SALADA DE CRIANÇAS: A RODA DE CONVERSA COMO PRÁTICA
DIALÓGICA
MOTTA, Flávia – PUC – Rio
[email protected]
Eixo Temático: Educação Infantil
Agencia Financiadora: Não contou com financiamento
Resumo
O presente texto é o resultado de uma pesquisa realizada numa escola particular do Rio de
Janeiro que tratou da roda de conversa como uma prática dialógica, através da verificação da
importância atribuída ao discurso da criança a partir de um estudo exploratório. Foram
realizadas observações que objetivavam compreender se as práticas observadas contribuíam
para a construção de um modelo pedagógico que permitia à criança o direito à voz numa
relação dialógica, condição constituidora de um sujeito criativo e crítico, pois parecia haver
uma contradição aparente entre o discurso de valorização do desenvolvimento da autonomia,
independência e formação integral do aluno, e a prática de um discurso monológico. Vigotski
e Bakhtin são os autores que fundamentam a concepção de linguagem utilizada. Os conceitos
de mediação, exotopia, dialogismo e alteridade convergem para a leitura do campo. São
apresentados e analisados, a partir dos estudos da linguagem, fragmentos de eventos
observados em duas turmas distintas da mesma escola. Este trabalho remete à questão: Onde
pretendemos inserir as rodas de conversa? No contexto das situações estereotipadas, que
independem de seus atores concretos, pois que as falas já estão dadas, ou numa situação de
diálogo real, onde cada qual expressa aquilo que julga pertinente e espera do outro uma
atitude responsiva ativa? Crianças e adultos, professoras e alunos podem ser conduzidos a um
ou outro modelo de interação. Há que se investir na fala do professor para que ele possa ser
surpreendido pelas múltiplas significações propostas pela criança, reaprendendo a brincar,
transformando objetos, “desadaptando” um pouco sua imaginação da realidade.
Palavras Chave: Educação Infantil. Roda de conversa. Prática dialógica.
Introdução: Para começo de conversa
No mistério do sem-fim
equilibra-se um planeta
E, no planeta um jardim
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta
1079
(CECÍLIA MEIRELES1)
Este texto apresenta partes de uma pesquisa realizada numa escola particular do Rio de
Janeiro que tratou da roda de conversa como uma prática dialógica, através da verificação da
importância atribuída ao discurso da criança a partir de um estudo exploratório. A relevância
dessa temática é proporcional à expansão da educação infantil e à necessidade de se
desenvolverem mecanismos que possibilitem a expressão das crianças como elemento
organizador das práticas pedagógicas. Foram realizadas observações densas para compreender
se as práticas observadas contribuíam para a construção de um modelo que permitia à criança
o direito à voz numa relação dialógica, condição constituidora de um sujeito criativo e crítico.
Havia uma contradição entre a valorização do desenvolvimento da autonomia, independência
e formação integral, e a prática de um discurso monológico, condicionado pela expectativa do
professor que aliena o sujeito e se aliena ao negar tanto sua singularidade, quanto
historicidade.
Uma prosa com os autores
Os estudos da linguagem fornecem a interlocução necessária nesse diálogo. As
interações discursivas materializam as relações sociais que constituem o sujeito e a
linguagem. Vigotski e Bakhtin contribuem para esse debate.
Para Vigotski, toda função psicológica foi antes uma relação entre duas pessoas
(2001). Sua grande inovação está na inversão da ordem da psicologia clássica que buscava
entender como os indivíduos se adaptavam às práticas sociais, como se fossem fenômenos de
natureza diferente – o individual e o social. Vigotski mostra que a questão deve ser formulada
de outra maneira, pois no ser humano ocorre a “conversão das relações sociais em funções
mentais” (1997, p. 106). O cultural seria um gênero e o social uma espécie, um está
necessariamente contido no outro, mas nem todo social é cultural. O cultural transforma a
natureza desse social, fazendo com que tome formas diferenciadas. Então “... o social é, ao
mesmo tempo, condição e resultado do aparecimento da cultura.” (PINO, 2000, p. 53).
Vigotski queria comprovar que “a emergência da atividade simbólica constituiu (...) o
ponto de passagem do plano natural para o plano cultural” (PINO, 2000, p. 55-56). O social
tem um papel relevante no desenvolvimento das funções mentais superiores, outra relação
1
MEIRELLES, C. Canção Mínima. http://blog.sitedepoesias.com.br/poemas/cancao-minima/ .12/05/2009.
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intrínseca e necessária já que estas são o resultado das relações sociais internalizadas: de um
lado as relações do sujeito com os outros, de outro, sua relação consigo mesmo.
Há ainda uma função do social extremamente importante para Vigotski (2000): é ele
que permite a construção da subjetividade. O sentido de relações sociais é o marxista, assim
elas devem ser tomadas como decorrentes do modo de ser dos homens e dos seus modos de
produção. Para Vigotski a noção de consciência é aquela que ao alterar o meio natural, alterase a si mesma. O ser humano se constitui na relação que estabelece com o outro. Cabe
observar que a interação social é um processo no qual as dimensões cognitiva e afetiva não
podem ser dissociadas. Interagindo, as crianças não apenas apreendem e se formam, ao
mesmo tempo, criam e transformam – o que as torna constituídas na cultura e suas produtoras.
Essa concepção implica em percebê-las como sujeitos ativos que participam e intervêm na
realidade ao seu redor. Suas ações são suas maneiras de re-elaborar e recriar o mundo. Aos
adultos cabe a importante função de mediação.
A internalização é um processo de reconstrução interna de uma atividade externa.
Reconstrução essa que consiste na apropriação do significado construído
socialmente e transformado pelo sujeito num sentido pessoal, portanto próprio.
(FREITAS, 2001, p.5).
Esses processos, que se manifestam na infância, vão construir realidades individuais e
históricas que se traduzem na subjetividade de cada um. Como isso ocorre? Vigotski contribui
para esclarecer essa questão. Tomando a interação como base, os conceitos aqui tratados são
na verdade fenômenos da linguagem e da significação que ocorrem em contextos concretos.
Assim, a relação de conhecimento é produto da interação entre o sujeito cognoscente, o
sujeito mediador e o objeto de conhecimento. O “modelo SSO” vem em resposta aos demais
constructos sobre o conhecimento que, ora silenciavam o sujeito (ensino como transmissão),
ora silenciavam o outro (ensino como construção). (GÓES, 1997, p.13).
Os conceitos de Vigotski se entrelaçam numa trama constitutiva de sua teoria. A noção
de mediação explicita o processo de pensamento presente em situações de desafio quando o
sujeito recorre a outros signos como “atividade mediada”, a fala é um dos mais importantes na
mediação do desenvolvimento. As manifestações de linguagem exercem função organizadora
que permite ao sujeito compreender o mundo através das palavras. Trata-se de um aspecto
central na perspectiva sócio-cultural, pois é definido pelo contexto concreto dos sujeitos
1081
inseridos numa dada sociedade com as suas práticas culturais. As influências do marxismo
trouxeram para a teoria vigotskiana a idéia do “instrumento” como aquele que media a ação
humana em seu contato com a natureza. A essa mediação instrumental se segue uma
transformação do pensar, na atividade psicológica. Vigotski concluiu que à palavra cabe essa
dimensão instrumental. Temos então a palavra tomada como signo que, ao ser enunciada,
carrega consigo os significados do contexto histórico de seu uso e do contexto da interação em
que é utilizada para comunicar e construir significações. A essa dimensão, Vigotski deu o
nome de mediação simbólica (ou semiótica). O papel do outro é fundamental tanto na
constituição do eu, quanto no desenvolvimento e aprendizagens que o sujeito fará ao longo da
vida. A relação social não é composta apenas de dois elementos, é uma relação dialética entre
o eu e o outro, e implica num terceiro: o elemento semiótico que é constituinte da relação e é
nela constituído. O sujeito se constitui numa relação onde o outro é, na verdade, outro de si
mesmo.
A subjetividade é produto de uma relação dialética. Processo permanentemente
constituinte e constituído, está na interface do psicológico e das relações sociais. O
desenvolvimento da criança se dá neste plano. Seu discurso social subdivide-se em
comunicativo e egocêntrico. A criança transfere as formas sociais cooperativas de
comportamento para a esfera das funções psíquicas pessoais (VIGOTSKI, 1998, p.33). Com o
tempo, forma-se o discurso interior, diferenciando-se tanto estruturalmente como
funcionalmente da fala social. As estruturas do discurso transformam-se em pensamento. A
linguagem assume papel central na internalização das funções psicológicas superiores. Assim,
da mesma forma com que o pensamento verbal se eleva em conceitos cada vez mais abstratos,
a realidade é generalizada e refletida na palavra, passando também por uma evolução.
Para Bakhtin (2002) o falante constitui sua subjetividade considerando o outro; orienta
sua fala a partir do interlocutor. Esse processo funciona como um espelho no qual busca
refletir-se. A existência da palavra está ligada à realidade social; fora do contexto é destituída
de sentido. No discurso, se atualizam os conflitos decorrentes dos valores sociais de
orientações contraditórias. Quando o sujeito falante entra nessa corrente ideológica – a
corrente do discurso - constrói a sua visão de mundo e sua própria subjetividade.
Faraco, a partir de Bakhtin, aponta a existência de duas formas básicas de se estudar a
linguagem: a retórica e a lógico-gramatical. Segundo ele, a lingüística do século XX expulsou
os falantes e o histórico do espaço teórico. Para os lingüistas, a fala permanecia entendida
apenas enquanto elaboração e emissão. O autor recorre a Foucault e a seu conceito de
1082
episteme para mostrar que essa tendência atravessou as ciências humanas em geral, tendo uma
concepção de indivíduo como: “... elemento articulador de um conjunto de relações que torna
possível, numa época dada, a existência de diferentes modelações teóricas.” (2001, p. 5 - 6).
E ainda, assumindo a dimensão social da subjetividade, entende que se torna inviável pensar a
existência humana fora do seu espaço de inter-relações, entendendo a comunicação como
objetivo primário da linguagem, anterior mesmo à elaboração, que se torna possível, devido à
sua mediação.
Uma vez inserido no contexto desta episteme, que toma a intersubjetividade por fator
constituinte e não constituído, o problema das relações entre as crianças e adultos assume os
contornos de espaço de mediação, direcionando o enfoque da questão para as práticas
discursivas que se dão na concretude da língua enquanto fenômeno social, cultural e histórico.
“A palavra é um fenômeno ideológico por excelência” (BAKHTIN, 2002, p. 36) e como tal,
fala de si, de uma realidade imediata e de todos os outros significados presentes em sua
construção. O discurso é histórico, é datado e só pode ser apreendido em suas múltiplas
dimensões quando percebido como tal.
Bakhtin traz a idéia de que o sujeito se constitui e é constituído na palavra. A atividade
mental do sujeito é profundamente marcada pelo campo social, pois a palavra e o material
semiótico são elementos determinantes para a organização do pensamento que,
posteriormente, retorna ao campo social. Em razão dessa sobredeterminação social e histórica,
a significação da palavra somente se dará no acontecimento enunciativo que ultrapassa a
significação registrada no dicionário. Assim, a palavra é constitutiva tanto da consciência
quanto do desenvolvimento humano, cabendo à linguagem a responsabilidade pela
constituição dos sujeitos sociais.
Para Bakhtin, a realidade fundamental da linguagem é, então, seu caráter dialógico.
As relações dialógicas são relações de sentido, articulando dois discursos que podem se
apresentar presentes no mesmo espaço/tempo ou entre idéias e conjuntos de idéias que são
confrontadas num dado momento, produzindo novas significações. Entender a linguagem
significa considerar os aspectos metalingüísticos que constituem os enunciados e não se
limitam às relações lógicas da língua.
Os conceitos de alteridade, dialogismo e exotopia se complementam e se articulam
para o entendimento deste sujeito construído na linguagem. Pensá-los de forma isolada apenas
faz sentido para efeito de compreensão, uma vez que sua totalidade concreta parece
inseparável.
1083
A alteridade é central para pensar a construção do sujeito e dos sentidos atribuídos às
experiências vividas. Para Geraldi: “o pensamento bakhtiniano apóia-se em dois pilares: a
alteridade, pressupondo-se o Outro como existente e reconhecido pelo eu como Outro que
não-eu e a dialogia, pela qual se qualifica a relação essencial entre o eu e o Outro.” (2003, p.
42)
O eu existe a partir do diálogo com os outros, precisando deles para poder tomar forma
e consciência de si mesmo. A concepção de sujeito em Bakhtin não aceita uma continuidade
linear, uma identidade em si mesmo, posto que se compõe das alteridades de seu próprio
discurso e no diálogo com as outras vozes.“...a palavra do outro se transforma,
dialogicamente, para tornar-se palavra pessoal-alheia com ajuda de outras palavras do outro, e
depois, palavra pessoal.” (BAKHTIN, 1992, p. 405). Há uma incompletude no sujeito
bakhtiniano. Para a constituição de um sujeito, é necessária a alteridade, já que o outro
delimita e constrói o seu espaço de atuação no mundo. Assim, ao mesmo tempo em que o
outro permite a formação da subjetividade, proporciona-lhe o acabamento.
O processo de construção de identidade é dialético, é feito de idas e vindas, de
conflitos e tensões. O outro é também produto de muitos outros que o habitam, com seus
valores, suas crenças, suas características de classe social, seus conhecimentos. Retirar essa
concretude do outro significaria pressupô-lo como uma entidade epistêmica, situá-lo no plano
da ficção psicológica. Cada eu é resultado de todos os outros que o formaram.
A idéia de dialogismo complementa o conceito de alteridade, sendo quase uma
decorrência dele. O diálogo é composto por pelo menos três elementos: o falante, o
interlocutor e o contexto. A língua é o produto da interação entre duas pessoas. Bakhtin
aponta também a existência de um sobredestinatário, outro participante no diálogo, cuja
responsividade não é presumida pelo locutor. Este terceiro elemento possibilita que o discurso
possa ressonar num momento histórico diferente da enunciação. O sobredestinatário atua de
forma invisível, porém é dotado de uma compreensão responsiva e está situado acima dos
participantes do diálogo. A sua presença se deduz da possibilidade de diálogo entre
enunciados separados no espaço ou no tempo e que se revelam em relação dialógica mediante
uma confrontação de sentido.
Raras são as falas inaugurais, decorrentes de uma idéia inédita. Não há, sob esta
perspectiva, obra, de autoria singular. Os discursos são formados pelas palavras já ouvidas,
pelo lido ou visto, enfim, pela história vivida. De uma forma geral, há uma continuidade,
quase narrativa nos discursos, que respondem a uma palavra anterior. A narrativa entendida
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aqui como “... mais simples que as crônicas dos fatos; dão forma ao movimento adiante do
tempo, sugerindo motivos pelos quais tudo acontece, mostrando suas conseqüências.”
(Sennet, 2004, p.31). Devido à pluralidade e à alteridade que circundam as trocas discursivas,
Bakhtin insiste na intertextualidade dos discursos, visto que todos os enunciados estão
marcados por diferentes vozes provenientes de diversos falantes e de variados contextos.
O Círculo de Bakhtin interessa-se pelas relações dialógicas enquanto refrações sociais
expressas em enunciados em relação. A linguagem do cotidiano permite enxergar os aspectos
ideológicos presentes no discurso.
... As relações dialógicas são, portanto, relações entre índices sociais de valor (...)
parte inerente de todo enunciado, entendido este não como unidade da língua, mas
como unidade da interação social; não como um complexo de relações entre as
palavras, mas como um complexo de relações entre pessoas socialmente
organizadas. (FARACO, 2003, p. 64)
O diálogo não pode ser restrito à interação, mas deve ser entendido como uma
categoria que permite articular as reflexões sobre linguagem e criação ideológica. (Faraco,
2003, p. 70). Segundo Bakhtin, apenas ao outro é dado ver-me e, minha percepção de mim
mesmo só é possível pela mediação feita por ele, fornecendo um acabamento através de uma
estética possibilitada pelo aproximar-se e afastar-se retornando ao ponto inicial, modificado
pela experiência de ter vivido uma dada realidade pela ótica daquele a quem tento dar um
acabamento. Jobim e Souza define exotopia como: “[...] o fato de uma consciência estar fora
de outra, de uma consciência ver a outra como um todo, o que ela não pode fazer consigo
própria. (...) Cada um de nós se encontra na fronteira do mundo que vê [...]”. (2003, p. 83).
A exotopia não se limita a um conceito espacial, ela é simultaneamente, uma categoria
temporal. O excedente de visão é possível dado o afastamento no espaço e no tempo. Ele
permite dar ao outro uma forma e um acabamento que jamais podemos ter por conta própria..
Bakhtin supera a dicotomia entre a singularidade do sujeito e sua sobredeterminação
social. Uma visão dialética da subjetividade implica nos vários diálogos que a constituíram,
assim, os textos precisam dos contextos para produzirem sentido e tornam-se, então, o
encontro de dois autores, numa mediação entre o individual e o social.
A visão do sujeito numa perspectiva sócio-cultural permite transcender as ordens do
biológico e da abstração, estudando-o enquanto constituído e constituinte de relações sociais.
O homem sintetiza o conjunto das relações sociais e as constrói. Pensá-lo por este viés implica
1085
considerá-lo na perspectiva da polissemia, pensar na dinâmica, na tensão, na dialética, na
estabilidade instável, na semelhança diferente. A conversão das relações sociais no sujeito se
faz por meio da diferenciação: o lugar de onde fala, olha, sente, age, é sempre diferente e
partilhado. Essa diferença acontece na linguagem, em um processo semiótico em que ela é
polissêmica. A especificidade do sujeito se define pelas interconexões que se realizam na
consciência através das mediações semióticas que manifestam diferentes dimensões: a
afetividade, o inconsciente, a cognição, o semiótico, o simbólico, a vontade, a estética, a
imaginação entre outras.
Os eventos: os textos e seus contextos
O conceito de evento vai nortear o recorte das situações de campo a serem analisadas.
Segundo Kramer:
[...] na produção dos discursos, das práticas e interações, os lugares que as pessoas
ocupam e os significados que circulam interferem no significado produzido. Ou seja,
o contexto é importante para entender o texto. Na enunciação, os lugares e as
condições de onde são proferidas as palavras e produzidas as interações produzem
sentidos. (KRAMER, p.18, 2009).
Estes relatos foram extraídos de duas atividades de roda de conversa em turmas de
crianças entre 2 e 4 anos.1 Após uma cantiga sobre a janela que abre ou fecha em função do
tempo, a professora pergunta:
Ontem foi quarta-feira. Hoje é...
Ninguém responde. A professora insiste dando a dica: Quinta-feira. Dia de...
Crianças em coro: Alegria! A professora pergunta o porquê e recebe uma resposta
inusitada de Júlia: Estou resfriada. O que não foi considerado para a conversa.
A professora desperdiçou a chance de exercer a função mediadora dialogando sobre
alegria e tristeza e escutando o que queria dizer Júlia com seu resfriado responsável por um
dia de alegria. Um dos aspectos na construção da subjetividade das crianças é a possibilidade
de reconhecer emoções, nomeá-las e lidar com elas. Cabe ao adulto intermediar esse processo.
Foi possível perceber, no entanto, que também ao adulto parecia faltar um outro capaz de
mediar sua relação com a instituição; o conteúdo dito pedagógico ocupava lugar central nas
1
Os nomes foram alterados para preservação do anonimato.
1086
falas da professora, sem que fosse possível também a ela estabelecer diálogos ou manter com
ele uma relação dialógica.
Outro evento significativo tratou da ausência de algumas crianças como elemento para
a construção da relação entre o número e a quantidade deixando de lado a falta que cada um
faz e a sua importância na composição daquela turma.
- Quem não veio hoje? Perguntou a professora.
Carlos: - Eu vim.
Renato: - A Mariana
Professora: Quem mais? Vamos ver quem sabe.
Renato e Marta: O Luís também.
Professora: Tem outra amiga, uma lourinha...
A auxiliar responde: Eu sei, a Maria.
Professora: Então, quantos faltaram quem pode mostrar o número?
Renato levantou-se e apontou o número três preso na parede.
O que terá passado pelo pensamento das crianças? Faltar, ao invés de ser vivenciado
pelo grupo como uma perda, era rapidamente assimilado e transformado em conteúdo
curricular, como se o aspecto cognitivo tivesse maior relevância que o afetivo. E quanto à
interação efetiva da professora? Podemos aventar a hipótese de que sua presença ou
substituição por outra pessoa também se mostrasse irrelevante. O evento da presença da
abelha, mais uma vez, revela o peso do conteúdo sobre as relações.
A professora a e turma estão cantando uma canção onde as partes do corpo são
nomeadas quando uma abelha atravessa a rodinha, despertando a atenção de várias
crianças. A professora ao invés de apropriar-se deste acaso para dar novo rumo ao
diálogo, incorporando os elementos da realidade concreta das crianças, as chantageia
dizendo para a auxiliar: Tia Lucinha, hoje estou muito triste. O Carlos e o Pedro não
estão cantando, vamos cantar a canção do abraço.
É possível identificar nas canções uma função disciplinadora e não uma expressão de
uma linguagem musical, corporal ou artística. A música “ocupa” as crianças com a proposta
da professora e não permite que elas se dispersem por seus interesses diferentes.
1087
A professora chama todos para sentarem e propõe uma nova atividade. A tarefa
consiste em perceber o objeto que temos nas mãos com os olhos vendados. Antes de
iniciar a atividade, a professora pega formas geométricas de madeira (material
concreto) e pergunta se são iguais – ambas são vermelhas – parte da turma diz que
sim, parte diz que não. A resposta da professora dá margem a algumas reflexões:
“São diferentes! Olha, é um círculo e um quadrado.”
A professora não pôde perceber ali a existência de outros sentidos dados pelo olhar da
criança e pela valorização de aspectos distintos dos que havia eleito. Uma prática monológica
que reduziu a possibilidade de sentidos múltiplos fornecidos pelas próprias crianças.
A própria transcrição dos eventos apresenta a ação principal da professora. É ela quem
dirige as atividades, elege interesses e reafirma “verdades” através das respostas certas. A fala
das crianças parece marcada por um apagamento das individualidades presente no coro de
respostas ensaiadas às perguntas não formuladas. Tratava-se de completar as lacunas com as
falas ensaiadas na repetição de várias rodas de conversa semelhantes. Que concepção de
criança e de infância está por traz dessa prática? Aparentemente, continuamos no tempo dos
in-fants (aqueles que não falam) e dos alunos (aqueles que não possuem luz). A narrativa não
teve lugar nessa conversa e os atores sociais – crianças ou adultos – desempenhavam os
papéis esperados com mais ou menos perfeição.
Na turma do maternal, a rodinha foi iniciada a partir de um jogo de cartas trazido pelas
crianças. A professora desafiou a lógica, perguntando se a cor do naipe de copas era verde:
“Coração verde?”
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Várias crianças disseram: “vermelho”. A professora aproveitou para que as crianças
indicassem o que mais na sala era desta cor. “E o sapato novo da Fabiana?”
Crianças: “Vermelho.”
Mariana “entra no jogo” e sinaliza que a auxiliar também tem uma roupa vermelha:
“O casaco da tia Paloma.”
Professora: “E a capa do super-homem?”
Crianças: “Vermelho.”
Professora: “E o resto da roupa?”
Crianças: “É azul.”
Esta atividade marcou uma transição sem rupturas entre a chegada das crianças e a
proposta da roda de conversa. Um elemento trazido de fora da sala de aula – a carta do
baralho – faz a ponte entre o que se vai debater e aquilo que pode ser trazido de casa ou da
rua. Há uma continuidade nos acontecimentos, onde, à semelhança de uma narrativa, os
eventos se sucedem afetando o que ocorre a seguir ou sendo por ele refletido.
Num segundo momento, buscando organizar o grupo para atividade a professora
convida: Vamos fazer a rodinha, vamos todos sentar... Puxa, aqui só tem criança
esperta, estão guardando seus casacos. Eu vou sentar.
Gustavo: Eu também.
A professora verbaliza com freqüência a ação das crianças. Trata de um grupo que está
começando a dominar a linguagem verbal, a expressão do adulto auxilia, tal como a fala
egocêntrica de que trata Vigotski (2001, p. 442), na organização do pensamento e das ações,
abrindo caminho para o desenvolvimento da fala interior, ou como propõe Bakhtin,
construindo sua subjetividade através da língua materna (2002, p. 108, nota de rodapé). “Uma
vez materializada, a expressão exerce um efeito reversivo sobre a atividade mental; ela põese então a estruturar a vida interior, dar-lhe uma expressão ainda mais definida e mais
estável”. (BAKHTIN, 2002, p 118).
Auxiliar: “O Paulo não está com perninha de chinês.”
Com a turma um pouco mais organizada, a professora cumprimenta: Boa tarde!
Ainda há crianças espalhadas no centro. A professora rearruma o grupo, se
aproximando das crianças e levando-as ao círculo, enquanto pergunta: O que
estamos fazendo aqui, uma salada de crianças?
Luciana: (rindo) “Uma salada!”
A “salada” de crianças, além de uma imagem engraçada, pois o humor é feito do
inesperado, mostra que as palavras e as coisas prestam-se a vários sentidos. O uso não
1089
convencional das palavras não impede a busca de novos sentidos, pois, segundo Bakhtin
“para o locutor o que importa é aquilo que permite que a forma lingüística figure num dado
contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta.”
(2002, p 92-93). E mais, para o entendimento do sentido, não é necessário reconhecer a forma
lingüística, mas compreendê-la.
Mais adiante, a atividade é interrompida pela entrada na sala da professora de outra
turma. Ela é incluída na brincadeira: “Boa tarde tia Jane como vai?”
Jane joga muitos beijos. A professora aproveita para trazer um aspecto da afetividade
que é muito presente nesse grupo: “Tia Jane veio paquerar vocês, ela gosta muito de
vocês.”
Taís: Não, não gosta.
Mariana: Ela ama.
De forma perspicaz a professora abre espaço para a nomeação de aspectos
relacionados à afetividade, trazendo o difícil assunto do afastamento dos pais, aspecto muito
presente na realidade da turma do maternal:
Quem entrou chorando hoje?
Marina: Eu não!
Taís: O Paulo
Professora: E precisa chorar?
Paulo: Não.
Trazer à tona temas “tabu”, tem um efeito tranqüilizador sobre as crianças. É como se
a professora reconhecesse esse momento difícil e o legitimasse através da expressão verbal;
aceita a possibilidade da separação ser dolorosa, ela pode até adquirir uma relevância menor e
deixar de ser necessariamente acompanhada do choro.
Diferentemente da outra turma, o tempo dispensado à roda de conversa é de
aproximadamente uma hora, já planejada, uma vez que pressupõe participação ativa das
crianças. A escuta é atenta e os mais inibidos são convidados a falar. Os conflitos que surgem
no grupo são administrados, não há uma expectativa de que as crianças permaneçam passivas,
escutando o que a professora tem a dizer. Não há a indução de respostas.
Esperando respostas do leitor ou reticências...
Se evitarmos conclusões precipitadas, podemos escapar da armadilha de tomar a
primeira roda de conversa como monológica e a segunda, por sua vez, como dialógica. As
1090
duas professoras são a expressão da instituição onde atuam, ambas devem alternar, com
freqüência variada, momentos de maior ou menor expressividade no discurso. O que temos
aqui é um instantâneo que pode se revelar injusto com uma das profissionais observadas. As
práticas vistas retratam um todo que, como qualquer contexto, apresenta suas contradições.
Bakhtin sugere que há, em algumas ocasiões, uma situação inscrita duravelmente nos
costumes e que, por isso, mobiliza um auditório que se organiza de forma específica e que
responde através de “um repertório de pequenas fórmulas correntes” (2002, p.126). A
questão é: onde pretendemos inserir as rodas de conversa? No contexto das situações
estereotipadas, que independem de seus atores concretos, pois que as falas já estão dadas, ou
numa situação de diálogo real, onde cada qual expressa aquilo que julga pertinente e espera do
outro uma atitude responsiva ativa? Crianças e adultos, professoras e alunos podem ser
conduzidos a um ou outro modelo de interação. Bakhtin e Vigotski privilegiam a entoação ou
o sentido que a palavra assume quando deixa de ser a língua morta do dicionário e se
concretiza no real das experiências (internas ou externas). A palavra, por si só não têm
existência para além do dicionário, aonde vem atrelada a um significado que, embora indique
um sentido é vazio de diálogo, não inserido no discurso de ninguém.
O papel do outro é fundamental e estruturante do sujeito. O discurso de cada um é
dirigido para este outro, seja pelo seu desejo, seja pelo diálogo que ele estabelece com tantos
outros que compuseram uma dada linguagem na história e pela cultura. Quando, na sala de
aula, ao oferecer-se como um outro ao aluno, o professor finge escutar, pouco a pouco, o
aluno aprende a não falar, tornando-se ambos simulacros de si próprios num modelo de
relação perverso onde ambos são destituídos de sua capacidade de romper o instituído, de
subverter a ordem, de assumirem a autoria de suas falas, de suas aprendizagens e de suas
histórias. A infância não é percebida em sua positividade. Criança como um vir-a-ser, infância
como um tempo que antecede a vida adulta, percebida por aquilo que não é. Embora Bakhtin
(JOBIM E SOUZA, 2001, p.103) critique a dialética hegeliana por considerá-la monológica
(já que, em sua preocupação com a consciência abstrata, acaba por esvaziar de história o
discurso), trago aqui a dialética do senhor e do escravo ao pensar num determinado modelo de
relação entre as professoras e seus alunos: se às crianças é determinada uma negatividade, o
pólo da positividade seria o adulto da relação, que detém algum saber. Mas, como em Hegel,
verificamos uma conversão dialética: assim como o senhor só o é por ser reconhecido pela
consciência do escravo dependendo de seu trabalho para existir, logo mais aprisionado que
ele, o professor, ao negar a concretude da infância, seu saber, aprisiona-se numa relação com
1091
um outro sem reconhecimento atual (valorizável apenas no futuro). A falta de valorização
circula, então, entre aquele que não é e o que o ensina para que venha a ser. O produto desse
trabalho fica no futuro, deixando, no presente, um vazio, uma não produção.
Talvez, ao construir uma nova concepção de infância que dê conta de sua
inserção no contexto cultural e de suas relações com os outros sujeitos da história, possamos
permitir ao professor reconquistar uma identidade positiva, digna de um reconhecimento
social. Resgatar a autoria lá onde ela parece ausente, pois,
Ser autor significa dizer a própria palavra, cunhar nela sua marca pessoal e marcar-se
a si e aos outros pela palavra dita, gritada, sonhada, grafada... Ser autor significa
resgatar a possibilidade de “ser humano”, de agir coletivamente pelo que caracteriza
e distingue os homens... Ser autor significa produzir com e para o outro...
(KRAMER, 2003, p. 83)
Ao iniciar a pesquisa que originou este texto, buscava respostas na possibilidade
de resgate/valorização do discurso do professor e da criança, assim como do diálogo que se
estabelece entre eles. Partia dessa certeza, não intuitiva - pois fundamentada no que a
Psicanálise me ensinou - de que a forma de colaborar na construção de sujeitos críticos,
únicos, porém cúmplices de um mesmo momento histórico, passava pelo resgate da
capacidade de enunciação. Sabia ainda, que essa fala devia ser ouvida, sob pena de não
produzir ressonâncias, de não se constituir num diálogo verdadeiro.
Esbarrei então na ponta do novelo. Há que se investir na fala do professor para que ele
possa ser surpreendido pelas múltiplas significações propostas pela criança, reaprendendo a
brincar, transformando objetos, “desadaptando” um pouco sua imaginação da realidade. De
certa forma, é isso que propõem Bakhtin e Vigotski. É isso que proponho em minha prática:
“... A linguagem como espaço de recuperação do sujeito como ser histórico e social.” (Jobim
e Souza, 2001: p.93). Ouvindo o que fala a professora, valorizando seus registros orais e
escritos, criando, ou fortalecendo uma ação que privilegia o diálogo, essa prática vai se
irradiar, contaminando aqueles que, direta ou indiretamente, estão envolvidos nela. A fala da
criança é o ponto de partida e de chegada dessa transformação, desde que escutada junto à fala
do adulto, para que ambos, cada qual a partir de sua existência única, possam produzir outros
sentidos, brincando com as palavras como os poetas.
1092
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salada de crianças: a roda de conversa como prática