar dois importantes marcos simbólicos deste período: a queda do muro de Berlin (1989) e o fim da União Soviética (1991). Os movimentos responsáveis em grande parte por essas mudanças decorrem da globalização, do amplo processo desestatizante surgido no bojo do modelo neoliberal, e da complexidade cotidiana denominada de a era das informações3. Pelo modelo neoliberal cabe ao setor privado o papel de “organizar” a economia de mercado, de modo que à iniciativa privada seriam destinados os bônus e os ônus da flutuação mercadológica. Contudo, a simples redução do Estado ao patamar mínimo – a exemplo do que ocorreu no modelo liberal oitocentista – não corresponderia aos anseios da sociedade nem, tampouco, às necessidades de equilíbrio do sistema econômico (em benefício dele próprio), do sistema social e dos interesses individuais. No Brasil, se é certo que a Carta Magna de 1988 absorveu os influxos neoliberalizantes, pautando a Ordem Econômica sob o princípio da livre iniciativa e na valorização do trabalho humano, também é certo afirmar que, seguindo a linha aberta pelas Cartas da Alemanha (1949), Grécia (1975), Portugal (1976) e Espanha (1978), a nossa Lei Fundamental colocou o cidadão – e o respeito a sua dignidade – no centro do ordenamento jurídico. Nesse novo sistema, o jusnaturalismo liberal e o intervencionismo social cedem lugar à intervenção estatal na ordem econômica e social, com vistas à busca do bem-estar social e individual, numa permanente ponderação dos interesses envolvidos. Sob esse enfoque, busca-se, a partir da década de 90 do século passado, um novo marco teórico para a administração pública, que substitua a perspectiva burocrática weberiana até então aplicada, despontando entidades estatais em setores estratégicos, que mantêm uma maior proximidade do cidadão. Há um reconhecimento de que as democracias contemporâneas não se configuram em instrumentos para garantir apenas a propriedade e os contratos. Ao contrário, as modernas formas de administração dos diversos interesses – não mais encarando um interesse público predeterminado como poder supremo – devem formular e implementar políticas estratégicas para suas respectivas sociedades, tanto no sistema social como no campo científico e Sobre a era da informação, economia, sociedade e cultura, ver o primeiro volume da trilogia de CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 8.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. 3 FGV DIREITO RIO 7 atividades e atos administrativos tecnológico, ambos umbilicalmente atados ao sistema econômico. Nesse contexto, o Estado se vê compelido a adotar práticas gerenciais modernas e eficientes, sem perder de vista sua função eminentemente pública. No atual período pós-moderno, a relativização do positivismo (pós-positivismo), a conciliação e convivência harmônica entre valores, princípios e regras se traduzem em alguns dos assuntos mais relevantes do Estado Democrático de Direito. No estágio em que se encontra o multilateralismo e pluralismo social há um conjunto de valores conflituosos, com numerosas dependências recíprocas, de modo que a intervenção estatal, em um determinado aspecto do conjunto social, acaba por refletir em outro segmento. Isso faz com que, em determinadas situações, os benefícios advindos da intervenção para um “determinado interesse público” sejam irrazoáveis e desproporcionais aos problemas e desvantagens que acarretarão para “outros interesses públicos” ou para direitos individuais. Pelos aspectos antes ressaltados, deve se fazer uma releitura da concepção clássica da noção e primazia do interesse público, adotado como fundamento para a legitimação dos atos e medidas no âmbito da Administração Pública. Na atualidade há, de maneira muito mais clara, necessidade de se perseguir uma verdade objetiva – e não absoluta – dando-se importância aos indivíduos e a dignidade humana, com relevo dos direitos e garantias fundamentais. A problemática do tema tem o seu cerne na impossibilidade de adoção de um interesse público unívoco, e, portanto, a inviabilidade de se cogitar a existência de um “princípio” de supremacia desse mesmo interesse público. Vale lembrar que a doutrina majoritária, com destaque para Ronald Dworkin, sustenta que na pós-modernidade a estrutura normativa é composta por princípios e regras jurídicas.4 Os princípios, que são mais genéricos e abstratos do que as regras, não estão subsumidos a uma situação de fato, possuindo uma dimensão de peso ou importância. Para sua aplicação, não importa que os princípios estejam previstos no texto constitucional ou não. Nessa linha, Karl Larenz define os princípios como sendo normas jurídicas que não possuem uma situação fática determinada. Segundo esse doutrinador, princípios: enquanto “idéias jurídicas materiais” são manifestações especiais da idéia de Direito, tal como esta se apresenta no seu grau de evolução histórica, alguns deles estão expressamente declarados na Constituição ou noutras leis; outros podem ser deduzidos da regulação legal, da sua cadeia de sentido, por via de uma “analogia geral” ou do retorno à ratio legis; alguns foram “descobertos” e declarados pela primeira vez pela doutrina ou pela jurisprudência, as mais das vezes atendendo a casos determinados, não solucionáveis de outro modo, e que logo se impuseram na “consciência jurídica geral”, graças à força de convicção a eles inerente. Decisiva permanece a sua referência de sentido à idéia de Direito.5 A teoria principiológica teve fundamental contribuição com os estudos elaborados por Ronald Dworkin, em 1967, contra o positivismo. Para esse autor, as regras são adotadas pelo método all or nothing, vale dizer, “dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão”.6 Assim, se uma regra se confronta com outra, uma delas deve ser considerada inválida.7 De outra parte, Dworkin destaca a questão dos pesos entre princípios (dimension of weight), de modo que na hipótese de colisão prevalece o de maior peso sem excluir o outro totalmente: CANOTILHO apresenta cinco critérios para distinguir regras e princípios: “a) grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida; b) grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras, enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta; c) grau de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex. princípio do Estado de Direito); d) proximidade da idéia de direito: os princípios são ‘standards’ juridicamente vinculantes radicados na idéia de ‘justiça’ (DWORKIN) ou na ‘idéia de direito’ (LARENZ); as regras podem ser norma vinculativas com um conteúdo meramente funcional; e) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante”. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1993, pp. 166/167. 4 Metodologia na ciência do direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 577. 5 6 Op. cit., p. 39. DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Harvard University Press, 1977, p. 43. Há tradução para o vernáculo: Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 7 FGV DIREITO RIO 8 atividades e atos administrativos Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se entrecruzam (...), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular seja mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é.8 E conclui: “O homem que deve decidir uma questão vê-se, portanto, diante da exigência de avaliar todos esses princípios conflitantes e antagônicos que sobre ela incidem e chegar a um veredicto a partir desses princípios, em vez de identificar um dentre eles como ‘válido’”.9 O professor alemão Robert Alexy complementou o pensamento de Dworkin, ao sustentar que o princípio, como espécie de norma jurídica, não determina as conseqüências normativas de forma direta, ao contrário das regras. Daí definir os princípios como “mandamentos de otimização”, aplicáveis em vários graus normativos e fáticos.10 Por suas palavras, “princípios são proposições normativas de um tão alto nível de generalidade que podem via de regra não ser aplicados sem o acréscimo de outras premissas normativas e, habitualmente, estão sujeitos às limitações por conta de outros princípios”.11 Nesse sentido, quando ocorre uma colisão de princípios é preciso que a Administração Pública verifique qual deles possui maior peso. A solução somente advém da ponderação do caso concreto. Deste modo, como pensar em um suposto princípio da supremacia do interesse público, prevalente teórica e antecipadamente12 sobre o interesse privado, enquanto a Constituição Federal de 1988 se volta, como eixo central, à proteção do indivíduo e de sua dignidade? Por isso a doutrina sustenta que “tende a modificar-se também o entendimento de sacrifício de um interesse em benefício de outro, ou de primazia de um sobre outro interesse”.13 Nessa ordem de convicções, desponta de capital importância o estudo do tema, notadamente sob o enfoque da proporcionalidade como mecanismo de ponderação de interesses. Leitura obrigatória: JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, capítulos I e III. Caso gerador: A participação em aula será exigida a partir da discussão do caso citado abaixo, decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (AgRg na SL nº 57/DF), na qual se observa um profundo embate entre interesses públicos e interesses privados. O inteiro teor da decisão encontra-se no Anexo II desta apostila. Eis uma breve apresentação da controvérsia nela enfrentada: O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública em face da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, com vistas à sustação dos atos da agência reguladora que 8 Op. cit., pp.42-43. 9 Op. cit., p. 114. “Os princípios são mandatos de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não apenas depende das possibilidades reais como também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos.” Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 86. Ver, ainda, o artigo “Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no Estado de Direito Democrático”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.217: I-VI, pp. 67-79, jul./set.1999, que sintetiza sua palestra no Brasil no ano de 1998. 10 Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, p.248. 11 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 105. 12 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 183. 13 FGV DIREITO RIO 9 atividades e atos administrativos haviam permitido o reajuste da tarifa de telefonia fixa comutada com base no IGP-DI, o índice previsto nos contratos de concessão celebrados por ocasião do Programa Nacional de Desestatização. Em sua petição, o Ministério Público sustentou que a implementação do reajuste contratualmente previsto teria por efeito o aumento em 25% da tarifa residencial, onerando demasiadamente o orçamento da população brasileira como um todo, com grave dano ao interesse público. Dessa forma, o Parquet requereu a substituição do referido índice pelo INPC, que naquele ano havia apresentado variação significativamente inferior ao IGP-DI. Na visão do Ministério Público, os atos da ANATEL violavam o direito difuso dos usuários do serviço público a tarifas módicas. De outro lado, alegavam as concessionárias que a promoção do interesse público, no caso, consistia na preservação dos contratos celebrados pela Administração Pública e na manutenção do seu equilíbrio econômico-financeiro, meio necessário para permitir às concessionárias conservarem a qualidade, a continuidade e as metas de universalização dos serviços públicos concedidos. Alegavam, ainda, que caso o Poder Judiciário determinasse a alteração no índice de recomposição inflacionária contratualmente acordado, estaria promovendo a insegurança jurídica e afugentando novos investidores, realidade que, inclusive, feriria a Ordem Econômica constitucionalmente estabelecida. Com base nas considerações acima tecidas, analise criticamente o conteúdo do princípio da supremacia do interesse público. Bibliografia complementar: ARAGÃO, Alexandre Santos de. “A ‘supremacia do interesse público’ no advento do Estado de Direito Contemporâneo e na hermenêutica do direito público contemporâneo”. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 1-22. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Princípios informativos e interpretativos do direito administrativo”. In: Mutações do Direito Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 265-313. SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica. Porto Alegre: Celso Antonio Fabris Ed., 1986; FGV DIREITO RIO 10 atividades e atos administrativos Aula 2: Princípio da legalidade e poder regulamentar Objetivo: Discutir o conteúdo do poder regulamentar da Administração Pública face ao princípio da legalidade estrita Introdução: Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello14, o princípio da legalidade é capital para a configuração do regime jurídico-administrativo, pois é aquele que qualifica o Estado de Direito e que lhe dá identidade própria. A idéia de administração pública só pode ser exercida em conformidade com a lei, sendo, portanto, sublegal, infralegal, consistente em comandos complementares à lei. A finalidade é que a lei possa combater a exacerbada personificação dos governantes, sendo o antídoto natural do poder monocrático ou oligárquico, pois tem como raiz a idéia de soberania popular, de exaltação da soberania. Malgrado esse pensamento, parte da doutrina sustenta que estamos vivendo no período da pós-modernidade15, e, no campo do Direito, isto representa a transposição do positivismo jurídico clássico, doutrina de pensamento que se hospedou em diversos países – como o Brasil – filiados ao tronco jurídico romano-germânico. Se de um lado a doutrina contemporânea16 perfilha o entendimento de que a estrutura normativa é composta por princípios e regras jurídicas, isto é, os princípios, que são mais genéricos e abstratos do que as regras, não estão subsumidos a uma situação de fato (possuindo uma dimensão de peso ou importância), o normativismo lógico, nos termos sustentados pela Escola de Viena (e que teve no gênio de Hans Kelsen o seu grande luminar - criador da chamada Teoria Pura de Direito), ainda impregna o mundo jurídico e vincula os atos da Administração Pública no Brasil. Vale lembrar que para o positivismo, o ser (realidade) não pode derivar do dever-ser (o direito). Essa, em apertada síntese, representa a tese primordial dessa doutrina gerada no seio do liberalismo econômico burguês. A dissociação entre realidade (ser) e direito (deverser) conduz à ilusão de que o direito cria a sua própria realidade, puramente normativa e meramente ideativa, por conseguinte, infensa a valores, considerações políticas, sociológicas, econômicas etc., dissociada da realidade complexa e sempre dinâmica da vida, notadamente no campo do sistema econômico. Esse distanciamento entre o “ser” e o “dever-ser”, contudo, não resiste a muitas necessidades cotidianas e à alta complexidade e tecnicidade da vida, e, portanto, deve ser repensado. Entretanto, para compor a relação entre os interesses públicos e privados o Estado intervém sob várias formas, mas, essencialmente, adota políticas públicas para direcionar a relação entre o âmbito social e econômico. Para o exercício desse poder-dever o Estado se vale de normas jurídicas, conduzindo as políticas econômicas e sociais de modo a manter (ou perseguir) o equilíbrio entre os interesses pluralistas envolvidos e que, em grande parte, encontram-se em situação contraposta, numa permanente ambivalência. Curso de Direito Administrativo. 14.ed. São Paulo: Malheiros, p. 83. 14 Sobre o não cumprimento das “promessas da modernidade” e os aspectos da ambivalência na pós-modernidade, ver: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. A obra original, denominada Modernity and ambivalence, foi publicada, em sua 3ª edição, no ano de 1995, pela Polity Press, Cambridge, Inglaterra. Ver, ainda, questões sobre ambivalência nos artigos de BECK, Ulrich e LASH, Scott na obra Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. 15 Nesse sentido, ver Ronald Dworkin. Taking rights seriously. Harvard University Press, 1977. O assunto também é abordado pelo Autor nas obras: O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999; e Uma questão de princípio. Tradução de Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 16 FGV DIREITO RIO 11 atividades e atos administrativos Nessa ordem de idéias, é de notar-se que, se de um lado o poder de decisão das questões de natureza política primária compete ao Poder Legislativo na edição de normas jurídicas, por outro é indisputável que a lei não pode regular o direito nos detalhes que a solução dos problemas cotidianos exige. Daí porque há necessidade de que o Poder Executivo tenha, em muitas situações, de atuar sem uma conduta totalmente pré-determinada por uma norma, sempre, porém, balizado por certos limites jurídicos. Sob uma visão atual, discorre Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao tecer comentários sobre a transição da fase legalista e totalmente avessa a qualquer tipo de delegação normativa, para inaugurar, nas sociedades pluralistas e de massa dos dias de hoje, a fase de uma legalidade temperada, em que se admite o instituto da delegação normativa e da deslegalização: Este princípio de reserva legal, que se constitui numa garantia individual fundamental, tem sido, por longa tradição, adotado nos ordenamentos constitucionais, ditando uma interpretação restritiva do princípio da separação de poderes, que assim prevaleceu durante um longo período de amadurecimento do Direito Público, passando por duas fases: a primeira, de absoluta inaceitação e, depois, da aceitação limitada da delegabilidade da função normativa (...) A lei, como conceito iluminista-racionalista, enquanto produto do Estado formalmente manifestado pelos órgãos legislativos constitucionais, parece ter atingido seu zênite como instrumento regrador de condutas sociais. Com efeito, o pluralismo, ao multiplicar os centros de poder na sociedade, tornando-a policrática, fez despontar novas fontes normativas autônomas e semi-autônomas que atuam com vantagem como sucedânea da norma legal. Por outro lado, a omnímoda submissão da sociedade a uma excessiva padronização e detalhamento de comportamentos por via legislativa, a pretexto de racionalizá-los e de impor critérios tidos como superiores, acaba paradoxalmente desservindo à ordem jurídica, não só por banalizá-la, como pelo desgaste que causa a babel provocada pelo incontrolável chorrilho legiferante a que se dedicam legisladores federais, estaduais e municipais de milhares de casas legislativa”.17 Uma legislação minuciosa e exaustiva sobre a conduta administrativa não é garantia de lisura ou proteção aos cidadãos. Esse equívoco foi cometido no passado recente, quando as leis que tratavam de matéria administrativa procuravam esgotar todas as situações possíveis sob a sua égide. A clareza das diretrizes e fundamentos da função administrativa, ao contrário, se expostas ao conhecimento e à deliberação dos cidadãos, podem funcionar como poderoso meio de constrangimento ao abuso do aparelho administrativo para fins que não interessam à coletividade.18 Qual seria, então, o espaço do Poder Executivo na produção de normas que ditem as condutas necessárias para a manutenção do Estado Democrático de Direito? Sobre a natureza do regulamento Gaston Jèze se manifestou, em obra clássica do Direito Administrativo do início do século XX, no sentido de que toda manifestação de vontade que, no exercício de um poder legal, cria ou organiza uma situação geral, impessoal e objetiva, é um ato legislativo.19 Para esse jurista, pouco importa a qualidade do autor do ato, não interessando tampouco suas formas e o procedimento seguido para realizá-lo. Isto porque não há diferença de natureza jurídica entre a lei propriamente dita, isto é, a regra de direito geral e impessoal, formulada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República, e o regulamento simples, ou seja, a regra jurídica geral e impessoal formulada pelo presidente da República ou qualquer outro agente público investido do poder regulamentar. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 118 e 124. 17 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São ����������������� Paulo: Saraiva, 2002, pp. 15-16. 18 Principios generales del derecho administrativo. v. I. Tradução de Julio N. San Millán Almagro. Buenos �������������������� Aires: Editorial Depalma, 1948, p. 33. 19 FGV DIREITO RIO 12 atividades e atos administrativos Na França o tema não chega a ser polêmico, haja vista que, nos termos da Constituição de 1958, há espaços pré-definidos para a lei e para o regulamento. Mas, diante da realidade pós-moderna, o tema que envolve a pluralidade de fontes normativas no contexto jurídico-constitucional brasileiro ainda não chegou próximo do consenso. Com o advento do pós-positivismo,20 há que se repensar o alcance do princípio da legalidade e da separação de poderes, não para aboli-los ou combatê-los, mas para adequá-los à realidade, nem sempre acolhida sob o ângulo do formalismo excessivo, com a predominância da letra dos textos sobre a complexidade da vida cotidiana. É nessa ordem de questões que a doutrina pátria vem apresentando teses controvertidas acerca dos limites do poder regulamentar de competência do chefe do Poder Executivo, órgãos e entidades estatais independentes. O aspecto central do debate tem a ver com a possibilidade ou não do chefe do Poder Executivo editar regulamentos autônomos, assim como acerca da constitucionalidade de uma função regulamentar diversa daquela exercida pelo chefe do Poder Executivo – e seus ministros – por titular de órgão ou entidade da Administração Pública indireta.21 Regulamento Autônomo O regulamento autônomo é aquele que retira seu fundamento de validade diretamente da Constituição, na ausência de lei em sentido formal que regule a matéria. A maioria da doutrina administrativa clássica sustenta que, à luz da Constituição de 1988 e ao menos até o advento da Emenda Constitucional nº 32, não havia a possibilidade de a Administração Pública exarar regulamentos autônomos, tendo em vista o dever de obediência ao princípio da legalidade (art. 37, caput, CRFB/88) e o fato de a redação original do art. 84, VI, exigir que os decretos de organização da Administração fossem expedidos “na forma da lei”. A Emenda Constitucional nº 32/2001 veio alterar a redação do art. 84, VI, da Constituição, retirando a expressão “na forma da lei”, passando referido dispositivo, então, a ter a seguinte redação: BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista da EMERJ, v. 9, n. 33, 2006, p. 43,ss. 20 Acerca do surgimento e evolução dos regulamentos administrativos, vale colher os esclarecimentos trazidos por Eduardo García de Enterría: “um dos problemas capitais é, sem dúvida, o que se planteia com uma legislação especial não imaginada apenas pelo pensamento clássico, a menos em sua importância desbordante, a legislação de formulação administrativa. Sobre uma mínima base no constitucionalismo tradicional, em realidade como resíduo do antigo poder régio de ordenança que se salva na fórmula da monarquia constitucional baixo a etiqueta imprecisa de ‘poder executivo’, a Administração começará no século XIX a ditar uma normatização de segundo grau, os Regulamentos”. Legislación delegada. potestad reglamentaria y control judicial. 3.ed. Madri: Civitas, 1998, pp. 40-41. 21 “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) VI – dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos quando vagos.” Dessa forma, o chefe do Poder Executivo pode expedir decretos autônomos - isto é, que prescindem de lei – quando a matéria regulada diga respeito à auto-organização da Administração Pública federal, desde que de suas disposições não decorra a criação de novos cargos ou sua extinção, ou aumento de dispêndio para a Administração Pública. Trata-se, assim, de possibilidade relativamente limitada. Sobre a possibilidade de existirem regulamentos autônomos no direito brasileiro após a EC nº 32/2001, Gustavo Binembojn destaca a existência de três diferentes correntes doutrinárias, nos seguintes termos: FGV DIREITO RIO 13 atividades e atos administrativos (I) a primeira, composta por aqueles que continuam a negar a existência dos regulamentos autônomos, no Brasil, a partir de uma compreensão rígida do princípio da legalidade, como vinculação positiva da Administração à lei; (II) a segunda, em sentido diametralmente oposto, entendendo que a nova modalidade do art. 84, VI, (a), ocorrerá em âmbito de reserva de administração (na modalidade de reserva de poder regulamentar), imune à lei em sentido formal, que simplesmente não mais poderá dispor sobre organização e funcionamento da Administração Pública em matérias que não importem aumento de despesa, exceto no que disser respeito à criação e extinção de órgãos, sob pena de configuração de inconstitucionalidade formal; (III) e a terceira, reconhecendo a existência de uma nova espécie de regulamento ou do velho regulamento autônomo, agora apenas admitido formalmente pelo novel texto constitucional, mas mantendo incólume o princípio da preferência da lei; ou seja: a matéria relativa à organização e funcionamento da Administração Pública pode até ser tratada por regulamento, mas no caso de superveniência de lei de iniciativa do Presidente da República, esta prevalecerá no que dispuser em sentido diverso. De igual modo, será cabível a expedição de regulamentos autônomos em espaços normativos não sujeitos constitucionalmente a reserva de lei (formal ou material), sempre que à míngua do ato legislativo, a Administração Pública estiver compelida a agir para cumprimento de seus deveres constitucionais. Também neste caso, por evidente, assegura-se a preeminência da lei superveniente sobre os regulamentos até então editados.22 Para além da discussão sobre a admissibilidade de regulamentos autônomos no ordenamento jurídico pátrio, tem-se observado a importância crescente dos chamados “regulamentos autorizados”, isto é, aqueles que dispõem sobre matérias que, embora não cheguem a ser disciplinadas detalhadamente em lei formal, mas nela encontram seu fundamento de validade. Assim, por exemplo, as leis que instituem as agências reguladoras comumente atribuem a essas entidades competência para editar atos normativos abstratos em matérias que exijam conhecimentos técnicos específicos. Veja-se, a título de ilustração, o art. 22 da Lei nº 10.233/2001, que instituiu a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ: Art. 27. Cabe à ANTAQ, em sua esfera de atuação: ... IV - Elaborar e editar normas e regulamentos relativos à exploração de vias e terminais, garantindo isonomia no seu acesso e uso, bem como à prestação de serviços de transporte, mantendo os itinerários outorgados e fomentando a competição;” Note-se, entretanto, que esses atos normativos secundários (instruções normativas ou resoluções da diretoria colegiada) não chegam a ser considerados regulamentos autônomos, pois possuem previsão na lei de criação da agência reguladora, além de deverem obediência aos princípios estatuídos em referido diploma legal. Assim, no exemplo acima apresentado, a competência normativa para regulamentar a exploração de vias e terminais advém do art. 27 da Lei nº 10.233/2001, lei em sentido estrito.23 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 168 e 169. 22 Função Regulamentar Até o momento estivemos analisando a posição jurídica dos regulamentos à luz do princípio constitucional da legalidade. Passa-se, agora, a discutir brevemente quem são os titulares da competência para a edição de regulamentos. A abrangência da competência normativa das agências reguladoras será tema de Direito Administrativo II. 23 FGV DIREITO RIO 14 atividades e atos administrativos Caio Tácito sustenta que se o “poder regulamentar” é um princípio e dominantemente exercido pelo presidente da República, em razão de sua competência constitucional, nada impede – antes em determinadas circunstâncias aconselha – possa a lei habilitar outras autoridades à prática do poder normativo.24 A norma de competência do presidente da República é enumerativa, não sendo válido o raciocínio a contrario sensu, excludente de outra fórmula de ação normativa que a discricionariedade do Legislativo entenda necessária ou conveniente.25 Neste contexto, Carlos Roberto Siqueira Castro anota que uma das mais acentuadas peculiaridades do Estado contemporâneo é a denominada descentralização normativa.26 O constitucionalista leciona que não se ignora que o vocábulo “lei” nem sempre é utilizado em sua acepção formal, isto é, como ato legislativo típico produzido no âmbito das Casas Legislativas investidas da representação popular. Há outras espécies de atos normativos, sejam equiparados à lei formal de acordo como o processo legislativo previsto nas Constituições, sejam a ela inferiores, mas praticados com base nela, nas quais se confere aptidão para regrar o exercício da liberdade individual e coletiva. Trata-se dos atos-regras gerados pelos inúmeros agentes da Administração Pública, que proliferam a toda hora e que expressam um “poder regulamentar” difuso da burocracia estatal.27 Nesse sentido, Marçal Justen Filho, ao tecer uma série de considerações acerca do poder regulamentar, aduz que a competência para editar regulamentos não é privativa do presidente da República, ou seja, a redação do art. 84, IV, da CF/88 não significa uma reserva constitucional privativa para o presidente da República editar normas gerais, de natureza regulamentar, visando à perfeita execução das leis. Assim, para o autor, essa competência se distribui entre as diversas entidades integrantes da Administração Pública.28 Na mesma senda, Alexandre Santos de Aragão adverte que muitas vezes a lei confere “poder regulamentar” a titular de órgão ou a entidade da Administração Pública distinta do chefe do Poder Executivo. O autor se vale da expressão cunhada por San Tiago Dantas, “descentralização do poder normativo do Executivo” para órgãos ou entidades tecnicamente mais aparelhados. Por essa descentralização, o poder de baixar regulamentos, isto é, de estatuir normas jurídicas inferiores e subordinadas à lei, mas que nem por isso deixam de reger coercitivamente as relações sociais, é uma atribuição constitucional do presidente da República, mas a própria lei pode conferi-la, em assuntos determinados, a um órgão da Administração Pública ou a uma dessas entidades autônomas que são as autarquias.29 De forma semelhante, Egon Bockmann Moreira também admite essa tese ao dizer que o presidente da República e os ministros de Estado são titulares de competência constitucional para expedir decretos, regulamentos e instruções para a fiel execução das leis, mas tal previsão não é exaustiva e supressora de outros títulos competenciais, detidos pelas demais entidades da Administração Pública. Nesse sentido, sustenta que cada qual detém, dentro de seu âmbito de atuação e na medida da competência a si conferida, possibilidade de emanar regulamentos.30 Sérgio Varella Bruna com visão intermediária, ao tratar do tema do regulamento no “poder hierárquico” inerente à organização administrativa, leciona: não é só chefe do Executivo que é investido na competência para editar regulamentos de execução. Todo agente administrativo que, dotado de poder hierárquico, tiver a atribuição de dar cumprimento à lei, pode expedir comandos normativos gerais a seus subordinados TÁCITO, Caio. “Comissão de valores mobiliários: poder regulamentar”. In: Temas de direito público, v.2. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, pp. 1079 e 1088. 24 25 Op. cit.. O congresso nacional e as delegações legislativas. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 105. 26 27 Op. cit;, pp. 105-121. O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 519. 28 Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 381. 29 Agências administrativas, poder regulamentar e o sistema financeiro nacional. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v.1, n. 7. out/2001. Disponível em http://www. direitopublico.com.br. Acesso em 25 de março de 2003. 30 FGV DIREITO RIO 15 atividades e atos administrativos para, nos limites dessa lei, estabelecer regras para disciplinar a execução do comando legal. Desse modo, a competência atribuída, em caráter supremo, ao Presidente da República, pelo art. 84, IV, da CF, não exclui a competência das demais autoridades dotadas de poder hierárquico para expedir normas gerais aos seus subordinados, no intuito de viabilizar o cumprimento da lei.31 Outra corrente doutrinária defende alguns pontos contrários à função regulamentar por órgãos ou pelas entidades estatais descentralizadas. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por exemplo, sustenta que, da mesma maneira que os Ministérios, outros órgãos administrativos de nível inferior também têm reconhecidamente o “poder” de praticar atos normativos, como portarias, resoluções, circulares, instruções, porém nenhum deles podendo ter caráter regulamentar, à vista da competência indelegável do chefe do Executivo para editá-los.32 Destaca a autora que inúmeros órgãos administrativos e entidades da administração indireta editam atos normativos por meio especialmente de resoluções e portarias, em grande parte dos casos por expressa atribuição legal. Para a administrativista, esses órgãos baixam normas inovadoras na ordem jurídica, em uma quantidade assustadora, absolutamente incompreensível e contraditória com a política governamental de reforma do Estado, em que se insere ou deveria inserir-se a desregulação, se se pretende prestigiar a liberdade do cidadão.33 Da mesma forma, Clèmerson Merlin Clève entende que “o regulamento não se confunde com os demais atos normativos da Administração”. Para o autor, os regulamentos residem numa posição hierárquica superior aos demais atos normativos do Executivo, sendo, portanto, unicamente editados pelo presidente da República.34 Malgrado a polêmica sobre o tema, Manoel Gonçalves Ferreira Filho adverte que é difundida e tolerada a prática de que órgãos autárquicos regulamentem as leis, “lembrando que todos têm presentes as circulares e as portarias de que certos órgãos da Administração Pública usam e abusam, fazendo ‘leis’ que não raro mais interferem na vida do cidadão que as leis propriamente ditas”.35 Daí a polêmica sobre se aos órgãos e entidades descentralizadas da Administração Pública pode ser conferida uma função normativa e, em caso positivo, qual a sua abrangência. Leitura obrigatória: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 17a ed. São Paulo: Malheiros, 2004 capítulo VI (“O regulamento no direito brasileiro”). Caso gerador: A Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, visando ao bem estar dos usuários dos diversos serviços de transportes públicos concedidos a empresas privadas (rodoviário, metroviário, ferroviário e aquaviário), determinou que todas as concessionárias teriam que construir, em suas instalações, banheiros públicos com capacidade mínima para 6 usuários, com, no mínimo, 20 metros quadrados, em um prazo máximo de 180 dias, sob pena de multa diária por descumprimento da norma. Agências reguladoras: poder normativo, consulta pública, revisão judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 86. 31 Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 143. 32 33 Op. cit. Atividade legislativa do poder executivo. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 285. Em igual sentido, Vicente Ráo, ao assinalar a tendência de se conferir às autarquias a faculdade de editar normas obrigatórias de direito, impor e arrecadar impostos e exercer função de jurisdição judicial, sustenta ser contrário à “suposta função normativa” dessas entidades autárquicas. Por seu pensamento, se a delegação, ao Executivo, que é um dos poderes políticos, de qualquer faculdade pertencente ao legislativo ou ao Judiciário, merece a condenação dos juristas, com maior energia se há de condenar semelhante delegação a entidades autônomas, embora de caráter administrativo. E complementa seu pensamento afirmando que nas organizações políticas, onde a delegação de poderes é vedada por textos constitucionais, onde as faculdades do Legislativo, com caráter de exclusividade, são enumeradas, expressamente, pelas disposições políticas estatutárias, não se compreendem, nem se justificam, delegações dessa espécie. O direito e a vida dos direitos. 5.ed. anotada e atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 319. 34 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “Reforma do estado: o papel das agências reguladoras e fiscalizadoras”. In: MORAES, Alexandre de. Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002, p. 142. 35 FGV DIREITO RIO 16 atividades e atos administrativos Como se vê, a referida lei entrou em muitos detalhes, a exemplo do número de sanitários e dimensões que deveriam ser construídos em cada terminal, estação ou porto. Algumas concessionárias, notadamente, a que opera o sistema metroviário, constatou, por estudos técnicos, que não haveria como construir o número de sanitários nas estações com muita profundidade. A questão é altamente complexa, e demanda uma alta tecnologia para se tentar adaptar os equipamentos. Considerando (i) a tecnicamente das especificidades de cada caso; (ii) as dificuldades que o Poder Legislativo tem para apurar quais serviços comportam a construção de banheiros públicos; (iii) o impacto desses custos para as tarifas, (iv) o prazo em deveriam ser construídos e sua dimensão, reflita sobre a convivência do princípio da legalidade estrita com os demais princípios constitucionais que regem a atuação da Administração Pública. Especialmente, busque identificar os vários interesses públicos envolvidos no caso, à luz da discussão anteriormente travada sobre o vetusto princípio da supremacia do interesse público. Leitura complementar: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2006, capítulo X (controle de legalidade). FGV DIREITO RIO 17 atividades e atos administrativos Aula 3: Princípio da legalidade, vinculação e discricionariedade administrativa Objetivo: Trazer argumentos aos alunos acerca da vertente discricionária do poder regulamentar da Administração Pública, de modo que os mesmos possam enfrentar criticamente o tema. Introdução: A atuação vinculada da Administração Pública ao princípio da legalidade se apresenta quando a norma a ser cumprida determina, com exatidão, a conduta da Administração Pública face a certa situação fática. Isto quer dizer que a norma indica o único e possível comportamento que o administrador público deverá adotar diante do caso concreto, não permitindo ao mesmo qualquer espaço para um julgamento subjetivo. No ato vinculado o fim é o legal, de objetividade incondicional. O comportamento da Administração, além de ser exigido, é exatamente determinado, haja vista que “o traço original do poder vinculado é o automatismo, pois a autoridade administrativa não necessita procurar qual a melhor solução, em determinada circunstância, pois só há uma solução, aquela previamente determinada pela lei”.36 Por outro lado, na escolha discricionária o Administrador tem uma dose de liberdade, sob os critérios de conveniência e oportunidade (mérito do ato), da melhor solução para a efetivação do fim público. Em virtude das exigências de clara identificação das funções que a norma primária atribui ao Poder Executivo, a lei acaba por remeter a Administração à valoração subjetiva quanto às condições não identificadas, notadamente quanto à integração da norma diante do caso concreto. Nas palavras de García de Enterría e Tomás-Ramon Fernández: Definindo a Lei, porque não o pode deixar de fazer, em virtude das exigências de explicitude e especificidade da potestade que atribui à Administração, algumas das condições de exercício dessa potestade remete à estimação subjetiva da Administração o resto das referidas condições, bem como quanto à integração última do suposto de fato (...) bem como quanto ao conteúdo concreto, dentro dos limites legais, da decisão aplicável (...), bem como de ambos os elementos.37 MEDAUAR, Odete. Poder discricionário da administração. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 610, p.38-45, ago. 1996, p.42. 36 O exercício da discricionariedade pela Administração Pública comporta um elemento subjetivo para a completa integração do comando legal ao caso particular. Nessa hipótese, a integração da norma não será considerada uma faculdade ilegal, proveniente de um suposto e hipotético poder originário da Administração. Ao contrário, trata-se de uma atribuição estabelecida pela própria lei exatamente com esse caráter, de modo que a discricionariedade não se configura uma liberdade da Administração Pública em face da norma, mas, em sentido oposto, apresenta-se como um caso típico de submissão legal. Com efeito, “o poder discricionário aparece, assim, como necessário elemento na gradual formação do direito, ou das normas jurídicas; é ele que as torna sucessivamente mais concretas”.38 Curso de derecho administrativo. Tomo I. 10.ed. Madri: Civitas, 2001, p. 453. 37 QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 6, p.41-78, out. 1946, p. 44. 38 FGV DIREITO RIO 18 atividades e atos administrativos O conceito doutrinário de discricionariedade está longe de ser uníssono. Por isso, Miguel Sánchez Morón, ao ressaltar a discricionariedade administrativa como um conceito clássico da Teoria do Direito Público, assevera que é difícil a esta altura dizer algo novo acerca do tema. Considera um problema sempre recorrente, sobre o qual a polêmica jamais parece se esgotar.39 A partir da segunda metade do século XX a função discricionária detida pelo Poder Executivo vem sendo extremamente debatida em sede doutrinária, entre nós e alhures, haja vista as profundas mudanças ocorridas no sistema capitalista pós-moderno analisado em nossa primeira aula, notadamente nas duas últimas décadas do século passado. Um começo para o debate sobre o efeito polissêmico de “discricionariedade” está na obra de Hans Kelsen. Em sua Teoria Pura do Direito, observou, acerca da relativa indeterminação do ato de aplicação do Direito, que a relação entre um escalão inferior da ordem jurídica e um superior é uma relação de determinação ou vinculação, ou seja, a norma do escalão superior regula o ato por meio do qual é produzida a norma do escalão inferior.40 Entretanto, para o Autor, esta determinação nunca é completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato por meio do qual é ampliada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma de escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Sustenta que mesmo uma ordem, o mais pormenorizada possível, tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer.41 É certo que o pensamento desse mestre da Escola de Viena sofreu inúmeras críticas, haja vista que na teoria de formação do direito por degraus, o mesmo identifica discricionariedade e interpretação, quando é sabido que na interpretação só deve haver uma única solução correta inserida no processo cognitivo, enquanto que na discricionariedade há o dever de escolha entre as opções decorrentes da norma.42 Ademais disso, entre as atividades vinculadas e discricionárias da Administração Pública deve haver uma certa dosagem, equilíbrio, conforme o pensamento de Jean Rivero.43 Para o publicista francês, a atividade da Administração não pode conformar-se com uma generalização da competência vinculada. É indispensável adaptar-se constantemente às circunstâncias particulares e mutáveis que a norma não pôde prever. Inversamente, uma Administração amplamente discricionária não ofereceria aos administrados qualquer segurança. Ela seria voltada ao arbítrio.44 Diante dessas considerações, como se deve compreender a discricionariedade administrativa? Tradicionalmente, define-se a discricionariedade como sendo uma margem de liberdade da Administração que surge quando a sua atividade não está plenamente definida em lei.45 A discricionariedade não surge da coincidência de um espaço de liberdade da Administração Pública com relação ao legislador e ao juiz. Ao contrário, a discricionariedade decorre da eleição feita Poder Legislativo de permitir ao Poder Executivo uma contribuição no processo de determinação do interesse geral, a partir da ponderação de interesses particulares e coletivos.46 A esse respeito, Eva Desdentado Daroca47, uma das maiores estudiosas contemporâneas sobre o tema da teoria da discricionariedade, ao ressaltar a ausência de consenso doutrinário em torno da utilização da discricionariedade administrativa, define a discricionariedade como sendo a realização de eleições de diferentes alternativas, quando do exercício de poderes conferidos pela norma aberta. Por suas palavras, a discricionariedade administrativa: Discrecionalidad administrativa y control judicial. Madri: Tecnos, 1994, p. 9. Nas lições de Karl Engisch, “o conceito de discricionariedade (poder discricionário) é um dos conceitos mais plurissignificativos e mais difíceis da teoria do Direito”. Introdução ao pensamento jurídico. 8.ed. Tradução de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 214. Nesse mesmo sentido, César David Ciriano Vela aduz que com independência dos distintos conceitos e técnicas de controle utilizados, em todos os países se considera que o estudo da discricionariedade é uma das questões mais importantes do Direito de nossos dias e, em especial, do Direito administrativo. Por isso, é absolutamente necessário um aprofundamento na sua análise. Administración económica y discrecionalidad (un análisis normativo e jurisprudencial. Valladolid: Lex Nova, 2000, p. 65. Em idêntico posicionamento, Francisco López Menudo sustenta que a discricionariedade é um tema clássico, ou quiçá possa qualificá-lo como neoclássico. El control judicial de la administración en la CE. In: Discrecionalidad administrativa y control judicial. Eduardo ������������� Hinojosa Martínez; Nicolás Gonzáles-Deleito Domínguez (Orgs.) Madri: Civitas, 1996, p. 39. 39 Teoria pura do direito. 6.ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 388. 40 41 Idem. Sobre a crítica ao pensamento de Kelsen, a publicista Maria Sylvia Zanella Di Pietro aponta, ainda, a dificuldade, se não a impossibilidade, de se distinguir a atividade vinculada da atividade discricionária da Administração Pública, “já que, para ele, cada ato implica um acréscimo em relação à norma de grau superior, quando, na realidade, em se tratando de atividade vinculada, a Administração tem que se limitar a constatar o atendimento dos requisitos legais, sem possibilidade de optar por solução diversa daquela prevista em lei”. Discricionariedade administrativa na constituição de 1988. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 72. 42 FGV DIREITO RIO 19 atividades e atos administrativos Consiste na realização de escolhas entre diferentes alternativas com a finalidade de exercer uma potestade conferida pelo ordenamento jurídico e que este, no entanto, não regulou plenamente. A discricionariedade é, pois, um modus operandi que se caracteriza pelos seguintes traços: 1) supõe a adoção de decisões dentro de uma margem de livre apreciação deixado pelo ordenamento jurídico; 2) implica um ato de escolha sobre a base de argumentos valorativos acerca dos quais pessoas razoáveis podem diferir; e 3) a escolha se adota sempre conforme critérios valorativos extrajurídicos. José Cretella Júnior, por sua vez, definindo o ato administrativo discricionário como conseqüência de um “poder discricionário” da Administração, aduz que a discricionariedade é a manifestação concreta e unilateral da vontade da Administração. Fundamentada em regra objetiva de direito que a legitima e lhe assinala o fim, concretiza-se livremente, desvinculada de qualquer lei que lhe dite previamente a oportunidade e conveniência da conduta, sendo, pois, neste campo, insuscetível de revisão judiciária.48 No mesmo diapasão, Diogo de Figueiredo Moreira Neto define a discricionariedade como sendo a qualidade encarregada pela lei à Administração Pública para determinar, de forma abstrata ou concretamente, o resíduo de legitimidade necessário para integrar a definição de elementos essenciais à sua execução, diretamente referido a um interesse público específico.49 Em vista das conceituações trazidas à colação, pode-se concluir que a norma primária não aponta todos os caminhos a serem trilhados pela Administração diante do caso concreto, de modo que há diversos questionamentos quanto a poder ou não seus atos serem revisados totalmente pelo Poder Judiciário em vista do princípio da separação de poderes.50 Malgrado respeitáveis posicionamentos doutrinários acerca da conceituação da discricionariedade, referindo-se, unicamente, ao resíduo deixado pela lei para ser integrado pelo Administrador diante do caso concreto (abertura da norma), isto é, somente estando presente quando o legislador assim determinar, é certo que uma corrente de pensamento sustenta a possibilidade da discricionariedade administrativa quando estiverem presentes na norma os conceitos jurídicos indeterminados, objeto da nossa próxima aula. Diante de todas essas questões, fica patente que o tema da discricionariedade administrativa está no centro do debate acerca dos limites da atuação da Administração Pública e seu controle pelo Poder Judiciário. Nesse contexto, reflita sobre os limites de atuação administrativa, para enfrentar o caso abaixo apresentado. Leitura obrigatória: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 17a ed. São Paulo: Malheiros, 2004, capítulo VI (“O regulamento no direito brasileiro”). Caso gerador: Ticio ajuizou ação que questionava a ilegalidade e inconstitucionalidade de multa de trânsito recebida por excesso de velocidade, em razão de haver trafegado acima da velocidade permitida pela Fundação Departamento de Estradas de Rodagem para determinado RIVERO, Jean. Direito administrativo. Tradução de Rogério Ehrhardt Soares. Coimbra: Almedina, 1981, p. 94. 43 44 Op. cit. Nesse sentido, BULLINGER, Martin. La discrecionalidad de la administración pública. Madri: La Ley, VII, 1986. Ver MAGIDE HERRERO, Mariano. Límites constitucionales de las administraciones independientes. Madri: INAP, 2000, p. 247. 45 Nessa linha de pensamento, ver MAGIDE HERRERO, Mariano. Límites constitucionales de las administraciones independientes. Madri: INAP, 2000, p. 252. Em sentido próximo, Afonso Rodrigues Queiró sustenta que a discricionariedade representa uma faculdade de escolher uma entre várias significações contidas num conceito normativo prático, relativos às condições de fato do agir administrativo, escolha feita sempre dentro dos limites da lei. Op. cit., pp. 77-78. 46 Los problemas del control judicial de la discrecionalidad técnica. Madri: Ed. Civitas, 1997, p. 22. 47 Controle jurisdicional do ato administrativo. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 150. Pensa em igual sentido o saudoso Hely Lopes Meirelles. Para o Autor, discricionariedade é o que o Direito concede à Administração de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 18 ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 102. 48 FGV DIREITO RIO 20 atividades e atos administrativos trecho de uma estrada, fixada em 40 km/h. O autor asseverou, em sua demanda, que o referido limite apresentava-se excessivamente baixo, violando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como as diretrizes dispostas no art. 61 do Código Brasileiro de Trânsito, que fixa, como regra geral, o limite máximo de velocidade nas estradas em 60 km/h, conforme se observa da transcrição abaixo: Art. 61. A velocidade máxima permitida para a via será indicada por meio de sinalização, obedecidas suas características técnicas e as condições do trânsito. §1º. Onde não existir sinalização regulamentadora, a velocidade máxima será de: I – nas vias urbanas: a) oitenta quilômetros por hora, nas vias de trânsito rápido; (...) II – nas vias rurais: 1) nas rodovias, cento e dez quilômetros para automóveis, caminhonetas e motocicletas;51 2) Noventa quilômetros por hora, para ônibus e microônibus; 3) Oitenta quilômetros por hora, para demais veículos; b) nas estradas, sessenta quilômetros por hora. §2º. O órgão ou entidade de trânsito ou rodoviário local com circunscrição sobre a via poderá regulamentar por meio de sinalização velocidades superiores ou inferiores àquelas estabelecidas no parágrafo anterior. O juízo de primeira instância julgou procedente a demanda, em um arrazoado no qual manifestou sua inconformidade quanto à “indústria de multas” que estaria sendo criada arbitrariamente pelo ânimo arrecadatório dos Estados, com a fixação de limites de velocidade extremamente baixos para tráfego em estradas e rodovias, prática que ofenderia o princípio da razoabilidade. Corroborada a decisão em segunda instância, a Fundação recorreu ao Superior Tribunal Justiça, sustentando a legalidade da velocidade fixada para a referida estrada, pois havia sinalização indicativa no local, em obediência, portanto, à exigência do art. 61, §2º, do Código Brasileiro de Trânsito. Além disso, argumentou que a fixação do limite de velocidade em 40 km/h era fruto do exercício legítimo de sua competência discricionária, sobre a qual não teria o Poder Judiciário competência revisional. Fundamentado em que você estudou sobre o conteúdo e os limites da discricionariedade administrativa, procure analisar os valores juridicamente protegidos envolvidos na demanda. Como você acredita que deveria ter sido decidida a demanda pelo STJ? Caso o Poder Judiciário decidisse que o limite de velocidade é desproporcional, poderia o juiz fixar novo limite? Leitura complementar: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 42 a 50. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000 (título III, cap. III) Legitimidade e discricionariedade: novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p.22. Para a administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o conceito de discricionariedade administrativa pode ser resumido na faculdade que a lei confere à Administração para avaliar o caso concreto, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher uma dentre duas ou mais soluções, sendo todas elas válidas perante o direito. Discricionariedade administrativa na constituição de 1988. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 67. Em idêntico sentido, Germana de Oliveira Moraes aduz que a discricionariedade resulta da abertura normativa, em função da qual a lei confere ao administrador uma margem de liberdade para constituir o Direito no caso concreto, ou seja, para complementar a previsão aberta da norma e configurar os efeitos parcialmente previstos, mediante a ponderação valorativa de interesses, com vista à realização do interesse público geral. Controle jurisdicional da administração pública. São Paulo: Dialética, 2002, p. 39. Eis, por seu turno, o trecho do magistério de Weida Zancaner, para quem a discricionariedade pode ocorrer quando a lei legitima o juízo subjetivo do administrador, para que complete o quadro regulativo necessário ao exercício do poder, ou para que exercite o dever de integrar in concreto o conteúdo rarefeito insculpido na regra de direito. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 49. 49 Sobre esse aspecto, há quem já sustente que o advento do neoconstitucionalismo, ou melhor, com a constitucionalização do direito administrativo, não se deva admitir o instituto da discricionariedade administrativa, e sim uma juridicidade administrativa. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalismo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 50 As motocicletas foram incluídas pela lei 10.830/2003. 51 FGV DIREITO RIO 21 atividades e atos administrativos Aula 4: Princípio da legalidade e a densificação de conceitos jurídicos indeterminados pela Administração Pública Objetivo: Examinar os aspectos da função regulamentar e os limites ao poder discricionário da Administração Pública face a leis que apresentam conceitos jurídicos indeterminados. Introdução: Os conceitos utilizados nas normas jurídicas podem ser determinados ou indeterminados. Os conceitos determinados delimitam o âmbito da realidade ao qual a norma se refere, de forma clara e específica, como, por exemplo, o limite de velocidade de um automóvel em uma determinada estrada, a idade para se atingir a maioridade etc. A aplicação desses conceitos, por serem precisamente determinados, não suscita aparente dúvida, devendo, portanto, ser empregada no caso concreto. De outro lado, pela técnica de utilização de conceitos jurídicos indeterminados no processo legiferante, as regras para sua adoção não aparecem bem delineadas, não obstante indiquem a sua aplicação em determinados casos concretos. Nessas circunstâncias, a norma não determina o exato e preciso sentido desses conceitos, haja vista que estes não admitem uma rigorosa e abstrata quantificação ou limitação, somente devendo ser identificados, caso a caso, diante do fato real. Grosso modo, esses conceitos previstos na norma expressam e qualificam necessidades públicas, a exemplo das expressões “utilidade pública”, “urgência”, “relevância”, “risco iminente à saúde”, “serviço adequado”, “modicidade tarifária”, “eficiência” etc. A questão a se indagar é a seguinte: há correlação entre a discricionariedade e os denominados conceitos jurídicos indeterminados? Conforma-se a tese de que os conceitos jurídicos indeterminados devem ser integrados pelo método interpretativo, e, assim, admitir apenas uma única solução justa (afastada a oportunidade e conveniência do ato), os resultados decorrentes desses mesmos atos devem ser controlados com maior intensidade pelo Poder Judiciário. Por outro lado, considera-se que os conceitos jurídicos indeterminados se inserem no contexto da discricionariedade administrativa, visto que o mérito desses atos administrativos, salvo em alguns casos52, não deve ser revisto positivamente pelo Poder Judiciário. Vale notar, que esse tema tem sido objeto de intenso questionamento no âmbito do direito administrativo, cabendo aos estudiosos alemães o mérito pelas profundas investigações contemporâneas sobre a questão. Sobre o tema, Martin Bullinger denota que: A experiência durante a ditadura conduziu de novo na Alemanha – igualmente como na Espanha, por certo – a uma aberta influência das idéias de democracia e de Estado de Direito na teoria e na dogmática do Direito Administrativo. Assim, tanto na Alemanha como na Espanha se postulou o pleno controle judicial da aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, a fim de proteger o cidadão frente a uma Administração que havia evidenciado sua �������������������������� Conforme a construção teórica da “redução da discricionariedade a zero”, que ocorre quando as circunstâncias do caso concreto eliminam a possibilidade de escolha entre diversas opções, de modo que subsista apenas uma solução juridicamente possível. Sobre essa teoria, ver capítulo específico sobre o tema na obra de Germana de Oliveira Moraes. Controle jurisdicional da administração pública. São Paulo: Dialética, 2002. 52 FGV DIREITO RIO 22 atividades e atos administrativos inclinação a um exercício unilateral e arbitrário do poder. Agora, ao contrário, uma vez que a democracia e o Estado de Direito tenham sido reconstruídos, os jovens juristas – ao menos na Alemanha – tendem novamente a preconizar uma ordem jus científica e dogmática pura, na qual se evite, na medida do possível, o recurso direto à história e ao contexto político. Não se há de estranhar, por conseguinte, que a teoria pura do Direito, que Hans Kelsen conduziu a seu apego na década de vinte, encontre agora, em sua substância, uma nova acolhida na Alemanha.53 Almiro do Couto e Silva sustenta que a discussão entre discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados remonta ao confronto estabelecido no direito austríaco entre Bernazik e Tezner: O primeiro sustentava a existência de uma discricionariedade técnica, pretendendo com isso referir-se à extrema complexidade com que freqüentemente se apresentam os problemas administrativos. Estes suscitarão várias opiniões ou propostas de solução, a respeito das quais, porém – muito embora no plano estritamente lógico só possa existir uma única solução correta -, será freqüentemente difícil ou mesmo impossível afirmar qual a mais acertada. (...) Foi Tezner, entretanto, quem primeiro, na verdade, estabeleceu o discrimen entre poder discricionário e conceitos jurídicos indeterminados. A distinção foi por ele realizada ao criticar a Corte Administrativa da Áustria, que considerava como poder discricionário da Administração Pública e insuscetíveis de revisão judicial casos de aplicação de conceitos jurídicos indeterminados, como ‘interesse público’, ‘paz e ordem pública’, ‘conveniência’, ‘necessidade’ etc.54 A descrição mais consistente da estrutura lógico-semântica dos conceitos jurídicos vem de uma obra doutrinária de Walter Jellinek (Gesetz, Gesetzesanwendun und Zweckmässigkeitserwägungen), de 1913, segundo a qual o conceito normativo indeterminado constitui a antítese do conceito jurídico determinado. Para esse autor, o conceito jurídico determinado, assim como o conceito indeterminado também tem limites, pois, do contrário, não seria um conceito. Porém, o primeiro tem um só limite, que permite realizar um juízo seguro (certo) sobre a pertinência ou não do mesmo a um determinado fenômeno, ao passo que o segundo tem dois limites.55 Nessa ordem de convicções, o conceito jurídico indeterminado também permite realizar juízos seguros (certos), mas entre o juízo positivo e o negativo existe um terreno limítrofe de mera possibilidade. Assim, o aplicador de todo conceito indeterminado sabe que existem fenômenos que indubitavelmente estão compreendidos dentro do conceito e outros que seguramente não estão compreendidos no mesmo. Deste modo, surgem as esferas de certeza positiva e negativa e a esfera da dúvida possível.56 Por considerar que a clarificação dos conceitos jurídicos indeterminados se dá na aplicação em casos concretos, a doutrina alemã criou uma teoria de que só existe uma única solução justa em cada caso, determinável segundo um processo cognitivo.57 No final da primeira década seguinte ao segundo pós-guerra, a jurisprudência contencioso-administrativa da Alemanha foi se consolidando no sentido de que o Estado de Direito, proclamado com a promulgação da Lei Fundamental de Bonn, de 1949, excluía a discricionariedade da Administração Pública na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados. Prefácio �������������������������� à obra de BACIGALUPO, Mariano. La discrecionalidad administrativa (estructura normativa, control judicial y límites constitucionales de su atribució. Madri: Marcial Pons, 1997, p. 10. 53 “Poder discricionário no direito administrativo brasileiro”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 179, p. 5192, jan./jun. 1980, p. 57-58. 54 Cf. BACIGALUPO, op. cit., pp. 194. Essa teoria é contestada por Afonso Rodrigues Queiró, dizendo-a totalmente errada sob o seguinte argumento: “mesmo que sobre muitos conceitos não teoréticos existisse uma inequívoca concepção por parte da comunidade (o que é contestabilíssimo), ela não podia ser senão uma norma, um conjunto de conceito, que, por sua vez, teriam de ser submetidos à interpretação dum órgão, se sempre poderá ficar como resíduo um conjunto de conceitos práticos imprecisáveis”. QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 6, p.41-78, out. 1946, , p. 63. 55 Cf. BACIGALUPO, op. cit., p. 195. 56 Nesse sentido, ver César David CIRIANO VELA, Administración económica y discrecionalidad (un análisis normativo e jurisprudencial. Valladolid: Lex Nova, 2000, p. 127 e Magide HERRERO, Límites constitucionales de las administraciones independientes. Madri: INAP, 2000, p. 253. Este Autor comenta que, definidos desde a perspectiva do controle judicial, tem sido relativamente tradicional diferenciar discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados a partir da afirmação de que a primeira supõe a existência de uma pluralidade de soluções juridicamente corretas (justas), enquanto que a aplicação dos últimos admite uma única solução justa, permitindo-se, assim, ao juiz, uma intensidade máxima no controle da atuação administrativa. Idem, p. 249. 57 FGV DIREITO RIO 23 atividades e atos administrativos Caracterizada a discricionariedade administrativa por oferecer à Administração Pública várias possibilidades juridicamente possíveis, os Tribunais se inclinavam a considerar, cada vez mais, que a aplicação de um conceito jurídico indeterminado somente comportava uma única solução justa, adequada ao ordenamento legal. Desse modo, o controle judicial do ato de integração desses conceitos fluidos poderia ser total, ou seja, os Tribunais aprofundavam a sindicância e até mesmo substituíam a decisão executiva.58 Nesses termos, consolidou-se a teoria dominante da completa separação entre o exercício da discricionariedade administrativa e a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados.59 Vale esclarecer que essa corrente de pensamento – pela qual não há uma vinculação entre a discricionariedade administrativa e os conceitos jurídicos indeterminados – foi introduzida na doutrina espanhola no ano de 1962, por Eduardo García de Enterría60, vindo depois a ser assumida pela maioria da doutrina e jurisprudência ibérica.61 Para García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, a lei utiliza conceitos de experiência (incapacidade para o exercício de suas funções, premeditação, força irresistível) ou de valor (boa fé, standard de conduta do bom pai de família, justo preço), porque as realidades referidas não admitem outro tipo de determinação mais precisa.62 Porém, ao se referirem a fatos concretos e não a vagas, imprecisas ou contraditórias situações, entendem esses Autores que a aplicação de tais conceitos ou a qualificação de circunstâncias concretas não admite mais que uma solução: ou se dá ou não se dá o conceito.63 Em se considerando somente uma solução justa para determinado conceito jurídico indeterminado, não haveria, portanto, de se cogitar a existência de discricionariedade. Isto porque, se o primeiro só admite uma única solução justa, o segundo, se fundamentando normalmente em critérios metajurídicos de conveniência e oportunidade, permite diversas soluções justas. Em outros termos, permite optar entre diversas alternativas que são igualmente justas à luz do direito.64 Nesse sentido, García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández sustentam que a diferença entre a discricionariedade e os conceitos jurídicos indeterminados é vital, capital. Vale dizer, em sendo a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados um caso de aplicação e interpretação da lei que utilizou tal conceito, o juiz pode controlar tal aplicação valorando se a solução a que com ela se chegou é a única solução justa que a lei permite.65 Asseveram esses doutrinadores que, ao contrário, o juiz não pode fiscalizar a entranha da decisão discricionária, haja vista que, seja esta no sentido que seja, se foi produzida dentro dos limites da remissão legal da apreciação administrativa, é necessariamente justa. A discricionariedade é basicamente uma liberdade de eleição entre alternativas igualmente justas, porque a decisão se fundamenta em critérios extrajurídicos que não estão incluídos na lei, e sim no juízo subjetivo da Administração Pública. Por outro lado, o conceito jurídico indeterminado é um caso de aplicação da lei, posto que se trata de subsumir, em uma categoria legal, determinadas circunstâncias reais.66 Delineados os principais aspectos da teoria germânica da existência de apenas uma solução justa em cada caso concreto, endossados e difundidos por García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, cumpre trazer, em sentido oposto, o pensamento de Miguel Sánchez Morón, que suscita interessantes e profundos questionamentos acerca da real diferença entre os conceitos jurídicos indeterminados e a discricionariedade administrativa. Sobre a técnica germânica - que defende a existência de apenas uma solução justa na integração de um conceito jurídico indeterminado - Morón observa que não está claro que exista sempre Cesar Ciriano Velaesclarece a questão: “O que se passa, na realidade, é que as normas recorrem à utilização de conceitos em maior ou menor medida vagos e indeterminados, nos quais é preciso realizar um trabalho de interpretação pelo órgão competente. Trata-se dos chamados conceitos jurídicos indeterminados. E estes casos, durante boa parte deste século [século XX] se considerava serem conceitos discricionários. No entanto, a doutrina alemã cunhou várias décadas depois a teoria dos conceitos normativos indeterminados (Umbestimmterechtsbegriffe) que, diferentemente do que se considerava até então, em sua interpretação dariam lugar a uma única solução justa.” Op cit., p.127. 58 Cf. BULLINGER, Martin. La Discrecionalidad de la Administración Pública. Evolución, funciones, control judicial. ���� Tradução de Miguel Sánchez Morón, e M. Cancio Mella, La Ley, ano VIII, n. 1831, 1987. Considerando que algumas decisões judiciais seguiam reconhecendo o poder discricionário da Administração Pública na aplicação de alguns conceitos jurídicos indeterminados de difícil controle judicial, a partir dos conceitos doutrinários trazidos por Otto Bachof e Carl Hermann Ule foram surgindo teses em sentido contrário àquela que defendia a existência de apenas uma solução justa. Por essa linha de pensamento, os tribunais deveriam reconhecer, na interpretação de alguns conceitos jurídicos indeterminados, uma certa margem de apreciação (Beurteilungsspilraum, na terminologia de Bachof), considerando-o como algo estruturalmente distinto da discricionariedade. Na esteira desse raciocínio, a “margem de apreciação” se refere ao suposto do fato da norma (Tatbestand), a sua interpretação e a subsunção aos fatos a que se refira. Por outro lado, a discricionariedade se manifesta na conseqüência jurídica da norma (Rechtsfolge), pois consistiria na faculdade da Administração de decidir se aplicaria ou não a conseqüência jurídica, uma vez verificado o cumprimento do suposto do fato, ou na possibilidade de eleger, nesse caso, entre as 59 FGV DIREITO RIO 24 atividades e atos administrativos uma diferença entre conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa, como presume uma parte da doutrina espanhola e se constata em alguns pronunciamentos jurisprudenciais.67 Para esse doutrinador, nem sempre é factível assegurar com total exatidão qual seria a única solução justa, fato este que está exigindo que os juízes resolvam essa dúvida sob seus próprios valores. Assim, prevalecendo a tese de que existe apenas uma solução justa na interpretação dos conceitos jurídicos indeterminados, ter-se-ia que apoiar essa idéia em um conceito transcendental de justiça (e de verdade) e em uma fé absoluta da possibilidade de discernimento humano, idealismo esse de difícil aceitação.68 No mesmo sentido, Mariano Magide Herrero, que se deteve em profundo estudo sobre a questão em ensaio voltado às Administrações Independentes da Espanha, sustenta que é inevitável uma margem de apreciação que há de se conceder à Administração na aplicação de certos conceitos normativos indeterminados, de modo que é impossível seguir afirmando que em sua aplicação existe uma unidade de solução justa.69 Por seu pensamento, quando se admite uma margem de apreciação em favor da Administração na aplicação de um conceito normativo indeterminado, se está admitindo que podem existir distintas interpretações lícitas e, em conseqüência, que não cabe falar em uma única solução justa. Ou seja, a defesa que García de Enterría faz em termos disjuntivos da idéia da “unidade de solução justa” não serviria para rechaçar estas críticas.70 Do mesmo modo, Miguel Beltrán de Felipe sustenta que para a determinação de alguns conceitos jurídicos indeterminados, o direito oferece pautas, critérios ou regras interpretativas, mas, para outros conceitos indeterminados, a densidade normativa é muito escassa. Nestes casos, tem-se, ao mesmo tempo, margem de apreciação e escassa ou nula densidade normativa.71 Nesse contexto, o Autor conclui que o Direito não oferece parâmetros suficientes ou positivos, razão pela qual resulta complicado, quando não impossível, encontrar essa única solução legal que anularia a discricionariedade.72 Como alhures, a doutrina pátria também controverte acerca da correlação entre os conceitos jurídicos indeterminados e o poder discricionário da Administração Pública.73 Eros Roberto Grau comparte do mesmo pensamento de García de Enterría, chegando a sustentar que não existem conceitos jurídicos indeterminados, ao argumento de que todo conceito é uma soma de idéias que, para ser conceito, tem de ser, no mínimo, determinada. Para ele, é, na verdade, “noção, vale dizer, idéia temporal e histórica, homogênea ao desenvolvimento das coisas; logo, passível de interpretação”.74 E, peremptoriamente, conclui: “Se o conceito não for, em si, uma suma determinada de idéias, não chega a ser conceito”.75 Nessa quadra, e com arrimo em Ascarelli, Eros Roberto Grau distingue entre os conceitos jurídicos meramente formais (regulae juris) e os tipológicos (fattispecie), que cumprem diferentes funções na linguagem jurídica. Sobre este último, os tipológicos, inserem-se os conceitos jurídicos apontados como indeterminados, pois “universalmente, são expressões da história e indicam os ideais dos indivíduos e grupos, povos e países. Ligam-se a esquemas e elaborações de caráter lógico – independentemente das quais é eventualmente impossível a disciplina e que poderão ser diferentes, mesmo obedecendo, cada uma, a uma coerência própria – bem como a preocupações e hábitos econômicos e fés religiosas; à história do Estado e à estrutura econômica; a orientações filosóficas e concepções do mundo”.76 diversas conseqüências jurídicas previstas pela norma. Cf. MAGIDE HERRERO, op. cit., pp. 261-262. Karl Engisch, após examinar o pensamento de Rudolf Laun, Jellinek, Forsthoff, Bruns e Bachof, e partindo da premissa de que é possível admitir a existência de discricionariedade no seio da ordem jurídica em um Estado de Direito, denota que no domínio da administração ou da jurisdição, a convicção pessoal de quem quer que seja chamado a decidir é elemento decisivo para determinar qual das várias alternativas que se oferecem como possíveis, dentro de certo “espaço de jogo”, será havida como sendo a melhor e justa. O Autor entende que é um problema da hermenêutica jurídica indagar onde e com que latitude discricionária existe. E, no plano terminológico, assim como metodologicamente, reconhece uma posição particular do conceito de discricionariedade, em confronto com os “conceitos indeterminados” e “conceitos normativos”. Introdução ao pensamento jurídico. 8.ed. Tradução de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 227-228. La ��������������������������� lucha contra las inmunidades del poder en el derecho administrativo (poderes discrecionales, poderes de gobierno, poderes normativos). Revista de Administración Pública, nº .38, p.171. 60 É digno de nota que a doutrina germânica sobre os conceitos jurídicos indeterminados - e a noção de uma única solução justa - foi adotada com grande entusiasmo na Espanha como instrumento de redução da discricionariedade, dentro da perspectiva de um amplo controle judicial desses atos. 61 FGV DIREITO RIO 25 atividades e atos administrativos Após suas digressões sobre o tema, esse mesmo jurista conclui que só existirão atos discricionários quando a norma jurídica atribuir ao Administrador Público, juízos de oportunidade; vale dizer, fora dessa hipótese, que o agente público estará jungido, unicamente, à lei. Em suma, sustenta que os conceitos jurídicos indeterminados se submetem, exclusivamente, a um processo interpretativo/aplicativo de textos normativos.77 Tércio Sampaio Ferraz Júnior também sustenta que a vagueza e ambigüidade de certos termos dão lugar a uma distinção entre conceitos indeterminados e conceitos discricionários, pois, para o Autor, nem sempre o vago e ambíguo gera discricionariedade. E conclui: “quando o conceito é determinado, apesar de vago e ambíguo, o ato com base nele é vinculado”.78 Pelo entendimento do Autor, dispositivos tradicionalmente tidos como “poderes discricionários” são, na verdade, simples enunciados de conceitos jurídicos indeterminados. Ou melhor, conceitos como calamidade pública, ordem pública, utilidade pública, não permitem em sua aplicação uma pluralidade de soluções justas, mas, apenas, uma só solução em cada caso concreto. Em sentido diametralmente oposto, ao conceituar discricionariedade administrativa Celso Antonio Bandeira de Mello sustenta que a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, diante de um caso concreto, surge quando há fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento.79 Por suas palavras, isso ocorre porque, muitas vezes, e exatamente porque o conceito é fluido, e é impossível contestar a possibilidade de conviverem intelecções diferentes, em que, por isto, uma delas tenha de ser havida como incorreta, desde que quaisquer delas sejam igualmente razoáveis. Por isso o Autor não aceita a tese de que o tema dos conceitos legais fluidos seja estranho ao tema da discricionariedade.80 Em amparo a sua tese, Celso Antonio aduz que os efeitos de direito são idênticos quando o Administrador, ao aplicar a regra ao caso concreto, apreende o significado de um conceito impreciso dentro da significação contextual que comportavam, ou decide segundo critérios de conveniência e oportunidade (este traduzindo uma opção por um dentre dois ou mais comportamentos que se conformam à finalidade da norma a ser aplicada). Nesse preciso sentido, defende que nenhuma diferença existe entre estas análises, e em ambas a extensão da investigação judicial é a mesma. Assim, tanto em uma como em outra, se for o caso, o ato administrativo não é passível de censura porque a Administração atuou dentro de esfera legítima, isto é, dentro do campo de liberdade (intelectiva ou volitiva) que a lei lhe proporcionava, seja porque não se excedeu ao decidir que tal ou qual comportamento era o mais conveniente e oportuno, por ter se mantido dentro dos limites da razoabilidade.81 Essas são as correntes doutrinárias que polarizam a aceitação ou não de haver uma solução justa na integração dos conceitos jurídicos indeterminados, impactando, diretamente, nos limites do controle judicial dos atos administrativos editados pelo Poder Executivo. Com os elementos acima, notadamente o amplo debate sobre o tema ao longo do século XX, examine os principais aspectos da aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, escolha uma das duas correntes, e enfrente o caso gerador abaixo. Curso de derecho administrativo. 10.ed. Madri: Civitas, 2001, tomo I, p. 457. É de capital importância ressaltar que em uma leitura mais apressada da doutrina sustentada pelos Autores, de que a “unidade de solução justa (...) não significa que haja somente uma e única conduta capaz de merecer, entre todas as possíveis, a qualificação àquela que o conceito aponta”, pode levar o leitor a um equivocado entendimento de que eles não defendem a corrente antes exposta. Nos referimos precisamente ao trecho em que denotam: “Convém notar a esse respeito, para evitar um mal entendido bastante freqüente sobre o qual costumam ser construídas as críticas ulteriores, que essa ‘unidade de solução justa’ à qual nos referimos não significa que haja somente uma e única conduta capaz de merecer, entre todas as possíveis, a qualificação à qual o conceito aponta. O que quer dizer exatamente é que em um dado caso a concreta conduta objeto de ajuizamento ou é de boa-fé ou não o é, o que remete a uma ‘apreciação por juízos distintivos’, na expressiva fórmula alemã, já que não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo, como é evidente.” Op. cit., p. 458. 62 Op. cit. Alejandro Nieto García, em obra doutrinária de 1964, sustentou nesse mesmo sentido: quando se exercita uma função discricionária stricto sensu, a operação que deve realizar a Administração é de natureza volitiva, e quando esta se aplica aos conceitos jurídicos indeterminados a operação que realiza é de natureza intelectiva. “Reducción jurisdiccional de la discrecionalidad en materia disciplinaria”. Revista de Administración Pública, n.44, p.147. É certo que a consolidação dessa teoria deu-se naquela nação da Europa Continental por obra de Fernando Sáinz Moreno, no ano de 1976, com uma tese em que aprofundava o tema a partir de uma construção dogmática, contendo vários exemplos. Conceptos jurídicos, interpretación y discrecionalidad administrativa. Madri: Civitas, 1976. 63 GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, op. cit., p. 458. 64 65 Op. cit., p. 459. FGV DIREITO RIO 26 atividades e atos administrativos Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 40 a 42. Caso gerador: Nos termos do art. 7o, inciso XIV, da Lei nº. 9.782, de 26 de janeiro de 1999, compete à Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA: interditar, como medida de vigilância sanitária, os locais de fabricação, controle, importação, armazenamento, distribuição e venda de produtos e de prestação de serviços relativos à saúde, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde. Pode-se dizer que “risco iminente à saúde” é um conceito jurídico indeterminado, passível de integração, portanto, pela autoridade administrativa. Em uma fiscalização de rotina nas instalações de um fabricante de medicamentos, com atuação em vários países, os técnicos da agência reguladora constatam a fabricação de remédios com a utilização de novas técnicas, ainda não experimentadas em nosso país. Sob esse ponto de vista, a entidade reguladora poderia paralisar as atividades até que fossem atendidas todas as normas técnicas então vigentes. Ocorre que, se assim proceder, estará impedindo que uma grande parte da população, notadamente a mais carente, tenha acesso aos referidos medicamentos, essenciais para a sobrevivência daqueles que dependem do mesmo. Por outro lado, não há notícia de haver fabricantes, locais ou no exterior, que possam, em curto espaço de tempo, suprir o mercado com esses medicamentos, com a mesma fórmula ou por meio de outra com igual eficácia. Diante desse caso concreto, a ANVISA tem as seguintes alternativas: a) permitir a continuidade da fabricação desses medicamentos até que a empresa comprove, em prazo compatível e por meio de laudos técnicos idôneos, a eficácia dessas novas técnicas, de modo a que possam ser admitidas em nosso país; b) assinalar com um prazo razoável para que a empresa altere os seus procedimentos, de forma que passe a adotar as técnicas então vigentes, ainda que supostamente não tão avançadas; c) interditar as instalações da indústria e proibir a venda dos medicamentos para evitar maiores riscos aos consumidores. A ANVISA escolhe a solução da letra “a”. O Ministério Público, por sua vez, ingressa com Ação Civil Pública requerendo a interdição do estabelecimento, alegando violação ao direito difuso à saúde. Diante desse caso, como deve decidir o magistrado? Nas palavras de García de Enterría e Fernández: “a discricionariedade é essencialmente uma liberdade de escolha entre alternativas igualmente justas, ou, caso se prefira, entre indiferentes jurídicos, porque a decisão se fundamenta normalmente em critérios extrajurídicos (de oportunidade, econômicos, etc.), não incluídos na Lei e remetidos ao juízo subjetivo da Administração. Ao contrário, a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados é um caso de aplicação da Lei, pois se trata de subsumir em uma categoria legal (configurada, entretanto, sua imprecisão de limites, com a intenção de limitar uma suposição concreta), umas circunstâncias reais determinadas, justamente por isso é um processo regrado, que se esgota no processo intelectivo de compreensão de uma realidade no sentido em que o conceito legal indeterminado pretendeu, processo no qual não interfere nenhuma decisão de vontade do aplicador, como é próprio de quem exerce uma um poder discricionário”. Op. cit., pp. 458-459. 66 Discrecionalidad administrativa y control judicial. Madri: Tecnos, 1994, p. 116. 67 Op. ����������������������������� cit., p. 118. ����������� Mariano Bacigalupo, um dos autores que mais se destacou na Espanha na defesa da corrente de pensamento que sustenta a possibilidade da discricionariedade administrativa quando existirem, nessas mesmas normas, os denominados conceitos jurídicos indeterminados, denota, em igual entendimento, que tanto a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados em sua zona de incerteza, como o exercício da discricionariedade consiste em uma mesma tarefa de integração da norma na aplicação em um fato concreto, ou seja, ambas se concebem como manifestações de um mesmo fenômeno de natureza materialmente normativa. O Autor se recusa a admitir que se possa estabelecer alguma distinção entre discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados em vista do grau de vinculação normativa e, em conseqüência, a intensidade de sua sindicância judicial. Op. cit., p. 203. 68 69 Op. cit., p. 268. 70 Op. cit, pp. 268-269. FGV DIREITO RIO 27 atividades e atos administrativos Leitura complementar: GUERRA, Sergio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 161 a 246. Discrecionalidad administrativa y constituición. Madri: Tecnos, 1995, p. 110. 71 72 Op. cit. Nesse sentido, Tércio Sampaio Ferraz Júnior adverte que a doutrina não é pacífica a esse respeito, e a distinção entre conceito indeterminado e discricionário é disputada. Discricionariedade nas decisões do CADE sobre atos de concentração. Revista do IBRAC, São Paulo, v. 4, n. 6, p. 87-89, 1997, p. 88. 73 O direito posto e o direito pressuposto. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 202. 74 75 Op. cit., p. 196. 76 Op. cit., p. 199. Op. cit., pp. 203-204. O Autor defende o seu ponto de vista trazendo de forma literal para o vernáculo as conclusões dos mestres García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández. 77 Discricionariedade nas decisões do CADE sobre atos de concentração. Revista do IBRAC, São Paulo, v. 4, n. 6, p. 87-89, 1997, p. 88. 78 Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. 5. Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 23. 79 80 Op. cit. Op. cit., p. 27. Germana de Oliveira Moraes, nessa linha de pensamento, aduz que a abertura da norma tanto pode residir na previsão incompleta dos pressupostos necessários à edição do ato administrativo, quanto na indeterminação parcial dos efeitos a serem produzidos com a sua edição. Para a Autora, a primeira hipótese se evidencia em face da utilização pela lei de conceitos indeterminados atributivos de discricionariedade, como por exemplo, “conveniência para o serviço”. Op. cit., p. 39. 81 FGV DIREITO RIO 28 atividades e atos administrativos Aula 5: Os princípios da finalidade, da impessoalidade e da motivação. Objetivo: Apresentar o conteúdo do princípio da finalidade, enfatizando sua relação com o princípio da legalidade. Apresentar a teoria do abuso ou desvio de poder. Enfrentar com os alunos o conteúdo do princípio da impessoalidade no cotidiano brasileiro. Introdução: Finalidade O ato administrativo, para ser lícito e legítimo, deve atender aos fins a que se destina. Deste modo, o princípio da finalidade corresponde a uma orientação obrigatória da atividade administrativa ao interesse público.82 Na mesma senda vigora o princípio da impessoalidade, que impõe à autoridade pública, no exercício da atividade administrativa, a consideração, de modo objetivo, dos vários interesses públicos e privados a avaliar.83 O não atendimento do fim público ou se a decisão administrativa for fundamentada em favoritismos pessoais do administrador público, ou de determinados grupos, considerase vício de finalidade ou desvio de poder. Os vícios de finalidade ou do fim dos atos administrativos “escondem a intenção do administrador sob a capa da legalidade”.84 Assim é que “demonstrados, mediante prova irrefutável, permitem o controle jurisdicional da medida viciada, por desvio de poder, acarretando a anulação do ato, eivado desse defeito ou vício”. Caio Tácito, pioneiro no estudo do desvio de poder no Brasil, denota que o desvio de poder é, por definição, um limite à ação discricionária, um freio ao transbordamento da competência legal além de suas fronteiras. A relevância do estudo sobre o tema do desvio de poder foi assim sustentada no remoto ano de 1951 por Caio Tácito: “a escassa invocação, entre nós, de tão importante modalidade de controle da Administração, inspirou-nos o propósito de estudar-lhe as características, na esperança de conquistar a atenção dos nossos juristas. Não pretendemos inovar a matéria, tão profundamente analisada na bibliografia francesa e italiana, mesmo porque a originalidade científica é sempre difícil, até para os mais doutos. Desejamos somente conceituar o desvio de poder e assinalar a sua compatibilidade com a lei e a tradição jurídica nacionais. Não se trata de importância exótica, oriunda de regime contencioso diverso de nosso sistema judiciarista. Depõe, aliás, nesse sentido, os julgados brilhantes, embora isolados, que já o acolheram como razão de decidir”.85 José Cretella Júnior, autor que sistematizou entre nós, no ano de 1965, o tema do desvio de poder ou, na expressão utilizada pelos franceses, détournement de pouvoir86, denota que se trata de aspecto vicioso do ato administrativo que, ultrapassando-lhe a epiderme, chega ao próprio cerne da medida, devassando a intenção do administrador e eivando de nulidade a providência tomada. Trata-se de distorção da discricionariedade de que é detentor o agente público, que se inclina fundado no interesse próprio e não no interesse da Administração.87 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 92. 82 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 62. 83 CRETELLA JÚNIOR, José. Controle jurisdicional do ato administrativo. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 271. 84 CRETELLA JÚNIOR, José. O “desvio de poder” na administração pública. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 126. 85 Para Afonso Rodrigues Queiró, “a jurisprudência francesa, mais liberal que a legislação em que rigorosamente deveria basear-se, arranjara sutilmente um limite ao poder discricionário pelo lado dos fins, dos motivos ou móbeis da Administração”. In: A teoria do desvio de poder em direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n.7, p.52-80, jan./mar., 1947, pp. 62-63. 86 O desvio de poder.., ob. cit., p. 3. 87 FGV DIREITO RIO 29 atividades e atos administrativos O desvio de poder, fundamento para anulação do ato administrativo que nele incide, difere dos outros casos, porque não se trata aqui de apreciar objetivamente a conformidade ou não-conformidade de um ato com a regra de direito, mas de proceder-se a uma dupla investigação de intenções subjetivas: é necessário indagar se os móveis que inspiraram o legislador deveriam realmente inspirá-lo. Os outros casos de anulação dos atos administrativos fundamentam-se em razões de existência objetiva e que podem justificar a decisão. Aqui, o móvel, ao contrário, é o sentimento, o desejo que inspirou o autor do ato, mas na forma o ato é perfeito.88 No mesmo sentido, sustenta Agustin Gordillo que existe um desvio de poder toda vez que o funcionário atua com uma finalidade distinta da perseguida pela lei. O ato está assim viciado ainda que seu objeto não seja contrário ao ordenamento jurídico.89 Com efeito, as normas que conferem uma determinada faculdade ao administrador o fazem para que o servidor satisfaça a finalidade expressa ou implícita do ordenamento jurídico, não para realizar questões pessoais. O administrador tem sua competência circunscrita ao que as normas determinam, pelo que a faculdade que elas conferem está necessariamente restringida e orientada ao cumprimento da própria finalidade do sistema normativo. Dessa forma, o que vicia o ato, inquinando-o de desvio de poder, é o fim privado, isto é, a vontade distorcida do agente público que deixa de ser administrador para tornarse dominus, praticando ato com finalidade absolutamente incompatível com o espírito de objetividade e imparcialidade que deve nortear os atos do agente público.90 Esse limite visa impedir que a prática do ato administrativo possa dirigir-se à consecução de um fim de interesse privado, ou mesmo de outro fim público estranho à previsão legal.91 Nesse sentido, Gaston Jèze aduz que, dada a natureza humana e o egoísmo dos indivíduos, deve prever-se que os governantes e os agentes públicos exerçam sua competência, a fim de obter vantagens particulares para eles, ou para seus amigos pessoais, ou políticos, representando abuso de poder.92 Sobre os tipos insertos nessa teoria, colhe-se o magistério de Celso Antonio Bandeira de Mello, para quem o vício de desvio de poder pode apresentar-se sob dupla modalidade: Em uma delas, o agente administrativo, servindo-se de uma competência que em abstrato possui, busca uma finalidade alheia a qualquer interesse público. Neste caso atua para alcançar um fim pessoal, que tanto pode ser de perseguição a alguém como de favoritismo ou mesmo para atender um interesse individual do próprio agente. Em outra modalidade, manejando também uma competência que em abstrato possui, busca atender uma finalidade pública que, entretanto, não é aquela própria, específica, da competência utilizada. Aí terse-á valido de uma competência inadequada, de direito, para o atingimento da finalidade almejada.93 Impessoalidade Dentre os princípios constitucionais regedores da Administração Pública elencados no art. 37, caput, da Constituição Federal, merece menção ainda o princípio da impessoalidade, cujo conteúdo é assim apresentado por Odete Medauar: 88 Op. cit., p. 5. Tratado de derecho administrativo. 5.ed. Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 2000, pp. IX-23-24. 89 CRETELLA JÚNIOR, O “desvio de poder”, p. 47. 90 TÁCITO, Caio. “O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.228, p.1-12, abr./jun. 2002, p. 2. 91 JÈZE, Gaston. Principios generales del derecho administrativo. v. I. Tradução de Julio N. San Millán Almagro. Buenos Aires: Editorial Depalma, 1948, p. 79. 92 Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. 5. Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001, pp. 58-59. 93 Com o princípio da impessoalidade a Constituição visa a obstaculizar atuações geradas por antipatias, simpatias, objetivos de vingança, represálias, nepotismo, favorecimentos FGV DIREITO RIO 30 atividades e atos administrativos diversos, muito comuns em licitações, concursos públicos, exercício do poder de polícia (...) Em situações que dizem respeito a interesses coletivos ou difusos, a impessoalidade significa a exigência de ponderação equilibrada de todos os interesses envolvidos, para que não se editem decisões movidas por preconceitos ou radicalismos de qualquer tipo.94 Conforme se terá oportunidade de concluir, por meio da análise dos vários casos geradores que compõem este primeiro bloco do Curso, o princípio da impessoalidade guarda direta relação com os princípios da moralidade, da publicidade e da motivação dos atos administrativos. Motivação A motivação das decisões administrativas, como leciona Tomás-Ramón Fernández, é um primeiro critério de deslinde entre a discricionariedade e a arbitrariedade, de maneira que o que não é motivado é, só por esse fato, arbitrário.95 A doutrina pátria é pacífica no entendimento de que a inexistência do motivo alegado como fundamento para a prática de qualquer ato administrativo acarreta a nulidade do mesmo. Nesse sentido, colhe-se a lição de Caio Tácito: MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 6ª ed. São Paulo: RT, 2002, p. 252. 94 Arbitrariedad y discrecionalidad. Madri: Civitas, 1991, p. 107. Nesse sentido, Miguel Sánchez Morón expõe que, na medida em que a motivação é um instrumento para explicitar as razões que levaram à decisão, não se pode estranhar que se considere um requisito imprescindível do ato discricionário. SÁNCHEZ MORÓN, Miguel. Discrecionalidad administrativa y control judicial. Madri: Tecnos, 1994, p. 151. 95 Os atos administrativos são nulos quando o motivo invocado é falso ou inidôneo. Ou o antecedente é inexistente, ou a autoridade lhe deu uma apreciação indevida, sob o ponto de vista legal. São as duas formas que, na doutrina francesa, se qualificam de inexistência material e inexistência jurídica dos motivos.96 Para a aferição da validade dos atos do Poder Público, isto é, para a verificação de sua conformação com o sistema normativo, faz-se indispensável, “além da perquirição dos elementos externos do ato (competência, forma, etc.), o exame da motivação intestina em que radicou a sua edição”.97 Qual se passou com a evolução dos requisitos das decisões judiciais nas instâncias penais e civis, onde a existência de fundamentação legítima e racional erigiu-se em estereótipo da garantia do devido processo legal, também na esfera do Direito Administrativo a existência de motivação é vista hoje como condição de validade dos atos da Administração. A declinação dos motivos nas manifestações estatais criadoras, extintivas ou modificadoras de direitos, que caracterizam os pronunciamentos de caráter decisório do Poder Público, tornou-se por toda parte uma exigência do Estado Democrático de Direito.98 Desse modo, para que o Poder Judiciário possa perscrutar o mérito do ato administrativo, há que se ter uma perfeita e clara identificação dos reais motivos que levaram o agente na adoção da decisão. O mérito do ato identifica-se com a análise e apreciação da oportunidade e conveniência na tomada da decisão, em que o administrador possui a faculdade discricionária, concedida por lei, para decidir entre as soluções que melhor atendam ao interesse público. Quer dizer, o mérito engloba a valoração procedida pelo administrador quanto a determinados fatos concretos, com base nos quais deverá escolher, após uma ponderação dos interesses envolvidos, a solução que entender seja a mais adequada, razoável e proporcional. Em síntese, o conteúdo do princípio da motivação é apresentado por Celso Antônio Bandeira de Mello nos seguintes termos: Controle dos motivos do ato administrativo. Temas de direito público: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, v. 1, p. 333. Celso Ribeiro Bastos, discorrendo sobre a teoria dos princípios determinantes do ato administrativo, é taxativo ao afirmar: “De acordo com esta teoria, os motivos que servem de suporte para a prática do ato administrativo, sejam eles exigidos por lei, sejam eles alegados facultativamente pelo agente público, atuam como causas determinantes de seu cometimento. A desconformidade entre os motivos e a realidade acarreta a invalidade do ato”. Curso de Direito Administrativo. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 97-98. 96 O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 322. 97 98 Op. cit.. FGV DIREITO RIO 31 atividades e atos administrativos Dito princípio implica para a Administração o dever de justificar seus atos, apontandolhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a providência tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a consonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo.99 Embora não previsto expressamente dentre os princípios constitucionais da Administração Pública constantes do art. 37, caput, da Constituição Federal, a doutrina aponta possuir o referido princípio uma guarida constitucional. Nesse sentido, para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da motivação constitui uma derivação necessária da garantia constitucional do devido processo legal (art. 5º, LIV, Constituição Federal).100 Já para Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da motivação encontra fundamento constitucional implícito no art. 1º, II, da Constituição – princípio da cidadania – e em seu parágrafo único, ao explicitar que todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido. Celso Antônio Bandeira de Mello cita, ainda, como fundamento constitucional do dever de motivação dos atos administrativos, a garantia inscrita no art. 5º, XXXV, da Constituição, segundo a qual é dado a qualquer cidadão o direito à apreciação judicial em caso de lesão ou ameaça a direito.101 De fato, o dever de motivação dos atos administrativos constitui uma exigência a que esses possam se submeter ao posterior controle do Poder Judiciário, lembrando que, quanto a esse último, o dever de motivação encontra-se expressamente consagrado na Constituição Federal (art. 93, IX, CF/88).102 Por fim, cumpre mencionar que a motivação foi expressamente prevista dentre os princípios informadores da atuação da Administração Pública no art. 2º da Lei nº 9.784/99 ( Lei do Processo Administrativo Federal). Leitura obrigatória: Curso de direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004,, p. 102. 99 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 35 a 39. Caso gerador: Trata-se de mandado de segurança impetrado por servidora pública lotada na Secretaria de Educação, que foi nomeada para cargo em comissão no Tribunal Regional do Trabalho por indicação direta de parente seu, que à época ocupava o cargo de vice-presidente do Tribunal. Os vencimentos do cargo em comissão se apresentavam substancialmente mais elevados do que os percebidos pela servidora no exercício de sua função na Secretaria de Educação. O Tribunal de Contas da União veio a considerar ilícita a referida nomeação, tendo o TRT, então, determinado a exoneração da servidora e o seu retorno à Secretaria de origem. Inconformada com a redução dos seus proventos e pela perda do adicional a que fazia jus pelo cargo comissionado, a servidora sustenta a inconstitucionalidade do ato que determinou a sua exoneração, que teria violado as garantias individuais do respeito ao direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Nesse sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “o princípio da motivação é instrumental e conseqüente do princípio do devido processo da lei (art. 5º, LIV, CF), tendo necessária aplicação às decisões administrativas e às decisões judiciárias, embora se encontre também, de modo implícito no devido processo de elaboração das normas legais, no sentido amplo (cf. arts. 59 a 69 da Constituição Federal e os diversos regimentos das casas legislativas)”. Mutações do direito público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 290. 100 Curso de direito administrativo, op. cit., p. 103. 101 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito público, op. cit., p. 291. 102 FGV DIREITO RIO 32 atividades e atos administrativos Busque refletir sobre o caso em comento, decidido pelo Supremo Tribunal Federal, à luz dos princípios da finalidade e da impessoalidade. Que outros princípios informadores da atividade da Administração pública poderiam ser invocados para o seu deslinde? Leitura complementar: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. 5. Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001, 58 ss. FGV DIREITO RIO 33 atividades e atos administrativos Aula 6: Os princípios da segurança jurídica, boa-fé e proibição do venire contra factum proprium da Administração Objetivo: Analisar as especificidades dos princípios da segurança jurídica, da boa-fé e da proibição do venire contra factum proprium aplicados especificamente às relações entre Administração Pública e os cidadãos. Introdução: Nesta aula somar-se-ão aos princípios anteriormente discutidos a importância da boafé objetiva e da segurança jurídica no trato da Administração Pública com os cidadãos. Princípios gerais de direito, esses merecem análise pormenorizada no que se refere à sua aplicação específica no campo aplicado do direito administrativo. Ambos encontram expressão positiva na Lei de Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/99), cujo art. 2º, caput e parágrafo único, IV e XIII, da Lei nº 9.784/1999 determina que: Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, contraditório e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; ... XII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada a aplicação retroativa de nova interpretação.” A importância da boa-fé e da segurança jurídica reside em proteger a legítima expectativa do Administrado, isto é, aquela que se origina de práticas passadas e dos precedentes da Administração Pública, que fazem nascer para o cidadão expectativa, à luz do princípio da isonomia, de que a Administração se comportará, naquele caso concreto, de forma consistente com comportamentos e decisões precedentes, seja naquele mesmo processo administrativo (os atos e decisões futuras têm de guardar coerência lógica com os atos e decisões anteriores), bem como com relação a outros atos e decisões praticados relativamente a terceiros. Assim, a boa-fé guarda relação direta com o princípio da confiança jurídica, segundo o qual: O Estado é instrumento da sociedade e sua existência só tem sentido se estiver a serviço de todos e de cada um. Por isso, justifica-se a confiança que legitimamente os membros da sociedade nele depositam, não se admitindo que os agentes públicos possam desempenhar suas funções traindo essa confiança.103 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 285. 103 FGV DIREITO RIO 34 atividades e atos administrativos À legítima expectativa conjuga-se o princípio da segurança jurídica na atuação da Administração Pública face aos cidadãos. De fato, as garantias e direitos fundamentais não se tornam efetivos caso estejam fora do manto da segurança das relações jurídicas entre o Estado e cada membro da sociedade. A segurança jurídica representa, assim, um conjunto de condições que tornam possível à sociedade o prévio conhecimento das conseqüências de seus atos à luz das normas pré-estabelecidas pelo sistema jurídico. Essa ordem de pensamento não encontra dissenso doutrinário. Isto é, a segurança jurídica foi – e continua sendo – um dos principais pilares de sustentação do Estado de Direito, como indica John Locke na defesa intransigente do Poder Legislativo como poder supremo da comunidade. Para Locke o objetivo primordial do homem seria formar a sociedade de modo que pudesse desfrutar da propriedade em paz e segurança.104 Mesmo buscando conciliar interesses antagônicos, conquistados pelos revolucionários, e interesses defendidos pelo regime monárquico, Benjamin Constant105 também ressaltou a relevância da segurança e sua vinculação à justiça e às garantias individuais. Nas conclusões apresentadas por William Simon106 “o ideal libertário exige que as pessoas tenham conhecimento dos seus direitos e obrigações antes de agir, para que possam planejar os seus negócios”. Por isso, e ao comentar os princípios da boa fé e da confiança legítima, ambos derivados da segurança jurídica, Jesús Gonzáles Pérez107 denota que o princípio da segurança jurídica supõe garantia e certeza do direito nas relações com o poder público, certeza esta que se materializa na manutenção de determinadas situações, ainda que não sejam de todo conforme o Direito, mas exista confiança na sua legitimidade. De igual pensamento e sob um viés formalista, José Afonso da Silva108 assevera que os valores constitucionais esvanecem-se todos se não forem protegidos pela indeclinável couraça da segurança jurídica. Segurança jurídica, sob esse viés formal, é o conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das conseqüências de seus fatos à luz da liberdade reconhecida.109 Nesse contexto, e sobre a importância da preservação da segurança jurídica em um Estado Democrático de Direito, expõe Diogo de Figueiredo Moreira Neto: O direito tem dupla vocação: a de proporcionar segurança a uma sociedade e a de fazer imperar a justiça em suas relações (...) O princípio da segurança jurídica é, assim, tão valioso, que sua violação compromete toda a instituição que o transgride, ao trair a confiança geral, cimento das civilizações, e a boa-fé dos que deveriam ser protegidos pela ordem jurídica.110 Da mesma forma, nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: Trata-se, portanto, a segurança jurídica, e um megaprincípio do Direito, o cimento das civilizações, que, entre outras importantes derivações relevantes para o Direito Administrativo, informa o princípio da confiança legítima, o princípio da boa-fé objetiva, o instituto da presunção de validade dos atos do Poder Público e a teoria da evidência.111 Dos princípios da boa-fé, da legítima expectativa e da segurança jurídica, aplicados à Administração Pública, decorre a incidência, nos atos da Administração, do princípio da não contradição, ou da proibição do venire contra factum proprium. É nesse sentido que a própria lei de Processo Administrativo Federal dispõe que a mudança de interpretação, por “Assim, mesmo o que tem o direito de seu lado, não possui geralmente mais que a própria força individual, que não é suficiente para se defender de agressões ou punir delinqüentes. Para evitar esses percalços que perturbam os homens no estado de natureza, estes se unem em sociedade para que a somatória de suas forças reunidas lhes garanta e assegure a propriedade, e para desfrutarem de leis fixas que limitem, que esclareçam a todos o que lhes pertence. É essa finalidade dos homens transferirem todo poder que possuem naturalmente à sociedade à qual se filiam, sociedade que deposita o poder legislativo nas mãos que julga mais aptas para esse encargo, para que os homens sejam governados por leis explícitas; caso contrário, a paz, a propriedade e a tranqüilidade continuariam na mesma incerteza em que se encontravam no estado de natureza.(...) Todo o poder que o governo tem destina-se apenas ao bem da sociedade, e da mesma forma que não deve ser arbitrário ou caprichoso, também deve ser exercido mediante leis estabelecidas e promulgadas; e isso para que não só os cidadãos saibam qual o seu dever, achando garantia e segurança dentro dos limites das leis, como também para que os governantes, limitados pela lei, não sofram a tentação, pelo poder que têm nas mãos, de exercê-lo para fins e por meios que os homens não conheçam e nem aprovariam de boa vontade.” LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martins Claret, 2005, pp. 98-102. 104 “Coloca-se em perigo a segurança pública quando os cidadãos vêm na autoridade uma ameaça em lugar de salvaguarda. A arbitrariedade é o verdadeiro inimigo da segurança pública. Somente há segurança pública quando há justiça, justiça nas leis, leis na ação. A liberdade de um único cidadão interessa tanto à comunidade social que as causas de qualquer delito devem ser apuradas com todo rigor necessário para submeterem-se aos juízes ordinários. Esse é o fim principal, o fim sagrado, de toda instituição política. Nenhuma Constituição pode legitimar-se de outra maneira 105 FGV DIREITO RIO 35 atividades e atos administrativos parte da Administração Pública, não pode ser utilizada para vedar ou limitar o gozo de direitos pelo Administrado (art. 2º, parágrafo único, XII, Lei nº 9.784/99). Os princípios supracitados, embora positivados na legislação administrativa processual, podem ser considerados princípios gerais de direito administrativo, aplicáveis em toda relação entre Administração Pública e o cidadão. Conforme observa Anderson Shreiber, a aplicação do princípio da proibição do comportamento contraditório, nas relações de direito público, decorre dos princípios da moralidade e da igualdade dos administradores perante a Administração Pública (cf. art. 37, caput, CF/88), bem como do princípio da solidariedade social, considerado, pelo autor, “o seu fundamento normativo mais elevado”112. Possui, portanto, inegável fundamento constitucional. Leitura obrigatória: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 73 a 94. Caso gerador: O Sr. Manoel da Silva ajuizou ação de desapropriação indireta contra o Estado de São Paulo, sustentando que a criação do Parque Estadual da Serra do Mar havia tido por conseqüência a desapropriação indireta de dois terrenos de sua propriedade, que haviam sido adquiridos do próprio Estado alguns anos antes. Em contestação, o Estado de São Paulo alegou que os títulos aquisitivos de propriedade do senhor Manoel da Silva apresentavam-se eivados de nulidade, pois que celebrados em desobediência ao diploma legal específico que determinava a forma de alienação de terras devolutas pelo Estado. De acordo com a defesa, os instrumentos de transferência da propriedade teriam sido celebrados desconsiderando a edição de norma de ordem pública, já vigente à época do ato, que havia alterado os procedimentos para a alienação de terras devolutas. Dessa forma, sustentava a nulidade dos títulos de propriedade do autor da ação, em que pese esse ter sido celebrado na presença de membro do alto escalão da Administração Pública, dotado dos devidos poderes para a prática do ato, e ter o Estado permanecido silente por todo o lapso temporal entre a data da celebração do instrumento traslativo da propriedade e o momento da propositura da ação. Na qualidade de magistrado, como você decidiria a controvérsia acima? Em sua análise, procure elencar os fundamentos jurídicos que embasaram a propositura da ação e a defesa da Fazenda Pública do Estado de São Paulo. Procure refletir sobre o caso à luz, dentre outros, dos princípios da legalidade estrita, da essencialidade da forma para a transferência de propriedade imobiliária, da eficiência da Administração Pública e da proibição do venire contra factum proprium da Administração Pública. e seria ilusão buscar outro fundamento de força e persuasão. (...) Nossa Constituição, ao tornar inamovíveis todos os juízes nomeados, lhes dá uma independência da qual precisam há muito tempo. Saberão que do julgamento de um ministro, acusado, como qualquer outro, não lhes recairá nenhuma censura constitucional, que não se defrontam com nenhum perigo. Da segurança dos juízes nascerá a imparcialidade, a moderação e a coragem.” CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais. Trad. De Maria do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1989, pp. 141-142. Esta obra foi originalmente publicada em 1814 com a denominação de Principes de Politique Applicables à tous lês Gouvernements Représentatifs et Particulièrment à la Constituition Actuelle de la France. SIMON. William H. A prática da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 67. 106 GONZÁLES PÉREZ, Jesús. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 3.ed. Madrid:Civitas, 1999, p. 53. 107 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 412. 108 No mesmo sentido Celso Antônio Bandeira de Mello denota que o “princípio da segurança jurídica é, provavelmente, o maior de todos os princípios fundamentais do Direito, já que se encontra em sua base, em seu ponto de partida.” BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Reforma da previdência. Rio de Janeiro: CONAMP, 2004, p. 67. 109 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito público, p. 275. 110 FGV DIREITO RIO 36 atividades e atos administrativos Leitura complementar: SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e ‘venire contra factum proprium’. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, especialmente pp. 202 a 208 (“venire contra factum proprium da Administração Pública”). SILVA, Almiro do Couto e. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 2, nº 6, pp. 1-59, jul./set. 2004; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12ª. edição, Ed. Atlas, São Paulo, 2000, p. 85. A teoria da evidência é adiante exposta pela autora nos seguintes termos: “condicionante da aplicação do princípio da segurança jurídica, é o objeto da denominada teoria da evidência, que sustenta, em síntese, que o vício manifesto e grave, cuja existência não suscita discordância quando de sua edição, dispensando o discernimento técnico de profissionais do direito para ser caracterizado, não é sanável. Na mesma linha, a contrario sensu, o ato praticado, ainda que possa ser acoimado de vícios, se não eram evidentes desde sua origem a uma pessoa de mediana cultura e de bom senso, demandando conhecimentos jurídicos especializados de um bacharel para caracteriza-los, será sanável”. (Ob. cit., p. 216) 111 112 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e ‘venire contra factum proprium’. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 208. FGV DIREITO RIO 37 atividades e atos administrativos Aula 7: Os princípios da moralidade, da eficiência e da publicidade dos atos administrativos Objetivo: O objetivo desta aula será travar um amplo debate acerca do conteúdo dos princípios da moralidade, eficiência e publicidade dos atos da Administração Pública, permitindo, sobretudo, observar como esses princípios se entrecruzam e constituem importante rol de garantias do cidadão face a atos comissivos e omissivos do poder público. Introdução: Os três princípios constitucionais da Administração Pública que constituem o objeto de reflexão desta aula encontram-se positivados no art. 37, caput, da Constituição, informando todos os atos da Administração, nas suas mais diversas esferas de atuação. A seguir buscar-se-á apresentar brevemente algumas considerações tecidas pela doutrina sobre cada um desses princípios para que, em seguida, e utilizando os elementos obtidos a partir das leituras realizadas pela aula, possa-se discutir o caso gerador. Moralidade Foi Maurice Hauriou, em 1914113, quem teorizou, inicialmente, o princípio da moralidade administrativa em uma de suas notas à jurisprudência do Conselho de Estado Francês.114 Ao comentar a linha de pensamento do mestre de Toulouse, Celso Antonio Bandeira de Mello115 afirma a impossibilidade de a Administração Pública agir de modo malicioso e/ou astucioso: De acordo com ele (Hauriou) a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada à invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição. Compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e da boa-fé, tão oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesus Gonzáles Peres em monografia preciosa. Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos. Maria Sylvia Zanella Di Pietro observa sobre a convivência entre o princípio da moralidade administrativa e o princípio da legalidade que “antiga é a distinção entre moral e direito, ambos representados por círculos concêntricos, sendo que o maior corresponde à moral e, o menor, ao direito. Licitude e honestidade seriam os traços distintivos entre o Ver em sua obra Précis de Droit Administratif, Larose. 113 Entre nós o estudo da moralidade administrativa teve o pioneirismo do Professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho O Controle da moralidade Administrativa. São Paulo: Ed. Saraiva, 1974. 114 Elementos de Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 61. 115 FGV DIREITO RIO 38 atividades e atos administrativos direito e a moral, numa aceitação ampla do brocardo segundo o qual non omne quod liced honestum est (nem tudo o que é legal é moral)”.116 Em sentido semelhante, é a distinção assinalada por José Augusto Delgado117, que assevera que enquanto o princípio da legalidade exige ação administrativa de acordo com a lei, o da moralidade prega um comportamento do administrador que demonstre haver assumido como móbil da sua ação a própria idéia do dever de exercer uma boa administração. Dessa forma, uma vez reconhecida, pela doutrina publicista a diferença ontológica entre a moralidade administrativa e o princípio da legalidade, foi possível que a Constituição Federal de 1988 pudesse estabelecer esses dois valores do Estado Democrático de Direito, como princípios informativos e tutelares da Administração Pública, na forma do caput de seu artigo 37, in verbis: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e também, aos seguintes: A moralidade administrativa, a partir da Constituição de 1988, passou a ser princípio jurídico explicitamente positivado no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que o preceito ético deixa de ser valor e passa a ser princípio, deixa de ter um caráter teleológico e passa a ter um valor deontológico.118 Por isso, José Augusto Delgado sustenta que o princípio da moralidade administrativa não deve acolher posicionamentos doutrinários que limitem a sua extensão. Para o Autor, imoral é o ato administrativo que não respeita o conjunto de solenidades indispensáveis para a sua exteriorização; quando foge da oportunidade ou da conveniência de natureza pública; quando abusa no seu proceder e fere direitos subjetivos ou privados; quando a ação é maliciosa, imprudente, mesmo que somente no futuro essas feições ou algumas delas se tornem reais.119 Diogo de Figueiredo Moreira Neto ressalta o conteúdo eminentemente finalístico do princípio da moralidade da Administração Pública, nos seguintes termos: Considera-se, portanto, na moral administrativa, o resultado, desvinculadamente da intenção de produzi-lo, pois está-se diante de um conceito orientado pela finalidade. (...) Ora, esse bom resultado, objetivamente considerado, a que moralmente deve tender a Administração Pública, só pode ser o que concorra para a realização da boa administração, inegavelmente o que satisfaz o direcionamento aos interesses públicos, o que vem a ser seu fim institucional.120 Não se pode deixar de considerar que a moralidade administrativa pode ser violada tanto por atos comissivos quanto omissivos. É nesse sentido que Iara Leal Gasos, ao tratar da atitude omissiva do Estado, invoca o princípio da moralidade: Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 66. 116 O Princípio da Moralidade Administrativa e a Constituição Federal de 1988, Revista dos Tribunais, v. 680, 1992, p. 35. 117 GRAU, Eros Roberto. O Direito posto e o Direito pressuposto, São Paulo, Malheiros, 1996, p. 78-79. 118 O princípio da moralidade administrativa e a constituição federal de 1988. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 680, p.38, jun. 1992. No mesmo diapasão, vale colacionar o posicionamento de Sergio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari em obra específica sobre processo administrativo: “Em síntese, não faz sentido atentar-se contra as instituições e seus valores fundamentais, em holocausto a concepções pessoais de moral, mas é perfeitamente possível zelar pela moralidade administrativa, por meio da correta utilização dos instrumentos para isso existentes na ordem jurídica, entre os quais merece posição de destaque exatamente o processo administrativo, pela extrema amplitude de investigação que nele se permite, chegando mesmo ao mérito do ato ou da decisão, ao questionamento de sua oportunidade e conveniência”. FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 70. 119 MOREIRA NETO, Digo de Figueiredo. Mutações de direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 59. 120 Um ato flagrantemente omisso, injusto, que deixa o particular ou a coletividade sofrer lesão, ou coloca-os em situação de perigo iminente, é um ato atentatório à moral da sociedade; estando, então, acobertados pelo manto constitucional, pelo interesse e pela legitimidade, a bater à porta do Judiciário, por se virem lesados em seus direitos.121 GASOS, Iara Leal. A omissão abusiva do poder de polícia. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 1994, p. 91. 121 FGV DIREITO RIO 39 atividades e atos administrativos A moralidade administrativa possui atualmente uma dimensão de extrema relevância, consistente no dever de atuação proba da Administração Pública. É nesse sentido que o art. 37, §4º, da Constituição determina: §4º. Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. Em obediência a esse mandamento constitucional, foi promulgada a Lei nº 8.429, de 02.06.1992, a qual dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício do mandato, cargo, emprego ou função na administração direta, indireta ou fundacional. Nesse sentido, o art. 4º da Lei nº 8.429 determina: Art. 4° Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos. A Lei nº 8.429/92 apresenta três distintas classes de atos de improbidade administrativa. O art. 9º elenca os atos de improbidade administrativa dos quais decorre enriquecimento ilícito; o art. 10 dispõe sobre os atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário; e o art. 11, por sua vez, disciplina os atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública. Além dos instrumentos processuais previstos na Lei nº 8.429/92, também a ação popular e a ação civil pública constituem instrumentos jurídicos eficazes na tutela do princípio da moralidade contra atuações da Administração pública capazes de gerar dano ao erário. Eficiência De acordo com o princípio da eficiência, o Administrador Público possui o dever de realizar suas atribuições com presteza e rendimento funcional, de modo que as atividades administrativas sejam executadas com agilidade e rapidez, para não deixarem desatendidos e prejudicados os interesses coletivos e de cada um dos cidadãos. O mandamento da eficiência significa que a gestão pública deverá perseguir o máximo de eficácia com o mínimo de sacrifício para a coletividade. O princípio da eficiência, positivado em nosso ordenamento constitucional desde a edição da Emenda nº 19/98, na lição de Odete Medauar, “determina que a Administração deve agir, de modo rápido e preciso, para produzir resultados que satisfaçam as necessidades da população. Eficiência contrapõe-se a lentidão, a descaso, a negligência, a omissão”.122 Diogo de Figueiredo Moreira Neto, por sua vez, comenta que as raízes do princípio da eficiência residem no desenvolvimento da teoria da administração pública gerencial, de matriz anglo-saxônica, a partir da qual: Passou-se a reconhecer não ser o bastante o praticarem-se atos que simplesmente estivessem aptos a produzir os resultados deles juridicamente esperados, o que atenderia apenas ao conceito clássico de eficácia. Exigiu-se mais: que esses atos devessem ser praticados com MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 6ª ed. São Paulo: RT, 2002, p. 157. 122 FGV DIREITO RIO 40 atividades e atos administrativos tais qualidades intrínsecas de excelência, que possibilitassem lograr-se o melhor atendimento possível das finalidades previstas em lei.123 Dessa forma, Antônio Carlos Cintra do Amaral observa que “o princípio da eficiência, contido no caput do art. 37 da Constituição, refere-se à noção de obrigações de meios. Ao dizer-se que o agente administrativo deve ser eficiente está-se dizendo que ele deve agir (...) com a ‘diligência do bom pai de família’”.124 Deve-se observar que as qualidades exigidas da atuação do administrador devem apresentar caráter objetivo e ser pré-conhecidas, de forma a possibilitar o controle de sua atuação (seja no próprio âmbito da Administração, pelo Tribunal de Contas ou pelo Poder Judiciário). É preciso ressaltar a importância de se tratar a exigência de eficiência dos atos da Administração Pública sempre sob um prisma objetivo, ou seja, o atingimento do parâmetro de eficiência não poderá jamais ser uma questão de natureza subjetiva, sob o risco de instaurar-se o arbítrio quando do controle de tais atos.125 De todo modo, é relevante destacar que a eficiência administrativa não pode ser examinada no caso concreto de forma isolada dos demais princípios jurídicos. “Quando se entende que a eficiência deve abranger a análise dos meios e dos resultados, não significa que somente devem ser considerados a celeridade, prestabilidade, a racionalidade e a economicidade, ou quaisquer dos critérios metajurídicos propostos pela doutrina especializada. A sua natureza abrangente manifesta-se claramente quando se considera que não pode ser eficiente um ato que afronte outro princípio, devido à possibilidade de anulação do mesmo.”126 Especialmente com relação à legalidade, é preciso ter sempre em consideração que somente existem atos administrativos eficientes dentro do ambiente da legalidade. Conforme destaca Antonio Carlos Cintra do Amaral, “dizer-se que a Administração está autorizada a praticar atos ilegais, desde que isso contribua para aumentar sua eficiência, é no mínimo tão absurdo quanto dizer-se que uma empresa privada pode praticar atos ilícitos, desde que isso contribua para aumentar sua eficiência”.127 Como podemos ver, também o mandamento da eficiência deve ser observado em um ambiente de valorização e sopesamento principiológico, conjugando-se a eficiência com outros princípios informadores do Estado Democrático de Direito. Mutações do direito público, p. 310. 123 Publicidade Conforme explana Odete Medauar, o princípio de publicidade refere-se ao dever de transparência das atividades administrativas. Nas palavras da autora, “O tema da transparência ou visibilidade, também tratado como publicidade da atuação administrativa, encontra-se associado à reivindicação geral de democracia administrativa”128. No entanto, algumas autoridades públicas costumam confundir o dever de informação subjacente ao princípio da publicidade com a realização de propaganda comercial. Considerando o princípio da publicidade atrelado ao da moralidade, reflita sobre se a propaganda promovida pelos governos representa uma forma de concretização do princípio da publicidade. Busque elencar outros meios de concretização do princípio da publicidade à disposição do poder público. AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. O princípio da eficiência no direito administrativo. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, nº 14, junho-agosto, 2002, Disponível em <http:// www.direitopublico.com.br> Acesso em 24.06.2006, p. 5. 124 Conforme Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Mutações do direito público, p. 311. 125 GABARDO, Emerson. Princípio constitucional da eficiência administrativa. São Paulo: Dialética, 2002, p. 97. 126 127 Op. cit., p. 6. Direito administrativo moderno. São Paulo: RT, 2002, p. 155. 128 FGV DIREITO RIO 41 atividades e atos administrativos Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 17 a 21. Casos geradores: Caso Gerador 1: A empresa de radiodifusão ABC Ltda., rádio comunitária, impetrou mandado de segurança preventivo, objetivando obter tutela jurisdicional ao seu direito de seguir exercendo sua atividade econômica, na pendência de análise, pelo Poder Executivo, de pleito de autorização de funcionamento formulado à Administração Pública. A sociedade impetrante iniciou suas atividades em uma época na qual não havia tal exigência, atualmente prevista no art. 223 da Constituição Federal e na Lei nº 9.612/1998. Além disso, desde 1996 havia requerido ao Ministério das Comunicações a outorga de autorização para o exercício da atividade de radiodifusão, em processo administrativo que permanecia em análise na data da propositura da ação. Mesmo assim, a impetrante vinha sendo ameaçada de autuação, por estar funcionando sem requisito legalmente exigível (a autorização). Em primeira instância, foi concedida a segurança, determinando o Juízo que o poder público se abstivesse de qualquer medida no sentido de impedir o funcionamento da impetrante, até que finda a análise do processo de deferimento da autorização. Em sua decisão, o Magistrado mencionou que ofenderia o juízo de proporcionalidade obstar o funcionamento de empresa que presta serviço de relevante interesse coletivo, se na verdade o requisito legal que lhe é exigível depende de ato da própria Administração. Invocou, nesse sentido, os arts. 48 e 49 da Lei nº 9.784/1999 (a Lei de Processo Administrativo Federal), segundo os quais, finda a instrução, a Administração tem o dever de decidir no prazo de 30 dias, salvo prorrogação motivada por igual período. Contra a decisão recorreram a União Federal e a ANATEL, alegando que, sem a autorização em tela, a Impetrante estaria atuando de forma clandestina, conduta que constituía inclusive crime punível nos termos do art. 70 do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/1962). Adicionalmente, a Impetrante estaria operando em freqüência distinta da prevista na Lei nº 9.612/1998, de forma que seu pleito, realizado fora das condições estabelecidas pela superveniente Lei nº 9.612/1998 - à qual não buscara se adequar – caracterizava infração à legislação regedora das empresas de radiodifusão, devendo, portanto, ser reformada a sentença proferida. A partir dos dados acima apresentados, reflita sobre a incidência, no caso, do princípio da eficiência da Administração, do princípio da legalidade, do dever de tutela do interesse coletivo pela Administração Pública e demais valores juridicamente relevantes discutidos no caso em comento. Caso gerador 2: O Ministério Público do Estado de São Paulo ingressou com ação civil pública em face do prefeito da Cidade de Dracena, acusando-o de improbidade administrativa por ter FGV DIREITO RIO 42 atividades e atos administrativos utilizado frases como “Dracena Todos por Todos Rumo ao Ano 2000” e “Dracena Rumo ao Ano 2000”, as quais tinham sido utilizadas em sua campanha eleitoral, em fachadas de órgão públicos municipais, veículos e placas de inauguração, uniformes dos alunos das escolas e creches públicas, jornais da região, carnês de pagamento de tributos e publicações especiais da Prefeitura. A ação foi julgada procedente em parte, sendo que o político teve seus direitos políticos suspensos por três anos, além de ter ficado proibido de contratar, receber benefício, incentivo fiscal ou creditício, direto ou indireto, junto ao Poder Público, por igual prazo, além de ter sido condenado ao pagamento de multa, no valor equivalente a dez vezes a sua atual remuneração, e a ressarcir ao Município os gastos efetuados com recursos públicos na inserção das expressões em bens e atos da Administração. Após a decisão de segunda instância confirmando os termos da sentença proferida, o prefeito recorreu especialmente ao STJ, que então exarou seu entendimento sobre o tema, em acórdão que restou assim ementado: 2. A ação civil pública protege interesses não só de ordem patrimonial como, também, de ordem moral e cívica. O seu objetivo não é apenas restabelecer a legalidade, mas também punir ou reprimir a imoralidade administrativa a par de ver observados os princípios gerais da administração. Essa ação constitui, portanto, meio adequado para resguardar o patrimônio público, buscando o ressarcimento do dano provocado ao erário, tendo o Ministério Público legitimidade para propô-la. Precedentes. Ofensa ao art. 267, IV, do CPC, que se repele. 3. A violação de princípio é o mais grave atentado cometido contra a Administração Pública porque é a completa e subversiva maneira frontal de ofender as bases orgânicas do complexo administrativo. A inobservância dos princípios acarreta responsabilidade, pois o art. 11 da Lei 8.429/92 censura “condutas que não implicam necessariamente locupletamento de caráter financeiro ou material” (Wallace Paiva Martins Júnior, “Probidade Administrativa”, Ed. Saraiva, 2ª ed., 2002). 4. O que deve inspirar o administrador público é a vontade de fazer justiça para os cidadãos, sendo eficiente para com a própria administração. O cumprimento dos princípios administrativos, além de se constituir um dever do administrador, apresenta-se como um direito subjetivo de cada cidadão. Não satisfaz mais às aspirações da Nação a atuação do Estado de modo compatível apenas com a mera ordem legal, exige-se muito mais: necessário se torna que a gestão da coisa pública obedeça a determinados princípios que conduzam à valorização da dignidade humana, ao respeito à cidadania e à construção de uma sociedade justa e solidária. 5. A elevação da dignidade do princípio da moralidade administrativa ao patamar constitucional, embora desnecessária, porque no fundo o Estado possui uma só personalidade, que é a moral, consubstancia uma conquista da Nação que, incessantemente, por todos os seus segmentos, estava a exigir uma providência mais eficaz contra a prática de atos dos agentes públicos violadores desse preceito maior. 6. A tutela específica do art. 11 da Lei 8.429/92 é dirigida às bases axiológicas e éticas da Administração, realçando o aspecto da proteção de valores imateriais integrantes de seu acervo com a censura do dano moral. Para a caracterização dessa espécie de improbidade dispensa-se o prejuízo material na medida em que censurado é o prejuízo moral. A corroborar esse entendimento, o teor do inciso III do art. 12 da lei em comento, que dispõe sobre as penas aplicáveis, sendo muito claro ao consignar, “na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do FGV DIREITO RIO 43 atividades e atos administrativos dano, se houver...” (sem grifo no original). O objetivo maior é a proteção dos valores éticos e morais da estrutura administrativa brasileira, independentemente da ocorrência de efetiva lesão ao erário no seu aspecto material. 7. A infringência do art. 12 da Lei 8.429/92 não se perfaz. As sanções aplicadas não foram desproporcionais, estando adequadas a um critério de razoabilidade e condizentes com os patamares estipulados para o tipo de ato acoimado de ímprobo. Com base nos seus estudos sobre o princípio da moralidade administrativa e a Lei de Improbidade Administrativa, busque encontrar, na decisão do Superior Tribunal de Justiça, elementos que auxiliem no delineamento do conteúdo desse princípio. Leitura complementar: DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos. São Paulo: Max Limonad, 2002, pp. 135 a 153. MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo, RT, pp. 151 a 156. SOUTO, Marcos Juruena Villela. “Privatização e eficiência”. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (coord.) Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 233 a 241; FGV DIREITO RIO 44 atividades e atos administrativos Bloco II – Poder de Polícia Objetivo: O poder de polícia constitui um dos mais clássicos institutos do Direito Administrativo. O objetivo deste bloco é apresentar uma visão atual desse poder-função do poder público, calcada nos limites ao exercício da atividade de polícia da Administração Pública que decorrem da perspectiva constitucional do Estado Democrático de Direito. FGV DIREITO RIO 45 atividades e atos administrativos Aula 8: Poder de polícia: significado e conteúdo Objetivo: Apresentar e discutir os possíveis conteúdos insertos na expressão “poder de polícia”, incluindo breve abordagem histórica, seus aspectos preventivo e repressivo e suas principais modalidades (ordem consentimento, fiscalização e sanção) Introdução: O Estado Democrático de Direito estabelece um regime de liberdades fundamentais, assegurando aos cidadãos um elenco de direitos individuais, constitucionalmente protegidos, os quais devem ser exercidos com observância e respeito aos direitos dos demais cidadãos. Por ter o Estado avocado para si a obrigação de manter incólumes os direitos individuais, tornou-se indispensável disciplinar os aspectos da vida social e dotar a Administração Pública de funções para restringir o direito e proibir o abuso. Bem por isso, há necessidade de que os “direitos-liberdades” sejam assegurados e dispostos pelo Estado, de forma que o mesmo passe a gozar de coercibilidade.129 Nesse sentido, a Administração Pública detém o denominado “poder de polícia”, que consiste em um conjunto de intervenções do poder público, no sentido de disciplinar a ação dos particulares, objetivando prevenir ou reprimir perturbações à ordem pública. Tome-se, como exemplo, um veículo estacionado em plena rodovia, causando transtornos para os usuários daquele espaço público. Neste caso, a Administração Pública tem que ser dotada de poder para retirar o veículo, queira o seu proprietário ou não. Desta forma, a Administração Pública pode (i) condicionar o exercício de direitos individuais, (ii) delimitar a execução de atividades, e (iii) condicionar o uso de bens que afetem a coletividade ou contrariem a ordem jurídica estabelecida ou se oponham aos objetivos permanentes da nação. Conforme lição de Marcello Caetano, a polícia é atuação da autoridade, pois pressupõe o exercício de um poder condicionante de atividades alheias, garantido pela coação sob a forma característica da Administração, isto é, por execução prévia. É uma intervenção no exercício de atividades individuais e a possibilidade da sua violação por estes. (...) A polícia intervém nas atividades individuais de fazer perigar interesses gerais. Só aquilo que constitua perigo susceptível de projetar-se na vida pública interessa à Polícia, e não o que apenas afete interesses privados ou a intimidade das existências pessoais.130 Cumpre destacar que por poder de polícia deve-se entender, na esteira do conceito positivado no art. 78, do Código Tributário Nacional, como sendo: a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do JEAN-MARIE BÉCET e DANIEL COLARD. Les Conditions d’Existence des Libertes, Paris : La Documentation Française, 1985, p. 25. 129 Princípios Fundamentais do Direito Administrativo”, Coimbra, Almeidina, 1992, p. 270. 130 FGV DIREITO RIO 46 atividades e atos administrativos Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. Considera-se como regular exercício do poder de polícia, de acordo com o disposto no parágrafo único do citado art. 78 do CTN, o “desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder”. Ou seja, é pressuposto legal para o exercício do poder de polícia que o mesmo seja exercido pela autoridade pública a qual a lei atribuiu competência. De acordo com Diogo de Figueiredo Moreira Neto131, o poder de polícia pode ser exercido de quatro distintas formas: (i) através da ordem de polícia, que vem a ser uma determinação geral e abstrata para que não se faça aquilo que possa prejudicar o interesse geral ou para que não se deixe de fazer alguma coisa que poderá evitar ulterior prejuízo público; (ii) pelo consentimento de polícia, que são as hipóteses nas quais o legislador exige um controle prévio da compatibilidade do uso do bem ou do exercício de uma atividade com o interesse público (por exemplo, as atividades que requerem licenciamento ambiental ou autorização prévia da Prefeitura); (iii) pela fiscalização de polícia, que se destina a verificar se estão sendo cumpridas as ordens de polícia e se estão ocorrendo abusos no exercício das atividades privadas que foram objeto de consentimentos de polícia, e (iv) pela sanção de polícia, que consiste na aplicação dos instrumentos de intervenção punitiva do Estado sobre propriedade privada e as atividades particulares. Assim, é preciso considerar que o poder de polícia possui tanto uma feição executiva quanto uma face normativa. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, “o poder de Polícia Administrativa se manifesta tanto através de atos normativos e de alcance geral quanto de atos concretos e específicos”.132 Leitura obrigatória: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, capítulo XIII (“poder de polícia”), itens I a IX. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 63 a 83. Caso gerador: Mércio, advogado de grande reputação na cidade onde atua, sentiu-se profundamente abalado em sua moral com a instalação de detectores de metais na entrada do Tribunal de Justiça. Dessa forma, impetrou habeas corpus, sustentando que referido ato administrativo do Tribunal violava o seu direito ao efetivo exercício da advocacia, tendo sido exarado com abuso de poder por parte da Administração do Tribunal. Em suas razões, aduz sentir-se profundamente constrangido com as revistas em sua pasta e pertences a que, por vezes, foi forçado a se submeter, o que lhe acarreta dano moral inestimável. Frisa ser o advogado função essencial à administração da Justiça, sendo que o Tribunal subverteria esse ditame MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1997. pp. 301/4. 131 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Apontamentos sobre o poder de polícia”. Revista de Direito Público nº 9, p. 61. 132 FGV DIREITO RIO 47 atividades e atos administrativos constitucional, ao presumir que os advogados poderiam trazer consigo instrumentos metálicos capazes de pôr em risco a integridade física daqueles que diariamente transitam por suas instalações. O Tribunal, por sua vez, argumenta que a medida foi adotada em prol da segurança pública de todos os cidadãos, que é seu dever zelar pela integridade física de todos os usuários e funcionários do Poder Judiciário, tratando-se, por conseguinte, de medida de polícia administrativa que obedece ao ditame da proporcionalidade. Aduz, ainda, que todos aqueles que ingressam no Tribunal são submetidos ao detector de metais, e que liberar os advogados de tal dever constituiria privilégio que ofenderia o princípio da isonomia no trato de todos os cidadãos que freqüentam prédios públicos. Como deve ser resolvida a demanda? Se, além de passagem pelo detector de metais, fossem os ingressantes submetidos à revista pessoal, o seu parecer permaneceria o mesmo? Leitura complementar: JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 385 a 402. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro, Forense, 2006, pp. 391 a 423. FGV DIREITO RIO 48 atividades e atos administrativos Aula 9: Poder de polícia II: limites da intervenção do Estado sobre a atividade econômica. Licenciamento e autorizações Objetivo: Apresentar a doutrina clássica sobre o tema dos licenciamentos e autorizações em Direito Administrativo, discutindo-a à luz do princípio da legalidade e das competências vinculadas e discricionárias da Administração Pública. Essa aula deverá ser retomada em Direito Administrativo II, quando serão analisadas as modernas “autorizações” introduzidas pelo direito regulatório. Introdução: Conforme visto na aula anterior, uma das dimensões do poder de polícia da Administração Pública consiste na necessidade de essa consentir ao exercício de determinadas atividades pelos indivíduos para que essas possam ser desempenhadas licitamente (“consentimento de polícia”). Nesse sentido, expõe José dos Santos Carvalho Filho: Os consentimentos representam a resposta positiva da Administração Pública aos pedidos formulados por indivíduos interessados em exercer determinada atividade, que dependa do referido consentimento para ser considerada legítima. Aqui a Polícia Administrativa resulta da verificação que fazem os órgãos competentes sobre a existência ou inexistência de normas restritivas e condicionadoras, relativas à atividade pretendida pelo administrado.133 De fato, na complexidade da vida em sociedade, algumas atividades requerem prévia aprovação da Administração Pública, tais como atividades com potencial impacto ambiental, as quais devem, por conseguinte, ser objeto de licenciamento ambiental, e a construção de imóveis em propriedades privadas, que requerem aprovação da prefeitura previamente à edificação, e assim sucessivamente. Dessa forma, algumas atividades privadas são submetidas a processo de licenciamento, outras são objetos de autorização. Classicamente, costuma-se distinguir os institutos com base em que a licença constituiria um direito do administrado passível de ser exercido por todo aquele que se conforme às exigências legais para sua expedição, tratando-se, portanto, de competência administrativa vinculada. Já as autorizações constituiriam exercício de competência discricionária, podendo a Administração Pública exercer um juízo de conveniência e oportunidade quanto ao seu deferimento.134 Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella di Pietro conceitua as autorizações como: Ato administrativo unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração faculta ao particular o uso privativo de bem público, ou o desempenho de atividade material, ou a prática de ato que, sem esse consentimento, seriam legalmente proibidos.135 Já a licença é “o ato administrativo unilateral e vinculado pelo qual a Administração faculta àquele que preencha os requisitos legais o exercício de uma atividade”. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2006, p. 71. 133 SUNDFELD, Carlos Ari. “Licenças e autorizações no direito administrativo”. Revista Trimestral de Direito Público, p. 68. Nesse sentido, veja-se a seguinte passagem de José dos Santos Carvalho Filho: “As licenças são atos vinculados e, como regra, definitivos, ao passo que as autorizações espelham atos discricionários e precários”. Op. cit., p. 71. 134 ��������������������������� DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2000, p. 211. 135 FGV DIREITO RIO 49 atividades e atos administrativos Em decorrência dessa diferenciação, uma das questões debatidas pela doutrina reside em se o ato administrativo concessivo da licença apresenta natureza meramente declaratória, ou se também possui uma carga constitutiva. Geralmente, atribui-se carga meramente declaratória às licenças, e constitutiva às autorizações, conforme se observa da seguinte passagem de Diogo de Figueiredo Moreira Neto: No caso da licença, há um direito preexistente, embora não exeqüível, à atividade ou ao uso do bem. O consentimento administrativo se vincula à constatação de que as limitações opostas foram removidas, ou seja, a conditio iuris para seu exercício, satisfeita. É inexato, portanto, afirmar-se que a licença gere direitos; ela apenas os declara exeqüíveis. Já, distintamente, no caso da autorização, não há qualquer direito preexistente à atividade privada ou ao uso do bem particular. A atividade pretendida pelo particular é, em princípio, vedada, existindo meras expectativas da exceção a serem consideradas administrativamente em cada caso concreto.136 Recusando-se a reconhecer uma natureza unicamente declaratória às licenças, veja-se pensamento de Carlos Ari Sundfeld, ao analisar as licenças para construir: O proprietário é legalmente proibido de edificar sem a prévia obtenção de licença. De conseguinte, o ato que faculta o início da construção não pode ser meramente declaratório. Sua expedição pressupõe, decerto, haver o Poder Público constatado que, por atender aos requisitos da lei, o proprietário tem direito de ver deferida a licença (se se quiser, tem o direito de construir); nesse aspecto, o ato é recognitivo do direito. No entanto, não é meramente declaratório, mas também constitutivo, visto atribuir ao proprietário faculdade de que não dispunha antes: a de iniciar as obras. Por mais que se queira classificar a licença como ato declaratório, ninguém negará que o proprietário não tem qualquer espécie de direito de iniciar a edificação antes dela.137 Assim, na visão do autor, o proprietário, antes de expedida a licença, não tem direito adquirido a construir. Como observa Carlos Ari Sundfeld, mesmo em casos de vinculação administrativa, ou seja, quando não haja espaço para exercício de juízo de conveniência e oportunidade pela Administração Pública, ainda assim o direito não preexiste ao ato autorizativo ou concessivo da licença. Isso porque existem hipóteses em que a autoridade deve considerar, além do enquadramento subjetivo do demandante aos requisitos da lei, fatores exógenos, como no caso em que um empreendedor pretenda construir um shopping center, cuja licença estará necessariamente subordinada à análise do potencial impacto ambiental decorrente do empreendimento. Em síntese, na visão do autor: O quanto visto demonstra a necessidade de distinguir ao menos dois tipos de atos ordenadores ampliativos de direito privado, praticados sem qualquer discricionariedade: a) ato em cuja emanação o poder público deve analisar apenas as condições próprias do sujeito ou do objeto a que a atividade se refere, para verificar se correspondem às exigidas pela lei (caso da típica licença para construir); e b) caso em cuja produção a Administração analisa não só as condições do sujeito ou do objeto mas, também, atos externos a eles.138 Cumpre mencionar que, em algumas ocasiões, apresentam-se limitadas as quantidades de licenças e autorizações que o poder público é capaz de conceder (a própria lei pode MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006 p. 399. No mesmo sentido, veja-se Maria Sylvia Zanella di pietro: “A autorização é um ato constitutivo e a licença é ato declaratório de direito preexistente”. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2000, p. 212. 136 SUNDFELD, Carlos Ari. “Licenças e autorizações no direito administrativo”. Revista Trimestral de Direito Público, v. 3, p. 66. 137 138 Op. cit., p. 69. FGV DIREITO RIO 50 atividades e atos administrativos limitá-las, por exemplo). Nesses casos, o ato concessivo da licença ou autorização deverá ser precedido de licitação, a fim de se respeitar o princípio da isonomia entre os administrados potencialmente interessados na sua obtenção. Leitura obrigatória: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, pp. 117 a 125. Caso gerador: A Prefeitura de Petrópolis concedeu à sociedade empresarial ABC Confecções Ltda., no ano de 2000, autorização para colocação de painel publicitário iluminado em seu estabelecimento comercial, mediante pagamento de taxa à municipalidade. No entanto, no ano de 2002, foi promulgada pela Câmara de Vereadores nova lei de posturas municipais, visando proteger o conjunto arquitetônico da cidade, e com a qual o referido letreiro não mais se conforma. Em conseqüência, a municipalidade revogou as autorizações anteriormente concedidas a diversos comerciantes que mantinham letreiros não condizentes com a novel legislação, e tem realizado fiscalizações constantes no sentido de autuar aqueles que insistirem em desrespeitar a lei de posturas do município. Ante a iminência de ser autuada, a sociedade ABC Confecções Ltda. pretende impetrar mandado de segurança contra o ato do prefeito que cassou a sua autorização para exibição do letreiro, pois que concedida anteriormente da entrada em vigor da nova lei. Como advogado da sociedade, o que você aconselharia?139 Leitura complementar: SUNDFELD, Carlos Ari. “Condicionamentos e sacrifícios de direitos – distinções”. Revista Trimestral de Direito Público, v. 4, pp. 79 a 83; SUNDFELD, Carlos Ari. “Licenças e autorizações no direito administrativo”. Revista Trimestral de Direito Público, v. 3, pp. 66 a 72. Inspirado na decisão proferida no AI 2005.002.14088, Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. 139 FGV DIREITO RIO 51 atividades e atos administrativos Bloco III – Administração Pública Direta e Indireta Objetivo: Neste bloco serão apresentadas as pessoas que compõem a Administração Pública, diferenciando-se as suas funções, bem como a sua natureza jurídica pública ou privada. FGV DIREITO RIO 52 atividades e atos administrativos Aula 10: Administração pública direta e indireta: o regime jurídico das autarquias e das universidades Objetivo: Explanar a possibilidade de descentralização das atividades administrativas, com ênfase nas autarquias, instituto cuja importância foi novamente posta em destaque a partir dos anos 90, com a criação das agências reguladoras. Introdução: A Administração Pública centralizada ou direta é aquela exercida diretamente pela União, Estados e Municípios que, para tal fim, utiliza-se de ministérios, departamentos, e outros órgãos. Por outro lado, a Administração Pública descentralizada ou indireta é exercida por outras pessoas jurídicas que não se confundem com os entes federados, criadas pelos mesmos, a saber: autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista. Para o objeto da nossa aula, vamos examinar os seguintes entes da administração indireta: a autarquia e as universidades. Autarquia O termo autarquia surgiu na Itália em 1897 quando Santi Romano discorria sobre o tema “decentramento amministrativo”, referindo-se às comunas, províncias e outros entes públicos existentes nos Estados unitários.140 No direito positivo brasileiro, as autarquias surgiram no Decreto-Lei nº 6.016, de 22 de novembro de 1943, como sendo o serviço estatal descentralizado com personalidade de direito público, explícita ou implicitamente reconhecida por lei. Em 1949, a Lei nº 830, de 23 de setembro, que reorganizou o Tribunal de Contas da União, regulamentando o artigo 97 da Constituição Federal então vigente, definiu em seu artigo 139 as entidades autárquicas como sendo: (i) o serviço estatal, descentralizado, com personalidade jurídica, custeado mediante orçamento próprio, independente do orçamento geral; e (ii) as demais pessoas jurídicas especialmente instituídas por lei para execução de serviço de interesse público ou social, custeadas por tributos de qualquer natureza ou por outros recursos oriundos do Tesouro. Por sua vez, o Decreto-Lei nº 200, de 25/2/1967, que dispõe sobre a organização da Administração Federal e estabeleceu diretrizes para a Reforma Administrativa, definiu autarquia como sendo: o serviço autônomo criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da administração pública que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14a ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 366 140 A definição trazida pelo Decreto-Lei nº 200/1967 deixa extreme de dúvidas que as autarquias exercem funções administrativas – “atividades típicas da administração pública”, FGV DIREITO RIO 53 atividades e atos administrativos sendo, por conseguinte, pessoas jurídicas de direito público. As autarquias possuem determinado grau de autonomia face à Administração Pública Direta, uma vez que lhe são inerentes as características de personalidade jurídica própria, bem como patrimônio e receitas próprios. As autarquias, sendo pessoas jurídicas de direito público interno, são instituídas por lei em sentido estrito, nos termos do art. 37, XIX, da Constituição Federal de 1988: Somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de atuação. Sendo parte da Administração Pública, o anteprojeto de lei que as institui será de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo, a teor do art. 61, §1º, II, ‘e’, CF/88: Art. 61. (...) “§1º. São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: (...) II – disponham sobre: (...) e) Criação e extinção de Ministérios e órgãos da Administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;” Com a reforma do Estado empreendida ao longo da década de 90, o instituto da autarquia foi revisitado, com a criação das agências reguladoras, as quais possuem natureza jurídica de autarquias especiais. As características que tornam as agências reguladoras autarquias “especiais” serão objeto de estudo em Direito Administrativo II. Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 369 a 403; 422 a 446. Caso gerador: Trata-se de mandado de segurança impetrado pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior em face da União Federal, alegando violação ao princípio da autonomia universitária, esculpido no art. 207, caput, da Constituição Federal de 1988. Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão. O writ foi impetrado porque a União Federal suspendeu, por meio de ato administrativo, aumento nos vencimentos outorgados por universidade pública aos seus servidores, a partir de extensão conferida, na esfera administrativa, sem lei específica nem previsão FGV DIREITO RIO 54 atividades e atos administrativos orçamentária, a uma decisão judicial que havia conferido determinado benefício a um único professor, de uma universidade federal. De acordo com a Administração, o ato da universidade ofenderia os arts. 37, X e 169, §1º, I, II e III da Constituição de 1988. Sustentando a legalidade do ato que conferiu referido aumento, o Sindicato clama pelo respeito ao princípio da autonomia universitária, que daria aos seus dirigentes o poder de fixar os vencimentos dos servidores públicos que prestam serviço naquela entidade. Na sua análise, considere a seguinte passagem, da lavra de Alexandre Santos de Aragão: Com efeito, as leis costumam denominar as entidades da Administração Indireta de autônomas, e, realmente, como pessoas jurídicas que são, não podem deixar de ser dotadas de alguma autonomia. A disciplina legal dada à autonomia dessas entidades é, porém, muito restrita, havendo, geralmente, até mesmo a previsão do chamado recurso hierárquico impróprio, pelo qual um ato da entidade da Administração Indireta pode ser anulado por agente do Estado, pessoa jurídica dela distinta. Do ponto de vista estritamente jurídico, não há nada a criticar na disciplina comumente dada pelas leis às entidades da Administração Indireta cuja autonomia não tem sede constitucional. Estamos diante de normas da mesma hierarquia, e, “quem pode dar, pode tirar”. Sendo, todavia, a autonomia das universidades estabelecida pela Constituição, os seus limites e conteúdo só podem ser buscados na própria Constituição, jamais na legislação infraconstitucional, não sendo entidades da Administração Indireta, desvestidas de quaisquer garantias institucionais de nível constitucional. (...) As universidades, contudo, devem observar não apenas este princípio constitucional específico, mas todos os que, explícita ou implicitamente, lhe são aplicáveis. As universidades não são entes à parte do ordenamento jurídico constitucional, muito pelo contrário: só possuem a autonomia assegurada pela Constituição enquanto nela fundamentarem a sua atuação.141 À luz dos valores que inspiram a descentralização da Administração Pública, como, em sua opinião, deve ser resolvida a controvérsia? Leitura complementar: ARAGÃO, Alexandre Santos de. “As fundações públicas e o novo Código Civil”. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 815; ARAGÃO, Alexandre Santos de. A autonomia universitária no Estado contemporâneo e no direito positivo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2001. DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, item 10.4 (“Fundação”). MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 243 a 261; ARAGÃO, Alexandre Santos de. A autonomia universitária no Estado contemporâneo e no direito positivo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2001, pp. 69 a 71. 141 FGV DIREITO RIO 55 atividades e atos administrativos Aula 11: Administração pública direta e indireta: o regime jurídico das empresas públicas e das sociedades de economia mista Objetivo: Apresentar o regime jurídico das empresas públicas, sua natureza de direito privado. Discutir com os alunos as semelhanças e diferenças entre empresas públicas e privadas. TÁCITO, Caio. Agências Reguladoras da Administração. Revista de Direito Administrativo, v. 221, p.1-5 142 Introdução: As empresas do setor público foram constituídas para acompanhar o desenvolvimento e participação do Estado no domínio econômico. Na verdade, “são satélites do regime da administração pública direta.”142 No Brasil, destaca-se a criação do Instituto de Resseguros do Brasil, em 1939, quando se passou a ter em nosso país a primeira empresa pública com os contornos atuais.143 O processo de criação dessas empresas cresceu no Brasil durante a 2a Grande Guerra Mundial, período esse em que houve redução na oferta de artigos industrializados, o que obrigou tanto a substituição das importações quanto o fomento do desenvolvimento das indústrias locais. Sobre os aspectos históricos relevantes dessas sociedades no Brasil, afirma-se que: não tinham nas suas origens essa denominação genérica e nem representaram um deliberado avanço na técnica da execução do setor industrial dos serviços públicos. Razões diversas, todas de ordem prática, foram propiciando ao Poder Público o ensejo de associar-se a empresas particulares para o desempenho de certos serviços de natureza comercial ou industrial. A inovação substancial do sistema consistiu em que o Estado passou a associar-se a ‘empresas privadas’ para a realização de seus objetivos. A sociedade comercial, que já se havia revelado um importante instrumento na expansão da economia particular, quer pelas possibilidades de aglutinação de pequenas parcelas de capital, quer pelas novas técnicas de organização e de racionalização do trabalho, que começavam a ser utilizadas, passou, então, a ser adotada pelo Poder Público, mediante variados processos de coparticipação público-privada.144 O fato é que “visando a lhes conferir a mesma agilidade, eficiência e produtividade das empresas do setor privado e sobretudo para impedir concorrência desleal, foram criadas à imagem e semelhança destas, principalmente pela atribuição de personalidade jurídica de direito privado, do que decorreria a incidência precípua do direito privado sobre sua atuação. Regidas pelo direito privado, deixariam de usar de prerrogativas públicas, podendo, no entanto, submeter-se às sujeições pertinentes. Por isso, a presença do poder estatal impede a equiparação total.”145 O conceito de empresa estatal foi elaborado durante anos pela doutrina. Contudo, a edição do Decreto-Lei nº 200/1967, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 900/1969, trouxe o conceito legal de empresa pública e de sociedade de economia mista.146 A obrigatoriedade de criação das empresas públicas por lei foi elevada ao plano constitucional em 1988, nos termos do que dispõe o art. 37, incisos XIX e XX.147 Assim é que não 143 TACITO, Caio. Op. cit. p. 22. PINTO, Bilac. O declínio das sociedades de economia mista e o advento das modernas empresas públicas. RDA v.32, p. 1-15 144 MEDAUAR, Odete. Op. cit. p. 101. 145 “Art. 5º Para os fins desta lei, considera-se: (...) II - Empresa Pública - a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União ou de suas entidades da Administração Indireta, criada por lei para desempenhar atividades de natureza empresarial que o Governo seja levado a exercer, por motivos de conveniência ou contingência administrativa, podendo tal entidade revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito. III - Sociedade de Economia Mista - a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para o exercício de atividade de natureza mercantil, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam, em sua maioria, à União ou à entidade da Administração Indireta.” 146 BRASIL. Constituição (1988). “Art. 37. XIX – somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação; XX - depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias das entidades mencionadas no inciso anterior, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada”. 147 FGV DIREITO RIO 56 atividades e atos administrativos se configura uma empresa pública pelo simples fato do Estado deter transitória e eventual participação societária. Deve ser criada por lei, exclusivamente para atender os interesses públicos. Note-se que a Emenda Constitucional nº 19/1998 acabou por flexibilizar a criação das empresas estatais. Com efeito, as empresas públicas e sociedades de economia mista, ao contrário do que ocorre com as autarquias, não são criadas por lei, a qual apenas autoriza a sua criação. Assim é que a instituição de empresa estatal somente se dará quando editado o comando administrativo pelo chefe do Poder Executivo. Celso Antonio Bandeira de Mello assim define a empresa pública: pessoa jurídica criada por lei como instrumento de ação do Estado, com personalidade jurídica de Direito Privado, mas submetida a certas regras especiais decorrentes de ser coadjuvante da ação governamental, constituída sob quaisquer das formas admitidas em Direito e cujo capital será formado unicamente por recursos de pessoas jurídicas de Direito Público interno ou pessoas de suas Administração Indiretas, com predominância acionária residente na esfera federal148. Esse mesmo doutrinador adverte que “esta não é a definição que lhe confere o Decreto-Lei 200, com a redação alterada pelo Decreto-Lei 900, mas é a que se tem de adotar por inarredável imposição lógica, em decorrência do próprio Direito Positivo brasileiro.”149 Por sua vez, sociedade de economia mista, para o administrativista, é uma “pessoa jurídica cuja criação é autorizada por lei, como um instrumento de ação do Estado, dotada de personalidade jurídica de Direito Privado, mas submetida a certas regras especiais decorrentes dessa sua natureza auxiliar da atuação governamental, constituída sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou entidade de sua Administração indireta, sob remanescente acionário de propriedade particular.”150 Pela natureza jurídica das empresas estatais, é comum surgirem dúvidas acerca das diferenças entre as empresas públicas e sociedades de economia mista. As diferenças existentes entre ambas consistem nos seguintes aspectos: o capital da empresa pública é de titularidade exclusiva de pessoa de direito público, enquanto que na sociedade de economia mista há conjugação de recursos públicos e privados; a empresa pública pode adotar qualquer forma societária, ao passo que a sociedade de economia mista tem que se revestir sob a forma de sociedade anônima; as causas judiciais em que for parte a empresa pública federal tramitam perante a Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal151; já as sociedades de economia mista terão seus feitos judiciais apreciados e julgados pela Justiça estadual. Ademais desses pontos divergentes, Celso Antonio Bandeira de Mello aduz que “empresas públicas estão sujeitas à falência, ao passo que algumas das sociedades de economia mista, a prestadora de serviço público, não estão.”152 Quanto ao regime jurídico das empresas estatais, é justo destacar que, em qualquer estudo acerca da personalidade jurídica das empresas do setor público, desponta o conflito em sede doutrinária que versa sobre o enquadramento dessas entidades na disciplina de direito privado e sua regulação em norma institucional de direito público. Não se contesta a afirmação de que as empresas públicas e as sociedades de economia mista regem-se pelo regime jurídico próprio das empresas privadas, não lhes sendo aplicáveis normas de direito administrativo, salvo quando especialmente assentadas em preceito constitucional específico. 148 Op. cit. p. 164. 149 Op. cit. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 168 150 BRASIL. Constituição (1988). “Art. 109 - Aos juízes federais compete processar e julgar: I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.” 151 152 Op. Cit. p. 171. FGV DIREITO RIO 57 atividades e atos administrativos Assim é que, com relação à natureza dos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias, ressalvadas algumas exceções, a legislação aplicável é a de direito privado, a teor do art. 173, da Constituição Federal de 1988, que dispõe: Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. Houve verdadeira evolução desse dispositivo na Constituição Federal de 1988, haja vista o texto da Carta de 1967, com a Emenda nº 1/1969, que assim estabelecia: Art. 170. – (...) § 2o – Na exploração, pelo Estado, da atividade econômica, as empresas públicas e as sociedades de economia mista reger-se-ão pelas normas aplicáveis às empresas privadas inclusive quanto ao direito do trabalho e ao das obrigações. Sobre essa evolução da Carta Política, colhe-se a manifestação doutrinária de Jose Edwaldo Tavares Borba, para quem “a Constituição revogada distinguia, portanto, as relações externas da sociedade, âmbito no qual se desenvolve a exploração da atividade econômica, das relações internas, as quais têm lugar entre os acionistas, destes para com a sociedade, e ainda entre o controlador e a administração da sociedade, subordinando à legislação privada apenas as relações externas. A Constituição em vigor eliminou a restritiva ‘na exploração da atividade econômica’, e submeteu as sociedades de economia mista e empresas públicas, de modo completo, ‘ao regime jurídico próprio das empresas privadas’. (...) Afastada, portanto, qualquer distinção entre atividade interna e externa da empresa governamental, daí se deduz que toda a sua atuação, todos os seus negócios e todas as suas relações deverão observar, plenamente, as mesmas normas que incidem sobre as sociedades comerciais em geral, ressalvadas naturalmente as exceções que decorrem da própria Constituição.”153 É certo, porém, que, não obstante a natureza privada das obrigações das empresas públicas e sociedade de economia mista há exceções a serem observadas por essas espécies de sociedades. Nesse sentido colhe-se o magistério de Celso Antonio Bandeira de Mello, que bem resume o assunto ao relacionar os artigos da Constituição Federal de 1988 que impedem a perfeita simetria de regime jurídico entre as empresas do setor público e as empresas privadas: (1) O art. 5o, LXXIII, confere a qualquer cidadão legitimidade para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio público ou a entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e artístico. (2) O art. 14 cogita dos casos de inexigibilidade e em seu §9o prevê que lei complementar estabelecerá outros, bem como seus prazos de cessação, a fim de proteger a normalidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de cargo, emprego ou função na “Administração direta ou indireta”. (3) O art. 37, caput declara submissas aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência a Administração direta, indireta ou fundacional, em todas as esferas e níveis de governo. (4) O inciso II do mesmo artigo impõe concurso público, de provas e títulos, para a admissão de cargos ou empregos na Administração direta e indireta. (5) O inciso XVII estabelece que a proibição de acumular cargos públicos, Sociedade de Economia Mista e Privatização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 14 153 FGV DIREITO RIO 58 atividades e atos administrativos salvo exceções constitucionalmente previstas (estatuída no inciso XVI), estende-se também a empregos e funções e abrange autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações governamentais. (6) O inciso XIX dispõe que somente por lei específica pode ser autorizada a criação de empresa pública, sociedade de economia mista ou fundação governamental e criada autarquia. (7) O inciso XX estatui que depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias de tais pessoas, ou a participação delas em empresas privadas. (8) O art. 49, X, submete à fiscalização e controle do Congresso Nacional os atos do Poder Executivo, incluídos os da Administração indireta. (9) O art. 52, VII, submete as operações de crédito externo e interno da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias e demais entidades controladas pelo Poder Público Federal a limites e condições fixados pelo Senado Federal. (10) O art. 54 estabelece vedação a que deputados e senadores, em certos casos desde a diplomação e em outros desde a posse, aceitem ou exerçam cargos, funções ou empregos e firmem ou mantenham contratos com pessoas de Direito Público, autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista ou concessionárias de serviço público, ou que patrocinem causas em que tais pessoas sejam interessadas, sob pena de perderem o mandato, conforme dispõe o art. 55, I. (11) O art. 71 e incisos II, III e IV, respectivamente, submetem ao julgamento do Tribunal de Contas as contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos da Administração direta e indireta, incluídas as fundações e as sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público; determinam que pelo referido Tribunal sejam examinados quanto à legalidade, para fins de registro, os atos de admissão de pessoal a qualquer título, bem como as concessões de aposentadoria, reforma e pensões. Tais normas aplicam-se, mutatis mutandis, nas esferas estaduais e municipais e do Distrito Federal, no que concerne ao âmbito fiscalizatório dos respectivos Tribunais ou Conselhos de Contas. (12) O art. 165, §5o, estabelece que a lei orçamentária anual compreenderá o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da Administração direta e indireta, orçamentos de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria acionária votante e o orçamento da seguridade social, abrangendo órgãos e entidades da Administração direta e indireta. (13) O art. 169, § 5o, estabelece que a concessão de qualquer vantagem, aumento de remuneração, criação de cargos ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão de pessoal a qualquer título pelos órgãos e entidades da Administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, só poderão ser feitas se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes.154 Como se vê, e não obstante a natureza privada das obrigações das empresas estatais, o fato é que, ao se considerar algumas exceções a regra, tem-se um verdadeiro sistema híbrido155. Assim é que, se de um lado a criação e existência de uma empresa estatal depende de lei, e somente nos casos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, de outro, o funcionamento dessas entidades deve pautar-se, em regra, nas disposições legais de natureza privada.156 Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 403 a 422. 154 Op. cit. p. 179-180 Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles leciona ser inegável o caráter híbrido da sociedade de economia mista, “que associando o capital particular ao investimento público, erige-se em entidade de Direito Privado, mas realiza determinadas atividades de interesse estatal, por delegação do Poder Público. Concilia-se, deste modo, a estrutura das empresas privadas com os objetivos de interesse público. Vivem, portanto, em simbiose o empreendimento particular com o amparo estatal.” Direito Administrativo Brasileiro. 18a ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 330) 155 BRASIL. Constituição (1988). Art. 173 - Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. 156 FGV DIREITO RIO 59 atividades e atos administrativos Caso gerador: O art. 173, §1º, da Constituição Federal, ao dispor sobre as empresas públicas e às sociedades de economia mista, determinou que viesse a ser promulgada lei estabelecendo o seu regime jurídico, na qual estaria obrigatoriamente prevista: Art. 173, §1º. (...) II - A sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. Entretanto, o próprio art. 173, §1º, III, da Constituição, já estabelece uma distinção entre o regime das empresas públicas e privadas, ao submeter as primeiras ao princípio da licitação e demais princípios da Administração Pública na contratação de obras, serviços, compras e alienações. Adicionalmente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estabeleceu uma diferença entre as empresas públicas prestadoras de serviços públicos e àquelas que desenvolvem atividades econômicas em sentido estrito, conferindo às primeiras prerrogativas próprias da Fazenda Pública, tais como a impenhorabilidade de seus bens e o pagamento de suas dívidas por meio de precatório. Veja-se, nesse sentido, Recurso Extraordinário julgado pelo Supremo Tribunal Federal, no qual se discorre sobre a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, cuja natureza jurídica é de empresa pública de titularidade da União Federal: À Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do artigo 12 do Decreto-lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, §1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. 2. Empresa pública que não exerce atividade econômica e presta serviço público da competência da União Federal e por ela mantido. Execução. Observância ao regime de precatório, sob pena de vulneração do disposto no artigo 100 da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 229.696) À vista do acima relatado, reflita sobre a competitividade entre empresas públicas e privadas, considerando o mandamento constitucional de isonomia quanto às condições civis, comerciais, trabalhistas e tributárias (art. 173, §1º, II, CF/88). A partir do entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal sobre as empresas públicas prestadoras de serviços públicos, pense sobre a implementação do princípio da liberdade de concorrência em setores da economia no qual sociedades empresárias privadas e entes paraestatais convivem. Quais as possíveis dificuldades que podem ser enfrentadas pelo agente econômico privado nessas situações? Leitura complementar: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens 10.5 a 10.8. GUERRA, Sérgio. “Neoempreendedorismo Estatal e os Consórcios com Empresas do Setor Privado”. In: Direito Empresarial Público II. Organizadora: Carla Marshall. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004; VILLELA SOUTO, Marcos Juruena. Direito administrativo da economia. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2003, pp. 57 a 107. FGV DIREITO RIO 60 atividades e atos administrativos Bloco IV: Ato administrativo Objetivo: No bloco anterior foram estudadas as pessoas que compõem a Administração Pública. Nesta fase será conferida aos atos por elas executados, os seus requisitos de validade e suas formas de extinção. FGV DIREITO RIO 61 atividades e atos administrativos Aula 12: Elementos e características do ato administrativo Objetivo: Apresentar os principais elementos e as características do ato administrativo Introdução: A Administração Pública manifesta-se sempre por meio de atos administrativos. Nesse sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto define o ato administrativo como “manifestação de vontade da Administração destinada a produzir efeitos jurídicos”157, sendo, portanto, uma espécie do gênero ato jurídico. No entanto, havendo distintas formas de manifestação da Administração Pública – que ora age investida do múnus público, regendo-se seus atos então pelo direito público, como por outras vezes age em igualdade de condições com os agentes privados – Renato Alessi já ressaltava a dificuldade em se construir uma teoria unitária sobre o ato administrativo.158 Sob o aspecto eminentemente formal/subjetivo, o ato administrativo constitui qualquer ato praticado pela Administração Pública. A dificuldade maior surge quando se busca uma definição dentro da perspectiva material, a qual, no entanto, pode ser compreendida como a exigência de que o ato administrativo tenha por objeto um “assunto administrativo”.159 A Administração Pública pratica tanto atos unilaterais quanto de natureza negocial (como os contratos administrativos, os quais serão objetos de discussões adiante neste curso). A doutrina alude classicamente a cinco elementos do ato administrativo, quais sejam: • Competência: característica que exige que a autoridade administrativa da qual emane a manifestação de vontade tenha sido regularmente investida na função e possua competência conferida por lei para fazê-lo160. • Objeto: corresponde, nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho, à “alteração no mundo jurídico que o ato administrativo se propõe a processar”, ou seja, “o objetivo imediato da vontade exteriorizada pelo ato, a proposta, enfim, do agente que manifestou a vontade com vistas a determinado ato”161. • Forma: a exteriorização da vontade do agente administrativo deve ocorrer na forma prevista em lei. Sobre a importância da forma para o ato administrativo, Themístocles Brandão Cavalcanti já asseverava que “o elemento formal predomina na conceituação do ato administrativo, não obstante ser indispensável também a manifestação da vontade para caracterizar o ato, ou melhor, para atribuir existência ao ato”.162 A forma às vezes exige a observância de todo um procedimento prévio à realização do ato administrativo. Nesse sentido, verifica-se que a assinatura de um contrato administrativo deve, de forma geral, ser precedida do devido processo licitatório. • Motivo: constitui as razões de fato e de direito que determinam a realização de um ato. A administração pública não pode realizar atos de forma imotivada. • Finalidade: compreende a exigência de que todo ato administrativo deve voltar-se à realização de uma finalidade pública. Os atos administrativos podem ser simples ou complexos. Serão simples quando a manifestação de apenas uma autoridade administrativa for suficiente à formação válida do Manual de direito administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 135. 157 Nas palavras do autor: “frente a esta heterogeneidade que apresenta a atividade desenvolvida pela autoridade administrativa, não nos parece útil construir uma teoria unitária do ato administrativo (exercício genérico de atividade administrativa) uma vez que somente se poderiam enunciar princípios de caráter muito geral e, portanto, de escassa utilidade”. ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo. Barcelona: Bosch, 1960, tomo 1, p. 249. 158 CAVALCANTI, Themítocles Brandão. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961,, p. 49. 159 Themístocles Brandão Cavalcanti, Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 49. Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “o que importa é saber se a manifestação de vontade de Administração partiu do ente, órgão ou agente a quem a lei cometeu função de exprimi-la e vinculá-la juridicamente. Competência é, assim, uma expressão funcional”. Curso de direito administrativo, p. 138. 160 Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 98. 161 Curso de direito administrativo, op. cit., p. 46. 162 FGV DIREITO RIO 62 atividades e atos administrativos ato; serão complexos quando se apresentar necessário o concurso de vontades de duas ou mais autoridades para a existência do ato.163 Na análise dos casos abaixo, busque destacar os elementos do ato administrativo que se encontram presentes e se eventualmente algum se encontra ausente. Procure observar se, nas condutas da Administração descritas nos casos apresentados, são observadas as características acima elencadas. Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 85 a 116. Caso gerador 1: O governo do Estado do Piauí celebrou acordo de comodato de bens móveis com uma das prefeituras do Estado. Embora, nos termos do art. 102, XVIII, da Constituição Estadual, trate-se de matéria de competência exclusiva do governador do Estado, ad referendum da Assembléia Legislativa, o convênio foi celebrado pelo secretário de Estado de Saúde, para o qual, ao que consta, o governador não havia delegado poderes específicos para a prática do ato. Ademais, não houve anuência do Poder Legislativo para a sua celebração. Por ter sido alertado sobre as irregularidades cometidas, o secretário de Saúde pretende revogar o ato administrativo praticado, reavendo os bens oferecidos em comodato. A prefeitura beneficiada, entretanto, resiste a essa pretensão, alegando que assinou o convênio com quem aparentava ser legítimo representante do governo do Estado e que os aparelhos são essenciais para o funcionamento do sistema de saúde da prefeitura, sendo que sua devolução acarretará graves prejuízos à população local. Com base nos elementos do ato administrativo e no disposto na súmula 473 do Supremo Tribunal Federal, como deve ser solucionada a controvérsia? S. 473. A administração pública pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial. Caso gerador 2: O diretor presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária expediu norma regulamentar excluindo o cloreto de etila (“lança perfume”) da lista de substâncias de uso proibido. Levada o tema à decisão do Superior Tribunal de Justiça, esse decidiu que o ato havia sido exarado por autoridade incompetente, pois as resoluções normativas da ANVISA, por força da lei federal que a instituiu, são de competência da Diretoria Colegiada. Apenas os atos urgentes podem ser praticados pelo diretor presidente e, ainda assim, ad referendum do órgão colegiado. Themítocles Brandão Cavalcanti, Curso de Direito Administrativo, op. cit., p. 53. 163 FGV DIREITO RIO 63 atividades e atos administrativos Baseado em seus estudos sobre os elementos do ato administrativo, responda: qual(is) elemento(s) encontra(m)-se ausente(s) no mencionado ato? Qual o efeito da(s) irregularidade(s) apontada(s) sobre o ato praticado? Leitura complementar: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 135 a 159. FGV DIREITO RIO 64 atividades e atos administrativos Aula 13: Extinção do ato administrativo Objetivo: Apresentar e examinar as principais formas de extinção do ato administrativo. Introdução: Em seguimento à análise quanto à formação e aos efeitos dos atos administrativos, nesta aula procuraremos aplicar os conceitos já desenvolvidos em outras matérias quanto ao momento de formação (existência), validade e eficácia do ato administrativo. Nesse sentido, buscar-se-á discutir se existem requisitos adicionais àqueles previstos na doutrina civilista para que os atos administrativos sejam validamente celebrados e, portanto, sejam aptos a produzir efeitos no mundo jurídico. Tem-se também a oportunidade de discutir as distintas espécies de atos administrativos, por meio do estudo de suas semelhanças e diferenciações. Dentre elas, possivelmente teremos um olhar mais atento ao analisar a diferenciação entre atos de império e atos de gestão. Isso se justifica porque essa divisão apresenta profundas conseqüências práticas na disciplina jurídica dos atos emanados da Administração Pública. Um outro tema que enseja profundos debates doutrinários reside nas formas de extinção dos atos administrativos, havendo diversas espécies de atos extintivos, desde a extinção natural, decorrente do exaurimento dos efeitos do ato; extinção subjetiva (por desaparecimento do sujeito beneficiário) e objetiva (quando o desaparecimento é do objeto); caducidade; e desfazimento volitivo.164 Além disso, os atos administrativos são passíveis de invalidação, em caso de “desconformidade do ato com as normas reguladoras”.165 Também podem atos jurídicos perfeitos serem alvo de revogação pela Administração Pública, por motivo de conveniência e oportunidade, tendo em vista o interesse público protegido. Os atos administrativos devem ser anulados pela Administração Pública quando ficar constatado vício relativo a sua legitimidade ou legalidade e, ainda, quando o ato torna-se ilegal em sua fase de execução, por culpa do contratado, mesmo havendo sido formalizado legalmente. Com efeito, a anulação de um ato administrativo consiste na declaração de sua invalidação, diferentemente da revogação, esta baseada em fatores de conveniência e oportunidade. Nesse sentido, vale colacionar o entendimento predominante sobre o assunto, representado pelas irretocáveis palavras da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro: As hipóteses são citadas por CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, pp. 128 a 130. 164 E a anulação pode também ser feita pelo Poder Judiciário, mediante provocação dos interessados, que poderão utilizar, para esse fim, quer as ações ordinárias e especiais previstas na legislação processual, quer os remédios constitucionais de controle judicial da Administração Pública. A anulação feita pela própria Administração independe de provocação do interessado uma vez que, estando vinculada ao princípio da legalidade, ela tem o poder-dever de zelar pela sua observância.166 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, pp. 130 e 131. 165 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Editora Atas, 2006, pp. 226-227. 166 FGV DIREITO RIO 65 atividades e atos administrativos Nas palavras do saudoso professor VALMIR PONTES, “o que se tem como certo é que os atos administrativos viciados ou defeituosos, isto é, os atos administrativos em cuja realização se tenha deixado de observar qualquer requisito essencial, são atos inválidos”.167 Destaque-se, nessa senda, a Súmula 346, do Supremo Tribunal Federal, que reza essa prerrogativa da Administração Pública de anular seus próprios atos ou de revogá-los: Súmula 346 do STF: “A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.” No direito pátrio, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal também é pródiga em arestos que consagram tal entendimento, como o acórdão do Recurso Extraordinário nº 247399/SC, cuja Relatora foi a ministra Ellen Gracie, ementado da seguinte maneira: Servidor Público. Proveitos de aposentadoria. Ato administrativo eivado de nulidade. Poder de autotutela da Administração Pública. Possibilidade. Precedente. Pode a Administração Pública, segundo o poder de autotutela a ela conferido, retificar ato eivado de vício que o torne ilegal, prescindindo, portanto, de instauração de processo administrativo (Súmula 473, 1ª parte - STF). RE 185.255, DJ 19/09/1997. RE conhecido e provido.168 No mesmo sentido tem se manifestado o Superior Tribunal de Justiça, como, por exemplo, no Recurso Especial nº 300116/SP, cujo relator foi o min. Humberto Gomes de Barros, garantindo ao administrado o amplo direito de defesa: I – ‘Se não se nega à Administração a faculdade de anular seus próprios atos, não se há de fazer disso, o reino do arbítrio.’ (STF – RE 108.182/Min. Oscar Corrêa). II - “A regra enunciada no verbete nº 473 da Súmula do STF deve ser entendida com algum temperamento: no atual estágio do direito brasileiro, a Administração pode declarar a nulidade de seus próprios atos, desde que, além de ilegais, eles tenham causado lesão ao Estado, sejam insuscetíveis de convalidação e não tenham servido de fundamento a ato posterior praticado em outro plano de competência. (STJ – RMS 407/Humberto). III - A desconstituição de licitação pressupõe a instauração de contraditório, em que se assegure ampla defesa aos interessados. Esta é a regra proclamada pelo Art. 49, § 3º da Lei 8.666/93. IV – A declaração unilateral de licitação, sem assegurar ampla defesa aos interessados ofende o Art. 49, § 3º da Lei 8.666/93.169 É oportuno assinalar, entretanto, que há um aspecto que não se mostra de todo uníssono na doutrina, relativo à indagação de ter a Administração um dever de anular seus atos ou, ao reverso, a mera faculdade de fazê-lo. Para aqueles que defendem o dever de anular, o fundamento encontra-se no princípio da estrita legalidade, enquanto que os que advogam em favor da faculdade de anular apegam-se ao princípio da predominância do interesse público sobre o particular. Eis, por seu turno, a manifestação doutrinária de Celso Antônio Bandeira de Mello, que acrescenta: “Para a Administração o que fundamenta o ato invalidador é o dever de obediência à legalidade, o que implica obrigação de restaurá-la quando violada. Para o judiciário é o exercício mesmo de sua função de determinar o Direito aplicável no caso concreto”170. Por outro lado, vale transcrever, por oportuno, o trecho do magistério da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que, em que pese ser adepta da corrente que se fundamenta Programa de Direito Administrativo. 2.ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p.95. 167 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 2457399/SC da 1ª Turma, Relatora Min. Ellen Gracie, Brasília, 23 de abril de 2002. 168 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 300116/SP da 1ª Turma, Relator Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, Brasília, 06 de novembro de 2001. 169 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 425. 170 FGV DIREITO RIO 66 atividades e atos administrativos no principio da legalidade, encontra exceções à referida obrigatoriedade de anulação por parte da Administração Pública, in fine: “Para nós, a Administração tem, em regra, o dever de anular os atos ilegais, sob pena de cair por terra o princípio da legalidade. No entanto, poderá deixar de fazê-lo, em circunstâncias determinadas, quando o prejuízo resultante da anulação puder ser maior do que o decorrente da manutenção do ato ilegal; nesse caso, é o interesse público que norteará a decisão.”171 No que concerne ao conceito de ilegalidade ou ilegitimidade, para fins de anulação dos atos administrativos, é correta a assertiva de que este não se resume apenas à transgressão da lei, incluindo também o abuso, por desvio ou excesso de poder, ou por inobservância dos princípios gerais do Direito, em especial do regime jurídico de direito público. Com efeito, os vícios de finalidade ou do fim dos atos administrativos “escondem a intenção do administrador sob a capa da legalidade”.172 Esse tema já foi objeto de nossa aula. Assim é que demonstrado, mediante prova irrefutável, acarreta a anulação do ato, eivado desse defeito ou vício”. Do ponto de vista do direito posto, a Lei do Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/1999) também regula o tema da invalidade e revogação dos atos administrativos, nos seguintes termos: Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos. Por outro lado, existem vícios dos atos administrativos que se apresentam sanáveis. Nesses casos, a Administração pode convalidá-los, procedendo aos elementos que se façam necessários a suprir a ilegalidade que vicia o ato, conformando-o às exigências da lei. A partir dos elementos acima e da leitura obrigatória, como você solucionaria o caso abaixo? Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 117 a 150. Caso gerador: A Prefeitura da Cidade de ABC concedeu à associação dos artesãos locais autorização para instalar, na praça principal da cidade, feira de antiguidades e artesanato, visando à promoção da cultura local e atração turística. A feira funciona há cerca de 10 anos. Entretanto, sendo o prefeito eleito nas últimas eleições da oposição, pretende revogar o ato que concedera a autorização para realização da feira, alegando critérios de conveniência e oportunidade. Na visão do prefeito, a feira não gera a movimentação esperada para o restante do comércio local, não contribui para a arrecadação de tributos, e atrapalha a preservação da praça, pois são constantes as degradações observadas, especialmente aos domingos, quando é maior o número de pessoas que transitam na praça. PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Editora Atas, 2006, p. 227. 171 CRETELLA JÚNIOR José. Controle jurisdicional do ato administrativo. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 271. 172 FGV DIREITO RIO 67 atividades e atos administrativos De acordo com o estabelecido sobre os meios de extinção do ato administrativo, pergunta-se: a) pode o prefeito extinguir a autorização concedida? b) deve revogar ou anular o ato administrativo consubstanciado na autorização? Inconformada, a associação dos artesãos impetra mandado de segurança em que alega ter direito líquido e certo à sua permanência na praça, sustentando que o ato se apresenta arbitrário, pois a feira representa uma manifestação cultural importante da população local. Como magistrado, você concederia a segurança pleiteada? Leitura complementar: JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 249 a 275. REALE, Miguel. Revogação e anulamento do ato administrativo. Rio de Janeiro: Forense. ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p.56, ss. FGV DIREITO RIO 68 atividades e atos administrativos Bloco V: Licitações e contratos administrativos Objetivo: O objetivo deste bloco é debater a contratação da Administração Pública com particulares, cuja regra geral exige que seja precedida de licitação. Assim, nas aulas que se seguem serão apresentados os princípios da licitação, suas modalidades e sua procedimentalização, para que ao final se possa examinar as características próprias ao contrato administrativo. FGV DIREITO RIO 69 atividades e atos administrativos Aula 14: Princípios da licitação Objetivo: Discutir o conteúdo dos princípios que regem a licitação. Introdução: A licitação se traduz no procedimento constitucionalmente positivado173 com vistas à garantia da competição isonômica entre aqueles que podem oferecer determinados serviços à Administração Pública, bem como para a aquisição e alienação de bens. Nas palavras de Marçal Justen Filho, a licitação constitui o: procedimento administrativo disciplinado por lei e por um ato administrativo prévio, que determina critérios objetivos de seleção da proposta de contratação mais vantajosa, com observância do princípio da isonomia, conduzido por um órgão dotado de competência específica.174 Trata-se, assim, de procedimento administrativo conduzido por um órgão específico, geralmente uma comissão permanente de licitação. O dever de licitar constitui uma exigência constitucional, conforme se observa do art. 37, XXI, da Constituição Federal: Art. 37. (...) XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Igualmente, a Constituição exige a realização de licitação para a outorga de concessão ou permissão de serviços públicos, nos termos do art. 175, caput: Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Também não se pode deixar de mencionar, conforme já visto, que o regime licitatório é aplicável também às empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, §1º, III, da Constituição. A lei federal sobre licitações e contratos administrativos é a Lei nº 8.666/1993. Estados e municípios também costumam ter normas próprias de licitação, as quais devem guardar coerência com os princípios gerais da lei federal. Além da Lei nº 8.666/1993, cumpre fazer referência à Lei nº 10.520/2002, que disciplina o pregão, modalidade de licitação pensada a partir da necessidade de acelerar o processo de escolha dos futuros contratados da Administração. Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XXVII – normas gerais de licitação e contratação em todas as modalidades,para as administrações diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1o, III. 173 Curso de direito administrativo, p. 309. 174 FGV DIREITO RIO 70 atividades e atos administrativos No art. 3º da Lei nº 8.666/1993 encontram-se elencados os princípios da licitação: Art. 3º. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos. O art. 3º da Lei nº 8.666/1993 prevê o desdobramento, em sede licitatória, dos principais princípios que regem o agir da Administração Pública, e cujo conteúdo já foi discutido no Bloco I deste curso. Além dos princípios expressos, Marçal Justen Filho ressalta a importância da proporcionalidade como princípio norteador das licitações, destacando sua primazia: O primeiro [princípio] a ser considerado é o da proporcionalidade, que se traduz, antes de tudo, na necessidade de equilíbrio na busca de dois fins igualmente relevantes. A realização do princípio da isonomia deve dar-se simultânea e conjuntamente com a seleção da proposta mais vantajosa. Não é possível privilegiar um desses dois fins como absoluto em si mesmo.175 Adiante, complementa: A Administração Pública está constrangida a adotar alternativa que melhor prestigie a racionalidade do procedimento e de seus fins. Os princípios da proporcionalidade e razoabilidade acarretam a impossibilidade de impor conseqüências de severidade incompatível com a irrelevância de defeitos. Sob esse ângulo, as exigências da lei ou do ato convocatório devem ser interpretadas como instrumentais.176 Na análise de questões envolvendo temas relacionados a licitações, destacam-se os princípios da competição e da igualdade entre os competidores. O primeiro, nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “orienta todo o processo”, traduzindo-se na “busca de uma justificada desigualação dos licitantes, o que se obtém pela identificação final da vantagem pretendida pela Administração, oferecida por um dos licitantes”.177 Essa “desigualação”, entretanto, tem de ser realizada por critérios objetivos, que não permitam considerações de natureza subjetiva na determinação da proposta que melhor atenda aos interesses da Administração. Essa é a proteção conferida pelo princípio da igualdade, de matriz constitucional, conforme se observa do acima citado art. 37, XXI, da Constituição Federal. Ademais desses dois princípios, Diogo de Figueiredo Moreira Neto alude aos princípios da legalidade, legitimidade, publicidade178 e moralidade como constituindo princípios gerais de aplicabilidade direta em questões envolvendo licitações públicas.179 O regime jurídico das licitações possui, ainda, um rol de princípios setoriais, dentre os quais se sobressai o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, também conhecido como princípio da vinculação ao edital. Esse princípio exige que: todo o processo licitatório se submeta, em todos os seus atos, às regras que forem especificamente baixadas para a licitação anunciada, sob a forma de edital ou de convite, inclusive Curso de direito administrativo, p. 312. 175 Curso de direito administrativo, p. 314. 176 Curso de direito administrativo, p. 179. 177 A publicidade exigida na licitação refere-se às decisões de julgamento e motivação dos critérios utilizados pela Administração no momento de classificar as propostas recebidas. Não se pode deixar de mencionar, entretanto, que algumas etapas da licitação são regidas pelo princípio do sigilo, em benefício do próprio procedimento, conforme destaca Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “Informa, instrumentalmente, certas fases do processo licitatório, de modo a garantir sua impessoalidade e, assim, em última análise, resguarda a igualdade das partes licitantes. Por outro lado, o sigilo é fundamental na modalidade concorrencial, uma vez que o julgamento da habilitação dos licitantes deve ser feito sem o prévio conhecimento das propostas. Determina, ainda, a vedação de acesso ao conteúdo das peças licitatórias apresentadas pelos concorrentes (documentação de habilitação e proposta) antes das aberturas públicas previstas no ato convocatório. E, por fim, poderá, ocasionalmente, ser invocado para afastar a licitação, quando sua divulgação puder comprometer a segurança do País”. Curso de direito administrativo, pp. 180 e 181. 178 Curso de direito administrativo, p. 179. Maria Sylvia Zanella di Pietro aduz, ainda, ao princípio da impessoalidade, o qual, juntamente aos princípios da isonomia e do julgamento objetivo, exige da Administração o dever de “em suas decisões, pautar-se por critérios objetivos, sem levar em consideração as condições pessoais do licitante ou as vantagens por ele oferecidas, salvo as expressamente previstas em lei ou no instrumento convocatório”. Direito administrativo. 12a ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 297. 179 FGV DIREITO RIO 71 atividades e atos administrativos e notadamente as que definam os critérios para julgamento. Nenhuma decisão, interlocutória ou final, poderá ser tomada pela Administração se não estiver tríplice e rigorosamente vinculada à lei, ao regulamento e aos termos desse ato convocatório.180 Um dos desdobramentos desse princípio é encontrado no princípio do julgamento objetivo, que reside justamente no dever, imposto à Administração, de escolher a proposta mais vantajosa com base única e exclusivamente nos critérios quantitativos e qualitativos expressamente dispostos no edital, sendo vedada a introdução de novos critérios, bem como a interpretação extensiva de exigências não expressamente requeridas no edital ou convite. Em respaldo ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório, bem como ao princípio do julgamento objetivo, a Lei nº 8.666/1993 previu os tipos de licitação: 1) menor preço; 2) melhor técnica; 3) técnica e preço; 4) maior lance (para os casos de alienação ou concessão de direito real de uso). Os tipos de licitação encontram-se elencados no art. 45, §1º, da Lei nº 8.666/93: Art. 45. O julgamento das propostas será objetivo, devendo a Comissão de licitação ou o responsável pelo convite realizá-lo em conformidade com os tipos de licitação, os critérios previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele referidos, de maneira a possibilitar sua aferição pelos licitantes e pelos órgãos de controle. § 1º Para os efeitos deste artigo, constituem tipos de licitação, exceto na modalidade concurso: (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994) I - a de menor preço - quando o critério de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração determinar que será vencedor o licitante que apresentar a proposta de acordo com as especificações do edital ou convite e ofertar o menor preço; II - a de melhor técnica; III - a de técnica e preço. IV - a de maior lance ou oferta - nos casos de alienação de bens ou concessão de direito real de uso. Adicionalmente, Maria Sylvia Zanella Di Pietro refere-se ao princípio da adjudicação compulsória, segundo o qual “a Administração não pode, concluído o procedimento, atribuir o objeto da licitação a outrem que não o vencedor”, salvo a existência de justo motivo.181 Com base nos princípios acima elencados, busque analisar o caso gerador. Curso de direito administrativo, p. 180. 180 Leitura obrigatória: Nas palavras de Hely Lopes Meirelles: “A compulsoriedade veda também que se abra nova licitação enquanto válida a adjudicação anterior”. Apud Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, p. 301. Veja-se que esse princípio não impede que a administração decida revogar ou anular a licitação, mas impede que a Administração deixe de contratar com o vencedor do certame para contratar com outrem. 181 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 199 a 209. Caso gerador: A Sociedade XLZ Comunicação Ltda impetrou mandado de segurança contra ato do presidente da Comissão Especial de Licitação da Secretaria de Serviços de Radiodifusão do FGV DIREITO RIO 72 atividades e atos administrativos Ministério das Comunicações, por ter sido excluída da fase de habilitação do procedimento licitatório, em razão de ter entregado a documentação exigida com dez minutos de atraso para o encerramento do prazo de recebimento disposto no edital de licitação. A Sociedade alega que a atitude da Comissão reflete exacerbado formalismo por parte da autoridade licitante, incompatível com os princípios da competição e da razoabilidade que norteiam o procedimento licitatório. Haveria, ainda, desvio de finalidade, pois se o objetivo da licitação é a busca da oferta mais vantajosa, afastar-se-ia desse ideal a desclassificação da proponente por míseros dez minutos. Em suas informações, a Comissão destaca que agiu no estrito cumprimento do dever legal, tendo em vista que o art. 41 da Lei nº 8.666/93 dispõe: Art. 41. A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada. O supracitado artigo reflete um dos princípios basilares da licitação, consistente na vinculação da Administração ao instrumento convocatório. Com base em seus estudos sobre os princípios constitucionais que regem a atuação da Administração Pública e, especialmente, os princípios da licitação, pergunta-se: Em sua opinião a segurança deveria ser concedida? Sob quais fundamentos? Em sua análise, considere a aplicação dos já estudados princípios da finalidade e da eficiência. Leitura complementar: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, item 9.3; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, capítulo IX, itens I a IV. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 201 a 208. FGV DIREITO RIO 73 atividades e atos administrativos Aula 15: Modalidades da licitação, dispensa e inexigibilidade Objetivo: Apresentar as modalidades de procedimento licitatório e discutir as principais hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação Introdução: Modalidades de licitação O art. 22 da Lei n º 8.666/1993 elenca as modalidades de licitação, assim dispondo: Art. 22. São modalidades de licitação: I – concorrência; II – tomada de preços; III – convite; IV – concurso; V – leilão. A despeito de o subseqüente § 8o afirmar ser “vedada a criação de outras modalidades de licitação ou a combinação das referidas neste artigo”, há ainda uma outra modalidade de licitação, qual seja, o pregão, instituída pela Lei nº 10.520/2002. De modo geral, em razão de possuírem o mesmo objetivo – contratação de obras, serviços e fornecimento -, a concorrência, a tomada de preços e o convite podem ser comparativamente visualizados a seguinte maneira: Porte do contrato Interessados Habilitação Concorrência Grande porte Quaisquer interessados Realizada após a publicação do edital Tomada de preços Médio porte Interessados cadastrados Realizada no momento do cadastro (antecede a publicação do edital) Convite Pequeno porte Convidados pela Administração Pública Habilitação presumida De seu turno, o concurso tem por objetivo a escolha de trabalho técnico, artístico ou científico, prestigiando tal seleção o aspecto intelectual, o que traduz a necessidade de a comissão que dirige a licitação ser bastante criteriosa, a fim de se evitar qualquer desvio de finalidade. No leilão, por sua vez, a Administração pode ter em vista três objetivos, os quais se acham expressamente previstos no art. 22, § 5o, da Lei nº 8.666/1993, que assim dispõe: § 5º Leilão é modalidade de licitação entre quaisquer interessados para a venda de bens móveis inservíveis para a administração ou de produtos legalmente apreendidos ou penhorados, ou para a alienação de bens imóveis prevista no art. 19, a quem oferecer maior lance, igual ou superior ao valor da avaliação. FGV DIREITO RIO 74 atividades e atos administrativos Diferentemente das modalidades gerais, dotadas de maior amplitude, no pregão temse por objetivo a aquisição de bens e a contratação de serviços comuns, assim entendidos como “aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado”.* Dispensa e inexigibilidade Como visto na última aula, a licitação se traduz no procedimento que é constitucionalmente positivado com vistas à garantia da competição isonômica entre aqueles que podem oferecer determinados serviços à Administração Pública, bem como para a aquisição e alienação de bens, nos termos do art. 37, XXI. Porém, em determinadas situações, a competição não se realiza. São os casos de dispensa e inexigibilidade do certame licitatório. Veja-se o que dispõe o art. 24 da Lei n. 8666/93: Art. 24. É dispensável a licitação: I - para obras e serviços de engenharia de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea “a”, do inciso I do artigo anterior, desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço ou ainda para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente; (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 27.5.98) II - para outros serviços e compras de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea “a”, do inciso II do artigo anterior e para alienações, nos casos previstos nesta Lei, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez; (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 27.5.98) III - nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem; IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos; V - quando não acudirem interessados à licitação anterior e esta, justificadamente, não puder ser repetida sem prejuízo para a Administração, mantidas, neste caso, todas as condições preestabelecidas; VI - quando a União tiver que intervir no domínio econômico para regular preços ou normalizar o abastecimento; VII - quando as propostas apresentadas consignarem preços manifestamente superiores aos praticados no mercado nacional, ou forem incompatíveis com os fixados pelos órgãos oficiais competentes, casos em que, observado o parágrafo único do art. 48 desta Lei e, persistindo a situação, será admitida a adjudicação direta dos bens ou serviços, por valor não superior ao constante do registro de preços, ou dos serviços; VIII - para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência desta Lei, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) * art. 1º, parágrafo único. FGV DIREITO RIO 75 atividades e atos administrativos IX - quando houver possibilidade de comprometimento da segurança nacional, nos casos estabelecidos em decreto do Presidente da República, ouvido o Conselho de Defesa Nacional; X - para a compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades precípuas da administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) XI - na contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento, em conseqüência de rescisão contratual, desde que atendida a ordem de classificação da licitação anterior e aceitas as mesmas condições oferecidas pelo licitante vencedor, inclusive quanto ao preço, devidamente corrigido; XII - nas compras de hortifrutigranjeiros, pão e outros gêneros perecíveis, no tempo necessário para a realização dos processos licitatórios correspondentes, realizadas diretamente com base no preço do dia; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) XIII - na contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha inquestionável reputação éticoprofissional e não tenha fins lucrativos; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) XIV - para a aquisição de bens ou serviços nos termos de acordo internacional específico aprovado pelo Congresso Nacional, quando as condições ofertadas forem manifestamente vantajosas para o Poder Público; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) XV - para a aquisição ou restauração de obras de arte e objetos históricos, de autenticidade certificada, desde que compatíveis ou inerentes às finalidades do órgão ou entidade. XVI - para a impressão dos diários oficiais, de formulários padronizados de uso da administração, e de edições técnicas oficiais, bem como para prestação de serviços de informática a pessoa jurídica de direito público interno, por órgãos ou entidades que integrem a Administração Pública, criados para esse fim específico; (Inciso incluído pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) XVII - para a aquisição de componentes ou peças de origem nacional ou estrangeira, necessários à manutenção de equipamentos durante o período de garantia técnica, junto ao fornecedor original desses equipamentos, quando tal condição de exclusividade for indispensável para a vigência da garantia; (Inciso incluído pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) XVIII - nas compras ou contratações de serviços para o abastecimento de navios, embarcações, unidades aéreas ou tropas e seus meios de deslocamento quando em estada eventual de curta duração em portos, aeroportos ou localidades diferentes de suas sedes, por motivo de movimentação operacional ou de adestramento, quando a exiguidade dos prazos legais puder comprometer a normalidade e os propósitos das operações e desde que seu valor não exceda ao limite previsto na alínea “a” do inciso II do art. 23 desta Lei: (Inciso incluído pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) XIX - para as compras de material de uso pelas Forças Armadas, com exceção de materiais de uso pessoal e administrativo, quando houver necessidade de manter a padronização requerida pela estrutura de apoio logístico dos meios navais, aéreos e terrestres, mediante parecer de comissão instituída por decreto; (Inciso incluído pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) XX - na contratação de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgãos ou entidades da Administração Pública, para a prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado. (Inciso incluído pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) FGV DIREITO RIO 76 atividades e atos administrativos XXI - Para a aquisição de bens destinados exclusivamente a pesquisa científica e tecnológica com recursos concedidos pela CAPES, FINEP, CNPq ou outras instituições de fomento a pesquisa credenciadas pelo CNPq para esse fim específico. (Inciso incluído pela Lei nº 9.648, de 27.5.98) XXII - na contratação de fornecimento ou suprimento de energia elétrica e gás natural com concessionário, permissionário ou autorizado, segundo as normas da legislação específica; (Redação dada pela Lei nº 10.438, de 26.4.2002) XXIII - na contratação realizada por empresa pública ou sociedade de economia mista com suas subsidiárias e controladas, para a aquisição ou alienação de bens, prestação ou obtenção de serviços, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado. (Inciso incluído pela Lei nº 9.648, de 27.5.98) XXIV - para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão.(Inciso incluído pela Lei nº 9.648, de 27.5.98) Parágrafo único. Os percentuais referidos nos incisos I e II deste artigo, serão 20% (vinte por cento) para compras, obras e serviços contratados por sociedade de economia mista e empresa pública, bem assim por autarquia e fundação qualificadas, na forma da lei, como Agências Executivas. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 27.5.98) De igual modo, vale trazer o que dispõe o art. 25 da Lei n. 8666/1993: Art. 25 - É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: I - para aquisição de materiais, equipamento ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação, Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes; II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação. § 1º - Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. Especialmente sobre a inexigibilidade da licitação há que se examinar o que dispõe o art. 13 da Lei nº 8.666/1993: Art. 13 - Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a: I - estudos técnicos, planejamento e projetos básicos ou executivos; III - assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias; IV - fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços; V - patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas; FGV DIREITO RIO 77 atividades e atos administrativos VI - treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; (...) § 3º - A empresa de prestação de serviços técnicos especializados que apresente relação de integrantes de seu corpo técnico em procedimento licitatório ou como elemento de justificação de dispensa ou inexigibilidade de licitação, ficará obrigada a garantir que os referidos integrantes realizem pessoal e diretamente os serviços objeto do contrato. A norma geral da licitação pública disciplina os casos em que se apresenta dispensável ou inexigível o certame, abrindo ensejo à contratação direta com profissionais ou instituições idôneas e em condições de bem prestar o serviço almejado, a fim de que as necessidades do serviço público possam ser prontamente atendidas em regime de terceirização. Mas, qual é a diferença capital entre os institutos da inexibilidade e da dispensa de licitação? Se ambos estão vocacionados a justificar a contratação direta, em que bases radicam suas diferenças? Na dispensa de licitação, consubstanciam-se situações em que, muito embora realizável a disputa concorrencial, esta se apresenta suprimível para o melhor atendimento das necessidades do serviço público. Nos casos identificados no art. 24 da Lei nº 8.666/1993, o administrador público poderá avaliar e decidir sobre realizar, ou não, a licitação, conforme melhor convier aos interesses públicos em espécie. Quanto à inexigibilidade licitatória, a teor do art. 25, a contratação direta se faz sempre imperiosa em virtude da inviabilidade da competição. Conforme lição do ministro Eros Roberto Grau, é a exclusão do critério competitivo, por irrealizável, que constitui a essência do permissivo legal da inexigibilidade: Ademais, cumpre ainda observarmos que da ‘inexigibilidade’ se distingue a hipótese de ‘dispensa’ de licitação. Na dispensa, a lei autoriza a Administração a, excepcionalmente, contratar sem licitação. Atua, aí, a conveniência administrativa, em nome da qual dá-se a dispensa do dever de licitar. O dever de licitar incide, mas é afastado pelo preceito legal. A enunciação legal das hipóteses de dispensa é exaustiva. Não está a Administração autorizada a dispensar a licitação senão, e exclusivamente, nas hipóteses expressamente indicadas pela lei. Já no que concerne aos casos de inexigibilidade de licitação, ao contrário, não incide o dever de licitar. A não realização da licitação decorre, não de razão de conveniência administrativa, mas da inviabilidade de competição.182 Também leciona sobre o tema o jurista Adilson Abreu Dallari: “o fato de que um trabalho técnico profissional especializado pode ser contratado sem licitação mesmo que haja ‘uma pluralidade de notórios especializados’, exatamente porque o trabalho produzido se torna singular em razão da singularidade subjetiva do executante. Essa singularidade resultante das características pessoais do executante é que torna inviável a comparação, ou a competição, tornando inexigível a licitação, conforme dispõe a legislação vigente. O trabalho pode ser considerado singular quando depender das características do executante. Haverá singularidade quando diferentes executantes notoriamente especializados produzirem diferentes trabalhos. Não haverá singularidade quando diferentes executantes puderem realizar a mesma coisa, produzir o mesmo resultado.”183 O instituto da inexigibilidade da licitação se concentra na inviabilidade material da adoção do certame licitatório, calcado em três requisitos justificadores: tratar-se de serviço Licitação e Contrato Administrativo - estudos sobre a interpretação da lei. São Paulo: Ed. Malheiros, 1995, p 70. 182 Aspectos Jurídicos da Licitação. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 51/52 183 FGV DIREITO RIO 78 atividades e atos administrativos técnico; ser o prestador do serviço entidade de notória especialização profissional; e tratar-se de serviço de natureza singular. Para Hely Lopes Meirelles “serviços técnicos profissionais são todos aqueles que exigem habilitação legal para a sua execução. Essa habilitação varia desde o simples registro do profissional ou firma na repartição administrativa competente, até o diploma de curso superior oficialmente reconhecido. O que caracteriza o serviço técnico é a privatividade de sua execução por profissional habilitado, seja ele um mero artífice, um técnico de grau médio ou um diplomado em escola superior. Já os serviços técnicos profissionais especializados são aqueles que, além da habilitação técnica e profissional normal, são realizados por quem se aprofundou nos estudos, no exercício da profissão, na pesquisa científica, ou através de cursos de pós-graduação ou de estágios de aperfeiçoamento”.184 Esses são os aspectos relevantes sobre o tema. Vamos refletir sobre o mesmo e enfrentar o caso gerador abaixo. Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 210 a 230. Caso gerador: Trata-se de ação civil pública contra ato praticado por prefeito de uma cidade do interior paulista, que contratou serviços de escritório de advocacia para acompanhamento de diversas ações judiciais e prestação de consultoria jurídica sem a realização de prévia licitação. A situação foi enquadrada pela Prefeitura como hipótese de inexigibilidade de licitação, com base no art. 13, V, da lei 8.666/93, que ao dispor sobre os serviços técnicos profissionais especializados, neles incluiu “o patrocínio ou defesa de causas judiciais e administrativas”, bem como no art. 25, II e §1º, do mesmo diploma legal, que determina a inexigibilidade de licitação para os serviços de caráter singular listados no art. 13. A seu ver, os serviços de advocacia mencionados enquadram-se na previsão do citado art. 13 c/c art. 25, II, da Lei nº 8.666/93? Por quê? Leitura complementar: JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, pp. 334 a 351; JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética. Licitação e Contrato Administrativo. 7.ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1987, p. 36. 184 FGV DIREITO RIO 79 atividades e atos administrativos Aula 16: As fases da licitação Objetivo: Discutir como ocorrem as licitações, as suas etapas, as impugnações e recursos em geral. Introdução: A licitação constitui um procedimento uno, o qual se apresenta dividido em fases, para fins de organização. O procedimento licitatório apresenta maior ou menor complexidade dependendo da modalidade adotada, devendo ser iniciado na forma prevista no art. 38 da Lei nº 8.666/1993: Art. 38. O procedimento da licitação será iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva, a indicação sucinta de seu objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão juntados oportunamente: I - edital ou convite e respectivos anexos, quando for o caso; II - comprovante das publicações do edital resumido, na forma do art. 21 desta Lei, ou da entrega do convite; III - ato de designação da comissão de licitação, do leiloeiro administrativo ou oficial, ou do responsável pelo convite; IV - original das propostas e dos documentos que as instruírem; V - atas, relatórios e deliberações da Comissão Julgadora; VI - pareceres técnicos ou jurídicos emitidos sobre a licitação, dispensa ou inexigibilidade; VII - atos de adjudicação do objeto da licitação e da sua homologação; VIII - recursos eventualmente apresentados pelos licitantes e respectivas manifestações e decisões; X - despacho de anulação ou de revogação da licitação, quando for o caso, fundamentado circunstanciadamente; X - termo de contrato ou instrumento equivalente, conforme o caso; XI - outros comprovantes de publicações; XII - demais documentos relativos à licitação. Parágrafo único. As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração. A concorrência, considerada a modalidade mais complexa de licitação, apresenta as seguintes etapas: (i) divulgação e publicidade do ato convocatório (edital); FGV DIREITO RIO 80 atividades e atos administrativos (ii) entrega dos envelopes e julgamento da habilitação; (iii) divulgação das licitantes habilitadas e julgamento de impugnações e recursos; (iv) julgamento e classificação das propostas dos licitantes habilitados; (v) publicidade quanto ao julgamento, classificação das propostas e exaurimento dos possíveis recursos; (vi) providências complementares; (vii) adjudicação.185 Conforme se depreende das fases acima, o procedimento licitatório inicia-se com a divulgação do edital, o qual deve conter as etapas do processo, as exigências a serem atendidas pelo interessado em participar, os critérios de seleção da proposta mais vantajosa para a administração, além de uma minuta do contrato a ser celebrado. Em seguida, ocorre a fase de habilitação, a qual tem por finalidade apurar a capacidade do licitante para contratar com a Administração Pública. O procedimento inclui (i) a habilitação jurídica, (ii) regularidade fiscal, (iii) qualificação técnica; (iv) qualificação econômico-financeira e (v) comprovação de cumprimento do disposto no art. 7º, XXXIII, da Constituição Federal, o qual proíbe trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito, bem como qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos. Uma vez entregues os envelopes de habilitação, cabe à comissão de licitação analisar se os requisitos constantes do edital foram obedecidos. Encerrada essa análise a comissão profere decisão, mencionando as pessoas habilitadas e as inabilitadas. Contra a referida decisão as partes interessadas podem interpor recurso, com efeito suspensivo, no prazo de cinco dias úteis contados da data da divulgação da decisão (art. 109, Lei nº 8.666/1993). Em seguida, passa-se à fase de apresentação das propostas, cujos envelopes devem ser abertos em sessão pública. Compete à comissão de licitação decidir sobre a obediência da proposta aos requisitos formais e materiais exigidos pelo edital, promovendo, em seguida, a classificação das propostas conformes ao edital. Divulgado o resultado da análise das propostas, a comissão de licitação deve conferir publicidade ao julgamento, para que as partes interessadas possam, se julgarem devido, interpor recurso, o qual segue os mesmos critérios exigidos nos recursos interpostos na fase de habilitação. Sendo o recurso julgado procedente, a licitação será invalidada ou, se possível sanar o vício, a administração procederá à revisão devida, promovendo a reclassificação dos licitantes.186 Quanto à possibilidade de revogação do certame, por critério de conveniência e oportunidade da Administração, cumpre ressaltar que a lei somente consagra essa possibilidade no caso de o fato ensejador da licitação dar-se em momento superveniente à data da instauração da licitação. Em seguida deve ser o resultado homologado. Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: a homologação equivale à aprovação do procedimento: ela é precedida do exame dos atos que o integraram pela autoridade competente (indicada nas leis de cada unidade da federação), a qual, se verificar algum vício de ilegalidade, anulará o procedimento ou determinará seu saneamento, se cabível. Se o procedimento estiver em ordem, ela o homologará.187 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 338. 185 JUSTEN FILHO, Marçal.Op. cit., p. 342. 186 Direito administrativo, op. cit., p. 331. Sobre a sucessão entre as etapas de homologação e adjudicação, a autora ressalta que, em decorrência do art. 43, VI, da Lei nº 8.666, “houve uma inversão nos atos finais do procedimento. Anteriormente a essa lei, a adjudicação era o ato final praticado pela própria Comissão de licitação, após o que vinha a homologação pela autoridade competente”. Agora, os dois atos ficam fora da atuação da Comissão e passam a ser de competência da autoridade competente”. (ob. cit., loc. cit.) 187 FGV DIREITO RIO 81 atividades e atos administrativos Homologado o resultado da licitação, a etapa superveniente é a adjudicação do objeto licitado ao licitante vencedor, com a celebração do correspondente contrato administrativo. Tendo por base a breve descrição acima sobre as etapas da licitação, e com o embasamento de suas leituras de preparação para a aula, busque analisar as possibilidades de revisão, pelo Poder Judiciário, das decisões proferidas pela comissão de licitação, bem como a possibilidade de o licitante que deixou de recorrer na esfera administrativa ingressar em juízo requerendo a invalidação da decisão final quanto à habilitação ou classificação das propostas. Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 232 a 264. Caso gerador: O Banco do Estado do Rio Grande do Sul lançou processo licitatório para a contratação de empresa de prestação de serviços de vigilância. O início do procedimento se deu com a publicação do edital, o qual deixou de prever o índice de atualização monetária do valor do contrato, a incidir sobre o preço a partir do seu 13º mês de vigência. A empresa XYZ Ltda., tendo sido inabilitada na fase de pré-qualificação, impetra mandado de segurança alegando a existência de falha no edital, consistente na ausência da previsão do referido índice de reajuste. Com base nos seus estudos sobre as fases da licitação, reflita: a) A via do mandado de segurança é adequada para a formulação do pleito de nulidade da licitação, por vício do edital? b) Deve a segurança ser concedida? Por quê? Leitura complementar: JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, pp. 305 a 333; JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética. FGV DIREITO RIO 82 atividades e atos administrativos Aula 17: Regime jurídico dos contratos administrativos Objetivo: Discutir quais as características que distinguem os contratos administrativos dos contratos de direito civil, conferindo especial ênfase ao estudo das cláusulas exorbitantes. Introdução: O contrato administrativo é definido, nas palavras de Marçal Justen Filho, como: Acordo de vontades destinado a criar, modificar ou extinguir direitos e obrigações, tal como facultado legislativamente e em que pelo menos uma das partes atua no exercício da função administrativa.188 Da conceituação acima se extrai que, em sede de direito administrativo, a celebração válida de um contrato administrativo requer que a vontade administrativa declarada encontre supedâneo em lei e que uma das partes contratantes – a Administração – esteja atuando em uma função-fim da Administração. Nos termos do art. 6º da Lei nº 8.666/1993, o contrato administrativo pode ter por objeto obras, serviços, compras ou alienações. O conceito apresentado por Marçal Justen Filho também permite observar que nem todo contrato celebrado com a administração pública se caracteriza como contrato administrativo propriamente dito.189 A participação da Administração Pública em um contrato bilateral, sinalagmático, não importa na necessária classificação desse contrato como sendo um contrato administrativo. Há, portanto, contratos firmados pela Administração considerados “contratos da administração”. São contratos firmados à luz das regras de direito privado. Nesse sentido, o autor sugere a classificação dos contratos da administração em três distintas espécies, quais sejam: • Contratos de direito privado praticados no exercício da atividade administrativa: regidos preponderantemente pelo direito privado, como os previstos no art. 62, §3º, da Lei nº 8.666/1993, o qual dispõe: § 3o Aplica-se o disposto nos arts. 55 e 58 a 61 desta Lei e demais normas gerais, no que couber: I - aos contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o Poder Público seja locatário, e aos demais cujo conteúdo seja regido, predominantemente, por norma de direito privado; II - aos contratos em que a Administração for parte como usuária de serviço público. • Contratos administrativos de delegação: envolvem contratos cujo objeto consiste na delegação a particulares do exercício de competências administrativas, cujos exemplos são os contratos de concessão e de permissão de serviços públicos, que possuem regime jurídico próprio, estatuído, em âmbito federal, na Lei nº 8.987, de 13/02/1995. Curso de direito administrativo, p. 277. 188 Curso de direito administrativo, pp. 282 e 283. 189 FGV DIREITO RIO 83 atividades e atos administrativos • Contratos administrativos propriamente ditos: disciplinados pela Lei nº 8.666/1993, são os acordos de vontade destinados: a criar, modificar, ou extinguir direitos e obrigações, tal como facultado legislativamente e em que uma das partes, atuando no exercício da função administrativa, é investida de competências para inovar unilateralmente as condições contratuais e em que se assegura a intangibilidade da equação econômico-financeira original.190 Ou, nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto: manifestações de vontades recíprocas, sendo uma delas da Administração Pública, que, integradas pelo consenso, têm por objeto a constituição de uma relação jurídica obrigacional, visando a atender, com prestações comutativas, a interesses distintos, um dos quais é público.191 Procure comparar essas definições com aquela apresentada no início desta aula. Quais as semelhanças e quais as especificidades? Você seria capaz de, a partir de ambas, separar os elementos que efetivamente caracterizam o contrato administrativo? Em auxílio à sua reflexão, observe o art. 55 da lei nº 8.666/1993, o qual elenca as cláusulas essenciais aos contratos administrativos: Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam: I - o objeto e seus elementos característicos; II - o regime de execução ou a forma de fornecimento; III - o preço e as condições de pagamento, os critérios, data-base e periodicidade do reajustamento de preços, os critérios de atualização monetária entre a data do adimplemento das obrigações e a do efetivo pagamento; IV - os prazos de início de etapas de execução, de conclusão, de entrega, de observação e de recebimento definitivo, conforme o caso; V - o crédito pelo qual correrá a despesa, com a indicação da classificação funcional programática e da categoria econômica; VI - as garantias oferecidas para assegurar sua plena execução, quando exigidas; VII - os direitos e as responsabilidades das partes, as penalidades cabíveis e os valores das multas; VIII - os casos de rescisão; IX - o reconhecimento dos direitos da Administração, em caso de rescisão administrativa prevista no art. 77 desta Lei; X - as condições de importação, a data e a taxa de câmbio para conversão, quando for o caso; XI - a vinculação ao edital de licitação ou ao termo que a dispensou ou a inexigiu, ao convite e à proposta do licitante vencedor; XII - a legislação aplicável à execução do contrato e especialmente aos casos omissos; XIII - a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação. Marçal Justen Filho, Curso de direito administrativo, p. 289. 190 Curso de direito administrativo, p. 163. 191 FGV DIREITO RIO 84 atividades e atos administrativos Além disso, a Lei nº 8.666/1993 consagra prerrogativas inerentes à Administração Pública na celebração de contratos administrativos, as quais se encontram previstas no art. 58 da referida Lei: Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de: I - modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado; II - rescindi-los, unilateralmente, nos casos especificados no inciso I do art. 79 desta Lei; III - fiscalizar-lhes a execução; IV - aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste; V - nos casos de serviços essenciais, ocupar provisoriamente bens móveis, imóveis, pessoal e serviços vinculados ao objeto do contrato, na hipótese da necessidade de acautelar apuração administrativa de faltas contratuais pelo contratado, bem como na hipótese de rescisão do contrato administrativo. Os dispositivos elencados no art. 58, caput, da Lei nº 8.666/93 são conhecidas como “competências anômalas”, “prerrogativas extraordinárias” ou, ainda, “cláusulas exorbitantes” dos contratos administrativos. Todas essas terminologias aludem a um poder unilateral que permanece com a Administração ao contratar com o particular, ao qual esse não poderá se opor. Nesse sentido, Digo de Figueiredo Moreira Neto observa ser necessário distinguir, no bojo dos contratos administrativos, “as cláusulas atinentes à finalidade pública, que são indisponíveis, das cláusulas que negociam interesses patrimoniais, que são disponíveis”192. Por outro lado, se a Administração tem poderes para modificar e mesmo rescindir o contrato celebrado após o devido processo licitatório, o art. 58, §§1º e 2º, da Lei nº 8.666/93 confere ao particular contratante importante garantia individual, consistente no direito ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato, que não poderá ser atingido por alterações unilaterais promovidas pela Administração: Art. 58. (...) § 1o As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos administrativos não poderão ser alteradas sem prévia concordância do contratado. § 2o Na hipótese do inciso I deste artigo, as cláusulas econômico-financeiras do contrato deverão ser revistas para que se mantenha o equilíbrio contratual. Aliás, não se pode deixar de mencionar que o princípio da intangibilidade do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo apresenta uma matriz constitucional, conforme se depreende da redação do art. 37, XXI, da Constituição Federal: Art. 37. (...) XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as Curso de direito administrativo, p. 162. 192 FGV DIREITO RIO 85 atividades e atos administrativos exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. A doutrina tende a exigir determinados requisitos para que a Administração possa exercer o direito de alterar unilateralmente o contrato administrativo, pois, embora à Administração Pública seja classicamente reconhecida discricionariedade, ou seja, o direito de realizar juízo de conveniência e oportunidade, esse é exercido no momento em que a Administração decide contratar, vinculando-se através da celebração do instrumento contratual.193 Assim, em princípio, a modificação do contrato pressuporia eventos somente ocorridos ou conhecidos após a celebração do contrato, a partir de uma interpretação do art. 49, caput, da Lei nº 8.666/93: Art. 49. A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado. Dessa forma, a motivação constitui requisito inerente à modificação unilateral do contrato, sendo a mesma nula se desmotivada, quando o motivo invocado seja anterior à contratação, bem como quando a modificação se apresente desproporcional ao motivo invocado.194 Merece ainda menção a exigência, em regra, de que os acordos com a Administração Pública sejam reduzidos à forma escrita. Como regra, apresentam-se limitadas as possibilidades de acordos tácitos ou implícitos.195 Essa limitação decorre, por exemplo, de ser a forma um elemento caracterizador do ato administrativo, sendo necessário que a Administração a obedeça ao expressar sua manifestação de vontade. Seria inclusive, uma exigência do princípio da publicidade dos atos administrativos, também já estudado. Por outro lado, às vezes, é possível ou mesmo necessário inferir-se, de um determinado comportamento da Administração, uma declaração de vontade implícita. Assim, a doutrina não nega a possibilidade de existência de declarações tácitas de vontade pela Administração. De toda forma, faz-se necessário que, em algum momento, tenha a referida vontade se exteriorizado,196 a não ser quando a própria lei já previr o silêncio como manifestação do consentimento tácito (por exemplo, uma lei que determina que, caso a Administração não se manifeste formalmente no prazo de 30 dias, o requerimento será considerado automaticamente aprovado). Por fim, cumpre abordar a temática da duração do contrato, merecendo transcrição o seguinte ensinamento de José dos Santos Carvalho Filho: Os contratos administrativos devem ser celebrados por prazo determinado (art. 57, § 3o), sua duração é adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários (art. 57), forma encontrada pelo legislador para impedir que o dispêndio oriundo de contratos venha repercutir em orçamentos futuros, sem que tenham sido ordenadamente planejados os ajustes.197 Como se pode perceber, ao vedar a contratação com prazo de vigência indeterminado, o que inspira o legislador é a necessidade de obrigar o contratante a fazer a previsão de recursos orçamentários, de modo a ficar garantido o efetivo cumprimento das obrigações assumidas pela Administração Pública, bem como resguardar o princípio da competição. Curso de direito administrativo, p. 291. 193 Curso de direito administrativo, p. 291. 194 Conforme ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo, tomo I, p. 255. 195 Nesse sentido, por exemplo, dissertando sobre o tema os efeitos jurídicos da omissão da Administração Pública, Renato Alessi observa: “A questão surge propriamente no caso da mera omissão, ou seja, no caso da omissão, naturalmente voluntária, relativamente à qual falte toda exteriorização formal da determinação volitiva a que ela se refira. Em tal caso, não se pode de nenhuma forma reconhecer a existência de um ato, dado que falta o elemento da manifestação da atividade volitiva em forma suficiente para ter um reconhecimento exterior suficiente. A omissão, portanto, será em tal caso um mero fato da Administração, com possibilidade de produção de conseqüências jurídicas, como, por exemplo, uma responsabilidade da Administração”. Instituciones de derecho administrativo, p. 257. 196 Manual de Direito Administrativo, p. 173. 197 FGV DIREITO RIO 86 atividades e atos administrativos Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 151 a 175. Caso gerador: O Município de Morretes/PR celebrou com uma prestadora de serviço de transporte coletivo de passageiros, um contrato verbal sem a realização de prévio procedimento licitatório e empenho. Embora o serviço tenha sido prestado, a empresa não recebeu os valores devidos pelo município. Como razão para o não-pagamento, o município alega que a Administração Pública encontra-se impedida de realizar contrato verbal, nos termos do art. 60, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93, o qual dispõe: Art. 60. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea a desta Lei, feitas em regime de adiantamento. Portanto, o referido contrato seria nulo, aplicando-se a declaração de nulidade retroativamente, nos termos do art. 59, caput, da Lei nº 8.666/93. Ademais, a ausência de licitação feriria o art. 37, XXI, da Constituição Federal e o princípio da finalidade que, conforme já estudado, constitui imanência do princípio da legalidade. Por fim, o contrato não atenderia ao disposto na Lei nº 4.320/64, que exige prévio empenho para a realização de despesa pública (art. 60)198, bem como a emissão de nota de empenho indicando credor, importância devida e dedução desta do saldo da dotação própria (art. 61). A inobservância dessa forma legal gera igualmente a nulidade do ato (art. 59, § 4º). Em síntese, o relator do caso no Superior Tribunal de Justiça destacou que “o contrato administrativo verbal de prestação de serviços de transporte não-precedido de licitação e prévio empenho é nulo, pois vai de encontro às regras e princípios constitucionais, notadamente a legalidade, a moralidade, a impessoalidade, a publicidade, além de macular a finalidade da licitação, deixando de concretizar, em última análise, o interesse público”. Entretanto, a realidade é que os serviços foram prestados, com o arrendamento de três ônibus ao município durante certo período de tempo. Nesse sentido, há de se considerar o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa e o disposto no art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93, segundo o qual: Art. 59. (...) Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa”. Em vista dos fatos acima aduzidos, a empresa de transporte público promoveu ação de cobrança contra o município. Dispõe o art. 60 da Lei nº 4.320/64: “É vedada a realização de despesa sem prévio empenho. § 1º Em casos especiais previstos na legislação específica será dispensada a emissão da nota de empenho. § 2º Será feito por estimativa o empenho da despesa cujo montante não se possa determinar. §3º É permitido o empenho global de despesas contratuais e outras, sujeitas a parcelamento”. 198 FGV DIREITO RIO 87 atividades e atos administrativos À luz das disposições da Lei de Licitações e dos princípios que regem a Administração Pública, é válido o contrato celebrado? Caso seja declarada a sua nulidade, devem ser efetuados os pagamentos à transportadora? É relevante o conceito de boa-fé para o deslinde da controvérsia? Ref.: Resp 54.5471 Leitura complementar: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, capítulo 8. FGV DIREITO RIO 88 atividades e atos administrativos Aula 18: Extinção do contrato administrativo Objetivo: Analisar as formas de extinção do ato administrativo e seus efeitos. Introdução: O encerramento dos contratos administrativos pode se dar tanto pelo exaurimento do seu objeto, pelo advento do termo, como por razão anômala, como nos casos de inadimplemento. A rescisão decorrente de inadimplemento encontra-se disciplinada na Seção V da Lei nº 8.666/1993, cujos arts. 77 e 78 dispõem: Seção V Da Inexecução e da Rescisão dos Contratos Art. 77. A inexecução total ou parcial do contrato enseja a sua rescisão, com as conseqüências contratuais e as previstas em lei ou regulamento. Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato: I - o não cumprimento de cláusulas contratuais, especificações, projetos ou prazos; II - o cumprimento irregular de cláusulas contratuais, especificações, projetos e prazos; III - a lentidão do seu cumprimento, levando a Administração a comprovar a impossibilidade da conclusão da obra, do serviço ou do fornecimento, nos prazos estipulados; IV - o atraso injustificado no início da obra, serviço ou fornecimento; V - a paralisação da obra, do serviço ou do fornecimento, sem justa causa e prévia comunicação à Administração; VI - a subcontratação total ou parcial do seu objeto, a associação do contratado com outrem, a cessão ou transferência, total ou parcial, bem como a fusão, cisão ou incorporação, não admitidas no edital e no contrato; VII - o desatendimento das determinações regulares da autoridade designada para acompanhar e fiscalizar a sua execução, assim como as de seus superiores; VIII - o cometimento reiterado de faltas na sua execução, anotadas na forma do § 1o do art. 67 desta Lei; IX - a decretação de falência ou a instauração de insolvência civil; X - a dissolução da sociedade ou o falecimento do contratado; XI - a alteração social ou a modificação da finalidade ou da estrutura da empresa, que prejudique a execução do contrato; XII - razões de interesse público, de alta relevância e amplo conhecimento, justificadas e determinadas pela máxima autoridade da esfera administrativa a que está subordinado o contratante e exaradas no processo administrativo a que se refere o contrato; XIII - a supressão, por parte da Administração, de obras, serviços ou compras, acarretando modificação do valor inicial do contrato além do limite permitido no § 1o do art. 65 desta Lei; FGV DIREITO RIO 89 atividades e atos administrativos XIV - a suspensão de sua execução, por ordem escrita da Administração, por prazo superior a 120 (cento e vinte) dias, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, ou ainda por repetidas suspensões que totalizem o mesmo prazo, independentemente do pagamento obrigatório de indenizações pelas sucessivas e contratualmente imprevistas desmobilizações e mobilizações e outras previstas, assegurado ao contratado, nesses casos, o direito de optar pela suspensão do cumprimento das obrigações assumidas até que seja normalizada a situação; XV - o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação; XVI - a não liberação, por parte da Administração, de área, local ou objeto para execução de obra, serviço ou fornecimento, nos prazos contratuais, bem como das fontes de materiais naturais especificadas no projeto; XVII - a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, regularmente comprovada, impeditiva da execução do contrato. XVIII – descumprimento do disposto no inciso V do art. 27, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.199 Parágrafo único. Os casos de rescisão contratual serão formalmente motivados nos autos do processo, assegurado o contraditório e a ampla defesa. Conforme se pode observar da extensa lista acima, muitas são as causas que podem ensejar a rescisão unilateral do contrato pela Administração, nem todas imputáveis ao particular, como nas hipóteses previstas nos incisos XIII a XVI supracitados. Além disso, a rescisão pode dar-se tanto por ato unilateral da administração, como por acordo amigável ou decisão judicial, a depender do evento ensejador da rescisão. Conforme expõe o art. 79 da Lei nº 8.666/1993: Art. 79. A rescisão do contrato poderá ser: I - determinada por ato unilateral e escrito da Administração, nos casos enumerados nos incisos I a XII e XVII do artigo anterior; II - amigável, por acordo entre as partes, reduzida a termo no processo da licitação, desde que haja conveniência para a Administração; III - judicial, nos termos da legislação; IV – vetado. § 1o A rescisão administrativa ou amigável deverá ser precedida de autorização escrita e fundamentada da autoridade competente. § 2o Quando a rescisão ocorrer com base nos incisos XII a XVII do artigo anterior, sem que haja culpa do contratado, será este ressarcido dos prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido, tendo ainda direito a: I - devolução de garantia; II - pagamentos devidos pela execução do contrato até a data da rescisão; III - pagamento do custo da desmobilização. § 3º. Vetado. § 4º. Vetado. Inciso incluído pela Lei nº 9.854/99. 199 FGV DIREITO RIO 90 atividades e atos administrativos § 5o.Ocorrendo impedimento, paralisação ou sustação do contrato, o cronograma de execução será prorrogado automaticamente por igual tempo. Entretanto, o Administrador Público não pode rescindir o contrato por puro capricho, sem motivação. Nesse sentido, é oportuno trazer lição de Marçal Justen Filho: A Lei buscou reduzir o âmbito de liberdade da Administração Pública para extinguir o contrato mediante invocação do interesse público. (...) Antes de tudo, o Estado de Direito não se compadece com que o agente administrativo adote a conduta que melhor lhe aprouver mediante a rasa invocação de “interesse público”. A eliminação do arbítrio equivale à necessidade das decisões administrativas serem relacionadas e proporcionadas a um interesse público definido e concreto. Já por isso, seria inviável a Administração desfazer, mediante a simples invocação ao interesse público, o vínculo jurídico mantido com um terceiro. Mas o Direito foi mais longe. Reconhece-se que a conveniência administrativa apenas pode autorizar o desfazimento de atos administrativos desde que respeitados os eventuais direitos adquiridos de terceiros (Súmula 473 do STF). A revogação do ato administrativo encontra obstáculo no direito adquirido. O contrato administrativo produz direitos adquiridos, que devem ser respeitados inclusive pela lei nova (CF, art. 5º, inc. XXXVI). Logo, não se admite revogação imotivada do contrato administrativo. (...) A Lei expressamente reconheceu a insuficiência da simples alegação do interesse público na rescisão. Primeiramente, condicionou a rescisão à existência de razões de interesse público de alta relevância e amplo conhecimento. A adjetivação não pode ser ignorada. A eventual dificuldade em definir, de antemão, o sentido de “alta relevância” não autoriza ignorar a exigência legal. A Administração estará obrigada a demonstrar que a manutenção do contrato acarretará lesões sérias a interesses cuja relevância não é a usual. A “alta” relevância indica uma importância superior aos casos ordinários. Isso envolve danos irreparáveis, tendo em vista a natureza da prestação ou do objeto executado. O risco da lesão ao interesse público afasta a invocação de “conveniência”. Há necessidade de extinguir-se o contrato porque sua manutenção será causa de conseqüências lesivas. Ademais, essa situação deverá ser de amplo conhecimento, o que indica a ausência de dúvida acerca do risco existente. O contratado tem direito de ser ouvido e manifestar-se acerca da questão. Não estará presente o requisito legal se nem o contratado tiver conhecimento da situação e do risco invocado pela Administração.200 A devida fundamentação é imperiosa nos casos de rescisão dos contratos administrativos, ainda que se trate de revogação do contrato. É o que se depreende do artigo 49 da Lei de Licitações: Art. 49. A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado. (...) § 3o No caso de desfazimento do processo licitatório, fica assegurado o contraditório e a ampla defesa. (...) Comentários à Lei de Licitações e Contrato Administrativos. 8.ed., São Paulo: Dialética, SP, 2001. 200 FGV DIREITO RIO 91 atividades e atos administrativos § 4o O disposto neste artigo e seus parágrafos aplica-se aos atos do procedimento de dispensa e de inexigibilidade de licitação. (grifamos) Pouco importa que se esteja a tratar de rescisão contratual unilateral ou mesmo de revogação do contrato, pois tanto numa quanto noutra hipótese é indispensável a objetiva demonstração dos motivos que justificassem tais medidas. Com efeito, é de exigir-se da Administração Pública a indicação precisa dos motivos que ensejam o ato revocatório, sendo certo que o juízo de conveniência para tanto somente pode se basear em fato superveniente, devidamente comprovado, pertinente e suficiente a justificar tão extremada iniciativa. Por essa razão a discricionariedade administrativa sofreu séria e profunda restrição legal, sendo certo afirmar-se que a doutrina sustenta que o ato rescisório ou revocatório tenha necessariamente fundamento em fatos novos suficientes, não mais se admitindo a mudança do critério de mera oportunidade. Veja-se, a esse respeito, a manifestação de Toshio Mukai: Antes do Decreto-lei nº 2.300/86, a doutrina, em uníssono, afirmava que o vencedor de uma licitação não podia pretender ter direito a ser contratado. E isso porque a licitação poderia ser revogada (discricionariamente) por simples motivo de inconveniência e inoportunidade da contratação, a qualquer momento. Com o Decreto-lei nº 2.300/86, essa situação começa a se alterar, uma vez que ele obrigou que a revogação se fundasse sempre no interesse público, ou seja, a revogação de uma licitação somente se justificava perante a existência de um interesse público devidamente demonstrado. Ocorre que nem todos os órgãos seguiram esses condicionantes. Agora, na redação atual, o art. 49 da Lei nº 8.666/93 tornou a revogação de uma licitação um fato excepcional e praticamente vinculado. Isso porque, em primeiro lugar, emprega a expressão “somente poderá revogar”, a demonstrar que a revogação é ato excepcional; ao depois condiciona-a à ocorrência de um “fato superveniente devidamente comprovado” e que seja pertinente e suficiente para justificar a revogação, em razão de interesse público que deve decorrer desse fato, portanto, a revogação da licitação, atualmente, é ato vinculado à ocorrência de tais fatos, e não depende mais da vontade discricionária do administrador público. Em inexistindo tais condições, a contratação será obrigatória, salvo se houver ilegalidade capaz de fundar a anulação da licitação. Portanto, agora, mais do que nunca, descabe a afirmativa de parte da doutrina no sentido de que, em princípio, o vencedor de uma licitação não tem direito ao contrato. De acordo com a nova disposição, a questão se inverte: em princípio, o vencedor de uma licitação tem direito ao contrato, salvo se ocorrerem realmente as hipóteses que fundamentam legalmente, e puderem elas ser demonstradas, tanto a revogação como a anulação, hipóteses essas que retiram do licitante o direito ao contrato.“O que a Administração não pode é invalidar licitação sem justa causa, para favorecer ou prejudicar licitante. Se assim agir, praticará ato nulo por excesso ou abuso de poder, com todos os consectários desse desvio de finalidade”. “A justa causa para anular ou revogar a licitação deve ficar evidenciada em procedimento regular, com oportunidade de defesa. Não basta a simples alegação de vício ou de interesse público para invalidar a licitação; necessário é que a Administração demonstre o motivo invalidatório (Hely Lopes Meirelles, Licitação e contrato administrativo, cit., p. 163-4).201 Portanto, nos termos da lei, em caso de rescisão do contrato administrativo sem culpa do Administrado, este tem direito à devolução da garantia entregue à Administração no Licitações e Contratos Públicos. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 76-77. 201 FGV DIREITO RIO 92 atividades e atos administrativos momento da celebração, ao pagamento pelo montante do objeto que tenha sido executado até o momento da rescisão, bem como de ser ressarcido do custo pela desmobilização de equipamentos e pessoal, tendo em vista que o encerramento do contrato está ocorrendo antes do término do prazo contratual, que era aquele que havia sido utilizado pelo licitante, no momento da apresentação de sua oferta, para calculo de amortização de custos dessa natureza. Por outro lado, caso o administrado dê ensejo à rescisão, a lei prevê severa punição, como se observa da redação do art. 80 da Lei nº 8.666/1993: Art. 80. A rescisão de que trata o inciso I do artigo anterior acarreta as seguintes conseqüências, sem prejuízo das sanções previstas nesta Lei: I - assunção imediata do objeto do contrato, no estado e local em que se encontrar, por ato próprio da Administração; II - ocupação e utilização do local, instalações, equipamentos, material e pessoal empregados na execução do contrato, necessários à sua continuidade, na forma do inciso V do art. 58 desta Lei; III - execução da garantia contratual, para ressarcimento da Administração, e dos valores das multas e indenizações a ela devidos; IV - retenção dos créditos decorrentes do contrato até o limite dos prejuízos causados à Administração. § 1o A aplicação das medidas previstas nos incisos I e II deste artigo fica a critério da Administração, que poderá dar continuidade à obra ou ao serviço por execução direta ou indireta. § 2o É permitido à Administração, no caso de concordata do contratado, manter o contrato, podendo assumir o controle de determinadas atividades de serviços essenciais. § 3o Na hipótese do inciso II deste artigo, o ato deverá ser precedido de autorização expressa do Ministro de Estado competente, ou Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso. § 4o A rescisão de que trata o inciso IV do artigo anterior permite à Administração, a seu critério, aplicar a medida prevista no inciso I deste artigo. Para refletir sobre o tema, analise o acórdão proferido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança nº 24268/MG, em que foi relatora a ministra Ellen Gracie e relator para acórdão o ministro Gilmar Mendes, publicado em 17/09/04: “Mandado de Segurança. 2. Cancelamento de pensão especial pelo Tribunal de Contas da União. Ausência de comprovação da adoção por instrumento jurídico adequado. Pensão concedida há vinte anos. 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume a um simples direito de manifestação no processo. 4. Direito constitucional comparado. Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. 5. Os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição, aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. 6. O exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica. 7. Aplicação do princípio da segurança jurídica, enquanto subFGV DIREITO RIO 93 atividades e atos administrativos princípio do Estado de Direito. Possibilidade de revogação de atos administrativos que não se pode estender indefinidamente. Poder anulatório sujeito a prazo razoável. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 8. Distinção entre atuação administrativa que independe da audiência do interessado e decisão que, unilateralmente, cancela decisão anterior. Incidência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ao processo administrativo. 9. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica. Aplicação nas relações jurídicas de direito público. 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF art. 5º LV). Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 176 a 198. Caso gerador: Contrato firmado entre a empresa pública ABC-BRÁS e a NEWCO, sob o regime de inexigibilidade de licitação para a prestação de serviços caracterizados como desenvolvimento e implantação de sistema de controle da produção de compact disc, com a utilização de equipamentos e softwares específicos. Tal contrato se baseia no fato de que ao longo dos últimos anos, em decorrência de numerosos e crescentes casos de fabricação clandestina de CDs, tem havido imensa sonegação fiscal, e a Secretaria da Receita Federal vem intensificando suas ações fiscais nessa área, com o propósito de evitar maiores prejuízos não apenas ao erário, mas também à indústria de CDs. Obviamente, o aprimoramento da tecnologia utilizada na confecção dos prefalados selos de controle é primordial para o combate eficaz à comercialização ilegal desse produto. Por esse motivo a ABC-BRÁS iniciou com a NEWCO, detentora de direitos exclusivos de distribuição, no Brasil, da indigitada tecnologia, o desenvolvimento de projeto piloto para a adaptação e implantação desse sistema no país. Após os contatos de praxe, seguido da exposição do modo de funcionamento do sistema pelo qual a NEWCO é detentora, a ABC-BRÁS, por meio de correspondência, apresentou Carta de Intenção, pela qual se comprometeu a acompanhar o desenvolvimento e o teste piloto do sistema, para fins de utilização dessa tecnologia no caso de comprovada eficiência e conformidade legal de contratação. Em resumo, o sistema de controle em apreço baseia-se na instalação, pela NEWCO, de equipamentos que só permitem o funcionamento das respectivas linhas de produção se estiverem em uso dispositivos produzidos de acordo com a tecnologia exclusiva da NEWCO. O desenvolvimento do projeto levou dois anos, suscitando nesse tempo diversas reuniões, diligências, testes e auditorias de sistema em campo (ou seja, junto a unidades de fabricação e empacotamento dos CDs, em caráter experimental), sempre realizadas conjuntamente por técnicos da ABC-BRÁS e da ACPIS, até que finalmente o projeto piloto foi aprovado pela ABC-BRÁS. Em seqüência, as partes firmaram o referido contrato de prestação de serviços. FGV DIREITO RIO 94 atividades e atos administrativos O contrato foi celebrado sob o regime de inexigibilidade de licitação, nos termos do artigo 25 da Lei n.º 8.666/1993, e conforme extrato de inexigibilidade de licitação publicado no Diário Oficial da União, tendo-se em vista que a NEWCO é a única detentora, no Brasil, do referido programa. Diante do exíguo prazo avençado entre a Secretaria da Receita Federal e a ABC-BRÁS para o início do funcionamento do sistema de controle em cogitação, a NEWCO, desde a celebração do contrato de prestação de serviços, vinha adotando todas as medidas necessárias ao seu bom e fiel cumprimento, tais como, e. g., a contratação de diversos profissionais, a aquisição e encomenda de equipamentos, dentre outras. Sucede que, na data de 10/03/06, a NEWCO foi surpreendida pelos vagos e sucintos termos do Ofício ABC123, por meio do qual a ABC-BRÁS, representada por seu presidente, “considerando o artigo 78, XII, da Lei n.º 8.666/1993”, dava notícia da “rescisão unilateral do aludido contrato”. Considerando seus estudos sobre as formas de encerramento do contrato administrativo, como deve ser resolvida a questão? Leitura complementar: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, capítulo 8; FIGUEIREDO, Lucia Valle. Extinção dos contratos administrativos. São Paulo: Malheiros, 2002. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 361 a 384. FGV DIREITO RIO 95 atividades e atos administrativos Bloco VI: Bens públicos Objetivo: O objetivo deste bloco é analisar as principais características que compõem os bens de titularidade pública FGV DIREITO RIO 96 atividades e atos administrativos Aulas 19 e 20: Regime jurídico dos bens públicos Objetivo: Apresentar o conceito de bens públicos, sua classificação e seu regime jurídico. Introdução: A definição de bens públicos é encontrada no Código Civil, cujo art. 98 dispõe: São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. A partir da definição acima, José dos Santos Carvalho Filho observa que são bens públicos tanto aqueles pertencentes à União Federal, Estados e municípios, como aqueles pertencentes a autarquias, fundações de direito público e associações públicas.202 Já os bens pertencentes às empresas públicas e sociedades de economia mista são compreendidos como privados, inclusive em decorrência da previsão constitucional de que as atividades dessas entidades regem-se, quanto ao direito civil e comercial, pelas mesmas regras aplicáveis às empresas privadas. Quanto à destinação, apresenta-se clássica a divisão dos bens públicos quanto a (i) bens de uso comum do povo; (ii) bens de uso especial; e (iii) bens dominicais, expressamente prevista no art. 99 do Código Civil: Art. 99. São bens públicos: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado. Relativamente à classificação tripartite que o referido dispositivo do Código Civil atribuiu aos bens públicos, Maria Sylvia Zanella Di Pietro203 assim se manifestou doutrinariamente: O critério dessa classificação é o da destinação ou afetação dos bens: os da primeira categoria são destinados, por natureza ou por lei, ao uso coletivo; os da segunda ao uso da Administração, para consecução de seus objetivos, como os imóveis onde estão instaladas as repartições públicas, os bens móveis utilizados na realização dos serviços públicos (...); os da terceira não têm destinação pública definida, razão pela qual podem ser aplicados pelo Manual de direito administrativo, pp. 923 e 924. 202 Direito Administrativo, Ed. Atlas, 10ª ed., São Paulo, 1998, pp. 433/4. 203 FGV DIREITO RIO 97 atividades e atos administrativos poder público, para obtenção de renda; (...) Já se nota, por essas características, um ponto comum – a destinação pública – nas duas primeiras modalidades, e que as diferencia da terceira, sem destinação pública. Por essa razão, sob o aspecto jurídico, pode-se dizer que há duas modalidades de bens públicos: 1. os do domínio público do Estado, abrangendo os de uso comum do povo e os de uso especial; 2. os do domínio privado do Estado, abrangendo os bens dominicais. Caracterizam-se os bens de uso comum do povo pela sua indisponibilidade e inalienabilidade, que decorre da finalidade não-patrimonial de que se revestem.204 Os bens de uso especial, em que pese serem passíveis de avaliação pecuniária, são também indisponíveis enquanto destinados a uma atividade pública; poderão deixar de sê-lo, entretanto, em caso de desafetação205. Nesse sentido, dispõe o art. 100 do Código Civil: Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar. Por fim, os bens dominicais caracterizam-se por serem alienáveis, na forma e nos limites previstos pela legislação, conforme expressa redação do art. 101 do Código Civil: Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei. Os bens públicos caracterizam-se igualmente por sua impenhorabilidade. Nesse sentido, cumpre aludir ao regime geral dos precatórios que rege as execuções contra a Fazenda Pública, previsto no art. 100 da Constituição Federal (distinto, portanto, das regras comuns do processo civil de execução): Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. A impenhorabilidade dos bens públicos pode ser constatada também nos arts. 730 e 731 do Código de Processo Civil, que disciplinam o regime de execução de créditos contra a Fazenda Pública. Outra característica clássica dos bens públicos é a sua imprescritibilidade, atributo que determina não poderem os bens públicos ser adquiridos por usucapião. Nesse sentido, vejam-se arts. 183, §3º, e 191, parágrafo único, da Constituição Federal: Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (...) § 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. Manual de direito administrativo, p. 930 204 Sobre a desafetação de bens públicos, exemplifica José dos Santos Carvalho Filho: “uma área pertencente ao Município na qual não haja qualquer serviço administrativo é um bem desafetado de fim público. Uma viatura policial alocada ao depósito público como inservível igualmente se caracteriza como bem desafetado, já que não utilizado para a atividade administrativa normal”. Manual de direito administrativo, p. 931. 205 FGV DIREITO RIO 98 atividades e atos administrativos Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. No mesmo sentido, dispõe o art. 102 do Código Civil: Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião. Por fim, os bens públicos são não-oneráveis, ou seja, sobre os mesmos não pode recair penhor, hipoteca ou anticrese. Entre os entes públicos, os bens podem ser objeto de cessão de uso. Nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho: Cessão de uso é aquela em que o Poder Público consente o uso gratuito de bem público por órgãos da mesma pessoa ou de pessoa diversa, incumbida de desenvolver atividade que, de algum modo, traduza interesse da coletividade.206 Embora a finalidade clássica do instituto seja a cessão de bem público a pessoa jurídica de direito público, a doutrina admite que, excepcionalmente, possa haver cessão gratuita de bem pública a pessoa jurídica de direito privado, que desempenhe atividade não lucrativa, e tenha por objeto beneficiar a coletividade.207 Confira-se, por oportuno, o que dispõe a Constituição Federal acerca dos bens públicos: Art. 20. São bens da União: I – os que atualmente lhe pertencem e os que vierem a ser atribuídos; II – as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei; III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estranegiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; IV – as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental e as referidas no art. 26, II; V – os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva; VI – o mar territorial; VII – os terrenos de marinha e seus acrescidos; VIII – os potenciais de energia hidráulica; IX – os recursos minerais, inclusive os do subsolo; X – as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos; XI – as terás tradicionalmente ocupadas pelos índios. § 1º É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da explora- CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, p. 959. 206 Nesse sentido, CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, p. 960. 207 FGV DIREITO RIO 99 atividades e atos administrativos ção de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração. § 2º A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei. Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União; II – as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros; III – as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União; IV – as terras devolutas não compreendidas entre as da União. O uso dos bens públicos A regra geral é que os bens públicos devem ser utilizados para a finalidade a que se destinam. Assim, a rua, bem de uso comum do povo, é utilizada para tráfego de automóveis, a praça para o lazer etc. Também os bens de uso especial são geralmente utilizados pela pessoa jurídica de direito público para desenvolver a finalidade para a qual se destinam: a escola, à prestação de serviço de educação; o hospital, para cuidados com a saúde da população, e assim por diante. Sendo as atividades desenvolvidas nesses bens próprias à finalidade para as quais existem, e atendendo assim à população, não existe necessidade de autorização para a utilização desses bens pelos particulares. Todavia, a legislação também admite hipóteses em que particulares devam pagar determinada remuneração para que possam utilizar referidos bens públicos. Nesse sentido, o particular pode ter de pagar pedágio pela utilização da rodovia, ou ingresso para ter acesso a salas de museus.286 Esse uso é chamado especial. Nos casos dos museus e das rodovias, o acesso é amplamente franqueado à população em geral, desde que pague a retribuição acordada. No entanto, em algumas situações, pode o particular desejar utilizar o bem público de forma individualizada, para fins privados, excluindo o uso concomitante pelos demais particulares. A utilização do bem público pelo particular deve necessariamente ser reduzida a instrumento por escrito e caracteriza-se por ser, em regra, precária, uma vez que o interesse público exige que haja algumas prerrogativas em favor da Administração, como o direito de revogar uma autorização anteriormente concedida. O instituto clássico para a utilização de bem público para objetivos estritamente privados é a “autorização de uso de bem público”, cujo elemento marcante se apresenta indubitavelmente a precariedade. Já a permissão de uso de bem público tem lugar quando a finalidade visada é concomitantemente pública e privada. Também se caracteriza por ser ato unilateral, discricionário e precário, sendo a diferenciação para a autorização meramente uma questão quanto à finalidade predominante no ato. Exemplo clássico é a permissão para montagem de feira em praça ou rua.287 De forma distinta à autorização e à permissão, a concessão de uso apresenta natureza contratual, também discricionária, porém não mais precária, tendo em vista que geralmente Os exemplos são de José dos Santos Carvalho Filho, Manual de direito administrativo, p. 945. 286 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 952. 287 FGV DIREITO RIO 100 atividades e atos administrativos encontra-se associada a projetos que requerem investimentos de maior vulto por parte dos particulares. Sendo contratos administrativos, submetem-se à legislação de licitações e às cláusulas exorbitantes que caracterizam a contratação com o poder público. Cumpre mencionar, ainda, a concessão real de uso, instituto regulado expressamente pelo Decreto-Lei nº 271, de 28/02/1967 (disponível o anexo I). A diferença básica entre ambas reside na natureza jurídica de direito real, de uma delas, ou meramente pessoal, para a outra. Consoante José dos Santos Carvalho Filho, esse instituto é utilizado principalmente para fins de urbanização, industrialização e edificação. Não se pode deixar, por fim, de aludir ao novel instrumento da concessão de uso especial para fins de moradia, disciplinado pela Medida Provisória nº 2.220/2001 (disponível no anexo I). Nos termos do art. 7º dessa norma, trata-se de instituto com natureza de direito real de uso, vinculado (pois o ocupante que satisfizer às condições exigidas pela medida provisória terá direito subjetivo à concessão de uso), destinado à finalidade única e exclusiva de moradia.208 Deve-se atentar para as diferenças entre essa forma de concessão e o usucapião urbano especial previsto no art. 183 da Constituição Federal, considerando-se a vedação de aquisição do domínio de terras públicas por meio da usucapião. Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 921 a 964. Casos geradores: 1. Os terrenos de marinha constituem bens da União Federal, nos termos do art. 20, VII, da Constituição Federal, de uso comum do povo. Em determinada praia, a microempresa XYZ Ltda. vinha exercendo atividade econômica, consistente no aluguel da área para prática da atividade de camping, conforme autorizada por alvará de funcionamento expedido pela prefeitura da localidade em nome da empresa, e pagando os tributos pertinentes. No entanto, em decorrência de fortes chuvas, a área foi profundamente afetada por uma ressaca, o que fez a Secretaria do Patrimônio da União exigir a imediata desocupação da área pela empresa, em razão da probabilidade de novos alagamentos e outras intempéries da natureza, que poriam em rico a vida dos usuários do local. A Secretaria alega, ainda, ser precária e de má-fé a ocupação em questão, pois as praias constituem bens de titularidade da União – e não do município – de forma que somente aquela poderia ter expedido autorização para sua utilização. Além disso, destinam-se ao uso comum do povo e não à exploração privada. Por outro lado, a empresa alega ter a posse mansa e pacífica da área há mais de cinco anos e ter realizado diversas benfeitorias no local, razão pela qual sustenta ter direito à permanência no referido bem, ao menos até que seja devidamente indenizada por tais investimentos. Alega que sua posse é de boa-fé, pois a atividade encontra-se licenciada pela Prefeitura local. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, op. cit., p. 957. 208 FGV DIREITO RIO 101 atividades e atos administrativos A seu ver, como deve ser decidida a contenda? Deve ser reconhecido à empresa direito à manutenção da posse do imóvel? Por quê? Em sua resposta, considere tanto a titularidade do bem em questão e a finalidade a que se destina. 2. Conforme visto, as vias públicas constituem bens de domínio público, de uso comum do povo. Nesse sentido, o Município de São Paulo, titular de referidos bens, pretendeu iniciar cobrança, das concessionárias de serviços públicos de energia elétrica, pela utilização de referidos bens para instalação de postes, linhas, torres e subestações de energia elétrica. Para além da discussão sobre se tal cobrança teria natureza de taxa ou de preço público – pois que a rigor não haveria nem poder de polícia nem prestação de serviço público pelo município – perquire-se sobre a possibilidade de realização de referida cobrança, tendo em vista que as concessionárias de distribuição de energia elétrica prestam serviço público, de titularidade estatal, por delegação do poder público. Ou seja, a seu ver, deveria o município ser remunerado pela disponibilização para uso, pela concessionária, do bem público de uso comum do povo, consistente nas suas ruas e avenidas? Que princípios de direito administrativo você invocaria a favor ou contra a referida cobrança? Leitura complementar: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 339 a 365; JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 700 a 720 e 722 a 731. FGV DIREITO RIO 102 atividades e atos administrativos Bloco VII: Limitações à propriedade privada Objetivo: Em seqüência aos estudos dos princípios que regem a atividade administrativa, as funções e os limites do poder de polícia, bem como a disciplina jurídica dos bens públicos, passa-se agora a analisar, com base nos conhecimentos já adquiridos, quais as formas de interferência do Estado sobre a propriedade privada, desde as simples ocupações temporárias até as formas mais drásticas dessa restrição, como as servidões administrativas e as desapropriações. FGV DIREITO RIO 103 atividades e atos administrativos Aula 21: Tombamento, requisição e ocupação temporária. Limitações administrativas. Objetivo: Discutir os institutos do tombamento, requisição e ocupação temporária, bem como os limites da constitucionalidade das limitações administrativas. Introdução: A propriedade, como todos os direitos, sofre limitações no seu exercício. Nas palavras de Themístocles Brandão Cavalcanti, essas restrições decorrem do poder de polícia do Estado, o qual: atinge o direito de propriedade como função de equilíbrio, de harmonia social, em seu sentido mais amplo de proteção das exigências econômicas, sociais, estéticas, vitais de todos os indivíduos que não podem sofrer as conseqüências do uso, mesmo aparentemente legítimo, da propriedade.209 As diversas formas de intervenção do Estado sobre a propriedade privada encontram sua sustentação constitucional especialmente no princípio da função social da propriedade, previsto nos arts. 5º, XXIII e 170, III, da Constituição de 1988. Há também referências à privação da propriedade no Código Civil, que, em seu art. 1.228, § 3º, assim dispõe: § 3º. O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente. No bloco de aulas que se seguirá, abordaremos a interferência do Estado sobre o uso e fruição da propriedade privada, incluindo as ocasiões em que a Administração pode requisitar um imóvel para uso temporário, tombar um prédio por seu valor histórico ou arquitetônico, impor uma servidão administrativa para que se realize uma finalidade pública, ou mesmo venha a desapropriar um terreno por motivo de utilidade pública ou por interesse social. Nesta primeira aula, abordaremos os institutos da requisição, da ocupação temporária e do tombamento. Requisição Nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho, a requisição consiste na: Modalidade de intervenção estatal através da qual o Estado utiliza bens móveis, imóveis e serviços particulares em situação de perigo público iminente.210 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Princípios gerais de direito público. Rio de Janeiro: Borsoi, 1960, p. 302. Também o autor observa que a legitimidade a que se refere “também varia porque evolui com a época, com os hábitos, com as condições econômicas”. (ob. cit., loc. cit.) 209 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 640. 210 FGV DIREITO RIO 104 atividades e atos administrativos Portanto, existem dois tipos principais de requisição, a civil e a militar. Nas requisições há de estar sempre presente o requisito do “perigo público iminente”, conforme exigência específica do art. 5º, XXV, da Constituição: Art. 5º ... XXV – No caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar a propriedade particular, assegurada ao proprietário direito de indenização ulterior, se houver dano. O art. 22, III da Constituição, por sua vez, prevê competir privativamente à União legislar sobre “requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra”. Sendo instituto a incidir em momentos de iminente perigo público ou risco de guerra, justifica-se que a decisão de requisitar um bem seja de competência da Administração Pública, e não do Poder Judiciário (como no caso das desapropriações), bem como que a indenização ocorra posteriormente ao ato. Podem ser objeto de requisição tanto bens móveis como imóveis, e mesmo prestação de serviços, desde que exista uma situação de eminente perigo público a justificar o ato de requisição. Ocupação temporária A ocupação temporária constitui instituto aplicável eminentemente aos bens imóveis, uma vez que seu objetivo consiste em “permitir que o poder público deixe alocados, em algum terreno desocupado, máquinas, equipamentos, barracões de operários, por pequeno espaço de tempo”.211 O autor chama a atenção para o fato de que, às vezes, a terminologia ocupação temporária é utilizada de maneira equívoca, para fazer alusão a situações que, em verdade, caracterizam hipótese de requisição. Esse seria o caso do art. 136, §1º, II, da Constituição, o qual, ao regular o estado de defesa, prevê que o decreto que o instituir determinará, dentre as medidas coercitivas a vigorarem: II – ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes. Em que pese o uso da expressão “ocupação e uso temporário”, tem-se na calamidade uma situação de iminente perigo público, razão pela qual essa hipótese sugere a utilização do instituto da requisição que, ademais, por também poder ser utilizado para bens móveis e serviços, melhor se enquadra na situação regulada pelo art. 136 da Constituição.212 Tombamento Tombamento é a declaração, pelo poder público, do valor histórico, artístico, paisagístico, turístico, cultural ou científico de determinado bem, que deve ser preservado de acordo com a inscrição no livro próprio. Trata-se de ato, em princípio, gratuito, mas o direito do proprietário prejudicado à indenização é inegável sempre que ocorra esvaziamento econômico da propriedade ou se reduza brutalmente o valor do bem tombado.213 Não se detalhará aqui o instituto, uma vez que esse já foi objeto de estudo em outra disciplina. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit.,p. 643. 211 212 Op. cit, p. 643. MEIRELLES, Hely Lopes. “Tombamento e indenização”. Revista de Direito Administrativo, nº 161, p. 1 e ss. 213 FGV DIREITO RIO 105 atividades e atos administrativos A despeito disso, faz-se relevante transcrever o disposto no art. 216 da Constituição Federal, que disciplina a temática do patrimônio cultural do país: Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua conulta a quantos dela necessitem. § 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. § 6º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursosno pagamento de: I – despesas com pessoal e encargos sociais; II – serviço da dívida; III – qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 627 a 666. Caso gerador: O Estado do Rio de Janeiro impetrou mandado de segurança contra ato do prefeito de Niterói, que determinara o tombamento provisório do Conjunto Arquitetônico do Palácio São Domingos, de propriedade do Estado. O Estado reclama a aplicação, ao caso, do princípio constante do art. 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941 (que dispõe sobre desapropriações), sustentando ser incabível o “tombamento inverso”, ou seja, um município não poderia tombar um bem pertencente a Estado da Federação. Além disso, o imóvel já FGV DIREITO RIO 106 atividades e atos administrativos teria sido tombado pelo próprio Estado, o que tornaria o ato do município desnecessário e inócuo. À luz das competências constitucionais sobre a preservação do patrimônio histórico e a diferença entre limitações administrativas e desapropriação, deve ser concedida a segurança pleiteada pelo Estado do Rio de Janeiro? Leitura complementar: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, pp. 130 a 140. MEIRELLES, Hely Lopes. “Tombamento e indenização”. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar/FGV, jul/set 1985, v. 161, pp. 1 a 6. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Tombamento e dever de indenizar”. Revista de direito público, nº 81, p. 65 a 73; REALE, Miguel. “Tombamento de bens culturais”. Revista de direito público, v. 86, pp. 62 a 66; TÁCITO, Caio. “Tombamento. Concessão real de uso”. In Temas de direito público: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, v. 2. FGV DIREITO RIO 107 atividades e atos administrativos Aula 22: Servidões administrativas Objetivo: A finalidade desta aula é discutir o instituto da servidão administrativa, cuja importância se apresenta inegável no contexto maior das formas de intervenção do Estado sobre a propriedade privada. Cumpre mencionar que, com o processo de desestatização experimentado ao longo da década de 90, o instituto da servidão administrativa foi revigorado, discutindo-se, na atualidade, por exemplo, a oportunidade de sua utilização para regular temas complexos de direito administrativo, tais como acesso a redes e compartilhamento de infra-estrutura.214 Introdução: A servidão administrativa é hoje reconhecida como um instituto próprio de direito público, dotado de autonomia, e não mais apenas um instituto de direito civil aplicado com algumas derrogações. A sua previsão legal se encontra no art. 40 do Decreto Lei nº 3365/41. A diferença das servidões administrativas, comparativamente à generalidade das limitações administrativas impostas pelo Estado sobre a propriedade privada, segundo Rafael Bielsa, reside em que, nas servidões, ocorre um desdobramento do direito de propriedade, ao passo que, nas limitações, ocorrem meras restrições, fundadas no poder de polícia do Estado e cuja justificativa reside nos princípios da solidariedade de interesses e no conceito de função social da propriedade.215 No caso das limitações, está-se diante de direitos e obrigações de natureza pessoal e que, a princípio, pelo seu caráter de abstração, generalidade e amplitude, não são indenizáveis. Assim, o elemento a distinguir as servidões das meras limitações administrativas consiste em que as primeiras afetam o atributo da exclusividade da propriedade, uma vez que impõem ao proprietário um desmembramento do seu direito. É nesse sentido que Celso Antônio Bandeira de Mello destaca como característica central das servidões administrativas o dever de suportar ou “pati”, ausente das meras limitações administrativas, que decorrem do poder de polícia da Administração. Assim, segundo o autor, enquanto as limitações conformam o direito de propriedade, nas servidões administrativas, o “bem é colocado sob parcial senhoria da coletividade”, ou seja, “na servidão, o bem é contemplado como já sendo portador de uma utilidade que o Poder Público deseja captar em proveito da coletividade”. Ainda segundo o autor, distinguem-se as servidões administrativas das meras limitações pelo fato de que, nas primeiras, ou o gravame deriva de um ato específico ou a utilidade oferecida por um bem gravado fica em condição de ser singularmente fruível pela coletividade.216 A Professora Maria Sylvia Zanella di Pietro conceitua a servidão administrativa como: direito real, de natureza pública, instituído sobre imóvel de propriedade alheia, com base em lei, por entidade pública, ou por seus delegados, em favor de coisa afetada a fins de utilidade pública.217 Para um estudo sobre as vantagens e desvantagens da utilização do instituto da servidão administrativa para regular questões jurídicas atinentes ao compartilhamento de infra-estrutura, veja-se ARAGÃO, Alexandre Santos de; STRINGHINI, Adriano Cândido; SAMPAIO; Patrícia Regina Pinheiro. Servidão administrativa e compartilhamento de infra-estruturas: regulação e concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 214 215 BIELSA, Rafael. Derecho Administrativo. Buenos Aires: El Ateneo, 1947, tomo III, pp. 405 e 406. Nas exatas palavras do autor: “Nas servidões administrativas o Poder Público coloca determinado bem em uma especial sujeição ao interesse público, o que não ocorre com as limitações administrativas à propriedade privada, próprias do Poder de Polícia, nas quais, pela simples delimitação do âmbito de exercício do direito de propriedade obtém uma genérica e indiscriminada utilidade social; isto é, não se trata de gravame instituído de modo especial sobre certos bens onerados com uma peculiar sujeição ao interesse público. Enquanto através do poder de polícia – nas chamadas limitações administrativas – o dano social é evitado (ou reversamente, o interesse coletivo é obtido) pelo simples ajustamento do exercício da propriedade ao bem comum, nas servidões administrativas o bem particular é colocado sob parcial senhoria da coletividade.” BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre o poder de polícia. In Revista de Direito Público, nº 09, p. 59. 216 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Servidão administrativa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1978, p. 56. 217 FGV DIREITO RIO 108 atividades e atos administrativos De acordo com o conceito acima exposto, as principais características da servidão administrativa traduzem-se em:(i) direito real; (ii) público; (iii) incidente sobre imóvel de terceiros (havendo doutrina que defende poder incidir sobre serviços, conforme abaixo); (iv) imposto em razão de lei; (vi) por entidade pública ou seus delegados; (vii) para que se cumpra uma finalidade de interesse público. Cumpre esclarecer que, contrariamente ao direito civil, na servidão administrativa a coisa dominante não necessita ser um prédio, sendo, em muitas ocasiões, um serviço público.218 Um dos elementos essenciais à caracterização de uma servidão como sendo de natureza administrativa, reside na finalidade para a qual é instituída. De fato, não existe óbice a que a Administração Pública contrate uma servidão de natureza civil. Com efeito, por razões de comodidade, é possível que um ente público pretenda instituir sobre prédio contíguo uma servidão de passagem. Nesse caso, todavia, estar-se-á diante de uma servidão civil, apenas de titularidade de pessoa jurídica de direito público. Para que haja servidão administrativa faz-se necessário que a coisa serviente seja afetada a fins de utilidade pública, conforme se depreende da doutrina de Marcelo Caetano: As servidões administrativas são de utilidade pública. As servidões civis aumentam o valor econômico do prédio dominante. As servidões administrativas tendem, unicamente, a facilitar a produção da utilidade pública dos bens do domínio que, estando fora do comércio privado, não têm valor venal, ou de coisas particulares afetadas a um fim público de grande interesse social e que porventura por virtude dessa afetação ficam com o seu valor econômico diminuído.219 A instituição de uma servidão administrativa é indenizável, dependendo a referida reparação, todavia, da comprovação da ocorrência de dano ao cidadão. Essa característica auxilia na diferenciação entre esse instituto e a desapropriação: nessa, indeniza-se a perda do domínio; naquela, indenizam-se somente os prejuízos sofridos pelas delimitações impostas no exercício de alguns dos atributos inerentes à propriedade220 e, assim mesmo, somente na medida em que forem comprovados, tendo-se em vista que a propriedade permanece de titularidade privada, donde o poder público somente tem de ressarcir os efetivos danos dela decorrentes.221 De fato, para Ruy Cirne Lima, a coisa dominante na servidão administrativa é “o serviço público, ou seja, a organização de pessoas e bens constituída para executá-la”, sendo que “a noção de serviço público não implica necessariamente a da propriedade de um imóvel, no qual a organização assente o seu funcionamento, e em favor do qual a servidão administrativa se constitua”. O professor cita como exemplo a servidão administrativa de apoio de fios condutores de eletricidade, na qual a “res dominans” seria o serviço público de subministração de energia elétrica. LIMA, Ruy Cirne. Das servidões administrativas. In Revista de Direito Público, nº 5, jul/set 1968, p. 26. 218 CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977, tomo II, p. 975. 219 Esse entendimento encontra respaldo, inclusive, em acórdão do Supremo Tribunal Federal anterior à Constituição de 1988, no qual o Tribunal decidiu nos seguintes termos: “Servidão para passagem de linha de transmissão de eletricidade. Devem ser indenizados os prejuízos sofridos pelos proprietários, causados pelo uso público e pelas restrições estabelecidas ao uso da propriedade, não porém o domínio, que continua com os proprietários.” Recurso Extraordinário no. 97.199-MA, j. em 09.11.1962, v.u. 220 Essa concepção acarreta a crítica de Hely Lopes Meirelles quanto à jurisprudência tentar definir aprioristicamente o valor da indenização, como, por exemplo, fixando-a com base em uma porcentagem do valor do imóvel. “A indenização da servidão faz-se em correspondência com o prejuízo causado ao imóvel. Não há fundamento algum para o estabelecimento de um percentual fixo sobre o valor do bem serviente, como querem alguns julgados. A indenização há que corresponder ao efetivo prejuízo causado ao imóvel, segundo sua normal destinação”. Direito administrativo brasileiro. 24a edição. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 564. 221 Caso gerador: A Petróleo Brasileiro S.A. – PETROBRAS, sociedade de economia mista federal, pretende instituir servidão sobre imóvel privado para a passagem de gasoduto. Para esse fim, ingressou com ação perante o Poder Judiciário, requerendo imissão provisória na posse da parte do imóvel por onde deverá passar o duto. Nesse sentido, pergunta-se: 1) A servidão a ser instituída tem natureza jurídica de servidão administrativa? 2) Pode o Juízo deferir a imissão provisória na posse, como solicitado pela PETROBRAS? Em caso positivo, quais os requisitos que devem ser preenchidos pela PETROBRAS para ser-lhe deferida a imissão provisória na posse?222 Ref.: TJRJ, Agravo de instrumento nº 23.604/05. 222 FGV DIREITO RIO 109 atividades e atos administrativos Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 627 a 639. Leitura complementar: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Servidão administrativa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1978; LIMA, Ruy Cirne. “Das servidões administrativas”. Revista de Direito Público, nº 5, jul/set 1968; SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. Breves considerações acerca das servidões administrativas”. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; STRINGHINI, Adriano Cândido; SAMPAIO; Patrícia Regina Pinheiro. Servidão administrativa e compartilhamento de infraestruturas: regulação e concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 2005. FGV DIREITO RIO 110 atividades e atos administrativos Aula 23: Desapropriação Objetivo: Apresentar o instituto da desapropriação e discutir seus principais pontos polêmicos Introdução: A desapropriação constitui a perda da propriedade privada de um bem em favor do Estado, mediante justa indenização, exceto nos casos de expropriação taxativamente previstos em lei e na Constituição. Marçal Justen Filho conceitua o instituto da desapropriação como: Ato estatal unilateral que produz a extinção da propriedade sobre um bem ou direito e a aquisição do domínio sobre a entidade expropriante, mediante indenização justa.223 A desapropriação é sempre um ato estatal, ou seja, somente o Estado tem poder de determinar a perda do domínio de um bem particular, decorrente do seu poder de império e que se justifica pela necessidade de atendimento a relevante interesse coletivo, podendo, ainda, constituir sanção pela violação do dever de cumprimento da função social da propriedade. O requisito da justa indenização diferencia a desapropriação da expropriação ou do confisco, uma vez que nesses últimos não há contraprestação pela perda do bem, pois que conseqüência da prática de ato ilícito. Em regra, o pagamento da indenização deve ser prévio e em dinheiro, exceção feita à desapropriação de propriedade urbana que não cumpre sua função social e da desapropriação para fins de reforma agrária. É nesse sentido que dispõem o art. 182, §4º, III e o art. 184, caput, ambos da Constituição Federal: Art. 182. (...) §4º. É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I – parcelamento ou edificação compulsórios; II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. Curso de direito administrativo, p. 422. 223 FGV DIREITO RIO 111 atividades e atos administrativos A desapropriação pode ser administrativa ou judicial. Pode se iniciar como um procedimento administrativo, porém, caso a Administração e o particular não cheguem a um acordo quanto ao montante indenizatório, será necessário submeter a controvérsia ao Poder Judiciário. Embora seja mais comumente aplicável aos bens imóveis, são passíveis de desapropriação todos os bens suscetíveis de avaliação econômica, inclusive propriedade intelectual e participações societárias.224 Modalidades de desapropriação O art. 5º, XXIV, da Constituição, estabelece as duas modalidades principais de desapropriação, embora existam outras previstas na própria Constituição, como as supracitadas. Dispõe o art. 5º, XXIV Art. 5º ... XXIV.A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública A desapropriação por utilidade pública encontra-se disciplinada no Decreto-Lei nº 3365/1941, a qual elenca tais casos em seu art. 5º: Art. 5o Consideram-se casos de utilidade pública: a) a segurança nacional; b) a defesa do Estado; c) o socorro público em caso de calamidade; d) a salubridade pública; e) a criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de meios de subsistência; f ) o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica; g) a assistência pública, as obras de higiene e decoração, casas de saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais; h) a exploração ou a conservação dos serviços públicos; i) a abertura, conservação e melhoramento de vias ou logradouros públicos; a execução de planos de urbanização; o parcelamento do solo, com ou sem edificação, para sua melhor utilização econômica, higiênica ou estética; a construção ou ampliação de distritos industriais; (Redação dada pela Lei nº 9.785, de 1999) j) o funcionamento dos meios de transporte coletivo; k) a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza; Conforme JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo, p. 428. 224 FGV DIREITO RIO 112 atividades e atos administrativos l) a preservação e a conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens moveis de valor histórico ou artístico; m) a construção de edifícios públicos, monumentos comemorativos e cemitérios; n) a criação de estádios, aeródromos ou campos de pouso para aeronaves; o) a reedição ou divulgação de obra ou invento de natureza científica, artística ou literária; p) os demais casos previstos por leis especiais. A desapropriação deve ser precedida de decreto do presidente, governador ou prefeito declarando o bem como de utilidade pública, devendo-se, ainda, observar quanto ao prazo para a propositura da ação de desapropriação, caso não haja acordo com o particular quanto à indenização, de acordo com o disposto no art. 10 do Decreto-Lei nº 3.365/1941: Art. 10. A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente dentro de 5 (cinco) anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará. Neste caso, somente decorrido 1 um ano poderá ser o mesmo bem objeto de nova declaração. Parágrafo único. Extingue-se em 5 cinco anos o direito de propor ação que vise a indenização por restrições decorrentes de ato do Poder Público. A desapropriação por interesse social A desapropriação por interesse social encontra-se disciplinada pelas Leis nº 4.132/1962, nº 8.629/1993 e Lei Complementar nº 76/1993. Corresponde à desapropriação para fins de reforma agrária do imóvel rural que não cumpre sua função social. Por se tratar de desapropriação-sanção, o pagamento da indenização ocorre a posteriori e em títulos da dívida agrária (exceto no que tange às benfeitorias necessárias e úteis, que devem ser indenizadas em dinheiro, conforme prevê o art. 184, §1º, da Constituição Federal.225 A ação de desapropriação por interesse social deve ser exercida no prazo de dois anos, nos termos do art. 3º da Lei Complementar nº 76/1993. Desapropriação indireta Um dos temas mais relevantes atinentes à desapropriação reside nas desapropriações indiretas, que se apresentam como aquelas situações nas quais o poder público, sem respeitar o devido processo de desapropriação já acima explanado, apossa-se de bem particular, ou impõelhe tantas condicionantes que termina retirando o conteúdo e conseqüente interesse do administrado em permanecer na titularidade do bem. Sobre isso, assevera Marçal Justen Filho: Para Marçal Justen Filho, também a desapropriação prevista no art. 182, §4º, III, da CRFB/88, relativa ao imóvel urbano que deixa de cumprir sua função social, também pode ser considerada uma desapropriação por interesse social. Curso de direito administrativo, p. 425. 225 A desapropriação indireta consiste no apossamento fático pelo Poder Público, sem autorização legal nem judicial, de bens privados. Trata-se, em última análise, de prática inconstitucional, cuja solução haveria de ser a restituição do bem ao particular, acompanhada de indenização por perdas e danos, e a punição draconiana para os responsáveis pela ilicitude.226 Entretanto, na prática, na maior parte das vezes, a jurisprudência termina reconhecendo ter havido desapropriação indireta, mas, ainda à luz do já tão discutido princípio Curso de direito administrativo, p. 444. 226 FGV DIREITO RIO 113 atividades e atos administrativos da supremacia do interesse público, não devolve o bem ao administrado, ao qual é então conferido direito à indenização por perdas e danos. O caso gerador, trazido para discussão, consiste justamente em uma decisão que abordou o tema da desapropriação indireta que, se de um lado, constitui prática da Administração Pública violadora de diversos princípios constitucionais, por outro, deve ser utilizado com reservas, pois nem toda limitação ou restrição à propriedade particular implica em desapropriação indireta, podendo haver, na maioria das vezes, mera limitação ou servidão administrativa. Quais os princípios regedores da atuação da Administração Pública que são violados quando um agente administrativo pratica um ato que corresponde, na prática, a uma desapropriação indireta? Retrocessão Antes de prosseguir no estudo, partindo para a análise do caso gerador a seguir delineado, são necessárias algumas breves palavras em torno da retrocessão, instituto jurídico previsto no art. 519 do Código Civil de 2002, que assim dispõe: Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa. O dispositivo legal antes mencionado versa sobre o direito de preempção ou preferência, titularizado pelo ex-proprietário da coisa. Trata-se, pois, de um direito pessoal, decorrente da ausência de interesse superveniente por parte do Poder Público, que não dá ao bem a destinação referida no decreto expropriatório, nem confere ao mesmo qualquer finalidade pública. Caso o bem desapropriado venha a ser utilizado para fim outro que não aquele declarado no ato expropriatório, ocorrerá o fenômeno da tredestinação, ou seja, desvio de finalidade do ato, ensejando, assim a retrocessão. Há de se ter claro, entretanto, que, em princípio, não se poderá falar em tredestinação caso o bem desapropriado venha a ser utilizado para finalidade pública diversa daquela que baseou a desapropriação. Nesse sentido, veja-se Diogo de Figueiredo Moreira Neto: Tredestinação vem a ser a não aplicação do bem à finalidade para que foi desapropriado. Deve-se ter em conta que a tredestinação não chegará a se caracterizar se o bem for aplicado a outra finalidade pública que não aquela mencionada no ato expropriatório, uma vez que a Constituição só se refere às espécies (necessidade pública, utilidade pública e interesse social, sem descer às subespécies, bastando atender, assim, aos pressupostos amplos da espécie para que se tenha justificado constitucionalmente o ato.227 Portanto, desde que o bem seja destinado a uma finalidade pública, ainda que diversa, não se haverá de falar em tredestinação. Ainda de acordo com o autor, mesmo no caso de desvio de finalidade (tredestinação), se o bem jurídico houver se incorporado à Fazenda Pública, não poderá ser objeto de reivindicação e, portanto, não se operará a retrocessão. Já se o bem houver se incorporado ao pa- MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 385. 227 FGV DIREITO RIO 114 atividades e atos administrativos trimônio de sociedade de economia mista ou empresa pública (pessoas de direito privado), poderá então ser objeto de reivindicação, incidindo o direito de retrocessão, nos termos do art. 519 do Código Civil.228 Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 667 a 746. Caso gerador: Trata-se de ação ajuizada por dono de fazenda em face do Estado de São Paulo, alegando que sua propriedade foi profundamente afetada por decreto estadual que criou área de proteção ambiental, gerando graves limitações no seu direito de uso, fruição e disposição do terreno, afetando inclusive o seu valor no mercado. Alega, assim, que o referido decreto teve por efeito verdadeira desapropriação indireta, e reclama a conseqüente indenização. Com base no material que você leu para se preparar para a aula, discuta os elementos que caracterizam a desapropriação indireta, criação eminentemente jurisprudencial, e quais os princípios constitucionais que embasam o seu reconhecimento. Leitura complementar: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, pp. 139 a 173. 228 Op. cit., loc. cit. FGV DIREITO RIO 115 atividades e atos administrativos Bloco VIII – Serviços públicos Objetivo: A teoria dos serviços públicos mostra-se um dos temas mais fascinantes e complexos na seara do Direito Administrativo. Nas duas últimas aulas que compõem esse curso, o objetivo é introduzir o tema dos serviços públicos, a fim de que esse possa ser aprofundado em Direito Administrativo II, que se iniciará com a discussão sobre o processo de reforma do Estado experimentado ao longo da década de 90, com ênfase no processo de desestatização. FGV DIREITO RIO 116 atividades e atos administrativos Aula 24: Regime jurídico dos serviços públicos Objetivo: Discutir o conceito de serviços públicos Introdução: A prestação de serviços públicos à população constitui uma das principais finalidades da Administração Pública. Conforme relata Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a expressão “serviços públicos” pode ser tomada tanto em concepção ampla como estrita; na primeira, insere-se toda a atividade que o Estado exerce para cumprir suas finalidades, abrangendo, assim, não apenas a atividade administrativa, mas também a legislativa e a judiciária. Já a disciplina jurídica dos serviços públicos administrativos, em sentido estrito, requer que se os diferencie não apenas das atividades legislativa e jurisdicional, mas também da própria atividade de polícia da Administração Pública. Nosso objeto de análise nas aulas que se seguem se restringirá à concepção de serviço público em sentido estrito.227 De acordo com Renato Alessi, os serviços públicos, em sentido estrito, compreendem as atividades da Administração voltadas a buscar uma utilidade para os particulares, tanto de natureza jurídica, como de ordem econômico-social. Dividem-se em serviços prestados uti universi, como o caso da iluminação pública, e uti singuli, como no caso dos transportes públicos.228 Os serviços públicos caracterizam-se por serem estatais e indelegáveis, ou seja, a sua titularidade não pode ser delegada à iniciativa privada, embora a sua execução, em determinadas hipóteses, possa sê-lo, conforme se terá oportunidade de discutir no próximo semestre, ao tratarmos do tema da concessão de serviços públicos. A conceituação dos serviços públicos se apresenta como um dos temas mais controvertidos em Direito Administrativo. De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, existem três correntes distintas para a conceituação dos serviços públicos, que privilegiam três critérios distintos de análise229: • Critério orgânico: serviço público é aquele prestado por órgãos públicos; • Critério formal: serviço público é aquele disciplinado por regime de direito público; e • Critério material: serviço público é aquele que atende direta e essencialmente a interesses da coletividade. No decorrer desta aula teremos a oportunidade de discutir os critérios supracitados, levantando seus pontos positivos e suas limitações. A fim de se preparar para a aula, procure refletir sobre os seguintes conceitos de serviços públicos, apresentados por alguns dos principais doutrinadores de Direito Administrativo brasileiros, procurando visualizar elementos de aproximação e dissociação entre si. O intuito desse exercício é que o entendimento do significado de “serviços públicos” seja construído pela turma em sala de aula, quando também se poderá debater os limites da utilidade da referida controvérsia doutrinária: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2000, p. 95. 227 Instituciones de derecho administrativo, tomo II, p. 364. Como utilidade de natureza jurídica, o autor exemplifica a inscrição de uma hipoteca sobre um imóvel pela autoridade competente; dentre os serviços de natureza econômico-social, incluem-se os transportes públicos e a iluminação pública. 228 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 265 e 266. 229 FGV DIREITO RIO 117 atividades e atos administrativos Celso Antonio Bandeira de Mello: Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacias e restrições especiais -, instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo. José dos Santos Carvalho Filho: Serviço público [é] toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade.230 Maria Sylvia Zanella Di Pietro: Serviço público [é] toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime total ou parcialmente público.231 Diogo de Figueiredo Moreira Neto: Serviço público é a atividade administrativa, assegurada ou assumida pelo Estado, que se dirige à satisfação de interesses coletivos secundários, de fruição individual, e considerados, por lei, como de interesse público.232 Marçal Justen Filho: Serviço público é uma atividade pública administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, destinada a pessoas indeterminadas e executada sob regime de direito público.233 A dificuldade na definição exata das características essenciais à classificação de uma determinada atividade estatal como serviço público teve por conseqüência a chamada “crise do serviço público”, quando se percebeu que pelo menos dois elementos que durante longo tempo fizeram parte essencial do núcleo desse conceito, esvaíram-se com o passar dos anos. Conforme ressalta Agustín Gordillo, “dois elementos desta noção – a da pessoa que presta o serviço e o regime que o regula – entraram em crise há muito tempo”.234 Questionando a necessidade de uma conceituação doutrinária de serviço público, o autor observa: A determinação de aplicar um regime de direito público a certa atividade, estatal ou não, é uma decisão que a doutrina não pode estipular livremente, a partir da afirmação que resolva fazer no sentido de chamá-la “serviço público”; essa determinação vem dada pelo ordenamento jurídico, na medida em que efetivamente submeta ou não, em maior ou menor grau, alguma atividade humana ao direito público. Que alguém a chame “serviço público” antes de existir a regulação legal de direito público, expressa somente uma opinião pessoal de que conviria que essa atividade fora objeto de regulação pelo direito público. Que denomine “serviço público” a uma atividade qualquer, depois que o direito público a regulou, não apenas é intranscendente, como também enseja confusões, pois muitos poderão crer, seguindo a tradição conceitual, que se rege pelo direito público porque “é” um serviço público, CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 267. 230 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 12a ed. São Paulo: Atlas, 98. 231 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 425. 232 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 478. 233 234 GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 5ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, tomo 2, cap. VI, p. 37. FGV DIREITO RIO 118 atividades e atos administrativos esquecendo-se de que é chamado convencionalmente de serviço público porque está regido expressamente pelo direito público. Se o jurista encontra determinada atividade regida pelo direito privado, não pode chamá-la de serviço público sem induzir a equívocos. Tampouco efetua com isso alguma classificação juridicamente relevante ou útil. (...) Somente o regime jurídico positivo pode justificar a denominação (...).235 Tendo em vista as leituras realizadas para a aula, procure refletir sobre a utilidade de uma noção unívoca de serviços públicos face às distintas formas de participação do Estado na Ordem Econômica e as diversas formas e graus de normatização das atividades econômicas pelo Estado. Estaria o serviço público na atualidade adstrito à sua dimensão formal, isto é, de direito positivo? Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 265 a 277. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 478 a 500. Caso gerador: O Ministério Público de Minas Gerais ajuizou ação civil pública exigindo que a Administração Pública de determinado município passasse a efetuar coleta de lixo domiciliar diária. Como se sabe, é dever das autoridades públicas, em suas três esferas (federal, estadual e municipal), promover a saúde pública da população e prestar os serviços públicos de forma contínua. Em primeira instância, o juiz monocrático deu provimento ao pleito do Ministério Público. Inconformado, o município interpôs recurso de apelação, baseando-se na ausência de lei específica que o obrigasse a efetuar referida coleta diária e no poder discricionário da Administração Pública, sustentando que seria competência do prefeito decidir sobre a forma e periodicidade da coleta de lixo domiciliar. O Tribunal deu provimento ao recurso, entendendo que as normas constitucionais invocadas pelo Ministério Público teriam natureza programática, e que o Poder Judiciário não poderia se imiscuir na esfera de competência discricionária da Administração, sob pena de ofensa ao princípio da separação dos poderes. Inconformado, o Ministério Público interpõe recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça. Analisando o caso acima, procure verificar os princípios constitucionais invocados na demanda proposta pelo Ministério Público e no recurso apresentado pelo município. A coleta de lixo domiciliar constitui um serviço público? Justifique. Leitura complementar: DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, capítulo 4 (“serviços públicos”). GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 5ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, tomo 2, cap. VI, pp. 40-41. 235 FGV DIREITO RIO 119 atividades e atos administrativos Aula 25: Prestação dos serviços públicos Objetivo: O objetivo da aula é discutir o conteúdo da prestação de serviço público e os princípios da sua execução Introdução: Em que pese uma tendência hoje observada em se privilegiar a dimensão formal da definição de serviços públicos, o regime de direito público que informa a prestação dos serviços públicos apresenta um conjunto de princípios que, quando presentes, permitem ao intérprete caracterizar a atividade estatal como serviço público. Nesse sentido, ainda que a lei não o defina expressamente como “serviço público”, no caso de se exigir que o mesmo seja prestado à generalidade da população, de forma contínua, regularmente, de forma eficiente e atual, com segurança, cortesia e preocupação com a modicidade da tarifa cobrada como contraprestação, estar-se-á diante de um serviço público.236 Esses princípios encontram fundamento no art. 175, IV, da Constituição Federal, que exige que os serviços públicos sejam prestados de forma “adequada”, a qual é então detalhada na Lei nº 8.987, de 13/02/1995, a Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos, cujo art. 6º, §1º, dispõe §21. Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. O requisito de atualidade é detalhado no §2º desse mesmo artigo, ao dispor: Nesse sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto observa que “o regime dos serviços públicos apresenta características funcionais próprias, que o estremam do regime comum dos serviços privados, sintetizada em oito princípios informativos dos serviços públicos: a generalidade, a continuidade, a regularidade, a eficiência, a atualidade, a segurança, a cortesia e a modicidade, que, em conjunto, atendem ao conceito jurídico indeterminado constitucional de serviço adequado (art. 175, parágrafo único, IV, CF), tal como constante da Lei 8.987, de 15 de fevereiro de 1995 (art. 6º, §1º) e também expresso como direito do consumidor, na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (art. 6º, X).” Curso de direito administrativo, pp. 426 e 427. 236 §2º. A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e a expansão do serviço. Atenta à realidade das atividades, a lei preocupou-se também em determinar hipóteses nas quais, embora seja interrompido o serviço, não resta caracterizada ofensa ao princípio da continuidade: §3º. Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando: I – motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e II – por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade.” O serviço público pode ser remunerado por taxa ou tarifa. Nos termos do art. 145, II, da Constituição Federal, a taxa remunera serviços públicos obrigatórios, impostos ao administrado, específicos e indivisíveis, sendo um exemplo clássico a taxa de prevenção de FGV DIREITO RIO 120 atividades e atos administrativos incêndio. Os serviços públicos facultativos são remunerados por tarifa, que constitui um preço público, podendo o usuário optar por usufruir ou não do serviço que a Administração, de forma direta ou indireta, põe à sua disposição. Conforme visto, a titularidade do serviço público é sempre do Estado; todavia, a sua execução, em certas ocasiões, pode ser delegada a particulares, através dos institutos da concessão e da permissão de serviços públicos. O regime jurídico das concessões e permissões de serviços públicos, assim como os direitos de seus usuários serão temas discutidos no curso de Direito Administrativo II. Leitura obrigatória: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 277 a 298. Caso gerador: Encontra-se em julgamento no Supremo Tribunal Federal a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que objetiva pôr termo à discussão que vem sendo travada nos tribunais, sobre se empresas privadas podem prestar serviço de entrega de correspondência comercial. A controvérsia tem origem no fato de que a Constituição Federal determina, em seu art. 21, X, ser dever da União a prestação do serviço postal. Art. 21. Compete à União: (...) X – manter o serviço postal e o correio aéreo nacional Além disso, a Lei nº 6.538/1978, que dispõe sobre os serviços postais, conferiu-lhe monopólio para o desempenho dos serviços postais, nos seguintes termos: Art. 9º - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais: I - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal; II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada: III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal. §1º - Dependem de prévia e expressa autorização da empresa exploradora do serviço postal; a) venda de selos e outras fórmulas de franqueamento postal; b) fabricação, importação e utilização de máquinas de franquear correspondência, bem como de matrizes para estampagem de selo ou carimbo postal. § 2º - Não se incluem no regime de monopólio: a) transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa jurídica, em negócios de sua economia, por meios próprios, sem intermediação comercial; FGV DIREITO RIO 121 atividades e atos administrativos b) transporte e entrega de carta e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins lucrativos, na forma definida em regulamento. Para Floriano de Azevedo Marques Neto, “não se nega que a atividade postal seja de enorme relevância para a integração do país e para a preservação da identidade nacional. Mas isto remete muito mais à necessidade de existir um serviço postal universal (dever de manutenção do mesmo) do que à contingência de ser ele monopolizado pelo Estado”.237 Adiante, o autor complementa: Igualmente no que toca ao ‘monopólio’ público – que, como vimos, exclui a possibilidade do exercício de uma atividade por outrem que não o Poder Público – no próprio art. 21 vamos encontrar competências determinadas pelo verbo ‘manter’ e que nem de longe podem ser tidas como excludentes do exercício do exercício da atividade por entidades privadas. É o caso da obrigação de manter serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia no âmbito nacional (inciso XV). Ora, é irrefutável que à União corresponde o encargo de sustentar e prover a coletividade nacional de tais serviços. Porém, a ninguém socorreria defender que tal atividade seria ‘monopólio’ da União, vedando às universidades, às organizações não-governamentais ou mesmo às entidades o exercício das atividades de levantamento estatístico, geográfico ou, o que é mais comum, a realização de serviços de pesquisa geológica ou cartográfica de âmbito nacional.”238 Nesse sentido, pergunta-se: 1) A atividade de entrega domiciliar de correspondências constitui serviço público? Em sua análise, considere ambas as dimensões formal e material da definição de serviços públicos. Para esse fim, analise o dispositivo constitucional acima transcrito bem como a Lei nº 6.538/1978, constante do anexo I a este material didático. 2) Sendo serviço público, deve necessariamente ser prestado por meio de monopólio estatal? Por quê? Leitura complementar: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, Capítulo XI (“Serviço público e intervenção no domínio econômico”) MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. “Reestruturação do setor postal brasileiro”. In Revista Trimestral de Direito público, nº 19, p. 149. 237 MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. “Reestruturação do setor postal brasileiro”. In Revista Trimestral de Direito público, nº 19, p. 161 238 FGV DIREITO RIO 122 atividades e atos administrativos Anexo 1 – Legislação complementar Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre loteamento urbano, responsabilidade do loteador concessão de uso e espaço aéreo e dá outras providências. O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o art. 9º, § 2º, do Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966, DECRETA: Art 1º O loteamento urbano rege-se por este decreto-lei. § 1º Considera-se loteamento urbano a subdivisão de área em lotes destinados à edificação de qualquer natureza que não se enquadre no disposto no § 2º deste artigo. § 2º Considera-se desmembramento a subdivisão de área urbana em lotes para edificação na qual seja aproveitado o sistema viário oficial da cidade ou vila sem que se abram novas vias ou logradouros públicos e sem que se prolonguem ou se modifiquem os existentes. § 3º Considera-se zona urbana, para os fins deste decreto-lei, a da edificação contínua das povoações, as partes adjacentes e as áreas que, a critério dos Municípios, possivelmente venham a ser ocupadas por edificações contínuas dentro dos seguintes 10 (dez) anos. Art 2º Obedecidas as normas gerais de diretrizes, apresentação de projeto, especificações técnicas e dimensionais e aprovação a serem baixadas pelo Banco Nacional de Habitação dentro do prazo de 90 (noventa) dias, os Municípios poderão, quanto aos loteamentos: I - obrigar a sua subordinação às necessidades locais, inclusive quanto à destinação e utilização das áreas, de modo a permitir o desenvolvimento local adequado; II - recusar a sua aprovação ainda que seja apenas para evitar excessivo número de lotes com o conseqüente aumento de investimento subtilizado em obras de infra-estrutura e custeio de serviços. Art 3º Aplica-se aos loteamentos a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o loteador ao incorporador, os compradores de lote aos condôminos e as obras de infra-estrutura à construção da edificação. § 1º O Poder Executivo, dentro de 180 dias regulamentará este decreto-lei, especialmente quanto à aplicação da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, aos loteamentos, fazendo inclusive as necessárias adaptações. § 2º O loteamento poderá ser dividido em etapas discriminadas, a critério do loteador, cada uma das quais constituirá um condomínio que poderá ser dissolvido quando da aceitação do loteamento pela Prefeitura. Art 4º Desde a data da inscrição do loteamento passam a integrar o domínio público de Município as vias e praças e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo. Parágrafo único. O proprietário ou loteador poderá requerer ao Juiz competente a reintegração em seu domínio das partes mencionados no corpo deste artigo quando não se efetuarem vendas de lotes. Art 5º Nas desapropriações, não se indenizarão as benfeitorias ou construções realizadas em lotes ou loteamentos irregulares, nem se considerarão como terrenos loteados ou loteáveis, para fins de indenização, as glebas não inscritas ou irregularmente inscritas como loteamentos urbanos ou para fins urbanos. Art 6º O loteador ainda que já tenha vendido todos os lotes, ou os vizinhos são partes legítimas para promover ação destinada a impedir construção em desacordo com as restrições urbanísticas do loteamento ou contrárias a quaisquer outras normas de edificação ou de urbanização referentes aos lotes. FGV DIREITO RIO 123 atividades e atos administrativos Art 7º É instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social. § 1º A concessão de uso poderá ser contratada, por instrumento público ou particular, ou por simples termo administrativo, e será inscrita e cancelada em livro especial. § 2º Desde a inscrição da concessão de uso, o concessionário fruirá plenamente do terreno para os fins estabelecidos no contrato e responderá por todos os encargos civis, administrativos e tributários que venham a incidir sobre o imóvel e suas rendas. § 3º Resolve-se a concessão antes de seu termo, desde que o concessionário dê ao imóvel destinação diversa da estabelecida no contrato ou termo, ou descumpra cláusula resolutória do ajuste, perdendo, neste caso, as benfeitorias de qualquer natureza. § 4º A concessão de uso, salvo disposição contratual em contrário, transfere-se por ato inter vivos, ou por sucessão legítima ou testamentária, como os demais direitos reais sobre coisas alheias, registrando-se a transferência. Art 8º É permitida a concessão de uso do espaço aéreo sobre a superfície de terrenos públicos ou particulares, tomada em projeção vertical, nos termos e para os fins do artigo anterior e na forma que for regulamentada. Art 9º Este decreto-lei não se aplica aos loteamentos que na data da publicação deste decreto-lei já estiverem protocolados ou aprovados nas prefeituras municipais para os quais continua prevalecendo a legislação em vigor até essa data. Parágrafo único. As alterações de loteamentos enquadrados no “ caput “ deste artigo estão, porém, sujeitas ao disposto neste decreto-lei. Art 10. Este decreto-lei entrará em vigor na data de sua publicação, mantidos o Decreto-lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937 e o Decreto número 3.079, de 15 de setembro de 1938, no que couber e não for revogado por dispositivo expresso deste decreto-lei, da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 e dos atos normativos mencionados no art. 2º deste decreto-lei. Brasília, 28 de fevereiro de 1967; 146º da Independência e 79º da República. H. CASTELLO BRANCO João Gonçalves de Souza Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 28.2.1967 Fonte: www.planalto.gov.br, acesso em 11.06.2006 FGV DIREITO RIO 124 atividades e atos administrativos LEI Nº 6.538, DE 22 DE JUNHO DE 1978. Dispõe sobre os Serviços Postais. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: DISPOSIÇÃO PRELIMINAR Art. 1º - Esta Lei regula os direitos e obrigações concernentes ao serviço postal e ao serviço de telegrama em todo o território do País, incluídos as águas territoriais e o espaço aéreo, assim como nos lugares em que princípios e convenções internacionais lhes reconheçam extraterritorialidade. Parágrafo único - O serviço postal e o serviço de telegrama internacionais são regidos também pelas convenções e acordos internacionais ratificados ou aprovados pelo Brasil. TÍTULO I DAS DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 2º - O serviço postal e o serviço de telegrama são explorados pela União, através de empresa pública vinculada ao Ministério das Comunicações. § 1º - Compreende-se no objeto da empresa exploradora dos serviços: a) planejar, implantar e explorar o serviço postal e o serviço de telegrama; b) explorar atividades correlatas; c) promover a formação e o treinamento de pessoal sério ao desempenho de suas atribuições; d) exercer outras atividades afins, autorizadas pelo Ministério das Comunicações. § 2º - A empresa exploradora dos serviços, mediante autorização do Poder Executivo, pode constituir subsidiárias para a prestação de serviços compreendidos no seu objeto. § 3º - A empresa exploradora dos serviços, atendendo a conveniências técnicas e econômicas, e sem prejuízo de suas atribuições e responsabilidades, pode celebrar contratos e convênios objetivando assegurar a prestação dos serviços, mediante autorização do Ministério das Comunicações. § 4º - Os recursos da empresa exploradora dos serviços são constituídos: a) da receita proveniente da prestação dos serviços; b) da venda de bens compreendidos no seu objeto; c) dos rendimentos decorrentes da participação societária em outras empresas; d) do produto de operações de créditos; e) de dotações orçamentárias; f ) de valores provenientes de outras fontes. § 5º - A empresa exploradora dos serviços tem sede no Distrito Federal. § 6º - A empresa exploradora dos serviços pode promover desapropriações de bens ou direitos, mediante ato declamatório de sua utilidade pública, pela autoridade federal. § 7º - O Poder Executivo regulamentará a exploração de outros serviços compreendidos no objeto da empresa exploradora que vierem a ser criados. Art. 3º - A empresa exploradora é obrigada a assegurar a continuidade dos serviços, observados os índices de confiabilidade, qualidade, eficiência e outros requisitos fixados pelo Ministério das Comunicações . Art. 4º - É reconhecido a todos o direito de haver a prestação do serviço postal e do serviço de telegrama, observadas as disposições legais e regulamentares. FGV DIREITO RIO 125 atividades e atos administrativos Art. 5º - O sigilo da correspondência é inviolável. Parágrafo único - A ninguém é permitido intervir no serviço postal ou no serviço de telegrama, salvo nos casos e na forma previstos em lei. Art. 6º - As pessoas encarregadas do serviço postal ou do serviço de telegrama são obrigadas a manter segredo profissional sobre a existência de correspondência e do conteúdo de mensagem de que tenham conhecimento em razão de suas funções. Parágrafo único - Não se considera violação do segredo profissional, indispensável à manutenção do sigilo de correspondência a divulgação do nome do destinatário de objeto postal ou de telegrama que não tenha podido ser entregue por erro ou insuficiência de endereço. TÍTULO II DO SERVIÇO POSTAL Art. 7º - Constitui serviço postal o recebimento, expedição, transporte e entrega de objetos de correspondência, valores e encomendas, conforme definido em regulamento. § 1º - São objetos de correspondência: a) carta; b) cartão-postal; c) impresso; d) cecograma; e) pequena - encomenda. § 2º - Constitui serviço postal relativo a valores: a) remessa de dinheiro através de carta com valor declarado; b) remessa de ordem de pagamento por meio de vale-postal; c) recebimento de tributos, prestações, contribuições e obrigações pagáveis à vista, por via postal. § 3º - Constitui serviço postal relativo a encomendas a remessa e entrega de objetos, com ou sem valor mercantil, por via postal. Art. 8º - São atividades correlatas ao serviço postal: I - venda de selos, peças filatélicas, cupões resposta internacionais, impressos e papéis para correspondência; II - venda de publicações divulgando regulamentos, normas, tarifas, listas de código de endereçamento e outros assuntos referentes ao serviço postal. III - exploração de publicidade comercial em objetos correspondência. Parágrafo único - A inserção de propaganda e a comercialização de publicidade nos formulários de uso no serviço postal, bem como nas listas de código de endereçamento postal, e privativa da empresa exploradora do serviço postal. Art. 9º - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais: I - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal; II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada: III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal. § 1º - Dependem de prévia e expressa autorização da empresa exploradora do serviço postal; a) venda de selos e outras fórmulas de franqueamento postal; b) fabricação, importação e utilização de máquinas de franquear correspondência, bem como de matrizes para estampagem de selo ou carimbo postal. FGV DIREITO RIO 126 atividades e atos administrativos § 2º - Não se incluem no regime de monopólio: a) transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa jurídica, em negócios de sua economia, por meios próprios, sem intermediação comercial; b) transporte e entrega de carta e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins lucrativos, na forma definida em regulamento. Art. 10º - Não constitui violação de sigilo da correspondência postal a abertura de carta: I - endereçada a homônimo, no mesmo endereço; II - que apresente indícios de conter objeto sujeito a pagamento de tributos; III - que apresente indícios de conter valor não declarado, objeto ou substância de expedição, uso ou entrega proibidos; IV - que deva ser inutilizada, na forma prevista em regulamento, em virtude de impossibilidade de sua entrega e restituição. Parágrafo único - Nos casos dos incisos II e III a abertura será feita obrigatoriamente na presença do remetente ou do destinatário. Art. 11º - Os objetos postais pertencem ao remetente até a sua entrega a quem de direito. § 1° - Quando a entrega não tenha sido possível em virtude de erro ou insuficiência de endereço, o objeto permanecerá à disposição do destinatário, na forma definida em regulamento. § 2º - Quando nem a entrega, nem a restituição tenham sido possíveis, o objeto será inutilizado, conforme disposto em regulamento. § 3º - Os impressos sem registro, cuja entrega não tenha sido possível, serão inutilizados, na forma prevista em regulamento. Art. 12º - O regulamento disporá sobre as condições de aceitação, encaminhamento e entrega dos objetos postais, compreendendo, entre outras, código de endereçamento, formato, limites de peso, valor e dimensões, acondicionamento, franqueamento e registro. § lº - Todo objeto postal deve conter, em caracteres latinos e algarismos arábicos e no sentido de sua maior dimensão, o nome do destinatário e seu endereço completo. § 2º - Sem prejuízo do disposto neste artigo, podem ser usados caracteres e algarismos do idioma do país de destino. Art. 13º - Não é aceito nem entregue: I - objeto com peso, dimensões, volume, formato, endereçamento, franqueamento ou acondicionamento em desacordo com as normas regulamentares ou com as previstas em convenções e acordos internacionais aprovados pelo Brasil; II - substância explosiva, deteriorável, fétida, corrosiva ou facilmente inflamável, cujo transporte constitua perigo ou possa danificar outro objeto; III - cocaína, ópio, morfina, demais estupefacientes e outras substâncias de uso proibido; IV - objeto com endereço, dizeres ou desenho injuriosos, Ameaçadores, ofensivos a moral ou ainda contrários a ordem pública ou aos interesses do País; V - animal vivo, exceto os admitidos em convenção internacional ratificada pelo Brasil; VI - planta viva; VII - animal morto; VIII - objeto cujas indicações de endereçamento não permitam assegurar a correta entrega ao destinatário; IX - objeto cuja circulação no País, exportação ou importação, estejam proibidos por ato de autoridade competente. § 1º - A infringência a qualquer dos dispositivos de que trata este artigo acarretará a apreensão ou retenção do objeto, conforme disposto em regulamento, sem prejuízo das sanções penais cabíveis. FGV DIREITO RIO 127 atividades e atos administrativos § 2º - O remetente de qualquer objeto postal é responsável, perante a empresa exploradora do serviço postal, pela danificação produzida em outro objeto em virtude de inobservância de dispositivos legais e regulamentares, desde que não tenha havido erro ou negligência da empresa exploradora do serviço postal ou do transporte. Art. 14º - O objeto postal, além de outras distinções que venham a ser estabelecidas em regulamento, se classifica: I - quanto ao âmbito: a) nacional - postado no território brasileiro e a ele destinado. b) internacional - quando em seu curso intervier unidade postal fora da jurisdição nacional. II - quanto à postagem: a) simples - quando postado em condições ordinárias, b) qualificado - quando sujeito a condição especial de tratamento, quer por solicitação do remetente, quer por exigência de dispositivo regulamentar. III - quanto ao local de entrega: a) de entrega interna - quando deva ser procurado e entregue em unidade de atendimento da empresa exploradora. b) de entrega externa - quando deva ser entregue no endereço indicado pelo remetente. Art. 15º - A empresa exploradora do serviço postal é obrigada a manter, em suas unidades de atendimento, à disposição dos usuários, a lista dos códigos de endereçamento postal. § 1º - A edição de listas dos códigos de endereçamento postal é da competência exclusiva da empresa exploradora do serviço postal, que pode contratá-la com terceiros, bem como autorizar sua reprodução total ou parcial. § 2º - A edição ou reprodução total ou parcial da lista de endereçamento postal fora das condições regulamentares, sem expressa autorização da empresa exploradora do serviço postal, sujeita quem a efetue à busca e apreensão, dos exemplares e documentos a eles pertinentes, além da indenização correspondente ao valor da publicidade neles inserta. § 3º - É facultada a edição de lista de endereçamento postal sem finalidade comercial e de distribuição gratuita, conforme disposto em regulamento. Art. 16º - Compete à empresa exploradora do serviço postal definir o tema ou motivo dos selos postais, e programar sua emissão, conservadas as disposições do regulamento. Art. 17º - A empresa exploradora ao serviço postal responde, na forma prevista em regulamento, pela perda ou danificação de objeto postal, devidamente registrado, salvo nos casos de: I - força maior; II - confisco ou destruição por autoridade competente; III - não reclamação nos prazos previstos em regulamento. Art. 18º - A condução de malas postais é obrigatória em veículos, embarcações e aeronaves em todas as empresas de transporte, ressalvados os motivos de segurança, sempre que solicitada por autoridade competente, mediante justa remuneração, na forma da lei. § 1º - O transporte de mala postal tem prioridade logo após o passageiro e respectiva bagagem. § 2º - No transporte de malas postais e malotes de correspondência agrupada, não incide o imposto sobre Transporte Rodoviário. Art. 19º - Para embarque e desembarque de malas postais, coleta e entrega de objetos postais, é permitido o estacionamento de viatura próximo às unidades postais e caixas de coleta, bem como nas plataformas de embarque e desembarque e terminais de carga, nas condições estabelecidas em regulamento. Art. 20º - Nos edifícios residenciais, com mais de um pavimento e que não disponham de portaria, é obrigatória a instalação de caixas individuais para depósito de objetos de correspondência. FGV DIREITO RIO 128 atividades e atos administrativos Art. 21º - Nos estabelecimentos bancários, hospitalares e de ensino, empresas industriais e comerciais, escritórios, repartições públicas, associações e outros edifícios não residenciais de ocupação coletivo, deve ser instalado, obrigatoriamente, no recinto de entrada, em pavimento térreo, local destinado ao recebimento de objetos de correspondência. Art. 22º - Os responsáveis pelos edifícios, sejam os administradores, os gerentes, os porteiros, zeladores ou empregados são credenciados a receber objetos de correspondência endereçados a qualquer de suas unidades, respondendo pelo seu extravio ou violação. Art. 23º - As autoridades competentes farão constar dos códigos de obras disposições referentes às condições previstas nos artigos 20 e 21 para entrega de objetos de correspondência, como condição de “habite-se”. Art. 24º - Na construção de terminais rodoviários, ferroviários, marítimos e aéreos, a empresa exploradora do serviço postal deve ser consultada quanto à reserva de área para embarque, desembarque e triagem de malas postais. TÍTULO III DO SERVIÇO DE TELEGRAMA Art. 25º - Constitui serviço de telegrama o recebimento, transmissão e entrega de mensagens escritas, conforme definido em regulamento. Art. 26º - São atividades correlatas ao serviço de telegrama: I - venda de publicações divulgando regulamentos, normas, tarifas, e outros assuntos referentes ao serviço de telegrama; II - exploração de publicidade comercial em formulários de telegrama. Parágrafo único - A inserção de propaganda e a comercialização de publicidade nos formulários de uso no serviço de telegrama é privativa da empresa exploradora do serviço de telegrama. Art. 27º - O serviço público de telegrama é explorado pela União em regime de monopólio. Art. 28º - Não constitui violação do sigilo de correspondência o conhecimento do texto de telegrama endereçado a homônimo, no mesmo endereço. Art. 29º - Não é aceito nem entregue telegrama que: I - seja anônimo; II - contenha dizeres injuriosos, ameaçadores, ofensivos à moral, ou ainda, contrários à ordem pública e aos interesses do País; III - possa contribuir para a perpetração de crime ou contravenção ou embaraçar ação da justiça ou da administração; IV - contenha notícia alarmante, reconhecidamente falsa; V - Esteja em desacordo com disposições legais ou convenções e acordos internacionais ratificados ou aprovados pelo Brasil. § 1º - Não se considera anônimo o telegrama transmitido sem assinatura, por permissão regulamentar. § 2º - Podem ser exigidas identificação e assinatura do expedidor do telegrama, não se responsabilizando, em qualquer caso, a empresa expedidora pelo conteúdo da mensagem. § 3º - O telegrama que, por infração de dispositivo legal, não deva ser transmitido ou entregue será considerado apreendido. § 4º - O telegrama que, por indício de infração de dispositivo legal, ou por mandado judicial, deva ser entregue depois de satisfeitos formalidades exigíveis será considerado retido. § 5º - Quando o telegrama não puder ser entregue, o ato será comunicado ao expedidor. Art. 30º - O telegrama, além de outras categorias que venham a ser estabelecidas em regulamento, se classifica: FGV DIREITO RIO 129 atividades e atos administrativos I - Quanto ao âmbito: a) nacional - expedido no território brasileiro e a ele destinado; b) internacional - quando, em seu curso, intervier estação fora da jurisdição nacional II - Quanto a linguagem: a) corrente - texto compreensível pelo sentido que apresenta; b) cifrada - texto redigido em linguagem codificada, com chave previamente registrada. III - Quanto à apresentação: a) simples - que deva ter curso e entrega sem condições especiais de tratamento; b) urgente - que deva ter prioridade de transmissão e entrega, quer a pedido do expedidor, quer por exigência de dispositivo regulamentar. IV - Quanto à entrega: a) de entrega interna - quando deve ser procurado e entregue em unidade de atendimento da empresa exploradora do serviço; b) de entrega externa - quando deva ser entregue no endereço indicado pelo expedidor. § 1º - Na redação de telegrama em linguagem corrente podem ser utilizados, além do português, os idiomas especificados quando deva ser procurado e entregue em unidade de atendimento da empresa exploradora do serviço; § 2º - Para expedição de telegrama em linguagem cifrada, salvo nos casos previstos em regulamento, e obrigatória a indicação do código, previamente registrado, utilizado na sua redação, podendo seu trafego ser suspenso pelo Ministro das Comunicações, quando o interesse público o exigir. § 3º - A empresa exploradora do serviço de telegrama responde pelos atrasos ocorridos na transmissão ou entrega de telegrama, nas condições definidas em regulamento. Art. 31º - Para a constituição da rede de transmissão de telegrama, é assegurada à empresa exploradora do serviço de telegrama, a utilização dos meios de telecomunicações das empresas exploradoras de serviços públicos de telecomunicações, bem como suas conexões internacionais, mediante justa remuneração. TÍTULO IV DA REMUNERAÇÃO DOS SERVIÇOS Art. 32º - O serviço postal e o serviço de telegrama são remunerados através de tarifas, de preços, além de prêmios “ad valorem” com relação ao primeiro, aprovados pelo Ministério das Comunicações. Art. 33º - Na fixação das tarifas, preços e prêmios “ad valorem”, são levados em consideração natureza, âmbito, tratamento e demais condições de prestação dos serviços. § 1º - As tarifas e os preços devem proporcionar: a) cobertura dos custos operacionais; b) expansão e melhoramento dos serviços. § 2º - Os prêmios “ad valorem” são fixados em função do valor declarado nos objetos postais. Art. 34º - É vedada a concessão de isenção ou redução subjetiva das tarifas, preços e prêmios “ad valorem”, ressalvados os casos de calamidade pública e os previstos nos atos internacionais devidamente ratificados, na forma do disposto em regulamento . Art. 35º - A empresa exploradora do serviço postal aplicará a pena de multa, em valor não superior a 2 (dois) valores padrão de referência, na forma prevista em regulamento, a quem omitir a declaração de valor de objeto postal sujeito a esta exigência. FGV DIREITO RIO 130 atividades e atos administrativos TÍTULO V DOS CRIMES CONTRA O SERVIÇO POSTAL E O SERVIÇO DE TELEGRAMA FALSIFICAÇÃO DE SELO, FÓRMULA DE FRANQUEAMENTO OU VALEPOSTAL. Art. 36º - Falsificar, fabricando ou adulterando, selo, outra fórmula de franqueamento ou vale-postal: Pena: reclusão, até oito anos, e pagamento de cinco a quinze dias-multa. USO DE SELO, FÓRMULA DE FRANQUEAMENTO OU VALE-POSTAL FALSIFICADOS. Parágrafo único - Incorre nas mesmas penas quem importa ou exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda, fornece, utiliza ou restitui à circulação, selo, outra fórmula de franqueamento ou vale-postal falsificados. SUPRESSÃO DE SINAIS DE UTILIZAÇÃO Art. 37º - Suprimir, em selo, outra fórmula de franqueamento ou vale- postal, quando legítimos, com o fim de torná-los novamente utilizáveis; carimbo ou sinal indicativo de sua utilização: Pena: reclusão, até quatro anos, e pagamento de cinco a quinze dias-multa. FORMA ASSIMILADA § 1º - Incorre nas mesmas penas quem usa, vende, fornece ou guarda, depois de alterado, selo, outra fórmula de franqueamento ou vale-postal. § 2º - Quem usa ou restitui a circulação, embora recebido de boa fé, selo, outra fórmula de franqueamento ou vale-postal, depois de conhecer a falsidade ou alteração, incorre na pena de detenção, de três meses a um ano, ou pagamento de três a dez dias-multa. PETRECHOS DE FALSIFICAÇAO DE SELO, FÓRMULA DE FRANQUEAMENTO OU VALEPOSTAL Art. 38º - Fabricar, adquirir, fornecer, ainda que gratuitamente, possuir, guardar, ou colocar em circulação objeto especialmente destinado à falsificação de selo, outra fórmula de franqueamento ou vale-postal. Pena: reclusão, até três anos, e pagamento de cinco a quinze dias-multa. REPRODUÇÃO E ADULTERAÇÃO DE PEÇA FILATÉLICA Art. 39º - Reproduzir ou alterar selo ou peça filatélica de valor para coleção, salvo quando a reprodução ou a alteração estiver visivelmente anotada na face ou no verso do selo ou peça: Pena: detenção, até dois anos, e pagamento de três a dez dias-multa. FORMA ASSIMILADA Parágrafo único - Incorre nas mesmas penas, quem, para fins de comércio, faz uso de selo ou peça filatélica de valor para coleção, ilegalmente reproduzidos ou alterados. VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA Art. 40º - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada dirigida a outrem: Pena: detenção, até seis meses, ou pagamento não excedente a vinte dias-multa. SONEGAÇÃO OU DESTRUIÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA. § 1º - Incorre nas mesmas penas quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada, para sonegá-la ou destruí-la, no todo ou em parte. FGV DIREITO RIO 131 atividades e atos administrativos AUMENTO DE PENA § 2º - As penas aumentam-se da metade se há dano para outrem. QUEBRA DO SEGREDO PROFISSIONAL Art. 41º - Violar segredo profissional, indispensável à manutenção do sigilo da correspondência mediante: I - divulgação de nomes de pessoas que mantenham, entre si, correspondência; II - divulgação, no todo ou em parte, de assunto ou texto de correspondência de que, em razão ao oficio, se tenha conhecimento; III - revelação do nome de assinante de caixa postal ou o número desta, quando houver pedido em contrario do usuário; IV - revelação do modo pelo qual ou do local especial em que qualquer pessoa recebe correspondência ; Pena: detenção de três meses a um ano, ou pagamento não excedente a cinqüenta dias-multa. VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL DA UNIÃO Art. 42º - Coletar, transportar, transmitir ou distribuir, sem observância das condições legais, objetos de qualquer natureza sujeitos ao monopólio da União, ainda que pagas as tarifas postais ou de telegramas. Pena: detenção, até dois meses, ou pagamento não excedente a dez dias-multa. FORMA ASSIMILADA Parágrafo único - Incorre nas mesmas penas quem promova ou facilite o contra bando postal ou pratique qualquer ato que importe em violação do monopólio exercido pela União sobre os serviços postais e de telegramas. AGRAVAÇÃO DE PENA Art. 43º - Os crimes contra o serviço postal, ou serviço de telegrama quando praticados por pessoa prevalecendo-se do cargo, ou em abuso da função, terão pena agravada. PESSOA JURÍDICA Art. 44º - Sempre que ficar caracterizada a vinculação de pessoa jurídica em crimes contra o serviço postal ou serviço de telegrama, a responsabilidade penal incidirá também sobre o dirigente da empresa que, de qualquer modo tenha contribuído para a pratica do crime. REPRESENTAÇÃO Art. 45º - A autoridade administrativa, a partir da data em que tiver ciência da prática de crime relacionado com o serviço postal ou com o serviço de telegrama, é obrigada a representar, no prazo de 10 (dez) dias, ao Ministério Público Federal contra o autor ou autores do ilícito penal, sob pena de responsabilidade. PROVAS DOCUMENTAIS E PERICIAIS Art. 46º - O Ministério das Comunicações colaborará com a entidade policial, fornecendo provas que forem colhidas em inquéritos ou processos administrativos e, quando possível, indicando servidor para efetuar perícias e acompanhar os agentes policiais em suas diligências. TÍTULO VI DAS DEFINIÇÕES Art. 47º - Para os efeitos desta Lei, são adotadas as seguintes definições: FGV DIREITO RIO 132 atividades e atos administrativos CARTA - objeto de correspondência, com ou sem envoltório, sob a forma de comunicação escrita, de natureza administrativa, social, comercial, ou qualquer outra, que contenha informação de interesse específico do destinatário. CARTÃO-POSTAL - objeto de correspondência, de material consistente, sem envoltório, contendo mensagem e endereço. CECOGRAMA - objeto de correspondência impresso em relevo, para uso dos cegos. Considera-se também cecograma o material impresso para uso dos cegos. CÓDIGO DE ENDEREÇAMENTO POSTAL - conjunto de números, ou letras e números, gerados segundo determinada lógica, que identifiquem um local. CORRESPONDÊNCIA - toda comunicação de pessoa a pessoa, por meio de carta, através da via postal, ou por telegrama. CORRESPONDÊNCIA AGRUPADA - reunião, em volume, de objetos da mesma ou de diversas naturezas, quando, pelo menos um deles, for sujeito ao monopólio postal, remetidos a pessoas jurídicas de direito público ou privado e/ou suas agências, filiais ou representantes. CUPÃO-RESPOSTA INTERNACIONAL - título ou documento de valor postal permutável em todo país membro da União Postal Universal por um ou mais selos postais, destinados a permitir ao expedidor pagar para seu correspondente no estrangeiro o franqueamento de uma carta para resposta. ENCOMENDA - objeto com ou sem valor mercantil, para encaminhamento por via postal. ESTAÇÃO - um ou vários transmissores ou receptores, ou um conjunto de transmissores e receptores, incluindo os equipamentos acessórios necessários, para assegurar um serviço de telecomunicação em determinado local. FÓRMULA DE FRANQUEAMENTO - representação material de pagamento de prestação de um serviço postal. FRANQUEAMENTO POSTAL - pagamento de tarifa e, quando for o caso, do prêmio, relativos a objeto postal. diz-se também da representação da tarifa. IMPRESSO - reprodução obtida sobre material de uso corrente na imprensa, editado em vários exemplares idênticos. OBJETO POSTAL - qualquer objeto de correspondência, valor ou encomenda encaminhado por via postal. PEQUENA ENCOMENDA - objeto de correspondência, com ou sem valor mercantil, com peso limitado, remetido sem fins comerciais. PREÇO - remuneração das atividades conotadas ao serviço postal ou ao serviço de telegrama. PRÊMIO - importância fixada percentualmente sobre o valor declarado dos objetos postais, a ser paga pelos usuários de determinados serviços para cobertura de riscos. REGISTRO - forma de postagem qualificada, na qual o objeto é confiado ao serviço postal contra emissão de certificado. SELO - estampilha postal, adesiva ou fixa, bem com a estampa produzida por meio de máquina de franquear correspondência, destinadas a comprovar o pagamento da prestação de um serviço postal. TARIFA - valor, fixado em base unitária, pelo qual se determina a importância a ser paga pelo usuário do serviço postal ou do serviço de telegramas. TELEGRAMA - mensagem transmitida por sinalização elétrica ou radioelétrica, ou qualquer outra forma equivalente, a ser convertida em comunicação escrita, para entrega ao destinatário. VALE-POSTAL - título emitido por uma unidade postal à vista de um depósito de quantia para pagamento na mesma ou em outra unidade postal. Parágrafo único - São adotadas, no que couber, para os efeitos desta Lei, as definições estabelecidas em convenções e acordos internacionais. FGV DIREITO RIO 133 atividades e atos administrativos DISPOSIÇÕES FINAIS Art. 48º - O Poder Executivo baixará os decretos regulamentares decorrentes desta Lei em prazo não superior a 1 (um) ano, a contar da data de sua publicação, permanecendo em vigor as disposições constantes dos atuais e que não tenham sido, explícita ou implicitamente, revogados ou derrogados. Art. 49º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Brasília, 22 de junho de 1978; 157º da Independência e 90º da República. Ernesto Geisel Armando Falcão Euclides Quandt de Oliveira Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 23.6.1978 FGV DIREITO RIO 134 atividades e atos administrativos Medida Provisória no 2.220, de 4 de setembro de 2001. Dispõe sobre a concessão de uso especial de que trata o § 1o do art. 183 da Constituição, cria o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano - CNDU e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 62 da Constituição, adota a seguinte Medida Provisória, com força de lei: CAPÍTULO I DA CONCESSÃO DE USO ESPECIAL Art. 1o Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. § 1o A concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma gratuita ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. § 2o O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo concessionário mais de uma vez. § 3o Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, na posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão. Art. 2o Nos imóveis de que trata o art. 1o, com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, que, até 30 de junho de 2001, estavam ocupados por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por possuidor, a concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma coletiva, desde que os possuidores não sejam proprietários ou concessionários, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. § 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas. § 2o Na concessão de uso especial de que trata este artigo, será atribuída igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os ocupantes, estabelecendo frações ideais diferenciadas. § 3o A fração ideal atribuída a cada possuidor não poderá ser superior a duzentos e cinqüenta metros quadrados. Art. 3o Será garantida a opção de exercer os direitos de que tratam os arts. 1o e 2o também aos ocupantes, regularmente inscritos, de imóveis públicos, com até duzentos e cinqüenta metros quadrados, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que estejam situados em área urbana, na forma do regulamento. Art. 4o No caso de a ocupação acarretar risco à vida ou à saúde dos ocupantes, o Poder Público garantirá ao possuidor o exercício do direito de que tratam os arts. 1o e 2o em outro local. Art. 5o É facultado ao Poder Público assegurar o exercício do direito de que tratam os arts. 1o e 2o em outro local na hipótese de ocupação de imóvel: I - de uso comum do povo; II - destinado a projeto de urbanização; III - de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais; IV- reservado à construção de represas e obras congêneres; ou V - situado em via de comunicação. FGV DIREITO RIO 135 atividades e atos administrativos Art. 6o O título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela via administrativa perante o órgão competente da Administração Pública ou, em caso de recusa ou omissão deste, pela via judicial. § 1o A Administração Pública terá o prazo máximo de doze meses para decidir o pedido, contado da data de seu protocolo. § 2o Na hipótese de bem imóvel da União ou dos Estados, o interessado deverá instruir o requerimento de concessão de uso especial para fins de moradia com certidão expedida pelo Poder Público municipal, que ateste a localização do imóvel em área urbana e a sua destinação para moradia do ocupante ou de sua família. § 3o Em caso de ação judicial, a concessão de uso especial para fins de moradia será declarada pelo juiz, mediante sentença. § 4o O título conferido por via administrativa ou por sentença judicial servirá para efeito de registro no cartório de registro de imóveis. Art. 7o O direito de concessão de uso especial para fins de moradia é transferível por ato inter vivos ou causa mortis. Art. 8o O direito à concessão de uso especial para fins de moradia extingue-se no caso de: I - o concessionário dar ao imóvel destinação diversa da moradia para si ou para sua família; ou II - o concessionário adquirir a propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural. Parágrafo único. A extinção de que trata este artigo será averbada no cartório de registro de imóveis, por meio de declaração do Poder Público concedente. Art. 9o É facultado ao Poder Público competente dar autorização de uso àquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para fins comerciais. § 1o A autorização de uso de que trata este artigo será conferida de forma gratuita. § 2o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas. § 3o Aplica-se à autorização de uso prevista no caput deste artigo, no que couber, o disposto nos arts. 4o e 5o desta Medida Provisória. CAPÍTULO II DO CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO Art. 10. Fica criado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano - CNDU, órgão deliberativo e consultivo, integrante da estrutura da Presidência da República, com as seguintes competências: I - propor diretrizes, instrumentos, normas e prioridades da política nacional de desenvolvimento urbano; II - acompanhar e avaliar a implementação da política nacional de desenvolvimento urbano, em especial as políticas de habitação, de saneamento básico e de transportes urbanos, e recomendar as providências necessárias ao cumprimento de seus objetivos; III - propor a edição de normas gerais de direito urbanístico e manifestar-se sobre propostas de alteração da legislação pertinente ao desenvolvimento urbano; IV - emitir orientações e recomendações sobre a aplicação da Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, e dos demais atos normativos relacionados ao desenvolvimento urbano; V - promover a cooperação entre os governos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e a sociedade civil na formulação e execução da política nacional de desenvolvimento urbano; e VI - elaborar o regimento interno. Art. 11. O CNDU é composto por seu Presidente, pelo Plenário e por uma Secretaria-Executiva, cujas atribuições serão definidas em decreto. FGV DIREITO RIO 136 atividades e atos administrativos Parágrafo único. O CNDU poderá instituir comitês técnicos de assessoramento, na forma do regimento interno. Art. 12. O Presidente da República disporá sobre a estrutura do CNDU, a composição do seu Plenário e a designação dos membros e suplentes do Conselho e dos seus comitês técnicos. Art. 13. A participação no CNDU e nos comitês técnicos não será remunerada. Art. 14. As funções de membro do CNDU e dos comitês técnicos serão consideradas prestação de relevante interesse público e a ausência ao trabalho delas decorrente será abonada e computada como jornada efetiva de trabalho, para todos os efeitos legais. CAPÍTULO III DAS DISPOSIÇÕES FINAIS Art. 15. O inciso I do art. 167 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar com as seguintes alterações: “I - ........................................................... ........................................................... 28) das sentenças declaratórias de usucapião; ........................................................... 37) dos termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia; ........................................................... 40) do contrato de concessão de direito real de uso de imóvel público.” (NR) Art. 16. Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 4 de setembro de 2001; 180o da Independência e 113o da República. FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Pedro Parente Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 5.9.2001 (Edição extra) Fonte: www.planalto.gov.br, acesso em 18.06.2006 FGV DIREITO RIO 137 atividades e atos administrativos Anexo 2 – Jurisprudência Supremo Tribunal Federal – PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES 13/04/2005 TRIBUNAL PLENO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.367-1 DISTRITO FEDERAL RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO EMENTAS: 1. AÇÃO. Condição. Interesse processual, ou de agir. Caracterização. Ação direta de inconstitucionalidade. Propositura antes da publicação oficial da Emenda Constitucional nº 45/2004. Publicação superveniente, antes do julgamento da causa. Suficiência. Carência da ação não configurada. Preliminar repelida. Inteligência do art. 267, VI, do CPC. Devendo as condições da ação coexistir à data da sentença, considera-se presente o interesse processual, ou de agir, em ação direta de inconstitucionalidade de Emenda Constitucional que só foi publicada, oficialmente, no curso do processo, mas antes da sentença. 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Emenda Constitucional nº 45/2004. Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Instituição e disciplina. Natureza meramente administrativa. Órgão interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura. Constitucionalidade reconhecida. Separação e independência dos Poderes. História, significado e alcance concreto do princípio. Ofensa a cláusula constitucional imutável (cláusula pétrea). Inexistência. Subsistência do núcleo político do princípio, mediante preservação da função jurisdicional, típica do Judiciário, e das condições materiais do seu exercício imparcial e independente. Precedentes e súmula 649. Inaplicabilidade ao caso. Interpretação dos arts. 2º e 60, § 4º, III, da CF. Ação julgada improcedente. Votos vencidos. São constitucionais as normas que, introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, instituem e disciplinam o Conselho Nacional de Justiça, como órgão administrativo do Poder Judiciário nacional. 3. PODER JUDICIÁRIO. Caráter nacional. Regime orgânico unitário. Controle administrativo, financeiro e disciplinar. Órgão interno ou externo. Conselho de Justiça. Criação por Estado membro. Inadmissibilidade. Falta de competência constitucional. Os Estados membros carecem de competência constitucional para instituir, como órgão interno ou externo do Judiciário, conselho destinado ao controle da atividade administrativa, financeira ou disciplinar da respectiva Justiça. Supremo Tribunal Federal Diário da Justiça de 17/03/2006 ADI 3.367/DF 4. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Órgão de natureza exclusivamente administrativa. Atribuições de controle da atividade administrativa, financeira e disciplinar da magistratura. Competência relativa apenas aos órgãos e juízes situados, hierarquicamente, abaixo do Supremo Tribunal Federal. Preeminência deste, como órgão máximo do Poder Judiciário, sobre o Conselho, cujos atos e decisões estão sujeitos a seu controle jurisdicional. Inteligência dos art. 102, caput, inc. I, letra “r”, e § 4º, da CF. O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito. 5. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Competência. Magistratura. Magistrado vitalício. Cargo. Perda mediante decisão administrativa. Previsão em texto aprovado pela Câmara dos Deputados e constante do Projeto que resultou na Emenda Constitucional nº 45/2004. Supressão pelo Senado Federal. Reapreciação pela Câmara. Desnecessidade. Subsistência do sentido normativo do texto residual aprovado e promulgado (art. 103-B, § 4º, III). Expressão que, ademais, ofenderia o disposto no art. 95, I, parte final, da CF. Ofensa ao art. 60, § 2º, da CF. Não ocorrência. Argüição repelida. Precedentes. Não precisa ser reapreciada FGV DIREITO RIO 138 atividades e atos administrativos pela Câmara dos Deputados expressão suprimida pelo Senado Federal em texto de projeto que, na redação remanescente, aprovada de ambas as Casas do Congresso, não perdeu sentido normativo. 6. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Membro. Advogados e cidadãos. Exercício do mandato. Atividades incompatíveis com tal exercício. Proibição não constante das normas da Emenda Constitucional nº 45/2004. Pendência de projeto tendente a torná-la expressa, mediante acréscimo de § 8º ao art. 103-B da CF. Irrelevância. Ofensa ao princípio da isonomia. Não ocorrência. Impedimentos já previstos à conjugação dos arts. 95, § único, e 127, § 5º, II, da CF. Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido aditado. Improcedência. Nenhum dos advogados ou cidadãos membros do Conselho Nacional de Justiça pode, durante o exercício do mandato, exercer atividades incompatíveis com essa condição, tais como exercer outro cargo ou função, salvo uma de magistério, dedicar-se a atividade político-partidária e exercer a advocacia no território nacional. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade, em afastar o vício formal de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 45/2004, como também não conhecer da ação quanto ao § 8º do artigo 125. E, no mérito, por maioria, em julgar totalmente improcedente a ação, vencidos o Senhor Ministro MARCO AURÉLIO, que a julgava integralmente procedente; a Senhora Ministra ELLEN GRACIE e o Senhor Ministro CARLOS VELLOSO, que julgavam parcialmente procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade dos incisos X, XI, XII e XIII do artigo 103-B, acrescentado pela emenda constitucional; e o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, que a julgava procedente, em menor extensão, dando pela inconstitucionalidade somente do inciso XIII do caput do artigo 103-B. Votou o Presidente, Ministro NELSON JOBIM. Falaram, pela requerente, o Dr. ALBERTO PAVIE RIBEIRO, pela Advocacia-Geral da União, o Dr. ÁLVARO AUGUSTO RIBEIRO COSTA e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. CLÁUDIO LEMOS FONTELES, Procurador-Geral da República. Brasília, 13 de abril de 2005. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - (Relator): Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de liminar, movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e voltada contra os arts. 1º e 2º da Emenda Constitucional nº 45/2004, nos textos que, exteriorizando normas relativas ao Conselho Nacional de Justiça, são os seguintes: “art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de quinze membros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo: I – um Ministro do Supremo Tribunal Federal, indicado pelo respectivo tribunal; II – um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal; III – um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal; IV – um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; V – um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; VI – um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; VII – um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; VIII – um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; IX – um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; X – um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República; FGV DIREITO RIO 139 atividades e atos administrativos XI – um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual; XII – dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; XIII – dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal. § 1º O conselho será presidido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, que votará em caso de empate, ficando excluído da distribuição de processos naquele tribunal. § 2º Os membros do Conselho serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. § 3º Não efetuadas, no prazo legal, as indicações previstas neste artigo, caberá a escolha ao Supremo Tribunal Federal. § 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; IV – representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; V – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano; VI – elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; VII – elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa. § 5º O Ministro do Superior Tribunal de Justiça exercerá a função de Ministro-Corregedor e ficará excluído da distribuição de processos no Tribunal, competindo-lhe, além das atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura, as seguintes: I – receber as reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos magistrados e aos serviços judiciários; II – exercer funções executivas do Conselho, de inspeção e de correição geral; III – requisitar e designar magistrados, delegando-lhes atribuições, e requisitar servidores de juízos ou tribunais, inclusive nos Estados, Distrito Federal e Territórios. § 6º Junto ao Conselho oficiarão o Procurador-Geral da República e o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. FGV DIREITO RIO 140 atividades e atos administrativos § 7º A União, inclusive no Distrito Federal e nos Territórios, criará ouvidorias de justiça, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça.” “Art. 52 (...) II – processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da união nos crimes de responsabilidade;” (grifo nosso) “Art. 92 (...) 1-A – o Conselho Nacional de Justiça; § 1º O Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça e os Tribunais Superiores têm sede na Capital Federal.” (grifos nossos) “Art. 93 (...) VIII – o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa;” (grifo nosso) “Art. 102 (...) r) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público.” (grifo nosso) “Art. 125 (...) § 8º - Os Tribunais de Justiça criarão ouvidorias de justiça, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgão do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça”. (grifos nossos) Os fundamentos jurídicos do pedido podem reduzidos a dois argumentos substanciais: a instituição do Conselho Nacional de Justiça implicaria “(a) tanto inegável violação ao princípio da separação e da independência dos poderes (art. 2º da Constituição Federal), de que são corolários o auto-governo dos Tribunais e a sua autonomia administrativa, financeira e orçamentária (artigos 96, 99 e parágrafos, e 168 da Constituição Federal, (b) como ainda a ofensa ao pacto federativo (artigos 18, 25 e 125), na medida em que submeteu os órgãos do Poder Judiciário dos Estados a uma supervisão administrativa, orçamentária, financeira e disciplinar por órgão da União Federal” (fls. 05). Mas consta outro, tendente agora à decretação conjunta de inconstitucionalidade específica do art. 103-B, § 4º, inc. III, objeto da mesma Emenda: sua redação final não teria sido submetida “à discussão e votação nas duas casas do Congresso Nacional, mas apenas do Senado Federal, daí resultando a ofensa ao § 2º, do art. 60, da CF” (fls. 06). Em caráter liminar, aduzindo serem sólidos tais fundamentos e estar-se diante da “excepcional urgência” de que fala o art. 10, § 3º, da Lei nº 9.868/99, a autora pediu a imediata suspensão da “vigência dos dispositivos impugnados nesta ação, especialmente o art. 103-B”, até o julgamento definitivo da causa (fls. 43-46). Entendendo tratar-se de matéria relevante e de “especial significado para a ordem social e a segurança jurídica”, o Exmo. Sr. Presidente do Tribunal, a quem o feito foi remetido durante as férias (art. 13, inc. VIII, do RISTF), determinou o processamento da ação nos termos do art. 12 da Lei nº 9.868/99 (fls. 125). Sobrevieram, então, as informações prestadas pelo Congresso (fls. 145-159), que respondeu a cada um dos argumentos da inicial e opinou pela total improcedência dos pedidos. De igual modo manifestaram-se a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República (fls. 161-187 e 189-195). A primeira argüiu, em caráter preliminar, impossibilidade jurídica do FGV DIREITO RIO 141 atividades e atos administrativos pedido, uma vez que, à data da propositura da ação, a Emenda Constitucional impugnada não havia sido ainda publicada no Diário Oficial (fls. 164-167). É o relatório. VOTO O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - (Relator): 1. Examino a preliminar. Argúi a Advocacia-Geral da União que os pedidos seriam “juridicamente impossíveis”, porque deduzidos antes da publicação oficial da Emenda, coisa proibida no sistema de controle de constitucionalidade. Pede, em conseqüência, a extinção do processo, sem julgamento do mérito. Não obstante tenha razão o Advogado-Geral quanto à inadmissibilidade de controle de constitucionalidade em caráter preventivo, ao caso não quadra a conseqüência. Posto que, à data de propositura da ação, a Emenda Constitucional nº 45/2004 não houvesse sido deveras publicada, foi-o pouco tempo depois, o que torna agora cognoscíveis os pedidos. A publicação superveniente da Emenda remediou a carência original da ação. A rigor, o vício processual imputado pela Advocacia-Geral ligavase a suposta falta de interesse de agir, e não, a impossibilidade jurídica dos pedidos. É que não se estava diante de inviabilidade teórica absoluta dos pedidos, nem doutra espécie de improcedência prima facie, que são as explicações últimas da falta de possibilidade jurídica como uma das causas da chamada carência da ação. Tratar-se-ia, quando muito, de caso de desnecessidade da tutela jurisdicional, já que os textos impugnados ainda não tinham obtido existência jurídica. Mas, com a publicação subseqüente da Emenda, despontou pleno e nítido o interesse processual. Tem razão, ainda, o Advogado-Geral, quando afirma não serem, as regras processuais, meras formalidades, mas, sim, garantias do Estado democrático de direito (fls. 166). Equivoca-se, no entanto, ao tirar daí necessidade de extinção anômala do processo. Repugnaria ao sistema processual o decreto de carência. A falta de interesse de agir é posta como causa de trancamento do processo, porque a solução evita dispêndio inútil de tempo e energias na condução de uma causa insuscetível de produzir resultado prático ao autor. Não é este o caso, entretanto, pois a publicação da Emenda extirpou qualquer dúvida sobre a necessidade e a adequação dos pedidos. Fosse agora extinto o processo, a AMB retornaria de imediato a este juízo, com demanda idêntica, e ter-se-iam, então, perdido tempo e esforços, em dano da parte e do ofício jurisdicional, em contraste aberto com os propósitos que norteiam a construção dogmática das condições da ação. A respeito, merece lembrada a advertência de LIEBMAN: “as formas são necessárias, mas o formalismo é uma deformação”.239 E é bom não esquecer que as condições da ação devem coexistir ao tempo da decisão da causa.240 Rejeito a preliminar. 2. O tema nuclear da causa, a criação do Conselho Nacional de Justiça, órgão supostamente destinado a controle externo do Poder Judiciário, foi e continua sendo objeto de amplos debates nas mais diversas instâncias da sociedade brasileira.241 Dada a natureza mesma do assunto, em cujas entranhas situam-se matrizes fundamentais da nossa ordem jurídico-constitucional, que, com graves reflexos nas ações cotidianas, vão desde a divisão e o equilíbrio entre os Poderes até a estrutura e a independência do Poder Judiciário, não 1 Manual de direito processual civil. Trad. Cândido Rangel Dinamarco. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, v. 1, p. 258. 239 Cf., por todos, DINAMARCO, CÃNDIDO RANGEL. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001, v. 3, p. 143. 240 Veja-se SADEK, MARIA TEREZA. Controle externo do poder judiciário. In: Reforma do judiciário. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, passim. 241 FGV DIREITO RIO 142 atividades e atos administrativos admira haja despertado e ainda desperte discussões fervorosas no ambiente político, no domínio acadêmico e, sobretudo, no seio da magistratura, da advocacia e, até, do Ministério Público. Eu próprio jamais escondi oposição viva, menos à necessidade da ressurreição ou criação de um órgão incumbido do controle nacional da magistratura, do que ao perfil que se projetava ao Conselho e às prioridades de uma reforma que, a meu sentir, andava ao largo das duas mais candentes frustrações do sistema, a marginalização histórica das classes desfavorecidas no acesso à Jurisdição e a morosidade atávica dos processos. Não renuncio às minhas reservas cívicas, nem me retrato das críticas pré-jurídicas à extensão e à heterogeneidade da composição do Conselho. Mas isso não podia impedir-me, como meus sentimentos e predileções pessoais não me impediram nunca, em quatro lustros de ofício jurisdicional, de, atento à velha observação de CARDOZO, ter “aberto os ouvidos sacerdotais ao apelo de outras vozes”, ciente de que “as palavras mágicas e as encantações são tão fatais à nossa ciência quanto a quaisquer outras”.242 Julgo a causa perante a Constituição da República. 3. O argumento radical da autora vem da regra da separação, com os corolários da independência e harmonia entre os três Poderes da República (art. 2° da Constituição Federal). Segundo a AMB, a instituição de órgão funcionalmente voltado ao “controle da atuação administrativa e financeira” do Judiciário e do “cumprimento dos deveres funcionais” dos magistrados, mas composto por membros na origem alheios ao mesmo Poder – dois dos quais indicados pelo Legislativo –, violaria a dita cláusula pétrea da separação dos Poderes, em cujo ventre reside a garantia da independência do Judiciário. Essa postura da autora já desvela toda a preocupação – muito legítima, diga-se – de que o advento do Conselho Nacional de Justiça traduza sério risco à independência do Poder Judiciário, no exercício de sua função típica, a jurisdicional. É que, apenas para adiantar o que me parece o ponto nevrálgico da causa, ninguém tem dúvida de que não pode a independência do Judiciário, seja a externa, assim considerada a da instituição perante os demais Poderes e órgãos de pressão, seja a interna, a dos magistrados entre si, estar sob nenhum risco próximo nem remoto, porque, em resguardo da ordem jurídica e, ao cabo, da liberdade do povo, tal predicado constitui a fonte, o substrato e o suporte de todas as condições indispensáveis a que a atividade judicante seja exercida com a imparcialidade do tertius, sem a qual já se não concebe a jurisdição em nenhum Estado civilizado e, muito menos, no Estado democrático de direito. Retomarei logo mais o tema, bastando-me por ora reavivar esta inconcussa verdade políticojurídica: é na exata medida em que aparece como nítida e absolutamente necessária a garantir a imparcialidade jurisdicional, que a independência do Judiciário e da magistratura guarda singular relevo no quadro da separação dos Poderes e, nesses limites, é posta a salvo pela Constituição da República. De modo que todo ato, ainda quando de cunho normativo de qualquer escalão, que tenda a romper o equilíbrio constitucional em que se apóia esse atributo elementar da função típica do Poder Judiciário, tem de ser prontamente repelido pelo Supremo Tribunal Federal, como guardião de sua inteireza e efetividade. A independência suporta, na sua feição constitucional, teores diversos de autonomia administrativa, financeira e disciplinar. Na verdade, ela só pode considerada invulnerável, como predicado essencial do sistema da separação, quando concreta redução de seu âmbito primitivo importe, em dano do equilíbrio e estabilidade entre os Poderes, transferência de prerrogativas a outro deles, ainda que não chegue a caracterizar submissão política. Ou, no que concerne ao Judiciário, quando outra forma de supressão de atribuições degrade ou estreite a imparcialidade jurisdicional. Fora dessas hipóteses, nada obsta a que o constituinte reformador CARDOZO, BENJAMIN N.. A Natureza do processo e a evolução do Direito. Trad. Lêda Boechat Rodrigues. São Paulo: Nacional de Direito, 1956, p. 144. 242 FGV DIREITO RIO 143 atividades e atos administrativos lhe redesenhe a configuração histórica, mediante reorganização orgânica e redistribuição de competências no âmbito da estrutura interna do Judiciário, sem perda nem deterioração das condições materiais de isenção e imparcialidade dos juízes. 4. À luz permanente dessa idéia, analiso a alegação de que a criação do Conselho Nacional de Justiça, com a estrutura e as competências outorgadas pela Emenda nº 45/2004, atentaria, mais que contra a norma do art. 2º da Carta, contra o autêntico sistema constitucional da separação dos Poderes. Nisso convém remontar, embora brevemente, às raízes históricas e à evolução da doutrina política que o inspira e explica.243 Apesar de ter adquirido consagração com a obra clássica de MONTESQUIEU, a teoria da separação dos poderes tem antecedentes antigos. Já ARISTÓTELES, na Política, defendia a idéia de que a concentração do poder político nas mãos de um só homem, “sujeito a todas as possíveis desordens e afeições da mente humana”, era inconveniente,244 e, com tal aviso, distinguia as funções do Estado em deliberante, executiva e judiciária.245 Foi na Era Moderna, entretanto, que a divisão do exercício do poder principiou a tomar corpo, sobretudo no sulco da evolução política por que passou a Inglaterra até a edição do Bill of Rights, em 1689. Baseado na realidade inglesa do tempo, LOCKE formulou a primeira construção sistemática de uma teoria da separação de poderes, dividindo-os em Legislativo, Executivo e Federativo.246 Ao primeiro competiria elaborar as leis que disciplinariam o uso da força na comunidade civil; ao segundo, aplicar as leis aos membros da comunidade; e ao terceiro, o desempenho da função de relacionamento com outros Estados. Não aparece, na obra do autor, o Poder Judiciário como corpo independente dos demais.247 Apesar de reputar diversas em si as funções representadas de cada um desses poderes, LOCKE entendia que o Executivo e o Federativo deveriam ser exercidos pela mesma pessoa. E subordinava-os ambos ao poder Legislativo, considerado supremo, sujeito apenas ao poder do próprio povo. Essencial, para ele, seria a separação entre os componentes do Legislativo e do Executivo: CELSO FERNANDES CAMPILONGO afirma cuidar-se de um dos conceitos mais complexos da teoria constitucional (Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 30). 243 “(...) como pode ser muito grande para a fragilidade humana a tentação de ascender ao poder, não convém que as mesmas pessoas que detêm o poder de legislar tenham também em suas mãos o poder de executar as leis, pois elas poderiam se (sic) isentar da obediência às leis que fizeram, e adequar a lei a sua vontade (...)”.248 Livro III, Capítulo XI. In: Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 230-234. 244 Conquanto ainda estivessem algo distantes da fórmula clássica da tripartição dos poderes, cunhada depois por MONTESQUIEU, essas teorizações já continham in nuce a idéia da necessária divisão funcional do poder político, porque não ficasse depositado em mãos únicas. Partiam da percepção empírica, mas sábia, de que o poder tende a desvios - a qual foi mais tarde sintetizada na máxima de LORD ACTON (“todo poder corrompe”) -, e tinham em vista ideal político muito claro: evitar, em nome da preservação da liberdade, os excessos, abusos e inconvenientes do poder ilimitado; a arbitrariedade estatal, enfim. Foi o que norteou MONTESQUIEU. Ao propor a divisão das funções do Estado em legislativa, administrativa e jurisdicional, assim justificou a atribuição de cada uma a órgãos diferentes: “La liberté politique, dans un citoyen, est cette tranquillite d’esprit qui provient de l’ opinion que chacun a de sa sùreté; et, pour qu’on ait cette liberté, il faut que le gouvernement LOEWENSTEIN, KARL. Teoría de la constitución. Trad. Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Editorial Ariel, 1976, p. 57. 245 Segundo tratado sobre o governo civil, XII, XIII e XIV. In Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 170-186. 246 GOUGH, J. W.. Introdução ao Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. cit., p. 30. 247 248 Ob. cit., p. 170. FGV DIREITO RIO 144 atividades e atos administrativos soit tel qu’un citoyen ne puisse pas craindre un autre citoyen. Lorsque dans la même personne ou dans le même corps de magistrature la puissance législative est réunie à la puissance exécutrice, il n’y a point de liberté, parce qu’on peut craindre que le même monarque ou le même sénat ne fasse des lois tyranniques pour les exécuter tyranniquement. Il n’y a point encore de liberté si la puissance de juger n’est pas séparée de la puissance législative et de l’exécutrice. Si elle étoit jointe à la puissance législative, le pouvoir sur la vie et la liberté des citoyens seroit arbitraire; car le juge seroit législateur. Si elle étoit jointe à la puissance exécutrice, le juge pourroit avoir la force d’un oppresseur. Tout seroit perdu si le même homme, ou le même corps des principaux, ou des nobles, ou du peuple, exerçoient ces trois pouvoirs: celui de faire des lois, celui d’exécuter les résolutions publiques, et celui de juger les crimes ou les différends des particuliers”.249 (“A liberdade política em um cidadão é aquela tranqüilidade de espírito que provém da convicção que cada um tem da sua segurança. Para ter-se essa liberdade, precisa que o Governo seja tal que cada cidadão não possa temer outro. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais (sic) ou de nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares”).250 Dessa velha lição vê-se que, ao arquitetar sua clássica teoria, MONTESQUIEU era movido de um só ânimo: repartir o exercício do poder entre pessoas distintas, a fim de impedir que sua concentração comprometesse a liberdade dos cidadãos. Contra os intuitivos abusos a que leva o poder incondicionado, sustentou a fórmula da tripartição das funções públicas, como mecanismo de limitação do poder e, conseqüentemente, garantia da liberdade individual. Nas palavras de LOEWENSTEIN: “la libertad es el telos ideológico de la teoría de la separación de poderes”.251 A síntese de MONTESQUIEU é mais bem compreendida quando vista como proposição elementar, que era, de uma teoria política, antes que de teoria propriamente jurídica. O autor tinha os olhos postos na realidade política francesa, dentro da qual era ardoroso defensor do liberalismo na luta contra o absolutismo monárquico do Ancien Régime252, segundo a moldura do conflito clássico entre liberdade e autoridade. Seu propósito original estava, assim, em combater o poder absoluto, menos que em preconizar uma técnica de organização racional das funções públicas. A idéia da tripartição dos poderes foi, portanto, o método lucubrado para a consecução de um fim maior: limitar o poder político. Com a aparentemente exclusiva exceção de PASSERIN D’ ENTRÈVES,253 é o que sempre professaram os estudiosos. Como afirma OTTO BACHOF: “el sentido de la división de poderes es impedir la concentración de poder y, con ello, un posible abuso del mismo”.254 No mesmo sentido, ouça-se CARRÉ DE MALBERG: “Et d’ailleurs, toute la démonstration de Montesquieu tourne autour de cette idée principale: assurer la liberte des citoyens, em leus fournissant par la séparation des pouvoirs la De l’esprit des lois. Paris: Garnier Freres, s. d., p. 143. 249 O espírito das leis. Trad. Pedro Vieira Mota, 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 167-168. 250 Teoría de la constitución, cit., p. 55. 251 252 RIBEIRO, HÉLCIO. Justiça e democracia – judicialização da política e controle externo da magistratura. Porto Alegre: Síntese, 2001, p. 65. The notion of the state – an introduction to political theory. Oxford: Oxford University, 1967, p. 121. 253 254 Jueces y constitución. Trad. Rodrigo Bercovitz RodríguezCano. Madrid: Civitas, 1985, p. 58. FGV DIREITO RIO 145 atividades e atos administrativos garantie que chacun de ceux-ci sera exercé légalement. (...) Seule, en effet, la séparation des pouvoirs peut fournir aux gouvernés une garantie sérieuse et une protection efficace”.255 (“Aliás, toda a argumentação de Montesquieu gira em torno desta idéia principal: assegurar a liberdade dos cidadãos, dispensando-lhes, por meio da separação dos poderes, a garantia de que cada um deles será exercido legalmente. (...) Portanto, somente a separação dos poderes pode dar aos governados uma garantia séria e uma proteção eficaz”). Também, a HANS KELSEN: “A significação histórica do princípio chamado ‘separação de poderes’ encontra-se precisamente no fato de que ele opera antes contra uma concentração que a favor de uma separação de poderes”.256 Mais enfáticos são ZAFFARONI e TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR. O primeiro acentua: (...) as palavras de Montesquieu são muito mais claras se forem consideradas como provindas de um sociólogo e não como texto dogmático, porque parte ele do reconhecimento de um fenômeno humano que não pode ser esquecido na medida em que se conserve um mínimo de contacto com a realidade: todo poder induz ao abuso. (...) Entendendo Montesquieu sociológica e politicamente – e não jurídica ou formalmente – não resta dúvida de que ele quer significar que o poder deve estar distribuído entre órgãos ou corpos, com capacidade de regerem-se de forma autônoma com relação a outros órgãos ou corpos, de modo que se elida a tendência ‘natural’ ao abuso”.257 Remata o segundo: “Montesquieu, na verdade, via na divisão dos poderes muito mais um preceito de arte política do que um princípio jurídico. Ou seja, não se tratava de um princípio para a organização do sistema estatal e de distribuição de competências, mas um meio de se evitar o despotismo real. (...) Nesse sentido, o princípio não era de separação de poderes, mas de inibição de um pelo outro de forma recíproca”.258 A matriz histórica da separação dos Poderes há de ser, pois, reconduzida, no contexto da causa, ao alcance de instrumento político que lhe emprestava o autor que a consagrou como teoria: conter o poder, para garantir a liberdade. E esta a razão por que, em coerência com seus pressupostos teóricos e objetivos práticos, MONTESQUIEU jamais defendeu a idéia de uma separação absoluta e rígida entre os órgãos incumbidos de cada uma das funções estatais. Antes, chegou a fazer referência a mecanismos de relacionamento mútuo entre os poderes, a fim, precisamente, de lhes prevenir abusos no exercício. Contra a natural tendência de expansão do poder, era mister a criação de instrumentos que garantissem a subsistência do esquema tripartite de funções, impedindo que os representantes de uma delas se sobrepusessem aos demais. Doutro modo, o poder incontido sacrificaria a liberdade. E exemplo significativo de relações dessa espécie, colhido à obra Contribution a la théorie générale de l’état. Paris: Sirey, 1922, t. II, p. 7. 255 Teoria geral do direito e do estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes/Universidade de Brasília, 1990, p. 274. 256 Poder judiciário – crises, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 81-83. 257 O judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência? In: Revista trimestral de direito 258 FGV DIREITO RIO 146 atividades e atos administrativos do grande pensador francês, é a intervenção do Executivo no processo legislativo mediante o veto.259 Discorrendo sobre o pensamento de MONTESQUIEU, CARRÉ DE MALBERG realça-lhe essa idéia: “La doctrine de Montesquieu se rattache donc essentiellement au système de l’‘État de droit’. Cependant, par la force des choses, cette doctrine, bien que visant principalement à sauvegarder la liberté civile, implique aussi certaines dispositions à prendre, em vue d’ assurer la liberté des autorités publiques elles-mêmes, dans leurs rapports les unes avec les autres, en tant qu’il s’agit, pour chacune d’elles, de l’exercice du pouvoir qui lui est spécialement attribué. C’est là un nouvel aspect, fort important, du sujet. En effet, la division des compétences et la spécialisation des fonctions ne saurient, à elles seules, suffire à réaliser la limtation des pouvoirs: pour que cette limitation se trouve assurée, il faut, en outre, qu’aucun des trois ordres de titulaires des pouvoirs ne possède ou ne puisse acquérir de supériorité, qui lui permettrait de dominer les deux autres et qui, par lá même, pourrait peu à peu dégénérer en omnipotence. Et pour cela, il est indispensable que les titulaires des trois pouvoirs soient, non seulement investis de compétences distinctes et séparées, mais encore rendus, par leur constitution organique, indépendants et comme égaux les uns vis-à-vis des autres. Ce n’est qu’à cette condition qu’ils pourront effectivement se limiter et s’arrêter entre eux”.260 “A doutrina de Montesquieu liga-se, portanto, essencialmente ao sistema do ‘Estado de direito’. Entretanto, pela força das coisas, essa doutrina, embora vise principalmente a salvaguardar a liberdade civil, implica também certas disposições por tomar, no intuito de assegurar a liberdade das autoridades públicas elas mesmas, nas relações umas com as outras, quanto se trate, para cada qual, do exercício do poder que lhe é especialmente atribuído. Aí está novo aspecto, extremamente importante, do tema. A divisão das competências e a especialização das funções não seriam deveras, sozinhas, suficientes para realizar a limitação dos poderes: para que tal limitação seja garantida, é preciso, além disso, que nenhuma das três ordens de titulares dos poderes possua ou possa adquirir superioridade que lhe permita dominar os outros dois e que, conseqüentemente, poderia pouco a pouco degenerar em onipotência. E, para isso, é indispensável que os titulares dos três poderes sejam, não somente investidos de competências distintas e separadas, mas também feitos, por sua constituição orgânica, independentes e iguais uns frente aos outros. É somente nessa condição que eles poderão efetivamente limitar-se e deter-se entre si”). Recuperada a ratio que orientou MONTESQUIEU, qual seja, garantir a liberdade civil por meio da contenção do poder político, não admira nem surpreende não tenha ele proposto separação absoluta entre as funções públicas, até porque relações recíprocas entre os Poderes são, do ponto de vista funcional, imprescindíveis à economia do próprio sistema, pois também tendem a prevenir que as necessidades concretas de seu exercício sirvam de pretexto a que um se avantaje aos outros. Observa ZAFFARONI: “Não há em Montesquieu qualquer expressão que exclua a possibilidade dos controles recíprocos, nem que afirme uma absurda compartimentalização que acabe em algo parecido com ‘três governos’ e, menos ainda, que não reconheça que no exercício de suas funções próprias esses órgãos não devam assumir funções de outra natureza.”261 Nada disto é novidade. Mas há, aqui, toda a pertinência em relembrá-lo, porque tal pensamento, não apenas seduziu, mas guiou, na talvez mais bem sucedida simplificação orgânico-funcional e aplicação histórica da teoria, seus mais agudos comentadores e res- Cf. FERREIRA FILHO, MANOEL GONÇALVES. Curso de direito constitucional. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 133. 259 260 Ob. cit., p. 8. 261 Ob. cit., p. 82-83. FGV DIREITO RIO 147 atividades e atos administrativos ponsáveis pela difusão do sistema nas modernas constituições ocidentais: ALEXANDER HAMILTON, JAMES MADISON e JOHN JAY. Vale a pena rever como se pronunciaram os “Founders”, nos panfletários artigos federalistas: “Portanto, visto que estes fatos foram o norte de Montesquieu para estabelecer o princípio de que se trata, podemos concluir que, quando ele estabeleceu ‘que não há liberdade todas as vezes que a mesma pessoa ou a mesma corporação legisla e executa ao mesmo tempo, ou por outras palavras, quando o poder de julgar não está bem distinto e separado do Legislativo e Executivo’, não quis proscrever toda a ação parcial, ou toda a influência dos diferentes poderes uns sobre os outros; o que quis dizer, segundo se colige das suas expressões, e ainda melhor dos exemplos que lhe serviram de regra, foi que, quando dois poderes, em toda a sua plenitude, se acham concentrados numa só mão, todos os princípios de um governo livre ficam subvertidos”.262 E, mais adiante, concluem: “Fica provado no capítulo antecedente que o axioma político que se examina não exige a separação absoluta dos três poderes; demonstrar-se-á agora que sem uma tal ligação que dê a cada um deles o direito constitucional de fiscalizar os outros, o grau de separação, essencial à existência de um governo livre, não pode na prática ser eficazmente mantido”.263 Esse conjunto de idéias foi o substrato teórico que governou os federalistas na engenharia do esquema de contenções e compensações que, figuradas nos “checks an balances”, concretizaram a mais curial resposta política à necessidade da existência de expedientes de controle mútuo entre os poderes, para que nenhum transpusesse seus limites institucionais. Sem descurar o dogma da separação entre as funções, que as quer independentes e bem definidas, sublinharam toda a importância dos instrumentos de fiscalização recíproca, como peças essenciais na engrenagem da divisão e do equilíbrio entre elas, a serviço da resistência à intrusão e à tirania. A respeito dessa configuração prática, notava COOLEY, ainda no século XIX: “This arrangement gives each department a certain independence, which operates as a restraint upon such action of the others as might encroach on the rights and liberties of the people, and makes it possible to establish and enforce guaranties against attempts at tyranny. We thus have the checks and balances of government, which are supposed to be essential to free institutions”.264 (“Esse arranjo confere a cada poder certa independência, que opera como um freio à ação dos outros que possa interferir nos direitos e liberdades das pessoas, e torna possível o estabelecimento e implementação de garantias contra tentativas de tirania. Temos, assim, freios e contrapesos de governo, que se reputam essenciais a instituições livres”). Com tal roupagem, a receita política de MONTESQUIEU, acolhida já na Declaração de Direitos da Virgínia, em 1776, incorporou-se em boa parte das Constituições ocidentais, a principiar pela americana. E sua menção na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, contribuiu decisivamente para a transformar em dogma da teoria constitucional.265 Isso, é óbvio, não significa que se lhe tenham manifestado de modo homogêneo as configurações históricas nos textos constitucionais, como se fossem adaptações mecânicas de um modelo de contornos acabados. Ajustando-se às tradições culturais, à realidade política e ao próprio arcabouço institucional de cada país, o grau de autonomia dos poderes e os mecanismos possíveis de controle recíproco variam muito em cada um dos sistemas jurídico-constitucionais que adotam o postulado político da separação, oscilando, especialmente, entre os modelos integrados à tradição do constitucionalismo francês e do norte-americano. E é natural que assim seja. Afinal, como diz OTTO BACHOF, “no existe ningún esquema patenteado de división de poderes que pueda funcionar en todas las épocas y bajo los más diversos supuestos sociales”.266 O federalista. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 299-300. Grifos nossos. 262 Ob. ����������������������������� cit., p. 305. Grifos ����������� nossos. 263 COOLEY, THOMAS M..General principles of constitutional law. 2ª ed. Boston: Little, Brown and Company, 1891, p. 41 (reimpressão de 1998). 264 SILVA, JOSÉ AFONSO DA. Curso de direito constitucional positivo. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 113. 265 266 Ob. cit., p. 58. FGV DIREITO RIO 148 atividades e atos administrativos Mas a afirmação do princípio como ingrediente axiomático da definição e estrutura dos Estados democráticos, essa sobrevive às diferenças sociais e aos rumos da evolução política, a despeito das variações que lhe determinam tais vicissitudes históricas. 4. Diante dessas premissas, é preciso, então, apurar as feições particulares que tomou o princípio em nossa Constituição Federal. Como pontua HESSE267, a identificação do conteúdo desse postulado histórico não pode prescindir da análise da configuração e dos contornos que lhe dá a ordem jurídica concreta de certo Estado. De modo que só o exame da sua concreta disposição na ordem jurídica vigente permitirá aferir se a instituição do Conselho Nacional de Justiça insulta, ou não, o sistema positivo da separação e independência dos Poderes. Já o tinha advertido o Min. GILMAR MENDES, quando ainda ocupava o cargo de AdvogadoGeral da União: “(...) o contraste entre a norma questionada e o parâmetro constitucional da divisão de poderes é uma operação de índole normativa e valorativa, que, por isso, deve levar em conta não uma concepção abstrata do princípio de divisão de poderes, mas seu conteúdo efetivo na ordem constitucional positiva” (apud ADI nº 135, voto do Rel. Min. OCTÁVIO GALLOTTI, DJ de 15.08.97). Ninguém ������������������������������������������ tampouco tem dúvidas acerca da superior importância atribuída pela Constituição Federal às normas da separação dos Poderes, em conformidade, aliás, com nossa tradição republicana. Já no art. 2º, estatui: “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. E logo o sublima a cláusula irremovível, vedando, no art. 60, § 4º, inc. III, seja “objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) III – a separação dos Poderes”. Donde se tem logo por indiscutível que o princípio da separação e independência dos Poderes integra a ordem constitucional positiva, em plano sobranceiro. E, nessa perspectiva, cada um deles tem sua organização regulada em capítulo distinto no Título IV: arts. 44 a 75 (Legislativo), arts. 76 a 91 (Executivo) e arts. 92 a 135 (Judiciário). Ora, é o confronto analítico dos preceitos relativos à organização e ao funcionamento de cada uma dessas funções públicas que permite extrair o conteúdo e a extensão de que se reveste a teoria da separação em nosso sistema jurídico-constitucional. Noutras palavras, é seu tratamento normativo, através de todo o corpo constitucional, que nos dá o sentido e os limites dos predicados da independência e da harmonia, previstos no art. 2º. E o que se lhe vê é que o constituinte desenhou a estrutura institucional dos Poderes de modo a garantir-lhes a independência no exercício das funções típicas, mediante previsão de alto grau de autonomia orgânica, administrativa e financeira. Mas tempera-o com a prescrição doutras atribuições, muitas das quais de controle recíproco, e cujo conjunto forma, com as regras primárias, verdadeiro sistema de integração e cooperação, preordenado a assegurar equilíbrio dinâmico entre os órgãos, em benefício do escopo último, que é a garantia da liberdade. Esse quadro normativo constitui expressão natural do princípio na arquitetura política dos freios e contrapesos. À Constituição repugna-lhe toda exegese que reduza a independência dos Poderes a termos absolutos, os quais, aliás de todo estranhos aos teóricos de sua fórmula, seriam contraditórios com a idéia que a concebeu como instrumento político-liberal. Confirma-o rápido percurso pelo texto constitucional. Não são poucos os institutos cuja disciplina revela ostensiva existência de mecanismos predispostos ao controle mútuo entre os Poderes e, até, ao desempenho anômalo, por um deles, de função típica de outro. Basta mencionar o veto (art. 66, § 1º, e 84, inc. V), o impeachment (arts. 52, 85 e 86), o controle de constitucionalidade das leis (arts. 102, I, letra a, e 103), as medidas provisórias (art. 62), as leis delegadas (art. 68), o poder conferido ao Legislativo de sustar atos normativos do Executivo (art. 49, inc. V), bem como de lhe fiscalizar e controlar os atos (inc. X), o controle das contas públicas pelo Congresso HESSE, KONRAD. Elementos de direito constitucional da Republica Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, 9.368. 267 FGV DIREITO RIO 149 atividades e atos administrativos Nacional e pelo Tribunal de Contas (arts. 70, 71, cc. 49, inc. IX), o Conselho da República (art. 89), o poder do Presidente da República de conceder indulto e comutar penas (art. 84, inc. XII), etc. Não menos significativa é a previsão do procedimento de elaboração conjunta do orçamento de cada Poder, por meio da lei de diretrizes orçamentárias e da própria lei orçamentária (arts. 48, inc. II, 99, 165 a 168). No que concerne à vida orgânica do Judiciário, merece atenção especial a competência do Executivo para nomear parte dos membros do Poder, como se dá com integrantes da Justiça Eleitoral (arts. 119, inc. II, e 120, inc. III), dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais estaduais e do Distrito Federal, por via do chamado quinto constitucional (art. 94), e dos próprios Ministros desta Casa, cuja investidura depende ainda de aprovação do Senado (art. 101, § único). Todos esses exemplos provam, ad rem, que a incorporação privilegiada do princípio da separação na ordem constitucional não significa de modo algum que a distribuição primária das funções típicas e a independência formal dos Poderes excluam regras doutro teor, que, suposto excepcionais na aparência, tendem, no fundo, a reafirmar a natureza unitária das funções estatais, a cuja repartição orgânica é imanente a vocação conjunta de instrumentos da liberdade e da cidadania. Tal arrumação normativa está longe de fraturar ou empobrecer o núcleo político e jurídico do sistema, que só estará mortalmente ferido lá onde se caracterizar, à luz de sua inspiração primordial, usurpação de funções típicas ou aniquilamento prático da autonomia de cada Poder. É essa, de certo modo, a opinião comum dos constitucionalistas pátrios.268 E, ao propósito, nossa experiência constitucional em nada destoa do que se verifica alhures. Reconhece, em caráter geral, WILLIAM PRILLAMAN que: “(...) no branch or agent of government in a separation of powers system is completely ‘independent’ from the other branches. Courts rely on other branches of government for their budgets and enforcement of their rulings; the judicial nomination process often depends on executive nomination and legislative approval; and appointees may be subject to legislative impeachment. Thus, no judiciary is completely removed from the affairs of the more political departments of government”.269 “[(...) nenhum ramo ou agente de governo, em um sistema de separação de poderes, é completamente ‘independente’ dos outros. As cortes dependem de outros setores do governo tanto para aprovação de seus orçamentos, como para o cumprimento de suas decisões; o processo de nomeação judicial freqüentemente depende de nomeação do Executivo e aprovação do Legislativo; e os indicados podem ainda ser submetidos ao impeachment legislativo. Assim, nenhum Judiciário está completamente afastado dos assuntos dos ramos mais políticos do governo”]. Sob o prisma constitucional brasileiro do sistema da separação dos Poderes, não se vê a priori como possa ofendê-lo a criação do Conselho Nacional de Justiça. À luz da estrutura que lhe deu a Emenda Constitucional nº 45/2004, trata-se de órgão próprio do Poder Judiciário (art. 92, I-A), composto, na maioria, por membros desse mesmo Poder (art. 103-B), nomeados sem interferência direta dos outros Poderes, dos quais o Legislativo apenas indica, fora de seus quadros e, pois, sem laivos de representação orgânica, dois dos quinze membros. Brandida como argumento exemplar e capital da pretensa inconstitucionalidade do Conselho, tal indicação em si, em que qualquer crítico desapaixonado enxergaria, quando muito, mera representação simbólica da instância legislativa, não pode equiparar-se a nenhuma forma de intromissão incompatível com a idéia política e o perfil constitucional da separação e independência dos Poderes. O preceito que a estabelece não inova coisa alguma na ordem constitucional, em cujo contexto guarda, com ruidosa SILVA, JOSÉ AFONSO DA. Ob. cit., p. 113-115. FERREIRA FILHO, MANOEL GONÇALVES. Ob. cit., p. 133. BASTOS, CELSO RIBEIRO. Curso de direito constitucional. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 166. 268 The judiciary and democratic decay in Latin America: declining confidence in the rule of law. Westport: Praeger, 2000, p. 16. 269 FGV DIREITO RIO 150 atividades e atos administrativos clareza, menor extensão lógica e índice muito mais modesto de participação doutro Poder no processo de escolha de membros do Poder Judiciário, do que, por exemplo, o velhíssimo modelo do art. 101, § único, da Constituição da República, o qual defere ao Chefe do Executivo competência exclusiva para nomear todos os integrantes desta Casa! Têm, nesse claro sentido, sabor apenas didático, as observações de ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, de que “ (...) prevalece entre nós, quanto ao Supremo Tribunal Federal e aos tribunais superiores federais, o sistema de nomeação dos magistrados pelo Executivo, com aprovação do Senado Federal. É por isso que a independência do Judiciário, absoluta quanto ao exercício de suas funções, não o é no que respeita à constituição dos tribunais.”270 Seria, deveras, fraqueza de espírito insistir na demonstração do absurdo lógico-jurídico que estaria em dar, sob pretexto de usurpação de poderes, pela inconstitucionalidade da criação do Conselho, sem antes reconhecê-la, com maiores e mais conspícuas razões, ao processo de nomeação de todos os ministros do Supremo Tribunal Federal. A fortiori, esta conclusão óbvia, não apenas decepa a objeção de inconstitucionalidade específica a título de injúria ao sistema da separação e independência dos Poderes, mas, sobretudo, é prova suficiente de que a não há nenhuma, ainda quando genérica, por conta dessa mesma causa material, nas regras de composição, escolha e nomeação dos membros do Conselho. Donde vem, logo, o erro de o tomar por órgão de controle externo. Talvez ocorra a alguém que, na prática, essa composição híbrida poderia comprometer a independência interna e externa do Judiciário. A objeção não é forte, porque os naturais desvios que, imputáveis à falibilidade humana, já alimentavam, durante os trabalhos preparatórios da Constituição americana, o ceticismo calvinista em relação aos riscos de facciosidade do parlamento, são inerentes a todas as instituições, por acabadas e perfeitas que se considerem. Mas, se escusa reforço à resposta, é sobremodo importante notar que o Conselho não julga causa alguma, nem dispõe de nenhuma atribuição, de nenhuma competência, cujo exercício fosse capaz de interferir no desempenho da função típica do Judiciário, a jurisdicional. Pesa-lhe, antes, abrangente dever constitucional de “zelar pela autonomia” do Poder (art. 103-B, § 4º, inc. I). E não seria lógico nem sensato levantar suspeitas de que, sem atribuição jurisdicional, possa comprometer independência que jamais se negou a órgãos jurisdicionais integrados por juízes cuja nomeação compete ao Poder Executivo, com ou sem colaboração do Legislativo. Será caso, no entanto, de indagar se tal risco não adviria da própria natureza das competências destinadas ao Conselho, enquanto órgão nacional de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados. Aqui, a dúvida é de menor tomo. Com auxílio dos tribunais de contas, o Legislativo sempre deteve o poder superior de fiscalização dos órgãos jurisdicionais quanto às atividades de ordem orçamentária, financeira e contábil (arts. 70 e 71 da Constituição da República), sem que esse, sim, autêntico controle externo do Judiciário fosse tido, alguma feita e com seriedade, por incompatível com o sistema da separação e independência dos Poderes, senão como peça da mecânica dos freios e contrapesos. E esse quadro propõe ainda um dilema: ou o poder de controle intermediário da atuação administrativa e financeira do Judiciário, atribuído ao Conselho Nacional de Justiça, não afronta a independência do Poder, ou será forçoso admitir que o Judiciário nunca foi, entre nós, Poder independente! Igual coisa pode dizer-se de imediato sobre a competência de controle do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Ou a atribuição em si, a este ou àquele órgão, não trinca nem devora a independência do Poder, ou se há de confessar que este nunca tenha sido Teoria geral do processo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 172. 270 FGV DIREITO RIO 151 atividades e atos administrativos verdadeiramente autônomo ou independente. A outorga dessa particular competência ao Conselho não instaura, como novíssima das novidades, o regime censório interno, a que, sob a ação das corregedorias, sempre estiveram sujeitos, em especial, os magistrados dos graus inferiores, senão que, suprindo uma das mais notórias deficiências orgânicas do Poder, capacita a entidade a exercer essa mesma competência disciplinar, agora no plano nacional, sobre todos os juízes hierarquicamente situados abaixo desta Suprema Corte.271 Como se percebe sem grandes ginásticas de dialética, deu-se apenas dimensão nacional a um poder funcional necessário a todos os ramos do governo, e cujo exercício atém-se, como não podia deixar de ser, às prescrições constitucionais e às normas subalternas da Lei Orgânica da Magistratura e do futuro Estatuto, emanadas todas do Poder Legislativo, segundo os princípios e as regras fundamentais da independência e harmonia dos Poderes. 5. E é o momento de recobrar a questão crucial da causa e que está em saber se, de qualquer outro modo, direto ou indireto, em maior ou menor grau, a criação, a composição e as atribuições do Conselho põem em risco, mínimo que seja, o exercício das funções jurisdicionais, enquanto razão mesma da existência do Poder Judiciário. É que, como o sabe toda a gente, as exigências e as preocupações de tutela cabal da sua autonomia se radicam na necessidade de preservação das garantias indispensáveis ao desempenho imparcial daquelas funções. No dizer de MAURO CAPPELLETTI: “a independência dos juízes frente ao executivo, longe de representar um valor fim em si mesmo, não é ela própria senão um valor instrumental. É difícil não compartilhar da opinião de Giovani Pugliese – que é, aliás, também a da nossa Corte Constitucional – quando afirma, exatamente, que a independência não é senão o meio dirigido a salvaguardar outro valor – conexo certamente, mas diverso e bem mais importante do que o primeiro – ou seja, a imparcialidade do juiz. O valor ‘final’ – a ‘essência’ ou a ‘natureza’, por assim dizer – da função judiciária é, portanto, que a decisão seja tomada por um terceiro imparcial, tertius super partes, depois que as partes tenham tido a possibilidade de apresentar e defender o seu caso (...).”272 É o que reconhece o ex-magistrado LUIS FLÁVIO GOMES, em referência à obra de IBAÑEZ: “concebemos a independência judicial desse modo, ‘não como um fim em si mesmo, senão como um meio, um conceito instrumental em relação à imparcialidade, a serviço da idéia de que o juiz deve sempre atuar como terceiro na composição dos interesses em conflito, com a lei como ponto de referência indiscutível”.273 Está nisto, no valor político supremo da imparcialidade dos juízes e tribunais, o critério decisivo da estima da compatibilidade do Conselho Nacional de Justiça com todas as provisões constitucionais de um Judiciário independente. E, de tal ângulo, não vejo em que este sofra com aquele. Como já referi, são duas, em suma, as ordens de atribuições conferidas ao Conselho pela Emenda Constitucional nº 45/2004: (a) o controle da atividade administrativa e financeira do Judiciário, e (b) o controle ético-disciplinar de seus membros. A primeira não atinge o autogoverno do Judiciário. Da totalidade das competências privativas dos tribunais, objeto do disposto no art. 96 da Constituição da República, nenhuma lhes foi castrada a esses órgãos, que continuarão a exercê-las todas com plenitude e exclusividade, elaborando os regimentos internos, elegendo os corpos diretivos, organizando as secretarias e serviços auxiliares, concedendo licenças, férias e outros afastamentos a seus membros, provendo os cargos de juiz de carreira, assim como os necessários à administração da justiça, etc, sem terem perdido o poder de elaborar e encaminhar as respectivas propostas orçamentárias. O que tampouco deve esquecido é que também nesse campo se manifesta o caráter Os ministros do Supremo, órgão máximo do Judiciário brasileiro e guardião último da Constituição Federal, não estão, nem poderiam estar, como é óbvio, sujeitos ao poder disciplinar do Conselho, cujos atos e decisões, sempre de natureza administrativa, é que são passíveis de controle jurisdicional desta Corte (art. 102, inciso I, letra “r”, introduzido pela Emenda). O que dispõe a Emenda, no art. 103B, § 4º, não os apanha, como se percebe sem muito esforço. SÉRGIO BERMUDES achou necessário dissipar dúvidas a respeito, as quais, aliás, nem seriam razoáveis: “Excluem-se da incidência desse § 4º apenas os ministros do Supremo Tribunal Federal... A submissão dos ministros do Supremo Tribunal Federal ao Conselho Nacional de Justiça perturbaria a ordem constitucional, inclusive pela possibilidade de repercutir, de algum modo, nos julgamentos do órgão supremo do Poder Judiciário” (A reforma do poder judiciário pela emenda constitucional nº 45. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 137). Sobre o ponto, cf. ainda infra, nº 12. 271 Juízes irresponsáveis?. Trad. Carlos Alberto Àlvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989, p.32. 272 A dimensão da magistratura no estado constitucional e democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 42. 273 FGV DIREITO RIO 152 atividades e atos administrativos não absoluto da independência constitucional do Poder. Afora as limitações concernentes à elaboração dos orçamentos, a criação ou extinção dos tribunais, a alteração do número de seus membros, a modificação da organização e da divisão judiciárias, bem como a criação de cargos e a remuneração dos serviços auxiliares e dos juízos vinculados ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça também dependem da aprovação do Poder Legislativo (art. 96, inc. II), o que demonstra, mais uma vez, que: “as garantias do art. 96 da Constituição visam essencialmente a estabelecer a independência do Poder Judiciário em relação aos demais Poderes. Mas se é absoluta essa independência no que respeita ao desempenho de suas funções, não se pode dizer o mesmo no tocante à organização do Poder Judiciário, a qual depende freqüentemente do Poder Executivo ou do Legislativo, quando não de ambos”274. De modo que, sem profanar os limites constitucionais da independência do Judiciário, agiu dentro de sua competência reformadora o poder constituinte derivado, ao outorgar ao Conselho Nacional de Justiça o proeminente papel de fiscal das atividades administrativa e financeira daquele Poder. A bem da verdade, mais que encargo de controle, o Conselho recebeu aí uma alta função política de aprimoramento do autogoverno do Judiciário, cujas estruturas burocráticas dispersas inviabilizam o esboço de uma estratégia político-institucional de âmbito nacional. São antigos os anseios da sociedade pela instituição de um órgão superior, capaz de formular diagnósticos, tecer críticas construtivas e elaborar programas que, nos limites de suas responsabilidades constitucionais, dêem respostas dinâmicas e eficazes aos múltiplos problemas comuns em que se desdobra a crise do Poder. Como bem acentuou JOSÉ EDUARDO FARIA: “(...) como o Judiciário tem diferentes braços especializados organizados em diferentes instâncias, é natural que cada um deles e cada uma delas sinta-se tentado a definir seu próprio programa de ação, o que, obviamente, torna de fundamental importância a criação de um órgão representativo de todos esses braços e instâncias capazes de atuar numa dimensão de política-domínio, responsabilizando-se pela uniformização dos diferentes programas ‘parcialmente contraditórios’ e ‘parcialmente compatíveis’ sob a forma de uma estratégia global da instituição”.275 Ao Conselho atribuiu-se esse reclamado papel de órgão formulador de uma indeclinável política judiciária nacional. 6. A segunda modalidade de atribuições do Conselho diz respeito ao controle “do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” (art. 103-B, § 4º). E tampouco parece-me hostil à imparcialidade jurisdicional. Representa expressiva conquista do Estado democrático de direito, a consciência de que mecanismos de responsabilização dos juízes por inobservância das obrigações funcionais são também imprescindíveis à boa prestação jurisdicional. Na síntese feliz de JUAN MONTERO AROCA,276 a responsabilidade judicial é a outra face da moeda da independência, a sua contrapartida. E a necessidade, que o Programa de Desenvolvimento da ONU (PNUD) já enfatizou277, de se coordenarem ambas essas exigências, põe-nos, como bem o percebeu o saudoso MAURO CAPPELLETTI, diante de “um problema de equilíbrio entre o valor de garantia e instrumental da independência, externa e interna, dos juízes, e o outro valor moderno (mas também antigo, como se viu) do dever democrático de prestar contas”.278 E uma enorme dificuldade para se atingir tão sutil equilíbrio é fenômeno observado em toda a América Latina, como mostra WILLIAM PRILLAMAN.279 Entre nós, é coisa notória que os atuais instrumentos orgânicos de controle ético-disciplinar dos juízes, porque praticamente circunscritos às corregedorias, não são de todo eficientes, ARAÚJO CINTRA, ANTÔNIO CARLOS DE, GRINOVER, ADA PELLEGRINI e DINAMARCO, CÂNDIDO RANGEL. Ob. e loc. cit.. 274 O poder judiciário no Brasil: paradoxos, desafios e alternativas. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 1995, p. 71. 275 Independencia y responsabilidad del juez. Madrid: Civitas, 1990, p. 91. 276 Judicial independence in transitional country. United Nations Development Programme. Oslo: Governance. Centre, 2003, p. 27. 277 278 Ob. cit., p. 33. 279 Ob. cit., p. 19. FGV DIREITO RIO 153 atividades e atos administrativos sobretudo nos graus superiores de jurisdição, como já o admitiram com louvável sinceridade os próprios magistrados, em conhecido estudo de MARIA TEREZA SADEK.280 Realidade algo semelhante encontra-se nos demais países latino-americanos.281 Perante esse quadro de relativa inoperância dos órgãos internos a que se confinava o controle dos deveres funcionais dos magistrados, não havia nem há por onde deixar de curvar-se ao cautério de NICOLÓ TROCKER: “o privilégio da substancial irresponsabilidade do magistrado não pode constituir o preço que a coletividade é chamada a pagar, em troca da independência dos seus juízes”.282 Nem ao aviso de LIMA LOPES: “o Poder Judiciário não pode ser independente, no sentido de irresponsável, ou não prestar contas à sociedade, aos cidadãos, no que diz respeito à máquina judicial. Se quisermos livrar os juízes do controle dos cartórios, dos lobbies, das pressões corporativas, é preciso colocá-los ombreados com a cidadania”.283 Tem-se, portanto, de reconhecer, como imperativo do regime republicano e da própria inteireza e serventia da função, a necessidade de convívio permanente entre a independência jurisdicional e instrumentos de responsabilização dos juízes que não sejam apenas formais, mas que cumpram, com efetividade, o elevado papel que se lhes predica. Para isso, é preciso, com reta consciência e grandeza de espírito, desvestirem-se os juízes de preconceitos corporativos e outras posturas irracionais, como a que vê na imunidade absoluta e no máximo isolamento do Poder Judiciário condições sine qua non para a subsistência de sua imparcialidade. Como pondera o jurista norte-americano OWEN FISS: “It is simply not true that the more insularity the better, for a judiciary that is insulated from the popularly controlled institutions of government – the legislative and the executive branches – has the power to interfere with the actions or decisions of those institutions, and thus has the power to frustrate the will of the people. (…) We are thereby confronted with a dilemma. Independence is assumed to be one of the cardinal virtues of the judiciary, but it must be acknowledged that too much independence may be a bad thing. We want to insulate the judiciary from the more popularly controlled institutions, but should recognize at the same time some elements of political control should remain”.284 (“Simplesmente não é verdade que, quanto maior o isolamento, melhor, porque um Judiciário que está isolado das instituições governamentais sujeitas a controle popular - o Legislativo e o Executivo - tem o poder de interferir nas ações ou decisões dessas instituições e, assim, o poder de frustrar a vontade popular. (...) Estamos, portanto, diante de um dilema. A independência é tida como uma das virtudes cardinais do Judiciário, mas deve-se reconhecer que muita independência pode ser uma coisa negativa. Nós queremos isolar o Judiciário das instituições sujeitas a maior controle popular, mas deveríamos admitir, ao mesmo tempo, que alguns elementos de controle político deveriam remanescer”). Longe, pois, de conspirar contra a independência judicial, a criação de um órgão com poderes de controle nacional dos deveres funcionais dos magistrados responde a uma imperfeição contingente do Poder, no contexto do sistema republicano de governo. Afinal, “regime republicano é regime de responsabilidade. Os agentes públicos respondem por seus atos”.285 E os mesmos riscos teóricos de desvios pontuais, que se invocam em nome de justas preocupações, esses já existiam no estado precedente de coisas, onde podiam errar, e decerto em alguns casos erraram, os órgãos corregedores. Nem embaraça a conclusão, o fato de que tenham assento e voz, no Conselho, membros alheios ao corpo da magistratura. Bem pode ser que tal presença seja capaz de erradicar um dos mais evidentes males dos velhos organismos de controle, em qualquer país do mundo: o corporativismo, essa moléstia institucional 280 Ob. cit., esp. p. 118 e 126. 281 Ob. cit., p. 21. La responsabilità del giudice. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. 1982, p. 1.285, apud.CAPPELLETTI, MAURO. Ob. cit., p. 33. 282 283 LIMA LOPES, JOSÉ REINALDO DE. Crise da norma jurídica e reforma do judiciário. In: FARIA, JOSÉ EDUARDO (org). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 76. The right degree of independence. In: Transitions to democracy in Latin America: the role of judiciary, 1993, p. 56, apud PRILLAMAN, WILLIAM. Ob. cit., p. 17. Há recente tradução desse ensaio de OWEN FISS no Brasil, na obra Um novo processo civil – estudos norteamericanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 284 285 ATALIBA, GERALDO. República e constituição. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 65. FGV DIREITO RIO 154 atividades e atos administrativos que obscurece os procedimentos investigativos, debilita as medidas sancionatórias e desprestigia o Poder. Uma das mais graves degenerações suscetíveis de acometer os modernos aparatos judiciários é, segundo a observação incontestável de MAURO CAPPELLETTI, a “monopolização da responsabilidade disciplinar em mãos da própria magistratura e, conseqüentemente, na sua degeneração em instrumento de controle puramente corporativo, isolado da sociedade”. O perigo com que se defronta é o “‘isolamento’ da magistratura, a sua transformação num corps séparé, destacado do resto do sistema estatal e da sociedade em geral”.286 Igual opinião sustenta WILLIAM PRILLAMAN: “(...) an independent judiciary can degenerate not only into a politicized bureaucracy but also into an insular, unaccountableone”.287 E desse perigo não se isenta nem desvencilha o país. Do exame comparativo de diversos sistemas judiciários, conclui LIMA LOPES que “o Brasil é, nesta série de exemplos, um caso único, como se vê, em que independência e autonomia estão mais próximas do sistema do antigo regime de patrimonialidade dos cargos, de exclusivismo corporativo até, do que de democracia propriamente dita. Aqui talvez se esteja confundindo, no debate atual, autonomia do Poder Judiciário com capacidade de isolamento. É da maior importância, hoje, não confundir autonomia e independência do Judiciário com seu isolamento social”.288 A presença, aliás minoritária e com mandatos pessoais de duração limitada, de membros não pertencentes aos quadros da magistratura, aparece como um dos remédios contra o mal. A respeito, é bom ouvir de novo a MAURO CAPPELLETTI: “a arma talvez mais freqüentemente utilizada para combater essa degeneração consiste em incluir membros ‘laicos’ nos órgãos investidos do poder disciplinar, mais uma vez na tentativa de encontrar razoável equilíbrio entre o valor da independência e o de certo grau de união, que em verdade nunca deveria faltar completamente, do judiciário com o resto do body politic”.289 Uma persistente conexão entre o Judiciário e o corpo político é, ademais, importante fator de legitimação social e democrática – não falo aqui do mito do déficit de legitimação democrática, mas de outra coisa - que não deve subestimado por arrogância da magistratura, pois, como nota BOAVENTURA SOUSA SANTOS, “a democratização da administração da justiça é uma dimensão fundamental da democratização da vida social, económica e política”, cuja abertura deve, como ideal, incluir “o maior envolvimento e participação dos cidadãos, individualmente ou em grupos organizados, na administração da justiça”.290 De modo que, num juízo objetivo e sereno, como convém à matéria e ao interesse público, a composição do Conselho – cujo modelo não pode deixar de ser “pluralístico e democrático”291 - estende uma ponte entre o Judiciário e a sociedade, de um lado permitindo oxigenação da estrutura burocrática do Poder e, de outro, respondendo às críticas severas, posto nem sempre de todo justas para com a instituição, que lhe vinham de fora e de dentro, como ecos da opinião pública. De fora, DALMO DE ABREU DALLARI pregava: “(...) é necessário estabelecer um sistema de controle. É oportuno lembrar aqui a atitude de Thomas Jefferson, que defendeu com firmeza a independência dos juízes e tribunais, mas admitiu que tinha medo do corporativismo dos magistrados, o que pode significar não só uma comunhão de interesses, mas também um relacionamento afetivo. Daí a conveniência de um órgão controlador, integrado, em sua maioria, por magistrados, mas também por profissionais de outras áreas jurídicas, como se tem feito para compor bancas examinadoras de concursos de ingresso na magistratura. Não se pode esquecer que o Poder Judiciário exerce poder público, age em nome do povo, embora seus membros não sejam escolhidos por meio de eleição popular. Por isso é necessário um controle democrático de seu desempenho, que assegure a obediência às regras legais e a prevalência do interesse Ob cit., p. 73 e 75. Mesma opinião foi expressa pelo autor no ensaio Who watches the watchmen?. In: American journal of comparative law, v. 31, 1983, p. 48 e 50. 286 287 Ob. cit., p. 16. LIMA LOPES, JOSÉ REINALDO DE. Ob. cit., p. 80. 288 289 Ob. cit., pp. 75-76. Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade. 9ª ed. São Paulo: Cortez, 1995, p. 177. 290 ZAFFARONI, EUGENIO RAÚL. Ob. cit., p. 130. 291 FGV DIREITO RIO 155 atividades e atos administrativos público, mantendo o requisito fundamental, que é a garantia da independência dos juízes”.292 De dentro, o ilustre Min. CELSO DE MELLO era só mais sutil: “Estou cada vez mais convencido da necessidade de controle externo sobre o Poder Judiciário. Fiscalização e responsabilidade são princípios do modelo republicano. A fiscalização externa não compromete o princípio da separação dos Poderes. Ela não quer dizer que se vá exercer censura sobre o pensamento dos magistrados. A independência dos juízes deve ser preservada. Mas ela não é uma finalidade em si própria. É preciso ter juízes independentes para se poder ter cidadãos livres”.293 “O Judiciário só pode enfraquecer se seus membros falharem gravemente no desempenho das suas funções. Os magistrados devem se expor democraticamente à crítica social. Nenhum Poder da República está acima da Constituição, nem pode pretender que sua fisionomia institucional não possa ser redesenhada”.294 “(...) entendo que a discussão em torno da fiscalização externa torna-se essencial até mesmo para conferir legitimidade político-social à atividade do magistrado e evitar que abusos funcionais, que situações de ilicitude que ocorrem lamentavelmente na intimidade dos corpos judiciários continuem a ocorrer. É preciso fiscalizar”.295 O real temor gerado pela presença de não-magistrados no Conselho Nacional de Justiça está em que sua fiscalização ético-disciplinar, num plano de superposição, transponha os horizontes constitucionais e legais, transformando-se em instrumento de dominação política da magistratura. Não se deve baratear tão válida preocupação de que um controle arbitrário corrompa as condições e garantias de imparcialidade dos juízes e, como tal, desnature a Jurisdição. Mas não se deve tampouco sobreestimá-la, nem ceder a puras fantasias, como se não dispusesse o sistema de mecanismos aptos de defesa, com força bastante para neutralizar riscos teóricos. Neste passo, vale a pena chamar a atenção para o fato de que a própria Emenda Constitucional nº 45/2004 contém provisões adequadas a garantir que o exercício do poder disciplinar se paute por critérios de rigorosa legalidade. Relembre-se, ainda uma vez, que a maioria qualificada de membros do Conselho é formada de juízes e, pois, de pessoas insuspeitas à magistratura, aprovadas e experimentadas no ofício de aplicar a lei. Donde é lícito crer que tal maioria constitua o primeiro elemento regulador da retidão e legitimidade do uso do poder de controle atribuído ao órgão. Acresça-se-lhe a circunstância, não menos significativa, de que a função de Ministro-Corregedor é destinada ao Ministro representante do Superior Tribunal de Justiça (art. 103-B, § 5º). Mas até a minoria, composta por não-magistrados, é tida, sob vigorosa presunção hominis, por afeita às atividades jurisdicionais, não só no caso manifesto dos representantes do Ministério Público e da advocacia, senão também no dos dois cidadãos que, indicados pelo Legislativo, devam, à moda dos candidatos a esta Corte (art. 101 da Constituição da República), possuir “notável saber jurídico e reputação ilibada”. Que outros requisitos se poderiam pedir aos membros não-magistrados, como garantia de vivência jurídica, de compromisso com a autonomia do Poder e de fidelidade à lei? Ao depois, a participação de juízes de hierarquia inferior em decisões disciplinares sobre atos de juízes de categoria superior não rompe nenhum princípio nem regra constitucional imutável, porque não encerra nem supõe atribuição de competência monocrática cujo exercício subverta relações hierárquicas. É que o caso retrata apenas competência destinada a formar a vontade coletiva de órgão colegiado, ao qual é adjudicado o poder de decidir. A argüição da autora, aqui, nasce de erro de perspectiva, porque não atina com o fato de que a relação hierárquica, pressuposta ao poder de decidir, se estrutura entre o órgão superior, o Conselho, e o juiz subordinado, cuja conduta é objeto Juízes independentes, judiciário sob controle social. In: Revista da associação dos magistrados do Estado do Rio de Janeiro, ano 2, n. 8, p. 33. Grifos nossos. 292 Entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, em 11.04.99. 293 Entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, em 19.03.99. 294 Apud SADEK, MARIA TEREZA. Ob. cit., p. 132. 295 FGV DIREITO RIO 156 atividades e atos administrativos do julgamento, não entre este e o juiz ou juízes integrantes do Conselho, os quais só podem ser considerados de hierarquia inferior sob outro ponto de vista. A competência de decidir e o conteúdo da decisão são juridicamente imputados ao órgão, não a cada uma das pessoas que o compõem. A relação hierárquica correspondente forma-se no nível decisório (eficácia da decisão), entre órgão superior e magistrado que lhe está sujeito, o que nada tem a ver com o tipo de subordinação que se dá noutro plano, o dos degraus da carreira. 7. Entre os membros laicos, cuja previsão dá caráter heterogêneo à composição do Conselho Nacional de Justiça, constam dois representantes do Ministério Público e dois advogados, todos indicados pelos pares (art. 103-B, incs. XI e XII). Por mais que forcejasse, não encontrei nenhuma razão de índole constitucional que lhes pudera vetar a participação no Conselho. Pressuposto agora que a instituição do Conselho, não apenas simboliza, mas também opera ligeira abertura das portas do Judiciário para que representantes da sociedade tomem parte no controle administrativo-financeiro e ético-disciplinar da atuação do Poder, robustecendo-lhe o caráter republicano e democrático, nada mais natural que os dois setores sociais, cujos misteres estão mais próximos das atividades profissionais da magistratura, a advocacia e o Ministério Público, integrem o Conselho responsável por esse mesmo controle. Não é à toa que ambas as profissões são objeto de normas da Constituição da República, no âmbito do capítulo reservado à disciplina das “funções essenciais à Justiça”. De acordo com o art. 127, “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado”. E o art. 133 reputa o advogado “indispensável à administração da justiça”. Esses cânones não se limitam a refletir ou reafirmar, no mais alto escalão nomológico, certos truísmos ligados aos papéis da advocacia e do Ministério Público, como, v. g., que suas iniciativas técnicas desencadeiam o exercício da função jurisdicional, cuja inércia é garantia da imparcialidade que a caracteriza como monopólio e obrigação do Estado. Ou que, como órgãos dotados de capacidade postulatória, legitimem esse mesmo exercício, dando concreção a todos os princípios inerentes à cláusula do justo processo da lei (due process of law). Aqueles preceitos vão além, porque concebem e proclamam, como ingredientes da própria ordem jurídico-constitucional, a dignidade e a relevância da advocacia e do Ministério Público enquanto funções essenciais da Justiça, e cujos titulares são, como tais, merecedores de garantias, como a inviolabilidade relativa dos atos emanifestações emanados no exercício da profissão de advogado (art. 133), e asprerrogativas e vedações análogas às dos juízes, relativamente aos membros do MinistérioPúblico (art. 128, § 5º). Eis o fundamento da previsão de participação da Ordem dosAdvogados em todas as fases do concurso de ingresso na carreira da magistratura (art. 93,I). Tudo isso comprova a decisiva responsabilidade que, ao lado da magistratura, pesa, já no plano constitucional originário, à advocacia e ao Ministério Público, quanto ao correto desenvolvimento da atividade estatal que, atribuída como função típica ao Poder Judiciário no quadro da separação dos poderes, constitui a própria razão de ser das três categorias profissionais. De modo que, pelo menos no nível teórico, e é esse o que sobreleva na causa, os rumos dos interesses institucionais não podem deixar de convergir para o mesmo propósito político: o aprimoramento da atividade jurisdicional. É, pois, compreensível e conforme, não contrário, aos princípios que, presumindo-se ambas as instituições aptas e interessadas em oferecer contribuições valiosas ao aperfeiçoamento da função jurisdicional, a advocacia e o Ministério Público ganhem posto e dever de cooperação no seio do órgão agora predestinado ao controle nacional da atuação administrativo-financeira e ético-funcional do Judiciário. FGV DIREITO RIO 157 atividades e atos administrativos Por fim, se o instituto que atende pelo nome de quinto constitucional, enquanto integração de membros não pertencentes à carreira da magistratura em órgãos jurisdicionais, encarregados do exercício da função típica do Judiciário, não ofende o princípio da separação e independência dos Poderes, então não pode ofendê-la a fortiori a mera incorporação de terceiros em órgão judiciário carente de competência jurisdicional. 8. Terão sido estas, desconfio, algumas das razões que levaram o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, no bojo dos votos proferidos no julgamento das ADI nº 98 e nº 183, a sustentar que eventual presença de representante da Ordem dos Advogados do Brasil, em conselho dotado de atribuições similares às do órgão criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, poderia amparar-se na “definição constitucional da advocacia como função essencial à Justiça”. E, em entrevista à imprensa, a deixar clara sua posição favorável à “abertura para integrantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do Ministério Público”, de conselho destinado a ‘formular políticas e uniformizar critérios administrativos para o setor”.296 E por coincidência, mais ou menos na mesma época, também o Min. CARLOS VELLOSO se pronunciou publicamente pela criação de um Conselho Nacional da Magistratura que contasse com a participação de representantes “do Ministério Público, além de membros da OAB e outras instituições idôneas”.297 Não fora impróprio, eu até diria que já não devem agora sentir-se lá confortáveis os advogados e os membros do Ministério Público, porque, com o assento dos seus representantes no Conselho, se despem da cômoda posição de observadores críticos, para se converterem em co-responsáveis formais pelos rumos do Judiciário. 9. A autora deduz ainda outro argumento que se prestaria a demonstrar a inconstitucionalidade do Conselho, cuja instituição violaria o pacto federativo, “ao submeter o poder judiciário dos estados membros à supervisão administrativa e disciplinar do conselho nacional de justiça” (fls. 30). Também aqui não lhe dou razão. O pacto federativo não se desenha nem expressa, em relação ao Poder Judiciário, de forma normativa idêntica à que atua sobre os demais Poderes da República. Porque a Jurisdição, enquanto manifestação da unidade do poder soberano do Estado, tampouco pode deixar de ser una e indivisível, é doutrina assente que o Poder Judiciário tem caráter nacional, não existindo, senão por metáforas e metonímias, “Judiciários estaduais” ao lado de um “Judiciário federal”. A divisão da estrutura judiciária brasileira, sob tradicional, mas equívoca denominação, em Justiças, é só o resultado da repartição racional do trabalho da mesma natureza entre distintos órgãos jurisdicionais. O fenômeno é corriqueiro, de distribuição de competências pela malha de órgãos especializados, que, não obstante portadores de esferas próprias de atribuições jurisdicionais e administrativas, integram um único e mesmo Poder. Nesse sentido fala-se em Justiça Federal e Estadual, tal como se fala em Justiça Comum, Militar, Trabalhista, Eleitoral, etc., sem que com essa nomenclatura ambígua se enganem hoje os operadores jurídicos. Na verdade, desde JOÃO MENDES JÚNIOR, cuja opinião foi recordada por CASTRO NUNES,298 sabe-se que: “O Poder Judiciário, delegação da soberania nacional, implica a idéia de unidade e totalidade da fôrça, que são as notas características da idéia de soberania. O Poder Judiciário, em suma, quer pelos juízes da União, quer pelos juízes dos Entrevista concedida ao Jornal de Brasília, em 22.09.1995. 296 Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em 26.12.1994. 297 Teoria e prática do poder judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1943, p. 77. 298 FGV DIREITO RIO 158 atividades e atos administrativos Estados, aplica leis nacionais para garantir os direitos individuais; o Poder Judiciário não é federal, nem estadual, é eminentemente nacional, quer se manifestando nas jurisdições estaduais, quer se aplicando ao cível, quer se aplicando ao crime, quer decidindo em superior, quer decidindo em inferior instância.299 Desenvolvendo a idéia, asseveram ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO: “O Poder Judiciário é uno, assim como una é a sua função precípua – a jurisdição – por apresentar sempre o mesmo conteúdo e a mesma finalidade. Por outro lado, a eficácia espacial da lei a ser aplicada pelo Judiciário deve coincidir em princípio com os limites espaciais da competência deste, em obediência ao princípio una lex, una jurisdictio. Daí decorre a unidade funcional do Poder Judiciário. É tradicional a assertiva, na doutrina pátria, de que o Poder Judiciário não é federal nem estadual, mas nacional. É um único e mesmo poder que se positiva através de vários órgãos estatais – estes, sim, federais e estaduais. (...) (...) fala a Constituição das diversas Justiças, através das quais se exercerá a função jurisdicional. A jurisdição é uma só, ela não é nem federal nem estadual: como expressão do poder estatal, que é uno, ela é eminentemente nacional e não comporta divisões. No entanto, para a divisão racional do trabalho é conveniente que se instituam organismos distintos, outorgando-se a cada um deles um setor da grande ‘massa de causas’ que precisam ser processadas no país. Atende-se, para essa distribuição de competência, a critérios de diversas ordens: às vezes, é a natureza da relação jurídica material controvertida que irá determinar a atribuição de dados processos a dada Justiça; outras, é a qualidade das pessoas figurantes como partes; mas é invariavelmente o interesse público que inspira tudo isso (o Estado faz a divisão das Justiças, com vistas à melhor atuação da função jurisdicional)”.300 Negar a unicidade do Poder Judiciário importaria desconhecer o unitário tratamento orgânico que, em termos gerais, lhe dá a Constituição da República. Uma única lei nacional, um único estatuto, rege todos os membros da magistratura, independentemente da qualidade e denominação da Justiça em que exerçam a função (Lei Complementar nº 35, de 14.03.1979; art. 93, caput, da CF). A todos aplicam-se as mesmas garantias e restrições, concebidas em defesa da independência e da imparcialidade. Códigos nacionais disciplinam o método de exercício da atividade jurisdicional, em substituição aos códigos de processo estaduais. Por força do sistema recursal, uma mesma causa pode tramitar da mais longínqua comarca do interior do país, até os tribunais de superposição, passando por órgãos judiciários das várias unidades federadas. E, para não alargar a enumeração de coisas tão conhecidas, relembre-se que a União retém a competência privativa para legislar sobre direito processual (art. 22, inc. I). Nesse diagrama constitucional, nunca se ouviu sustentar que as particularidades concretas da organização da estrutura judiciária violassem o pacto federativo. E não se ouviu, porque perceptível sua natureza nacional e unitária, embora decomposta e ramificada, por exigências de racionalização, em múltiplos órgãos dotados de sedes e de âmbitos distintos de competência. Não se descobre, pois, sob esse ângulo, porque a instituição do Conselho Nacional de Justiça não se ajustaria à organização constitucional do Poder. Não se quer com isso afirmar que o princípio federativo não tenha repercussão na fisionomia constitucional do Judiciário. Sua consideração mais evidente parece estar à raiz ALMEIDA JÚNIOR, JOÃO MENDES DE. Direito judiciário brasileiro. 5ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 47. Grifos do original. 299 300 Ob. cit., p. 166 e 184. FGV DIREITO RIO 159 atividades e atos administrativos da norma que delega aos Estados-membros competência exclusiva para organizar sua Justiça, responsável pelo julgamento das causas respeitantes a cada unidade federada (art. 125). Toca-lhes, assim, definir a competência residual de seus tribunais, distribuí-la entre os vários órgãos de grau inferior, bem como administrá-la na forma prevista no art. 96, coisa que revela que a estrutura judiciária tem um dos braços situados nas Justiças estaduais. Mas a criação do Conselho Nacional de Justiça em nada altera esse quadro, nem desfigura doutro modo o pacto federativo. Ademais, o Conselho reúne as características palpáveis de órgão federal, enquanto representativo do Estado unitário, formado pela associação das unidades federadas, mas não, de órgão da União. O Conselho não é concebido nem estruturado como órgão da União, e, sim, do Poder Judiciário nacional, donde ser irrelevante que seu orçamento seja federal, pois a origem da fonte de custeio não transmuda a natureza nem a relação de pertinência do órgão no plano da separação dos Poderes, que é o plano onde se situa o critério de sua taxinomia, que nada tem com outro plano classificatório, o das unidades da federação. A inicial, aqui, incide noutro erro de ótica, pois não vê o plano lógico em que está o critério de divisão dos órgãos do mesmo Poder, só enxergando o que discerne entre as entidades elementares da Grifos do original. federação. E é tão impróprio quanto supor que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, não pudessem julgar recursos interpostos em causas da competência de órgãos jurisdicionais estaduais, ou de interesse de municípios, porque o custeio de ambos corre à conta do orçamento da União. Daí, não ser lícito estabelecer comparações do Conselho com os Executivos e Legislativos estaduais e municipais, porque estes não constituem Poderes nacionais, senão que se situam, definem e qualificam dentro das respectivas camadas da federação. E tampouco se pode imaginar, como pretende a inicial, que haveria supervisão administrativa, orçamentária, financeira e disciplinar dos órgãos judiciários estaduais por órgão da União. O Conselho, repita-se, não é órgão da União. Sua composição reverencia e contempla as duas esferas federativas dotadas de Justiças, a União e os Estados-membros, os quais contam ali com representantes das respectivas magistraturas (art.103-B, incs. I a IX). Além disso, a indicação de um cidadão pelo Senado Federal exprime de certa maneira, senão a vontade, pelo menos forma indireta de participação dos Estados (art. 103-B, inc. XIII). Não vejo, pois, como cogitar de violação ao princípio federativo. Não é, como tentei demonstrar, imutável o conteúdo concreto da forma federativa. As relações de subordinação vigentes na estrutura do Judiciário, dado seu caráter nacional, como o reconhece a autora (item 51 da inicial), podem ser ampliadas e desdobradas pelo constituinte reformador, desde que tal reconfiguração não rompa o núcleo essencial das atribuições do Poder em favor de outro. E foram redefinidas pela Emenda nº 45, sem usurpação de atribuições por outro Poder, nem sacrifício da independência. A redução das autonomias internas, atribuídas a cada tribunal, não contradiz, sob nenhum aspecto, o sistema de separação e independência dos Poderes. A Corte cansou-se de proclamar que não são absolutas nem plenas as autonomias estaduais, circunscritas pela Constituição (art. 25), porque, se o fossem, seriam soberanias. E o Conselho não tem competência para organizar nem reorganizar as Justiças estaduais. E é só órgão que ocupa, na estrutura do Poder Judiciário, posição hierárquica superior à do Conselho da Justiça Federal e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, no sentido de que tem competência para rever-lhes os atos deste e daquele. Ora, está nisso o princípio capaz de resolver, em concreto, os conflitos aparentes de competência. FGV DIREITO RIO 160 atividades e atos administrativos Por outro lado, a competência do Conselho para expedir atos regulamentares destinase, por definição mesma de regulamento heterônomo, a fixar diretrizes para execução dos seus próprios atos, praticados nos limites de seus poderes constitucionais, como consta, aliás, do art. 103-B, § 4º, I, onde se lê: “no âmbito de sua competência”. A mesma coisa é de dizer-se a respeito do poder de iniciativa de propostas ao Congresso Nacional (art. 103-B, § 4º, inc. VII). Como consectário do princípio da unidade do Judiciário como Poder nacional, o Conselho recebeu ainda competência de reexame dos atos administrativos dos órgão judiciais inferiores, ou seja, o poder de controle interno da constitucionalidade e legitimidade desses atos. Ora, tal competência em nada conflita com as competências de controle exterior e posterior, atribuídas ao Legislativo e aos tribunais de contas. E o argumento vale para todos os atos de autogoverno, cujo poder não é subtraído, mas cujo exercício é submetido a processo de aperfeiçoamento mediante revisão eventual de órgão superior. E, por fechar, neste tópico, o conjunto de respostas aos argumentos pontuais da demandante, nada mais insuspeito e apropriado do que transcrever opinião do então juiz LUIS FLÁVIO GOMES, em monografia de cerrada crítica a propostas de composição semelhante à do Conselho: “O que está faltando na estrutura do Poder Judiciário brasileiro é a criação de um Conselho Nacional de Magistratura, que deve encarregar-se, precipuamente, de duas tarefas: do controle disciplinar de todos os juízes do país (esse controle seria originário em relação aos juízes de tribunais e em grau de recurso em relação aos juízes de primeiro grau), bem como da qualidade do juiz e do serviço prestado por todos os órgãos jurisdicionais. Seria ainda da sua competência a supervisão dos atos administrativos praticados pelos Tribunais bem como os de gestão orçamentária. Por ser um órgão idealizado para unificar a política judicial em todo país, é evidente que ainda lhe caberia encarregar-se da atividade correicional (fiscalização), sem prejuízo da exercida pelos Órgãos censórios já existentes nos vários setores da Justiça; (...) O Judiciário necessita de um órgão nacional de controle, que receba as reclamações contra as atividades administrativas dos juízes e tribunais, assim como contra a qualidade do serviço judicial prestado, excluindo-se a estrita atividade jurisdicional que já está sujeita ao controle recursal. Os Tribunais devem controlar os juízes e o Conselho Nacional deve controlar diretamente os Tribunais e indiretamente todos os juízes, mas sempre no que diz respeito ao âmbito administrativo e disciplinar. (...) O que desejamos é um eficiente, criterioso e sobretudo transparente controle interno, de responsabilidade das corregedorias e tribunais assim como do Conselho Nacional. Se uma questão disciplinar de um juiz não encontra um justo equacionamento nos tribunais, que continuarão normalmente com sua atividade censória, será possível corrigir eventualmente falha perante o Conselho Nacional da Magistratura”.301 É antiga, aliás, em nosso sistema político-constitucional, a existência de órgãos federais a que se comete o papel de representar, arbitrar ou proteger os mais insignes interesses das unidades federadas, como é o caso do Senado (art. 46) e, até, desta Suprema Corte, com competência para o julgamento de conflitos que envolvam a “União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros” (art. 102, inc. I, “f ”). A esse paradigma pode também reconduzir-se a instituição do Conselho, que, sob a rubrica das atribuições inerentes ao poder de controle da atuação administrativa e financeira do Judiciário (art. 103-B, § 4º), assume o dever jurídico de diagnosticar problemas, planejar políticas e formular projetos, com vistas ao aprimoramento da organização judiciária e da prestação jurisdicional, em todos os níveis, como exigência da própria feição difusa da A questão do controle externo do poder judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 36, 37 e 38, nº 301 FGV DIREITO RIO 161 atividades e atos administrativos estrutura do Poder nas teias do pacto federativo. Como já acentuamos, somente um órgão de dimensão nacional e de competências centralizadas pode, sob tais aspectos, responder aos desafios da modernidade e às deficiências oriundas de visões e práticas fragmentárias na administração do Poder. O Conselho não anula, antes reafirma o princípio federativo. 10. A autora invoca ainda, em socorro de sua pretensão, algumas decisões da Corte em ações diretas de inconstitucionalidade dirigidas à criação de conselhos estaduais de “controle externo” dos órgãos judiciários. De fato, chamado a avaliar a legitimidade constitucional de órgãos desse tipo, rejeitou-a sempre o Supremo Tribunal Federal, cuja invariável jurisprudência ao propósito consolidou-se na súmula 649 (“é inconstitucional a criação, por Constituição Estadual, de órgão de controle administrativo do Poder Judiciário do qual participem representantes de outros Poderes ou entidades”). Análise cuidadosa e, sobretudo, desinteressada mostra, todavia, que os precedentes se não ajustam nem aplicam ao caso. Em todos eles, era substancialmente diversa a situação posta ao julgamento da Corte. Em primeiro lugar, os conselhos criados por leis dos Estados da Paraíba, do Mato Grosso, de Sergipe, do Ceará e do Pará, objetos daqueles precedentes, figuravam autênticos órgãos externos ao Poder Judiciário, concebidos e disciplinados em posições marginais à sua estrutura orgânico-burocrática. Aliás, no caso decidido na ADI nº 197, o art. 115 da Constituição do Estado de Sergipe preceituava, literalmente, que o conselho era “órgão de controle externo”, e era-o em substância. Nenhuma das composições desses colegiados contava tampouco com presença majoritária de membros pertencentes às magistraturas estaduais. A representação dos juízes era ali, em todos os conselhos, apenas equiparada, quando não inferior ao número de membros advindos doutros setores sociais (cf. ADI nº 197, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, DJ de 25.05.90; ADI nº 251, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO, DJ de 02.04.93; ADI nº 135, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, DJ de 15.08.97; ADI nº 98, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 31.10.97, ADI nº 137, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ de 03.10.97). Ora, não é esse o caso do Conselho Nacional de Justiça, que se define como órgão interno do Judiciário e, em sua formação, apresenta maioria qualificada (três quintos) de membros da magistratura (arts. 92, 1-A e 103-B). Desses caracteres vem-lhe a natureza de órgão de controle interno, conduzido pelo próprio Judiciário, conquanto democratizado na composição por meio da participação minoritária de representantes das áreas profissionais afins. Os conselhos criados pelos Estados da Paraíba, Mato Grosso e Pará, compunham-nos, ainda, membros originais do Legislativo estadual (deputados), cuja presença não deixava nenhuma dúvida quanto à forma de interferência direta doutro Poder. No Conselho Nacional de Justiça, dois dos quinze membros são apenas indicados pelo Poder Legislativo, mas escolhidos fora de seus quadros de agentes e políticos, dentre os cidadãos, sem nenhum vestígio de representação nem de interferência orgânica. É, pois, notável a distância que medeia entre uma coisa e outra. Ao depois, e está aqui verdade jurídica que se deve antecipar e proclamar com toda a clareza, os Estados-membros carecem de competência constitucional para instituir conselhos, internos ou externos, destinados a controle de atividade administrativa, financeira ou disciplinar das respectivas Justiças, porque a autonomia necessária para o fazer seria incompatível com o regime jurídico-constitucional do Poder Judiciário, cuja unidade reflete a da soberania nacional. FGV DIREITO RIO 162 atividades e atos administrativos O Poder Judiciário é nacional e, nessa condição, rege-se por princípios unitários enunciados pela Constituição, a qual lhe predefine ainda toda a estrutura orgânica, sem prejuízo das competências que delega a cada um dos grandes ramos nela previstos. Seu funcionamento obedece, em todos os níveis, a leis processuais uniformes, editadas exclusivamente da União (art. 22, inc. I), e seus membros, os magistrados, assujeitam-se a um único regime jurídico-funcional (art. 93, caput). De modo que eventual poder de criação de conselho estadual, ordenado ao controle administrativo-financeiro e disciplinar da divisão orgânica do Poder, atribuída com fisionomia uniforme às unidades federadas, violentaria a Constituição da República, porque lhe desfiguraria o regime unitário, ao supor competência de controles díspares da instituição, mediante órgãos estaduais, cuja diversidade e proliferação, isto, sim, meteriam em risco o pacto federativo. Ora, tal vício de inconstitucionalidade, que já mareava a criação daqueles esdrúxulos órgãos estaduais, não guarda nenhuma pertinência com a hipótese. O Conselho Nacional de Justiça é órgão judiciário de âmbito nacional, com atribuições para atuar de maneira unitária e estratégica sobre todas as estruturas orgânicas do Poder. E colhe-se outro dado fundamental, que remarca e exaspera a profunda diferença entre aqueles precedentes e este caso. O juízo de constitucionalidade das normas instituidoras dos conselhos fez-se, é óbvio, à luz da arquitetura que assumia o princípio da separação dos Poderes, à época, na Constituição da República, cujas regras, escusaria dizê-lo, não podiam ceder a leis subalternas. No mais profundo daqueles julgamentos, realizado na ADI nº 98, relatada pelo Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, foi reconhecido o fato, aqui já sobrelevado, de que: “o princípio da separação e independência dos Poderes, malgrado constitua um dos signos distintivos fundamentais do Estado de Direito, não possui fórmula universal apriorística: a tripartição das funções estatais, entre três órgãos ou conjuntos diferenciados de órgãos, de um lado, e, tão importante quanto essa divisão funcional básica, o equilíbrio entre os poderes, mediante o jogo recíproco dos freios e contrapesos, presentes ambos em todas elas, apresentam-se em cada formulação positiva do princípio com distintos caracteres e proporções”. Sob tal luz, reputou-se que a criação do conselho estadual feria o postulado da tripartição dos Poderes, tal como desenhado pelo conjunto das normas constitucionais então vigentes. Ora, a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, como produto do exercício de competência de que não dispunham nem dispõem os legisladores estaduais, operou, em resposta a uma singular necessidade sociopolítica de aperfeiçoamento do Judiciário, mais uma adaptação histórica na formulação positiva do princípio da separação, sem vulnerar-lhe a cláusula constitucional que proíbe a espoliação do cerne das atribuições de um Poder em benefício de outro. De modo que, por muitas e boas razões, não faz senso chamar este caso singular a contas com jurisprudência fundada noutros pressupostos constitucionais. 12. Ao cabo desta já longa argumentação sobre o objeto central da demanda, não tenho a mais tênue dúvida acerca da constitucionalidade das normas impugnadas. Devo confessar, porém, que, durante as esforçadas meditações em que, sobre o tema, pus à prova a minha consciência, foi outra a razão decisiva que, em remate, me seduziu e convenceu. E FGV DIREITO RIO 163 atividades e atos administrativos essa poderosa razão diz com a regra do art. 102, inc. l, letra “r”, que, introduzida, na Constituição da República, pela Emenda Constitucional nº 45, comete ao Supremo Tribunal Federal competência para, julgando ações, rever os atos praticados pelo Conselho Nacional de Justiça. Entre parênteses, noto que, ao tempo dos conselhos estaduais fulminados, não havia, aliás, no sistema, nem se justificava então que houvesse, nenhuma regra análoga, o que só reforça e agrava a radical impertinência dos precedentes invocados. Toda a estrutura lógico-jurídica do raciocínio do meu voto reduz-se à tentativa de, submetendo as normas da Emenda a estreito confronto com os princípios e regras que disciplinam e formam nosso sistema constitucional de separação de poderes, entendido nas perspectivas históricas e políticas de garantia da liberdade dos cidadãos contra os riscos institucionais do arbítrio e da prepotência, estimar se de algum modo não comprometiam, em última instância, a independência e a imparcialidade dos juízes, sem as quais ninguém pode realizar seu projeto histórico de convivência ética, nem se concebe Estado Democrático de Direito. Afinal, na sabatina obrigatória perante o Senado da República, já havia eu professado, não apenas a título de opinião de cidadão, senão também como firme convicção jurídica, que me opunha a toda proposta que pusesse em risco, direto ou indireto, próximo ou remoto, a garantia constitucional da independência e imparcialidade dos juízes, parecendo-me discutíveis todas as demais. Dissiparam-se-me as hesitações, quando, não podendo deixar de reconhecer, na ratio iuris da criação do Conselho, a necessidade sociopolítica de um órgão nacional de controle das atividades judiciárias, visto como um de muitos instrumentos hábeis de reforma, já não experimentei nenhum receio racional de que sua estruturação, nos termos da Emenda, pudesse descambar, sem reparo nem remédio, para excessos esporádicos, mas passíveis de alimentar um clima de insuportável intimidação. E já não experimentei, porque, para além de todos os mecanismos intrínsecos de resguardo da autonomia do Poder Judiciário, pressupostos alguns na Emenda e previstos outros na precedente ordem constitucional, a cujo respeito terá sido longo o discurso do meu voto, dei com a competência, atribuída a esta Corte, de revisão da constitucionalidade e da legitimidade dos atos do Conselho Nacional de Justiça. Está aí, nessa nobre responsabilidade que o constituinte derivado depositou nos ombros desta Casa, a garantia última e específica que a obriga, como órgão supremo do Poder Judiciário e guardião da Constituição da República, a velar pela independência e imparcialidade dos juízes, aos quais já não sobra pretexto para se arrecearem de coisa alguma. Ninguém pode, aliás, alimentar nenhuma dúvida a respeito da posição constitucional de superioridade absoluta desta Corte, como órgão supremo do Judiciário e, como tal, armado de preeminência hierárquica sobre o Conselho, cujos atos e decisões, todos de natureza só administrativa, estão sujeitos a seu incontrastável controle jurisdicional. É o que logo notou a doutrina: “Não bastasse a natureza do STF que, na estrutura do estado brasileiro, se põe acima de qualquer outro órgão administrativo ou judiciário, incumbido da guarda da Constituição (art. 102, caput), a Emenda entregou a ele o controle jurisdicional das decisões do Conselho Nacional de Justiça, conferindo-lhe competência para as ações contra o órgão, mediante a adoção da alínea r do inciso I do art. 102 da Constituição. Controlador do CNJ, não pode o Supremo ser, de nenhum modo, controlado por ele”.302 BERMUDES, SÉRGIO. A reforma do Judiciário pela emenda constitucional nº 45. Ob. cit., p. 137. 302 FGV DIREITO RIO 164 atividades e atos administrativos E essa tranqüilidade final do meu convencimento mostrou ainda quão inútil era o alvitre de recorrer ao expediente técnico-jurídico de redução teleológica do alcance da Emenda, para, contornando dificuldades observadas alhures,303 sugerir interpretação que privasse os membros laicos do Conselho Nacional de Justiça de votar em matéria ético disciplinar dos magistrados. O Supremo Tribunal Federal é o fiador da independência e imparcialidade dos juízes, em defesa da ordem jurídica e da liberdade dos cidadãos. 13. O último tópico da inicial impugna o disposto no art. 103-B, § 4º, inc. III, que, também introduzido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, se ressentiria de inconstitucionalidade formal, uma vez que a expressão “perda do cargo”, contida no texto vindo da Câmara dos Deputados, foi suprimida ao texto aprovado no Senado Federal. O argumento é de que a norma decotada deveria submetida à reapreciação da Câmara, em atenção ao art. 60, § 2º, da Constituição da República. A Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República invocaram, com muita propriedade, precedentes da Corte que demonstram não padecer de inconstitucionalidade o dispositivo. Este tribunal, deveras, já assentou: “Proposta de emenda que, votada e aprovada na Câmara dos Deputados, sofreu alteração no Senado Federal, tendo sido promulgada sem que tivesse retornado à Casa iniciadora para nova votação quanto à parte objeto de modificação. Inexistência de ofensa ao art. 60, § 2º da Constituição Federal no tocante à supressão, no Senado Federal, da expressão “observado o disposto no § 6º do art. 195 da Constituição Federal”, que constava do texto aprovado pela Câmara dos Deputados em 2 (dois) turnos de votação, tendo em vista que essa alteração não importou em mudança substancial do sentido do texto (Precedente: ADC nº 3, rel. Min. Nelson Jobim)” (ADI nº 2.666, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ de 06.12.2002). “Quanto à alteração ocorrida na Câmara dos Deputados, relativa à supressão das palavras ‘ou restabelecê-la’, em seguida ao verbo ‘reduzir’, no § 1º do novo art. 75, sem que a proposta tivesse retornado ao Senado para nova apreciação, tenho que esse aspecto não importou ofensa ao art. 60, § 2º da Carta Magna. Como amplamente debatido no julgamento liminar, a possibilidade de restabelecimento da alíquota original tinha caráter autônomo em relação à possibilidade da sua redução, não tendo a supressão daquela importado em modificação substancial do sentido da norma aprovada e promulgada. O que importa, no caso, é que o texto promulgado foi devidamente aprovado por ambas as Casas, nos termos exigidos pelo § 2º do art. 60 da Constituição” (ADI nº 2.031, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ de 17.10.03. Grifos nossos). Na Itália, onde a competência disciplinar do Consiglio Superiore della Magistratura é reservada a uma das suas Seções, foi preciso conferir a esse órgão, investido do poder censório, natureza jurisdicional, para viabilizar aos magistrados recurso às sessões reunidas da Cassação, contra as decisões tomadas em tal matéria (cf. TORRENTE, ANDREA. Verbete Consiglio Superiore della magistratura. In: Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, 1961, v. IX, p. 337, nº 9). 303 Dos mesmos autos consta decisão do então Relator, Min. OCTÁVIO GALLOTTI, à apreciação do pedido liminar, nestes termos: “Aprovada a proposta pelo Senado Federal, foi ela, na Câmara, objeto, entre outros, de dois destaques de votação em separado (DVS´s), de cuja aprovação redundaram as alterações mencionadas no relatório que precede este voto, a saber: a supressão do verbo ‘restabelecer’ no § 2º, e a eliminação da oração final do § 3º do novo art. 75 do ADCT (...). Foram, porém, destaques meramente supressivos, que não comprometem a aprovação do remanescente, solenemente promulgado em sessão conjunta das duas casas do Congresso. Essa a tradição do processo legislativo, que remonta à própria gênese do regime político em FGV DIREITO RIO 165 atividades e atos administrativos vigor, como se depreende do texto do art. 29 do Regimento Interno da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/8, que vedou a apresentação de emendas, em segundo turno de votação, ‘salvo as supressivas’, claramente a indicar que não invalida, a aprovação destas, a subsistência do texto aprovado em primeiro turno” (ADI nº 2.031, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, DJ de 28.06.02. Grifos nossos). No caso, a norma tachada de inconstitucional estabelece uma série de competências do Conselho Nacional de Justiça, cada uma das quais dotada de independência semasiológica e normativa. Amputada, no Senado, a expressão “perda do cargo”, o texto residual, aprovado em ambas as Casas do Congresso, manteve intacto o sentido nomológico, dada sua perceptível autonomia semântica. É o que basta por repelir a argüição de ofensa ao art. 60, § 2º, da Constituição Federal. De todo modo, como reconhece a própria autora, a inclusão do poder de ordenar perda do cargo de magistrado vitalício, dentre as atribuições do Conselho Nacional de Justiça, essa é que poderia encher-se de vistosa inconstitucionalidade, perante o art. 95, inc. I, da Constituição da República, que restringe, taxativamente, as hipóteses em que pode dar-se a perda. Nada valeria tornar a submeter a locução suprimida ao escrutínio da Câmara dos Deputados, se eventual norma resultante da aprovação estaria fadada a ser tida por inconstitucional, como bem alvitrou o parecer da PGR: “(...) a supressão da expressão ‘perda do cargo’ não comprometeu a aprovação do remanescente, vale dizer, do conteúdo temático do texto normativo, posto que (sic), reconheceu-o a própria inicial, a expressão até então existente era ‘flagrantemente inconstitucional’, por indispor-se até mesmo ante a literalidade do artigo 95, I parte final, da Constituição Federal, daí porque a supressão preserva o conjunto remanescente, para trilharmos o correto pensamento do Min. Octávio Gallotti” (fls. 194). 14. A autora formulou, ainda, aditamento à petição inicial, para acrescer fundamento à pretensão. Encontra-se pendente de apreciação, na Câmara dos Deputados, proposta de acréscimo de mais um § ao art. 103-B da Constituição, com o seguinte teor: “§ 8º É vedado ao membro do Conselho, referido nos incisos XII e XIII, durante o exercício do mandato: a) exercer outro cargo ou função, salvo uma de magistério; b) dedicar-se a atividade político-partidária; c) exercer, em todo o território nacional, a advocacia” Segundo a AMB, a falta de norma semelhante no corpo da Emenda Constitucional nº 45/2004 significaria que as vedações propostas não se aplicariam aos advogados e cidadãos integrantes do Conselho Nacional de Justiça, daí resultando tratamento desigual entre seus membros, o que seria inconciliável com a Constituição da República (fls. 130-132). O raciocínio da autora, mais uma vez, não conduz a declaração de inconstitucionalidade do Conselho Nacional de Justiça. A pendência da proposta voltada a incorporar aqueles impedimentos à ordem constitucional não implica que lhes não estejam sujeitos os advogados e cidadãos integrantes do Conselho. Basta juízo analógico baseado nos arts. 95, § único, e 127, § 5º, inc. II, da Constituição Federal, para tirar-se a limpo que ninguém pode FGV DIREITO RIO 166 atividades e atos administrativos desempenhar atividades incompatíveis com a função de membro do Conselho, tais como as previstas naquele projeto e independentemente de sua conversão em regra constitucional específica. Da ausência desta não se infere inconstitucionalidade daquele, por insulto ao princípio isonômico. 15. Diante de todo o exposto, não conheço do pedido declaratório de inconstitucionalidade do art. 125, § 8º, haja vista a inexistência de tal dispositivo no texto da Emenda Constitucional nº 45/2004 afinal promulgado, e, em relação aos demais, julgo improcedente a ação. Superior Tribunal de Justiça AgRg na Suspensão de Liminar Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1) EMENTA AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE LIMINAR. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LESÃO À ORDEM PÚBLICA E ECONÔMICA CONFIGURADA. INSEGURANÇA JURÍDICA E RISCO BRASIL AGRAVADO. 1.No âmbito especial da suspensão liminar, cujos limites cognitivos prendem-se à verificação das hipóteses expressas na Lei nº 8.437⁄92, art. 4º, descabem alegações relativas às questões de fundo. 2.Caracterizado o risco inverso, refletido no cenário de insegurança jurídica que pode se instalar com a manutenção da liminar, que, em princípio, admite a quebra do equilíbrio dos contratos firmados com o Poder Público, lesando a ordem pública administrativa e econômica e agravando o risco Brasil, defere-se o pedido de suspensão. 3.Agravo regimental provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Corte Especial, do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, prosseguindo no julgamento, após o voto do Sr. Ministro Humberto Gomes de Barros, acompanhando o voto do Sr. Ministro Relator, e os votos dos Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Ari Pargendler, José Arnaldo da Fonseca, Fernando Gonçalves, Carlos Alberto Menezes Direito, Felix Fischer, Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon, Paulo Gallotti e Luiz Fux, no mesmo sentido, a Corte Especial, por maioria, vencidos os Srs. Ministros Nilson Naves, Barros Monteiro e Franciulli Netto, dar provimento ao agravo regimental, no sentido de manter o ato da Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL, que fixou o índice de correção para reajuste das tarifas telefônicas pela aplicação do IGPDI, sendo que esse reajuste não terá efeito retroativo, só será aplicado após a proclamação desta decisão, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Gomes de Barros, Cesar Asfor Rocha, Ari Pargendler, José Arnaldo da Fonseca, Fernando Gonçalves, Carlos Alberto Menezes Direito, Felix Fischer, Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon, Paulo Gallotti e Luiz Fux votaram com o Sr. Ministro Relator. FGV DIREITO RIO 167 atividades e atos administrativos Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Sálvio de Figueiredo Teixeira, José Delgado, Gilson Dipp e Francisco Falcão, sendo os três últimos substituídos, respectivamente, pelos Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Hélio Quaglia Barbosa e Castro Meira. Afirmou suspeição o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins. Não participaram do julgamento os Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Castro Meira e Hélio Quaglia Barbosa. Brasília (DF), 1 de julho de 2004(Data do Julgamento) MINISTRO ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO Presidente MINISTRO EDSON VIDIGAL Relator FGV DIREITO RIO 168 atividades e atos administrativos AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1) RELATÓRIO O EXMO. SR. MINISTRO EDSON VIDIGAL (Relator): O Ministério Público Federal intentou Ação Civil Pública com vistas à sustação dos atos da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, que permitiam os reajustes das tarifas dos serviços de telefonia fixa, em percentuais correspondentes aos índices de correção apurados pelo IGP-DI (Índice Geral de Preços), contratualmente estabelecido pelo Governo Federal em todos os contratos com as concessionárias de telefonia fixa. Pleiteou a substituição do IGP-DI pelo INPC ou, sucessivamente, pelo IPCA, para balizar os reajustes da telefonia fixa. Deferida a liminar pelo MM Juízo da 2ª Vara Federal da Seção Judiciária de Brasília⁄DF, para o fim de: “suspender os efeitos dos Atos 37.166 e 37.167, de 26.06.2003, 37.211 e 37.212, de 27.06.2003, da ANATEL e para assegurar a aplicação da variação do índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPC-A) para reajuste máximo das tarifas dos serviços de telefonia de assinatura residencial e pulsos; assinatura e habilitação não residenciais e tronco; crédito de cartão telefônico; serviços de longa distância nacional; serviço de longa distância internacional e tarifas de interconexão” (fl. 195), Telemar Norte Leste S⁄A, Brasil Telecom S⁄A, Sercomtel S⁄A – Telecomunicações, Cia Telecomunicações do Brasil Central – CTBC, concessionárias de serviço público, acionaram perante o TRF – 1ª Região, Agravo de Instrumento e pedido de Suspensão de Liminar, nos termos da Lei nº, 8.437⁄92, art. 4º, esse indeferido por decisão da Presidência da Casa, e mantida pela Corte Especial com o desprovimento do Agravo Interno. Com base em lesão à ordem pública e à econômica, decorrente da quebra do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, Lei nº 8.437⁄92, art. 4º, as concessionárias autoras apresentaram novo pedido de Suspensão de Liminar aqui no Superior Tribunal de Justiça, indeferido pelo então Presidente, Ministro Nilson Naves, assim: “Não obstante os relevantes argumentos esposados pelos requerentes – entre os quais a ruptura dos contratos firmados –, não vislumbro presentes os pressupostos autorizadores do deferimento da drástica medida de suspensão de liminar. A uma, porque a decisão a ser suspensa foi proferida no dia 11.9.03, ou seja, há mais de quatro meses, o que retira o caráter de urgência inerente ao pedido de suspensão, certo que há muito estava aberta a competência do Superior Tribunal para apreciar eventual pleito suspensivo. A duas, porque, diante dos elementos acostados aos autos, verifico que a solução da controvérsia, que acredito há de ser rápida, deverá ser buscada nas vias ordinárias e não nesta excepcional sede. A propósito, assim se pronunciou o Relator Antônio Ezequiel, quando indeferiu o pedido de efeito suspensivo: “... até deliberação da Turma no julgamento deste agravo, ao qual se dará prioridade, tão logo contraminutado, face à necessidade de abreviar a solução do impasse criado sobre a matéria em discussão” (fl. 199). Isso posto, indefiro o pedido” (fls. 365⁄367). Tornam as Concessionárias, via Agravo Interno, refutando pontualmente tais argumentos, alegando plenamente satisfeito o requisito da urgência, porque: - o acesso à jurisdição do Superior Tribunal de Justiça, ao contrário do que ali afirmado, não estava aberto há muito tempo, porquanto o novo pedido de suspensão (ajuizado em janeiro⁄04) somente foi possível após o julgamento do Agravo Interno disparado contra o indeferimento, em novembro⁄03, do pedido pela Presidência do TRF – 1ª Região, ocorrido em dezembro⁄03 pela Corte Especial daquela Casa (certidão de fl. 257); - sequer havia sido publicado referido Acórdão, tendo as peticionarias diligenciado para obter a certidão do resultado do julgamento e instruírem o pedido aqui ingressado; FGV DIREITO RIO 169 atividades e atos administrativos - “o caráter de urgência, sob a perspectiva do usuário, é diuturno, haja vista a persistência da indevida cobrança das tarifas residenciais majoradas pela decisão a ser suspensa” (fl. 507); - “os prejuízos de altíssima monta sofridos pelas concessionárias aumentaram de forma mais contundente após 90 (noventa) dias de vigência da decisão” (fl. 507); - em razão desse lapso, os valores residuais (valores autorizados pela ANATEL menos valores determinados pela decisão), passam, em princípio, a ser insuscetíveis de cobrança, a teor do disposto na Resolução ANATEL nº 85⁄98, art. 61. O segundo fundamento adotado pela decisão impugnada - que o impasse sobre as tarifas seria solucionado de forma célere nas vias ordinárias -, cai por terra, afirmam, porquanto se passaram meses e não se vislumbra ainda a decantada celeridade. Não se está dando prioridade aos feitos, os agravos de instrumentos interpostos, que se somam em razão da não unificação dos processos, apesar da determinação desta Corte nesse sentido (CC 39.590-RJ), ainda não forma incluídos em pauta para julgamento, apesar dos requerimentos formais feitos por algumas das peticionarias para o seu pronto julgamento. Reclamam ausência de pronunciamento sobre a alegação de vício da liminar a ser suspensa, consistente na falta de oitiva da ANATEL, antes do deferimento da liminar proferida na Ação Civil Pública, fundamento hábil ao deferimento do pedido de suspensão. O desrespeito a essa prescrição legal prejudicou a ANATEL e as requerentes, que se viram privadas de seus direitos fundamentais à organização e ao procedimento, na medida em que se esperava, em uma esfera mínima de previsibilidade, que não houvesse decisão sem a prévia oitiva da pessoa jurídica de direito público (fl. 510). Imiscuindo-se no mérito, comparam o IGP-DI (índice contratado) e o IPCA estabelecido na decisão a ser suspensa, tendo por incorreta a adoção desse segundo, eis que cada índice reflete uma realidade econômica distinta, sobre atividades produtivas diferentes, afirmando temerária a utilização de um índice como mero sucedâneo de outro. Sustentam que os principais componentes do cálculo do IPCA são: alimentação e bebidas (31,75%), com especificação de cada um dos gêneros (frutas, hortaliças, carnes, panificados); habitação (16,94%), artigos de residência (8,93%); vestiário (7,52%); transportes (14,37%), saúde e cuidados pessoais (8,86%). Parâmetro equivocado que reflete custos próprios de pessoas físicas, conforme definição do IBGE. Em contrapartida, argumentam, o índice IGP-DI, previsto no Edital de Privatização, norteando os investimentos no setor, bem como contratualmente ajustado entre as partes desde a privatização do sistema Telebrás, há mais de cinco anos, considera as atividades produtivas em atacado e enfoca custos com a importação, mostrando-se mais afinado para a atualização de custos inerentes à apresentação de um serviço de massa e em que a importação de insumos é um dado relevante. Portanto, acrescentam, não refletindo as necessidades das requerentes, o IPCA gera o desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, afrontando a ordem econômica, notadamente quando expõe as concessionárias de telefonia a uma situação deficitária. Têm por indevida a ingerência do Judiciário no caso, em que o índice ajustado nada tem de ilegal, nem se mostra abusivo, não se estando a coibir eventuais abusos, mas ditando nova política setorial. A Lei Geral das Telecomunicações (Lei nº 9.472⁄97) atribui à ANATEL a competência para executar essa política, traduzindo-se a pretensão do Ministério Público, chancelada pela liminar que se quer suspender, verdadeira usurpação dessa função (art. 19, I e VII c⁄c art. 103, § § 1º e 3º), e, não declarada a ilegalidade do IGP-DI, não se pode promover sua substituição. Admitir tal postura, argumentam, “significaria atribuir uma ilegalidade transitória ao maior índice inflacionário da ocasião” (fl. 512); absurdo que mais se evidencia, quando se sabe que “para o próximo reajuste a ser concedido em junho de 2004, referente ao ano de 2003, a variação do IPCA tende a ser maior do que a do IGP-DI, em razão da notória queda do dólar no ano de 2003” (fl. 513). E aí, o Judiciário vai novamente determinar a aplicação do índice mais baixo, qualquer que seja ele? Retoma-se o IGP-DI, tornando o IPCA ilegal para o reajuste? É um contra-senso que gera “manifesto abalo à ordem econômica, caracterizado, FGV DIREITO RIO 170 atividades e atos administrativos sobretudo, pela escolha circunstancial e casuística do índice adequado para o reajuste de uma relação contratual presumivelmente estável” (fl. 513). Arrematam reiterando os fundamentos trazidos na inicial, no sentido de que a decisão: - potencializa a responsabilização civil do Estado por quebra do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão; - ofende a ordem econômica, pela insegurança jurídica a que induz; - a ANATEL, ao editar os atos de autorização dos reajustes pelo IGP-DI, o fez no exercício das prerrogativas legais que lhe atribuem o poder-dever de executar a política tarifária pré-fixada pelo Executivo; “a decisão dá um suposto benefício tarifário ao usuário com uma mão e o retira com a outra, trazendo comprometimentos futuros, na medida em que se afeta a qualidade e a continuidade do serviço, bem como as possíveis reduções tarifárias, com os ganhos de produtividade” (fl. 515). E, finalmente, afronta o devido processo legal e a plenitude do direito de defesa, ao proferir a decisão sem ouvir a ANATEL, repetem, ocasionando injustificado estado de insegurança jurídica, haja vista não se saber qual o índice a ser ocasionalmente escolhido quando do próximo reajuste. Relatei. VOTO O EXMO. SR. MINISTRO EDSON VIDIGAL (Relator): Ressalto, de início, que na excepcional medida de suspensão de liminar ou da sentença, onde se faz necessário sopesar os efetivos danos aos valores escudados pela Lei nº 8.437⁄92, art. 4º, não se permite ao Presidente do Tribunal o exame da presença dos requisitos ensejadores da concessão da liminar, operação reservada para o julgamento do recurso cabível, sendo-lhe vedado, igualmente, o reexame das razões de decidir do provimento judicial que deferiu a liminar que se quer ver suspensa. A ilegalidade, injustiça, error in procedendo e error in judicando têm sede própria para desate. Não cabe, igualmente, examinar as questões de fundo envolvidas na lide, devendo a análise ater-se, somente, aos aspectos concernentes à potencialidade lesiva do ato decisório, em face das premissas estabelecidas na Lei 8.437⁄92 (v. g. STJ - SS 815-DF, SS 821-RJ, e RTJ 143⁄23). Essa orientação, contudo, não deixa de admitir um exercício mínimo de deliberação do mérito, sobretudo por ser medida de contracautela, vinculada aos pressupostos da plausibilidade jurídica e do perigo da demora, que devem estar presentes para a concessão das liminares. “A aferição da tese conducente à suspensão quer de liminar, de tutela antecipada ou de segurança não prescinde do exame do fundamento jurídico do pedido ... “ (STF - SS 2172, DJU 01.06.03). Feito o registro, e atento a tal orientação, tenho que assiste razão às agravantes quando, impugnando o fundamento da decisão agravada, afirmaram o seu equívoco, eis que não havia sido inaugurado “há muito” o acesso à jurisdição do Superior Tribunal de Justiça, retirando seu caráter de urgência, porquanto o julgamento do Agravo Interno que interpuseram contra a decisão da Presidência do TRF – 1ª Região, se dera em dezembro⁄03 e acionado o novo pedido de suspensão, aqui no STJ, logo após, em janeiro⁄04. Era, pois, recente a abertura da jurisdição do Superior Tribunal ao tempo da propositura do pedido. É que, uma vez indeferido o primeiro pedido de suspensão pelo Vice-Presidente do TRF – 1ª Região, em novembro⁄03, para a admissão do novo ou do segundo pedido de suspensão, fazia-se realmente necessário o prévio julgamento do agravo interno acionado contra tal indeferimento, ou seja, a manifestação do colegiado da Corte de origem sobre o ato presidencial, para viabilizar o ajuizamento do pedido de suspensão perante este FGV DIREITO RIO 171 atividades e atos administrativos Superior Tribunal de Justiça, ex vi Leis nºs 8.437⁄92, art. 4º, § 4º e 8.038⁄90, art. 25, como decidido aqui pela Corte Especial nos AGR na SL 31-SP e AGR na SL 50-SC, j. em 19.04.04 e no STF, Pleno, AgRgSTA 10⁄PE, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ em 02⁄04⁄04. Quanto ao fundamento de que a solução da demanda se avizinhava com a rapidez que o caso requeria, também não se confirmou. A Ação Civil Pública foi ajuizada em junho⁄03, concedida a liminar em setembro⁄03, mantida no TRF- 1ª com o indeferimento do pedido de suspensão em novembro⁄03, e em janeiro⁄04 aqui no Superior Tribunal, com este Agravo Interno apresentado em fevereiro⁄04. Já se passaram mais de nove meses, até agora, junho⁄04, e não se tem notícia do julgamento do Agravo oposto pelas Concessionárias, que por sua vez teve o efeito suspensivo ativo negado em outubro⁄03 pelo Relator (fl. 199). Também antevejo, em princípio, que o efeito da concessão da liminar com a determinação para “suspender os efeitos dos Atos 37.166 e 37.167, de 26.06.2003, 37.211 e 37.212, de 27.06.2003, da ANATEL e para assegurar a aplicação da variação do índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPC-A) para reajuste máximo das tarifas dos serviços de telefonia de assinatura residencial e pulsos; assinatura e habilitação não residenciais e tronco; crédito de cartão telefônico; serviços de longa distância nacional; serviço de longa distância internacional e tarifas de interconexão” (fl. 195), exibe potencial suficiente a provocar lesão à economia pública, indo de encontro ao interesse público, gerando, portanto, lesão à ordem pública administrativa. Isto porque, em um primeiro e superficial exame, próprio dessa fase procedimental, vejo caracterizado o risco inverso, refletido no cenário de insegurança jurídica que se instala, na medida em que a manutenção da liminar, que, em princípio, admite a quebra do equilíbrio dos contratos e despreza os vultosos investimentos feitos, pode sim causar perplexidade nos investidores, afastando-os, caos no sistema tarifário, a par de expor o país aumentando o risco Brasil e prejudicando o usuário que se buscou proteger, lesando a ordem pública administrativa. Sério e relevante o argumento trazido pelas agravantes, de que se fez opção pelo IPCA, sem o reconhecimento da ilegalidade do IGP-DI, o que justificaria, em tese, sua substituição, e a ANATEL, a quem cabe executar a política tarifária pré-fixada pelo Executivo, não poderia agir de forma diversa e adotar um índice diferente do estipulado em contrato (fl. 517). Portanto, o “abalo à segurança jurídica decorre do fato, já mencionado, de que a opção pelo IPCA foi simplesmente porque se entendeu que a variação do IGP-DI foi excessiva, em uma análise comparativa, tal como assinalado ... não há dúvida que a decisão que se pretende suspender ocasiona inegável estado de insegurança jurídica, haja vista que não se sabe qual o índice a ser ocasionalmente escolhido quando de um próximo reajuste” (fl. 519). Assim, reconsiderando, dou provimento ao Agravo para suspender a decisão liminar exarada nos autos da Ação Civil Pública nº 2003.34.00.031115-0 e confirmada nos autos da Suspensão de Liminar nº 200301000349887, restabelecendo, via de conseqüência, os Atos nºs 37.166⁄2003, 37.167⁄2003, 37.211⁄2003 e 37.212⁄2003 da ANATEL, até o trânsito em julgado da decisão de mérito proferida na Ação Civil Pública (Lei nº 8437⁄92, art. 4º, § 9º). É o voto. FGV DIREITO RIO 172 atividades e atos administrativos AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1) VOTO O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES: Sr. Presidente, neste caso, há um dramático argumento, qual seja, o da ruptura dos contratos firmados. Quando, no ano passado, no mês de julho, decidi pela primeira vez essa questão, como Presidente do Superior Tribunal, tal circunstância, ou seja, a da ruptura, não deixou de me atormentar. Ocorre que, naquela oportunidade, o que estava diante dos meus olhos era um conflito entre alguns juízes, devendo eu, dessa maneira, definir, naquele momento, apenas a competência; foi, então, o que fiz. Mas o Juiz de Brasília, eleito para a causa, acabou decidindo da mesma forma como decidira o Juiz de Fortaleza. Daí o agravo, no qual depositei a minha esperança, porque o relator, no Tribunal Regional Federal, havia dito que lhe daria toda prioridade. Conquanto isso não tenha acontecido, porque o agravo ainda não foi julgado, a mim me parece, data venia, que a decisão que tomei, indeferindo esse segundo pedido de suspensão, há de prevalecer, porque também me parece que a questão há de ter solução pronta e acabada no juízo competente, ou seja, no juízo ordinário, e não aqui na via excepcional. Data venia do Ministro Edson Vidigal, meu voto é no sentido de negar provimento ao agravo regimental. AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1) VOTO – VENCIDO O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO: Sr. Presidente, rogo vênia ao Sr. Ministro Relator para acompanhar a divergência. Primeiro, porque penso que não se acham presentes, no caso, os pressupostos estabelecidos no art. 4º da Lei n° 8.437⁄92, ou seja, não se vê, de plano, grave lesão à ordem, saúde, segurança e economia pública. Por outro lado, a questão referente a prevalecer o IGPI de um lado ou o IPCA de outro é matéria, como acabou de mencionar o Sr. Ministro Nilson Naves, a ser dirimida na via própria, no recurso próprio, que é o agravo de instrumento interposto pelas concessionárias contra a decisão do magistrado singular que concedeu a medida liminar. Nessa linha, nego provimento ao agravo regimental. CERTIDÃO Certifico que a egrégia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão: Após o voto do Sr. Ministro Relator, dando provimento ao agravo regimental, e os votos dos Srs. Ministros Nilson Naves e Barros Monteiro, negando-lhe provimento, pediu vista o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins. Aguardam os Srs. Ministros Humberto Gomes de Barros, Cesar Asfor Rocha, Ari Pargendler, José Delgado, José Arnaldo da Fonseca, Fernando Gonçalves, Carlos Alberto Menezes Direito, Felix Fischer, Gilson Dipp, Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon, Paulo Gallotti, Franciulli Netto e Luiz Fux. FGV DIREITO RIO 173 atividades e atos administrativos Ausentes, justificadamente, o Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira e, ocasionalmente, o Sr. Ministro Francisco Falcão. O referido é verdade. Dou fé. Brasília, 16 de junho de 2004 VANIA MARIA SOARES ROCHA Secretária AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1) VOTO-VOGAL MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS: Sr. Presidente, o Sr. Ministro-Relator fez largo relatório e, se me recordo, terminou por dar provimento ao agravo regimental, prevendo-se uma solução rápida no Tribunal a quo, o que não ocorreu. Parece-me que, realmente, é difícil assumirmos a posição de Banco Central e optar entre três moedas possíveis, dentre ela, o IPCA. Portanto, acompanho o voto de V. Exa., dando provimento ao agravo regimental. AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1) VOTO O EXMO. SR. MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO: Senhor Presidente, acompanho o voto do Senhor Ministro Relator, sublinhando a fundamentação a respeito do cabimento da matéria em pedido de suspensão. Na realidade, trata-se de serviço de telefonia, de violentação do contrato estabelecido, e isso, evidentemente, está incorporado à competência desta Corte quando examina o pedido de suspensão da segurança. Ademais, gostaria de salientar – assim como fez o Senhor Ministro Edson Vidigal, se bem me lembro - que essa decisão da Corte, parece-nos, diante da intervenção das próprias concessionárias, não terá nenhum efeito retroativo, ou seja, em uma palavra, valerá para o futuro sem qualquer repercussão para o passado. Com essas anotações, dou provimento ao agravo regimental. AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1) VOTO-VENCIDO EXMO. SR. MINISTRO FRANCIULLI NETTO: Sr. Presidente, pedindo vênia ao Sr. Ministro-Relator, acompanho a divergência. Nego provimento ao agravo regimental. FGV DIREITO RIO 174 atividades e atos administrativos AgRg na SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 57 - DF (2004⁄0004599-1) VOTO-VOGAL O EXMO. SR. MINISTRO LUIZ FUX: Sr. Presidente, quero deixar um destaque ao que foi suscitado pelo Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito. Recordo-me de que essa matéria foi decidida na última sessão da Corte Especial, e versa sobre direitos disponíveis. Por isso, subiu à tribuna um ilustre advogado que se manifestou no sentido de que essa decisão não atingiria efeitos retro-operantes. O Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito bem destacou esse aspecto. Na Turma de Direito Público, há pouco tempo decidimos uma questão, não sei se de energia, em que havia várias liminares, e, depois de decidido o conflito, gerou-se uma perplexidade em saber qual a liminar que prevaleceria, se seria IPCA, IGPC, enfim, as moedas várias referidas pelo Sr. Ministro Humberto Gomes de Barros; até porque está no Código de Processo Civil, e, por se tratar de incompetência absoluta, declaramos a nulidade daqueles atos decisórios. Entendo que seria muito interessante não só seguir esse respeito aos contratos, como disse o Sr. Ministro Ari Pargendler, e porque isso privilegia o nosso País como um país sério de cumprimento das avenças que pactuou, mas também porque essas decisões, que atingem interesses individuais homogêneos e transindividuais, têm que ser claras, na medida em que dissipem eventuais perplexidades. É muito importante que conste da decisão da Corte Especial que essa decisão vale daqui para frente, não atinge efeitos retro-operantes como bem salientou o Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito. Voto nesse sentido, fazendo essa ressalva derivada de uma preocupação que vivemos na própria pele quando decidimos essa questão na Seção de Direito Público. Dou provimento ao agravo regimental. PRESIDENTE O SR. MINISTRO ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO RELATOR O SR. MINISTRO EDSON VIDIGAL SESSÃO DA CORTE ESPECIAL EM 01⁄07⁄2004 Nota Taquigráfica CERTIDÃO DE JULGAMENTO CERTIDÃO Certifico que a egrégia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão: Prosseguindo no julgamento, após o voto do Sr. Ministro Humberto Gomes de Barros, acompanhando o voto do Sr. Ministro Relator, e os votos dos Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Ari Pargendler, José Arnaldo da Fonseca, Fernando Gonçalves, Carlos Alberto Menezes Direito, Felix Fischer, Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon, Paulo Gallotti e Luiz Fux, no mesmo sentido, a Corte Especial, por maioria, vencidos os Srs. Ministros Nilson Naves, Barros Monteiro e Franciulli Netto, deu provimento ao agravo regimental, no sentido de manter o ato da Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL, que fixou o índice de correção para reajuste das tarifas telefônicas pela aplicação do IGPDI, sendo que esse reajuste não terá efeito retroativo, só será aplicado após a proclamação desta decisão, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Gomes de Barros, Cesar Asfor Rocha, Ari Pargendler, José Arnaldo da Fonseca, Fernando Gonçalves, Carlos Alberto Menezes Direito, Felix Fischer, Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon, Paulo Gallotti e Luiz Fux votaram com o Sr. Ministro Relator. FGV DIREITO RIO 175 atividades e atos administrativos Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Sálvio de Figueiredo Teixeira, José Delgado, Gilson Dipp e Francisco Falcão, sendo os três últimos substituídos, respectivamente, pelos Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Hélio Quaglia Barbosa e Castro Meira. Afirmou suspeição o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins. Não participaram do julgamento os Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Castro Meira e Hélio Quaglia Barbosa. O referido é verdade. Dou fé. Brasília, 01 de julho de 2004 VANIA MARIA SOARES ROCHA Secretária FGV DIREITO RIO 176 atividades e atos administrativos Patrícia Regina Pinheiro Sampaio Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Educação Continuada da FGV Direito Rio. Advogada. FGV DIREITO RIO 177 atividades e atos administrativos FICHA TÉCNICA Fundação Getulio Vargas Carlos Ivan Simonsen Leal PRESIDENTE FGV DIREITO RIO Joaquim Falcão DIRETOR Fernando Penteado VICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO Luís Fernando Schuartz VICE-DIRETOR ACADÊMICO Sérgio Guerra VICE-DIRETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO Luiz Roberto Ayoub PROFESSOR COORDENADOR DO PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO EM PODER JUDICIÁRIO Ronaldo Lemos Coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade Evandro Menezes de Carvalho COORDENADOR ACADÊMICO DA GRADUAÇÃO Rogério Barcelos COORDENADOR DE ENSINO DA GRADUAÇÃO Tânia Rangel COORDENADORA DE MATERIAL DIDÁTICO Ana Maria Barros COORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES Vivian Barros Martins COORDENADORA DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Lígia Fabris e Thiago Bottino do Amaral COORDENADORes DO NÚCLEO DE PRÁTICAS JURÍDICAS Wania Torres COORDENADORA DE SECRETARIA DE GRADUAÇÃO Diogo Pinheiro COORDENADOR DE FINANÇAS Milena Brant COORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO FGV DIREITO RIO 178