Por Ivan Carlos Regina* ENGENHARIA/2009 594 C ENGENHO ARTE Os casamentos difíceis omeço este artigo por um pleonasmo. A harmonia, seja entre seres humanos, na música ou entre vinhos e alimentos, é sempre um tema bastante complicado. A diversidade da alimentação humana é espantosa. Classificados que estamos entre os relativamente poucos animais onívoros, aquilo que definimos como comida apresenta diferenças imensas, de um povo para outro. Pesquisas revelaram que para os orientais um queijo com fungo azul (como o gorgonzola, amado pelos italianos, ou o roquefort, idolatrado pelos franceses) é um alimento estranho, nojento, difícil de engolir. Na mesma experiência crianças do Mediterrâneo tiveram a mesma impressão ao provarem o “ovo dos cem dias”, que permanece enterrado até desenvolver o seu peculiar sabor e aparência. Carne de cachorro é repulsivo para uns, na mesma medida que a carne de porco para outros. Além de fenômeno cultural adquirido, os hábitos alimentares apresentam também variações, de indivíduo para indivíduo. No México, experimentei “tacos” de formigas vivas e gafanhotos, mas me recusei definitivamente a provar “gusanos” brancos e rosas, lagartas que considerei repulsivas. Nossos indígenas eram apaixonados pelos bichos brancos encontrados em paus e palmeiras em decomposição, e possivelmente sentir-se-iam horrorizados se lhes fossem oferecidas ostras. Muitas das religiões interditam alimentos e bebidas ou combinações entre eles. Das três grandes religiões monoteístas, apenas o cristianismo deixa livre todos os alimentos, embora recomende a abstinência de alguns, em determinados períodos, como forma de expiação dos pecados. www.brasilengenharia.com.br Para reforçar esta aliança, os discípulos de Jesus Cristo tinham como símbolo da “nova” religião o vinho e o pão, e como logotipo o peixe, uma escolha de imagem muito apropriada. Fiz esta pequena introdução para ilustrar que nós, ocidentais, recebemos uma herança cultural que constitui um tesouro passado de geração em geração. Iniciemos pelas saladas, como se faz aqui no Brasil. É mentira que elas nunca harmonizam com o vinho, como costumeiramente ouvimos. Basta não abusar do vinagre que as saladas podem ser acompanhadas de um vinho branco. Saladas no estilo italiano, como tomate com mussarela e manjericão, tomates com erva doce (finocchio), pedem um branco não frutado, como os vinhos do meio da Bota, os Frascatti, Orvietto, Soave etc. Saladas sofisticadas, como a Waldorf, salpicão e maionese de peixe pedem um branco mais estruturado, como um vinho Chardonnay sem madeira. As saladas ficaram com má fama em relação ao vinho por causa de alguns ingredientes muito perversos, estes sim, impossíveis de serem harmonizados. Vamos a eles. Verduras com alto teor de ferro são tabus, quando comidas cruas, como o almeirão, o espinafre, o agrião, a rúcula, acelga, que metalizam o gosto do vinho, e não combinam com qualquer espécie de vinho conhecido. Aspargos frescos são terríveis, pois desmaterializam os componentes do vinho. Espinafre e aspargos, como ingredientes para confecção de risoto, ou como recheio de massas, já suavizados, podem ser acompanhados por brancos mais neutros. Cenoura segue a mesma regra, mas a beterraba, crua ou cozida, é de difícil combinação pelo alto teor de açúcar que apresenta. Costumo preparar uma salada que inclui folhas não muito marcantes, legumes cozidos, tomates, azeitonas etc., que vão acompanhados por um molho feito com pouco vinagre, bastante azeite e uma pitada de mostarda de Dijon ao mel, ou, na falta desta, uma colher de mostarda comum e uma colher de mel. O mel “amacia” a acidez da salada, fazendo-a ótima companhia para quase todos os tipos de vinho branco. A palavra salada significava originalmente salgada. O sal é, junto com o vinagre, inimigo do vinho. Assim convém também diminuir a quantidade de sal na sua salada. O vinagre não se dá bem com o vinho, entre outras coisas porque são parentes. A excessiva acidez do vinagre “passa por cima” da do vinho, prejudicando-o. A má interação do sal com o vinho se dá especialmente com os taninos presentes no vinho tinto. Esta é uma regra que desenvolvi ao longo de três décadas de degustação. Já vi muitos clássicos de harmonização, como cordeiro servido com vinho tinto de Bordeaux, tornarem-se incompatíveis por excesso de sal na carne e ou excesso de tanino no vinho. Assim azeitonas, enquanto aperitivos, apenas com vinho branco, ou então, melhor ainda, com o Jerez do tipo fino ou Manzanilla. Peixes salgados e defumados exigem cuidados especiais em sua harmonia com vinho. O aliche, usado como ingrediente de pratos, pede vinhos mais ácidos e pouco frutados. Já como protagonista, como no caso de azeitonas anchovadas, só pode ser acompanhada pelo Jerez do tipo Fino. A fritada de peixes andaluza e os Boquerones idem. Normalmente as combinações regionais (vinhos e pratos da mesma região), costumam funcionar bem, mas há exceções. A “Bagna Caoda”, típico do Piemonte, constitui-se em aliche triturado em azeite morno, molho que é comido com hortaliças cruas. Infelizmente a região não produz vinhos brancos oxidados ou de longa guarda, portanto não tem um vinho à altura deste prato, tão difícil de combinar. A Bottarga segue a mesma regra do aliche, e é também normalmente utilizada como ingrediente, embora seu forte sabor nunca a faça coadjuvante. Arenques defumados são praticamente impossíveis de harmonizar com vinhos. Tente também um Jerez do tipo Fino, mas seu acompanhamento clássico é vodka e água. O Gravlax de salmão tem sabor menos intenso, e acomoda-se muito bem com um Champagne ou com um bom vinho alemão ou alsaciano, feito com a uva Riesling. Por falar nisto, os vinhos feitos com a Riesling são ótimos parceiros gastronômicos. Tem boa acidez, que se contrapõe à gordura, tornando-o o acompanhamento ideal para as carnes de porco, sejam elas cozidas ou defumadas, como no clássico chucrute completo. Os Rieslings mais secos acompanham bem peixes de sabor marcante, como a truta fresca, e os meio secos as defumadas ou outros pratos com derivados lácteos, como creme de leite. Os peixes de água doce são bem mais difíceis de harmonizar do que muitas pessoas pensam, inclusive enófilos. Para as variedades brasileiras temos poucos paradigmas a seguir, o melhor é experimentar: lambaris fritos aceitam desde um Sauvignon Blanc até um Jerez Fino, os peixes pequenos não nos causam muito problema, como piabas, traíras e outros peixes de carne branca que combinam com extenso número de vinhos brancos. As grandes espécies é que são difíceis de serem harmonizadas, como o jaú, o pintado, o surubim, a costela de pacu, são peixes gordos, de gosto intenso, e necessitam vinhos de grande estrutura e baixa acidez, como os Hermitage, os Chateneuf-du-Pape ou os Saint-Joseph, brancos da Côtesdu-Rhône, portentosos. Por incrível que pareça, os pratos da culinária bahiana, como o acarajé e o vatapá vão muito bem com um Sauvignon Blanc da Nova Zelândia ou do Chile (escolha do Vale de Casablanca ou do Vale de Leyda/San Antonio). Pratos mais leves à base de carne seca (feijão tropeiro, carne seca desfiada com abóbora) pedem a presença de um branco bem estruturado e com madeira, enquanto os tintos ligeiros, quase sem taninos, acompanham Outros miúdos como a rabada e o ossobuco são clássicos amigos do vinho, casando bem com uma grande diversidade de amostras. Ovos provocam no vinho um fenômeno curioso: fazem sua qualidade despencar, igualando o paladar. Se servir omeletes, ovos pochê, “huevos à flamenca” etc., acompanhe com um branco ou tinto mais barato, não desperdice seus melhores vinhos. As sopas também são complicadas, pois neste artigo só estamos abordando as harmonias difíceis. Sopas frias, como o Gaspacho andaluz, pedem um vinho da mesma região, um Jerez do tipo Fino ou Manzanilla. Sopas quentes não vão bem com brancos em virtude do contraste de temperatura, e nem com tintos (como alguns pensam), trata-se de casamento forçado, artificial, pois a força tânica do vinho derruba completamente o sabor da sopa. Os acompanhantes clássicos da sopa são os vinhos da Ilha da Madeira, todos fortificados. Sopas mais secas (como a de legumes, a Minnestrone italiana) pedem um Verdelho (Vinho da Madeira seco), sopas um pouco mais adocicadas, (como a Vychoise), pedem um Sercial (vinho da Madeira meio seco), sopas que tendem a doce (creme de mandioquinha, cenoura) pedem um Bual (vinho da Madeira meio doce). Para terminar a relação de vinhos da Madeira, falta o Malmsey (Malvasia), que acompanha as sobremesas (em especial o Bolo da Ilha da Madeira) e o Terrantez, este último um vinho tão raro (e caro) que se você tiver uma garrafa beba-o sozinho (eu disse sem companhia de comidas e pessoas!). Os frios são mais fáceis de combinar. Aqueles de paladar mais suave, como a mortadela, pedem um branco aromático; os salames e copas, de sabor mais pronunciado, vão bem com rosés e vinhos tintos ligeiros, como os Beaujolais franceses ou os Valpolicellas italianos. Os chorizos espanhóis pedem um tinto mais estruturado, mas jamais muito tânico. Interessante é que o acompanhamento clássico para o presunto “pata negra” espanhol é o Jerez do tipo Amontillado. As perguntas mais frequentes sobre combinação de vinho com comidas são o churrasco e a feijoada. Se o churrasco for aquele “na brasa”, não desperdice um grande vinho como acompanhamento. Basta um tinto encorpado e mais tânico, nem precisa ter elegância, que com certeza o gosto de carne fumada passaria por cima. Carnes grelhadas mais sofisticadas pedem um vinho melhor, vão bem com um Cabernet Sauvignon do Novo Mundo. A feijoada, prato típico brasileiro por excelência, é muito forte para combinar com vinhos. Há algumas tentativas mal sucedidas de acompanhá-la, como por exemplo – vinho branco, que serve apenas como lubrificante alcoólico – vinho tinto, que tenta sobrepujá-la, sem conseguir seu intento – cerveja, que atrapalha a digestão da feijoada, já por si difícil. Assim creio que a feijoada vai muito bem com caipirinha e água mineral, e, porque não dizer, até um refrigerante colado para ajudar na digestão. Por último, chegamos ao capítulo das sobremesas. É necessário verificarmos aqui seu teor de doçura. Vamos iniciar pelo casamento mais traumático, os do vinho com chocolate. Tenho uma visão pessoal muito singular deste assunto, tão controverso. Se a sobremesa contiver chocolate como coadjuvante, vários vinhos doces irão acompanhá-la bem. Chocolate puro, com alto ou baixo teor de cacau, ou tortas onde o chocolate prevalece, não combinam com vinho. Uma frase muito repetida torna-se verdade, e sempre ouvimos falar que “o Banyuls é o único vinho que combina com chocolate”. Para quem não ouviu falar ainda, o Banyuls é um vinho fortificado, feito à base de uvas tintas, em especial a Grenache, nas encostas ensolaradas que ficam entre o Mediterrâneo e a Côtes Du Rhône. É um bom vinho, e vale a pena experimentá-lo, mas sem a expectativa que possa acompanhar o chocolate puro. A única bebida que está em igualdade de concentração de sabor com uma barra de chocolate é um conhaque, por ser uma bebida destilada. Sobremesas muito doces também representam problema, assim a doçaria portuguesa só se acomoda com seus próprios vinhos fortificados, como o Porto e o Moscatel de Setúbal. Sobremesas geladas ou com sorvete são difíceis de combinar. Tente um Moscato D’Asti, um espumante feito em primeira fermentação com as uvas Moscatéis, igualmente bom na origem italiana ou na versão brasileira. Os Moscatéis franceses, como o Muscat-de-Beaumes-de-Venise, o Muscat-de-Frontignan ou o Muscat de Rivelsates são diferentes, mais alcoólicos, encorpados, e pedem sobremesas como torta de frutas cítricas. Um vinho que adora sobremesas, pois é extremamente doce (o mais doce dos vinhos existentes), é o Jerez Pedro Ximenez, vulgo “P.X.”. Teoricamente ele nem é vinho, pois não chega a ser fermentado (é o que tecnicamente é chamado de mistela). Xaroposo, denso, muito aromático, pode acompanhar sobremesas mais doces ou até ser parte integrante delas. Uma banana flambada acompanhada de uma bola de sorvete de creme, na qual se derramou uma colher de P.X., é uma maravilha. Os vinhos doces naturais, botrytizados, costumam serem elegantes e fragrantes, mas sobre tudo delicados, não tendo teor de açúcar necessário para casar com sobremesas muito doces. Como é impossível modificar os vinhos, procure sobremesas pouco doces, como tortas de frutas secas, ricota ou ligeiramente cítricas. Aliás, esta é a mais importante das regras. Se você ama o vinho, comece escolhendo-o, e somente depois prepare (ou escolha, se estiver num restaurante) a comida para que a harmonia seja perfeita. Dizem que projetar é fazer escolhas. Espero que depois deste artigo, você, gentil leitor, consiga escolher um pouco melhor seus vinhos para escoltar suas refeições. Lembre-se que só aprendemos no erro, e este é um tema muito difícil. Apesar de toda teoria, vivo errando, aprendendo e somente algumas vezes encontramos a harmonia perfeita. A perfeição está no céu. O vinho está na terra. Bebamos, pois, erguendo um cálice à Criação. Saúde! *Ivan Carlos Regina é engenheiro do setor de transporte público, associado do Instituto de Engenharia E-mail: [email protected] www.brasilengenharia.com.br ENGENHARIA/2009 594 melhor os pratos mais fortes, como charque na grelha ou na brasa. Para terminar os pratos salgados, o bacalhau oscila entre um branco bem encorpado, com madeira (para receitas à base de derivados lácteos ou bacalhau desfiado), para um tinto leve com poucos taninos (para bacalhau grelhado ou com molho de tomates, ao forno com batatas e pimentões etc.). Pratos da culinária japonesa, desde que não contenham “shoyo” (molho de soja fermentado e salgado) e “wasabi” (pasta de raiz forte) em demasia, acomodamse facilmente com espumantes secos ou brancos mais ácidos como os da uva Sauvignon Blanc. Não desperdice um grande Champagne, a não ser que a refeição seja muito especial. A pimenta é problemática, mas não tanto como se imagina. Desde que usada com sabedoria, seja na culinária brasileira ou mexicana, os pratos podem se harmonizar com vinhos brancos da mesma Sauvignon Blanc. Já a culinária indiana não é amiga do vinho. Não são só as pimentas, mas a dose maciça de condimentos e especiarias que a faz antagonizar com qualquer vinho. Os pratos da culinária indiana “sufocam” o paladar, e ainda, em alguns casos, sobrepujam o sabor de qualquer vinho conhecido. De uma maneira geral, tente com um Gewurztraminer ou um Riesling, ambos com uma ponta de açúcar residual. As carnes, sejam de vitela, boi, suíno, caprina ou ovina são de fácil combinação com o vinho, não merecendo aqui maiores destaques. Os miúdos de boi têm suas arestas, mas foram exaustivamente estudados pela gastronomia ao longo da história; a dobrada e o mocotó pedem vinhos tânicos e estruturados, como um Douro português. O fígado à veneziana casa bem com um branco do norte da Itália. A “guimirella”, tradicional prato do sul da Bota, tem harmonia bastante difícil. Trata-se de um escalopinho de fígado de vitela, que é enrolado por sobre uma folha de louro e recoberto por um quadrado de redenho (membrana gordurosa retirada do intestino dos suínos). Em recente degustação, descobri que seu melhor acompanhamento é um vinho branco velho, concentrado em sabor e oxidado, já sem fruta no paladar.