A realidade, também na filatelia, é variegada, imprevisível, caoticamente determinista, complexa. Mas a complexidade é explicada e
transformada por leis simples. A sensibilidade a variações infinitesimais é uma característica destes sistemas. A sua geometria por
vezes resiste a ciclones, mas também por vezes desmorona-se com o bater de asas de uma borboleta.
EDITORIAL
Carlos Pimenta
Inicia-se um novo ano.
Não serão as regras do calendário que permitirão transformar o mundo, a dinâmica das sociedades, o palpitar
dos cidadãos. Também a filatelia portuguesa tenderá a ficar semelhante a si própria. Os selos e as etiquetas pictoricamente interessantes fugindo das cartas ao som das baladas de apelo à sua utilização pelos outros. Os muitos
coleccionadores espalhados pelo país ou estrangeiro emparelhados no isolamento que a ausência de divulgação
maciça desta forma de lazer e cultura acarreta. A impossibilidade de encontrar publicações filatélicas de grande tiragem enquanto outras manifestações também minoritárias
encontram os seus nichos de mercado. As peças filatélicas
do nosso país com uma difusão internacional reduzida ao
mesmo tempo que a tão universalista língua portuguesa
continua sem afirmação oficial nas instituições filatélicas.
As exposições filatélicas competitivas continuam a atrair
mais pela aglomeração de administrações postais e comerciantes que pela qualidade das exposições mostradas. A
filatelia organizada tende a conglomerar pretensas elites
que substituem a janela para o mundo pelo espelho mágico da vaidade. A filatelia (des)organizada continuará dividida, esfrangalhada, adornada com jogos palacianos. As
elites políticas e intelectuais vêem desfocado o que é a
filatelia, as suas formas de manifestação, as suas relações
com a ciência, a cultura e o lazer.
Perante esta situação a primeira reacção é procurarmos
uma forma de sairmos deste filme, encontrarmos uma
mágica à Woody Allen ou Harry Potter para tomarmos
outro comboio, numa plataforma inexistente. É percorrermos as paisagens paradisíacas de selos de terras distantes
escolhendo a frondosa floresta, a altiva montanha ou a
paradisíaca praia onde possamos usufruir serenamente os
encantos da natureza, o silêncio da vilania, a simplicidade
da amizade e da sedução. É sermos capazes de olharmos
para o íntimo de nós próprios, reflectirmos sobre as inquietantes questões da existência e reencontramos a beleza
olímpica do nosso gosto pelo coleccionismo, sem os farrapos da tragédia humana que se vão pegando ao nosso
ser e estar em cada curva dos conflitos, inúteis e mesquinhos.
Tal como para Harry Potter o comboio de e para uma nova
filatelia organizada poderá estar na plataforma oculta, à
nossa espera, com rumo certo, conduzindo ao destino adequado. Não é a fuga ao mundo que desejamos, mas o reencontro com os homens, os sonhos, a fraternidade, a vontade criadora, o respeito institucional, a liberdade criadora, a democracia. E nesse mundo os selos são utilizados
de forma eficiente, integrados nas novas tecnologias. Os
coleccionadores mais experientes preocupam-se essencialmente com os menos conhecedores. Os clubes têm formas de comunicar com os milhares de filatelistas que em
cada canto usufruem das delícias do coleccionismo. As
instituições respeitam a diversidade cultural. A filatelia
organizada é democrática, com alternância de poder, aberta
à inovação, com respeito pelas minorias, com contabilidade transparente e respeito pelas leis.
Sabemos que os desejos não transformam a realidade mas
dão-nos forças para orientar a bússola e lutar por um futuro melhor. Esta revista deseja ser um instrumento do sonho que faz avançar a filatelia.
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A Filatelia Portuguesa nº 102 (2002/01)