DO TRAÇO AO LAÇO: A ESCRITA NA PSICANÁLISE COMO
TENTATIVA DE FAZER DO TRAÇO REAL UM LAÇO SIMBÓLICO.
Maurício Eugênio MALISKA1
RESUMO: Trata-se de uma reflexão em torno da escrita em Psicanálise. Parte-se da importância da escrita na
clínica, não somente nas anotações do que é falado numa análise, mas também da assunção do sujeito na escrita.
Estabelece-se uma diferença acerca do lugar da escrita no ensino de Freud e de Lacan, para marcar que em Freud
a escrita remete a um universo simbólico da clínica psicanalítica; já em Lacan é possível constatar uma
insuficiência da escrita como forma de grafar o real da clínica. Lacan recorre então a Topologia e a Matemática
para tentar esboçar uma escrita topológica, aforística, algébrica e lógica de um irredutível real da clínica em jogo
nas análises. Essa tentativa de Lacan em grafar algo do real pode remontar a um momento lógico da pré-escrita
da criança, em que essa tenta, nos rabiscos, traçar um inquietante real que resiste a ser capturado pelo
significante na linguagem.
PALAVRAS-CHAVE: Escrita; Psicanálise; Traço real; Laço simbólico.
O tema da presente mesa me fez indagar sobre as dimensões da Escrita para o
Psicanalista. Em especial, convocou-me a pensar o lugar da escrita na relação do psicanalista
com a clínica.
Freud (1912), quando se refere explicitamente à escrita do psicanalista, aconselha os
analistas a tomarem notas do que dizem seus pacientes. Aconselha que essa escrita não seja
concomitante com o momento da sessão, dando prioridade à escuta flutuante, mas que em
outro momento, o analista escreva o que pôde escutar daquilo que foi dito pelo analisante.
Para além da recomendação aparentemente simples, repousa uma delicada e instigante
questão: Afinal, como é possível escrever a clínica? A escrita não está restrita somente a
colocar num registro gráfico aquilo que foi da ordem oral, durante as sessões. Inclusive me
recordo dos alunos, estagiários no Serviço de Psicologia da Unisul2, que por várias vezes
demandam sobre o que devem anotar das sessões. Em alguns momentos, perguntam se é
necessário anotar tudo que o paciente diz; em outros, se esforçam para não perder nada do que
foi dito, e com isso, acabam produzindo relatos forçados por uma ordem do devir, da
obrigatoriedade, e se esquecem do principal nas recomendações de Freud: escrever aquilo que
foi escutado e isso significa tentar colocar na escrita o efeito do significante na clínica. Tratase de tentar escrever algo da experiência inconsciente que se passa na análise e não um relato
dessubjetivado, taquigráfico, com vistas a uma totalização imaginária e ilusória.
Para além da ingenuidade dos alunos, com perguntas que visam à apreensão de um
todo impossível, a relação do psicanalista com a escrita está ancorada no efeito da clínica
sobre si, ou mais exatamente, no efeito da sua análise sobre a sua clínica. Que testemunho
(escrito) pode o analista dar a respeito do que se passou na sua análise e se passa na sua
clínica, nas análises que ele conduz? Aí reside uma dimensão subjetiva que leva em conta um
sujeito constituído a partir dos significantes que ora traça em sua escrita. Trata-se, portanto, de
“recuperar” o efeito da clínica, ou seja, o fundamento do sujeito que é (e)feito de linguagem.
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Doutor, Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).
Trata-se da experiência com alunos matriculados em Estágio Obrigatório no Serviço de Psicologia (clínicaescola) da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) sob minha supervisão.
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Com relação a esta diferença entre uma escrita que leve em conta o sujeito e outra que
tenta ser um relatório desprovido de sujeito, alvo de uma grafia descritiva, lembro-me de um
episódio que se passou no início de meu mestrado, quando eu cursava duas disciplinas bem
distintas: uma, obrigatória, a respeito de um conteúdo que não me atraia em nada; e outra,
extremamente ligada aos meus interesses de pesquisa e que me colocava a trabalhar com
muito desejo. Ao final do semestre, produzi dois ensaios tentando contemplar as exigências
acadêmicas para aprovação nas referidas disciplinas. A professora responsável pela disciplina
obrigatória me chamou e disse que eu não escrevia bem, que meu texto era confuso e que eu
deveria me preocupar com isso, pois, eu teria uma dissertação para escrever e daquele jeito
não tinha condições. Já o professor responsável pela outra disciplina disse que meu texto era
muito claro, coeso e muito bem escrito. Fiquei perplexo com ambos os comentários, pois eles
apontavam para direções opostas; um comentário era exatamente o contrário do outro. Por um
tempo, fiquei pensando qual professor estava certo; fiquei tentando descobrir qual deles teria
feito uma leitura mais crítica e estaria, portanto, dizendo algo mais verdadeiro a respeito da
minha escrita. Por fim, conclui que ambos tinham efetuado uma leitura crítica e que a
discrepância dos depoimentos não apontava para um problema de escrita, mas para um
problema de sujeito. O problema estava no sujeito e não na escrita, e isso significa que a
posição do sujeito ao escrever um determinado texto não foi a mesma ao escrever o outro
texto, houve uma ascensão do sujeito do desejo e com isso desponta algo de um desejo
decidido, com uma outra escrita. Isso marca a relação do sujeito com a escrita e o quanto uma
escrita que tenta se subtrair do sujeito do desejo, em função tão somente de uma
obrigatoriedade, pode produzir efeitos danosos.
Se o sujeito é feito e efeito de linguagem, não podemos na linguagem (seja na escrita
ou na fala) subtrair o sujeito e ficar apenas com a linguagem; e nem tão pouco subtrair a
linguagem e ficar com o sujeito. Desse modo, parece interessante pensar a dimensão subjetiva
presente na linguagem (neste texto, prioritariamente, na escrita), afinal, Benveniste (1995) há
muito tempo já chamava a atenção para a dimensão subjetiva na linguagem. A dimensão
subjetiva na escrita não está presente somente por haver um sujeito que escreve, mas na
própria constituição da linguagem há a dimensão de um sujeito em falta, pois a linguagem é
uma relação de presença/ausência, na medida em que a linguagem presentifica algo que está
ausente. Da mesma forma, a escrita faz perdurar aquilo que teria se perdido no momento
mesmo de sua enunciação falada. A escrita presentifica a falta que faz com que a linguagem
se perca. A escrita é a formalização, é a grafia, uma inscrição que se inscreve e escreve a cada
vez, em um ato que produz efeitos por esta dimensão de registro.
Em relação à escrita da clínica, propriamente dita, a tradição freudiana se constituiu
por uma escrita de casos, prova disso são os famosos casos de Freud (Anna O. Dora, Homem
dos Ratos, Homem dos Lobos etc.) escritos com uma refinada pena, que já em sua época eram
lidos em Viena como um roman à clef, como próprio Freud (1905[1901], p. 20) observara. De
todo modo, a escrita de Freud se constitui num plano simbólico da operação subjetiva na
medida em que ele escreve os casos com muito entusiasmo e os recheia com requintes de
sofisticação linguística e estilo literário, sem perder a riqueza conceitual e clínica da
psicanálise. Já a escrita em Lacan parece não ter o mesmo estatuto que em Freud, pois não
temos nesse a mesma tradição de escrita de casos que temos em Freud. Lacan praticamente
não escreveu casos clínicos ─ salvo os de sua tese de doutorado em Psiquiatria e alguns
outros pequenos textos em épocas incipientes de seu ensino ─ o que faz com que sua relação
com a escrita seja de ordem bem diferente daquela de Freud.
A rigor, Lacan escreveu pouco se comparado com Freud, seu ensino está fortemente
ancorado na tradição oral dos seminários. Os Escritos (1998) e Outros Escritos (2003)
concentram basicamente todos os textos escritos por Lacan. Isso não coloca nem um déficit
nem um ganho em relação a Freud, mas uma outra posição que não é a mesma do mestre
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vienense. Lacan, diferentemente de Freud, não busca ser compreendido e nem mesmo possui
um estilo que facilite sua leitura, ao contrário, possui um estilo hermético, em que as palavras
são de uma difícil apreensão. Isso não é uma forma lacaniana de dificultar as coisas, mas de
mostrar o quanto os conceitos são complexos e sua acessibilidade merece ser tratada com
distinção. Se a escrita de Freud busca colocar no simbólico da grafia aquilo que se passou na
clínica, a escrita de Lacan mostra os limites e até mesmo as impossibilidades dessa operação.
Lacan aponta as dificuldades de uma escrita da clínica, por vezes, sua impossibilidade, pois
escrever a clínica é tentar colocar no simbólico aquilo que é da ordem de um real que resiste a
significação e escapa ao alcance do significante.
Esse perece ter sido o impasse de Lacan, pois escrever, para ele, representa colocar em
palavras o real da clínica, um real que, muitas vezes, não se submete às palavras, em que essas
não dão conta de capturá-lo. Talvez seja justamente por isso que Lacan (2008) irá dizer que a
teoria psicanalítica é um discurso sem palavras, ou seja, um discurso que aponta para um ato
(psicanalítico) que se faz nesse indizível da clínica, cujo simbólico não dá conta. Temos aí, o
registro real da experiência psíquica, este que Lacan (1985, p. 125) aponta como um impasse
em sua formalização, ou seja, há um impasse na formalização do real, um impasse em colocálo, ainda que seja por pontas e partes, no registro simbólico da escrita. Por isso mesmo Lacan
(1985, p. 198) pontua no Seminário 20 que o real é aquilo que “[...] não cessa de não se
escrever”, ou seja, ele não se escreve e também não cessa de não se escrever. Há um
movimento contínuo de não cessar de não se escrever. Como tratar (dizer, formular, escrever,
formalizar) o real tão presente no seio da prática psicanalítica? A possível saída desse
impasse, para Lacan ─ que diferentemente de Freud não pára diante da rocha viva da
castração e dá um passo a mais ─ foi a utilização da Matemática e da Topologia como forma
de tentar formalizar esse real tão fugidio e arredio à linguagem. Na verdade, Lacan percebe
que a aproximação com a Linguística não dava conta do inconsciente estruturado como uma
linguagem, e essa, apesar de necessária, era insuficiente para dar conta dessa “uma
linguagem” que estrutura o inconsciente. Ou seja, tem algo na linguagem e no inconsciente
que está para além do registro simbólico e que apesar deste ser necessário ele não é suficiente
para dar conta da linguagem e do inconsciente. Há algo de real na linguagem e no
inconsciente que faz com que a Linguística, enquanto ciência da linguagem, não processe o
real. Por isso, Lacan parte para uma aproximação com a Matemática e busca nessa uma
possível formalização para a irredutibilidade do real. É através da Matemática, das figuras
topológicas, dos aforismos, dos esquemas que ele tenta dizer algo do real da clínica em jogo
nas análises. Lacan propõe uma outra Escrita, não mais letrada, alfabética, simbólica; mas
uma escrita algébrica, topológica, aforística, lógica, na tentativa de grafar as insígnias do
desejo inconsciente e a turbulência pulsional que constitui o sujeito.
Essa tentativa lacaniana de recorrer à Topologia, à Matemática, à Lógica para explicar
algo do sujeito e do inconsciente não acaba “encontrando”, de fato, o sujeito; ou seja, esses
esquemas e figuras lacanianas de difícil entendimento e compreensão não estariam situadas
num outro registro gráfico, diferente da escrita alfabética e letrada, e neste sentido, mais
próxima dos rabiscos, traços e grafos da criança que ainda não adentrou no simbólico da
escrita, mas beira isso através de traços? O que perguntamos num tom retórico é que a
proposta da Escrita lacaniana (de demonstrar o real e colocá-lo num plano da escrita) se
coaduna com a tentativa da criança (na pré-escrita) de colocar um real inquietante em grafos
que tentam simbolizar algo desse real que constitui o sujeito do inconsciente.
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Referências
BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral I. 4ª ed. Campinas: Pontes, 1995.
FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise. (1912). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
______. Fragmentos da análise de um caso de Histeria (1905 [1901]). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. O Seminário, Livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2008.
______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
______. O Seminário, Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
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